Trabalho infantil: justiça frente ao horror

Atahualpa Fernandez e  Manuella Maria Fernandez

Se Dante Alighieri pudesse regressar, que círculo do inferno reservaria aos segazes exploradores da mão-de-obra infantil? A pergunta bem poderia ser um simples exercício de retórica se não fosse pela circunstância de que comportamentos com características deste tipo a nossa sociedade parece revelar uma aviltante experiência. De fato, já faz algum tempo que, sobre essa questão, se rebaixou o nível do social, do ético e do esteticamente tolerável.

Cada vez que aparece uma notícia ou denúncia de trabalho infantil, cada vez que vão saindo à luz os detalhes dessa forma de exploração, o estremecimento é inevitável. É bastante provável – como lembra Antônio Lima, vice-coordenador da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança do Ministério Público do Trabalho- “que além de questões econômicas e sociais, o trabalho infantil existe porque é aceito culturalmente no Brasil,… e de que há uma falha da sociedade, que ainda concebe o trabalho infantil como uma solução para as crianças pobres”.  Também pode ser mais que isso: que por razões nada difíceis de imaginar nossas instituições continuem pecando por sua omissão, negligência e/ou indolência no que se refere à aplicação de políticas públicas mais eficazes e imediatas destinadas à erradicação desta perversa, absurda e degradante forma de exploração.

Na verdade, qualquer parecido com o que caberia chamar de compromisso ético com nossas crianças parece  brilhar, hoje,  de maneira clamorosa por sua ausência. E nem se diga, ao melhor estilo kantiano, que em temas como esse o que conta são as “boas intenções”, porque a ação é a única prova fiável e fidedigna para valorar a intenção: se a ação nunca aparece ou é demasiada tardia, é muito provável que a intenção seja uma farsa. E embora não exista  nenhuma terra neutral entre o bem e o mal onde alguém possa viver uma vida moralmente tranquila, nossas instituições  se comportam como se estivessem vivendo esse tipo de vida.

Ademais, nunca é demasiado recordar que a essência da apatia reside precisamente no fato de que carrega consigo a completa perda de interesse no que sucede. Nada nos preocupa nem nos importa. E uma consequência natural disso é que nossa disposição a estar atentos se debilita e nossa vitalidade ou sensibilidade moral se atenua.Em suas manifestações mais habituais e características, o conformismo apático,a indolência ou a negligência implica uma redução radical da agudeza e constância de atenção ao que realmente importa. Nossa consciência moral perde a capacidade de perceber injustiças, convertendo-se em algo cada vez mais homogêneo. E à medida que se expande e se apodera de nós, a indiferença faz com que nossa consciência ou compromisso ético experimente uma diminuição progressiva de sua capacidade de perceber os fatos importantes. A justiça só é um valor para os que se interessam e desejam a justiça. A humanidade só é um valor para os que  desejam viver humanamente; a vida só vale para quem a busca ativamente; e nenhuma coisa comanda a não ser proporcionalmente ao interesse que temos por ela. Dito de modo mais simples: ter interesse por alguém ou algo significa ou consiste essencialmente, entre outras coisas, em considerar seus interesses como razões para atuar ao serviço dos mesmos. 

Visto desde essa perspectiva, a exploração do trabalho infantil parece indicar que enquanto nossos dirigentes não atuem rápida e explicitamente na solução desse problema, são todos eles cúmplices. Episódicas expressões de  consternação não somente não são (definitivamente) suficientes senão que  já não há mais tempo e nem motivos para este tipo de comportamento:  a “apatia”, a “inércia”, a “indiferença”, a “insensibilidade moral” – chame-se como queira – de nossas instituições é  fenômeno inconcusso que deveria fazer-nos reflexionar vivamente sobre o ponto de estancamento a que estas  parecem haver chegado.

Mas o que salta à vista, por mais que possam negá-lo – que certamente não o fazem – as autoridades e as instituições  responsáveis pela proteção infantil, é que, já faz algum tempo, alcançamos sobre essa questão uma situação de stress, reprovável e feia. E que isso esteja sucedendo ademais com vítimas inocentes e até mesmo com crianças supõe algo de tanta gravidade que deveria preocupar a todos, pelo simples fato de que situações deste tipo leva a que se deva recordar algumas trivialidades. A primeira, que se governa sobretudo por meio de uma participação e um compromisso integral dos dirigentes das instituições públicas estatais. A segunda, que somente por meio de instituições permanentemente atuantes, vigilantes e eficazes é possível viabilizar o florescimento e o crescimento de comunidades éticas. A terceira, que a ausência de garantias mínimas e oportunidades reais por detrás de qualquer interesse meramente político ou desinteresse institucional,  condena qualquer tipo de preocupação ética à ruína . Enquanto olvidemos essas verdades, a degradante exploração de nossas crianças estará garantida.

E se continuarmos a dar essa situação por normal, se não fazemos nada para corrigi-la, talvez possamos economizar os discursos e gastos que se investem na proteção da infância porque, de uma maneira ou outra, não servirão de grande coisa. Assim que nos preocupa a atitude de nossas instituições e governantes quando, ainda diante de casos de exploração da mão-de-obra infantil, continuam a insistir em um modelo de Estado que não trata de defender sua liberdade,  de protegê-las frente aos abusos dos exploradores e a inércia dos poderes públicos , de prevenir e condenar com eficácia a ação delitiva dos que as exploram, de inviabilizar qualquer forma de existência indigna ou de criminalidade, de promover a igualdade entre os indivíduos, de tutelar e garantir (de forma incondicional) a inviolável  segurança e dignidade de toda criança, de educar e formar verdadeiros cidadãos, de por  fim a um modelo de  sociedade que se encontra a mercê de uma violência descontrolada, enfim, de atuar como agente construtor de uma comunidade de homens livres e iguais , unidos por uma comum e consensual adesão ao Direito e em pleno e permanente exercício de sua cidadania… e por aí poderíamos seguir.

Depois, sempre que sucede algo assim e por mais que os redatores da “lei das leis” tenham imposto grande empenho retórico na proteção da infância, custa trabalho ater-se às normas do Estado de direito, ao conceito civilizado de Justiça, porque se disparam todos os mecanismos de repulsa automática. Duro é que ainda existam pessoas que defendem “a diminuição da maioridade, não só perante a responsabilidade criminal, mas também para o ingresso no mercado de trabalho, já que trabalho fiscalizado, adequado e salubre nunca prejudicou ninguém, pelo contrário, é uma grande fonte de prazer, realização e, principalmente, de formação”.

Mais duro ainda é a insensibilidade moral e emocional da sociedade como um todo diante desse tipo de prática. Talvez já seja hora de que se deva voltar a aprender a indignar-se, a rebelar-se contra certa cultura da indiferênça, do descaso, da interferência arbitrária, da impotência e do conformismo, enfim, da eliminação de todo e qualquer tipo de exploraçao infantil,  justamente agora que vivemos em um Estado em que no plano da política já enlouquecemos todos e se manejam cifras de escândalo como se se tratasse de uma troca de figurinhas em uma atividade que não mais ultrapassa sequer o umbral do trivial. Afinal, as práticas que soem prosperar são exatamente as que contribuem a conservar os sistemas que lhes permitem ser transmitidas.

Porque não é necessário que proliferem os casos de espantosa exploração: com um, sobra. Nem as crianças exploradas tem culpa alguma do que está sucedendo, nem dispõem de oportunidade para escapar a essa tragédia. Somente o Estado e a sociedade em seu conjunto podem armar as barreiras necessárias para que essas coisas não possam passar nunca jamais. Mas podem nossos governantes ter ainda  a pretensão  de não olvidar  a vinculação necessária entre suas atuações e a proteçao infantil? Parece que sim, desde que  considerem que a atividade de governar deve estar permeada pela pretensão de que suas atuações sejam moralmente corretas, justas e sem solução de continuidade.

A ela (atividade)  lhe corresponde a intenção e o dever de agir pronta e corretamente , de que  não é suficiente para resolver o atual, alarmante e desconcertante problema da exploraçao do trabalho infantil o recurso a acontecimentos trágicos ou a uma retórica vazia sobre os direitos fundamentais que concede a Constituição a todo cidadão. Na prática, esse conjunto de direitos de que tão orgulhosos devemos sentir-nos tropeça com a evidência do que está sucedendo com nossas crianças, que não é nem sequer o primeiro dos dramas com vítimas de muito escassa idade.

O ato de governar carrega consigo a virtuosa intenção e disposição de mudar  um estado de coisas de conformidade com algo que se pretenda  justo , isto é, com a idéia de que todo cidadão brasileiro sempre deve ser respeitado como um fim em si mesmo e não como mero objeto de estatísticas estatais. Somente sob essa perspectiva poderá  vir o Estado brasileiro a  afirmar-se  como  instituição  preocupada com a justiça e com a Constituição da República , não somente controlando toda a desregrada maquinaria estatal em suas funções administrativas e legais , senão também assegurando de forma efetiva os princípios , direitos  e  garantias constitucionais. Em resumo, como diria Rawls, do que “deve ser” próprio da atividade de uma instituição justa.

É preciso reconhecer  que  enquanto houver crianças vivendo na miséria gerada pela total falta de oportunidades reais e com o permissão de outros – “no pior de todos os mundos possíveis”, para usar a expressão de Schopenhauer –,ética, liberdade e igualdade , não são para elas sequer meras possibilidades humanas. Depois, para ser um bom governante não basta com  ter “boas intenções” , senão que é necessário também ter outras virtudes como  sentido da justiça , compaixão , determinação e valentia.

Mas se em realidade  nada disso importa, pior para todos. Sem embargo, a mensagem que há que enviar àqueles que estão governando é que não é insignificante ou “sem sentido” o que está sucedendo com nossas crianças: que a indiferença, a indolência e/ou a falta de fórmulas muito mais eficazes, dinâmicas e imediatas de proceder a total erradicação do trabalho infantil não são ( e não devem ser) a regra. Que a simples suspeita de que algo vai mal (e vai) já constitui razão suficiente para ficar atento e  averiguar o que efetivamente está ocorrendo. E que, depois de tudo, se obrará em conseqüência.

Já é hora de que as instituições públicas e a sociedade em seu conjunto , no que se refere ao problema do trabalho infantil, deixem de uma vez por todas de habitar no primeiro círculo do inferno de Dante ( o da  indiferenzza, o reino do puro interesse próprio egoísta, a “origem de todo mal” e a mais cruel e perversa forma de castigo moral) e passem a contemplar toda e qualquer criança ( rica ou pobre) como um ser humano com plena aptidão para sentir, aprender, reagir, amar, eleger, cooperar, dialogar…, enfim, como titular do incondicional direito de ter oportunidades reais para ser capaz de autodeterminar-se livre e dignamente no âmbito de sua secular e peculiar existência.


 

REFERÊNCIAS BIGRÁFICAS

ATAHUALPA FERNANDEZ:  Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pom u Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular da  Unama/PA;Professor Colaborador (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

MANUELLA MARIA FERNANDEZ: Doutoranda em Direito Público (Ciências Criminais)/ Universitat de les Illes Balears-UIB; Doutoranda em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears-UIB ; Research Scholar en el Laboratorio de Sistemática Humana/UIB.

Clovis Brasil Pereira
Clovis Brasil Pereirahttp://54.70.182.189
Advogado; Mestre em Direito; Especialista em Processo Civil; Professor Universitário; Coordenador Pedagógico da Pós-Graduação em Direito Processual Civil da FIG – UNIMESP; Editor responsável do site jurídico www.prolegis.com.br; autor de diversos artigos jurídicos e do livro “O Cotidiano e o Direito”.

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