*Denise Heuseler
O neoconstitucionalismo é movimento doutrinário recente que discute as formas de legitimação popular no processo de reforma constitucional.
Opõe-se à racionalidade constitucional que aponta o núcleo imutável de norma constitucional denominado “cláusulas pétreas”, em razão do princípio da democracia majoritária, que garante o respeito à vontade da maioria popular.
O neoconstitucionalismo[1] possui desdobramentos no que se refere ao exercício de jurisdição constitucional, especialmente no controle das políticas públicas propostas pelo legislativo a serem realizadas pelo executivo por parte do judiciário.
A idéia da supremacia constitucional surgiu com as revoluções liberais que trouxeram à baila a noção de Constituição formal e escrita.
A tradição norte-americana muito contribuiu para a concepção de supremacia da Constituição e sua garantia jurisdicional.
Na ótica do constitucionalismo contemporâneo se resolve em judicialismo, cuja função consiste em manter o respeito às regras básicas de organização política.
Com a concepção do constitucionalismo nascida com a Revolução Francesa, a Constituição não se restringe a fixar as regras do jogo, sendo tida como projeto político destinado a promover transformação política e social.
E, se consagrando como “Lex fundamentalis” com a intervenção direta na realidade e, condicionando o futuro de decisões coletivas a propósito de questões tais como o modelo econômico e a ação do Estado em várias áreas como saúde, esportes, educação, relações trabalhistas e, etc.
O constitucionalismo, em suma, defende a Constituição como lei suprema do Estado brasileiro e o fundamento de validade de todas as demais normas jurídicas.
Assim, as normas serão válidas se estiverem em conformidade com as normas constitucionais.
A Constituição brasileira propõe limitações explícitas ao governo nacional e aos estados individualmente, institucionalizando a separação dos Poderes, constituída de maneira que um controla o outro, é o que os ingleses e norte-americanos denominaram de checks and balances.
No sistema anglo-saxão o judiciário aparece como guardião para, em caso de eventuais rupturas, em particular através do “judicial review”[2].
A renovada supremacia da Constituição proposta pelo neoconstitucionalismo transcende a mera necessidade de controle de constitucionalidade e a tutela eficaz do âmbito individual de liberdade.
A nova idéia de constitucionalismo une precisamente a noção de Constituição enquanto norma fundamental de garantia, com a noção de norma diretiva fundamental.
Reservando um relevante papel para o Judiciário que é de moderador da vontade estatal dos poderes constituídos legislativo e executivo, ultrapassando o mero controle de constitucionalidade e de legalidade, respectivamente, situando-se também no controle de políticas públicas principalmente as com sede constitucional.
Com a crise do modelo intervencionista do Estado, ocorrida no período pós-guerra (2ª GG), alumbra um terceiro modelo de Estado Democrático que conjuga premissas e postulados liberais, com a necessidade de interferência mínima do Poder Público, tão somente capaz de assegurar a concretização dos direitos fundamentais e dos objetivos socialmente desejáveis.
Portanto, erguem-se dois sustentáculos do Estado Social: a democracia e os direitos fundamentais. Com essa nova estrutura, propõe-se debate sobre a função e missão dos poderes constituídos no processo de construção da Nação.
Assenta-se a legitimidade do poder constituído, em particular do Judiciário, no Estado Democrático de Direito e, não apenas na especificidade dos tribunais.
Baseia-se então, na garantia da efetivação de políticas públicas eficazes para galgar os objetivos fundamentais da República Brasileira, em especial, a preservação da dignidade da pessoa humana.
Desta forma, a jurisdição constitucional constitui-se como uma ultima ratio de defesa da Constituição, inclusive contra a vontade das maiorias.
Duas correntes doutrinárias disputam para delinear o melhor modelo constitucional, uma capitaneada pela escola germânica, tendo como fiel escudeiro a paladino Jürgen Habermas e, a outra, a escola doutrinária de inspiração norte-americana, tendo como defensor Ronald Dworkin.
Busca-se um diálogo que possa oferecer as respostas adequadas sobre a fundamentação da Constituição do ponto de vista da imutabilidade normativa (cláusulas pétreas) em detrimento de futuras gerações e sua força majoritária.
Portanto, o contemporâneo constitucionalismo [3] está diante do conflito de propostas diversas (embora não antagônicas) que procuram definir o papel que deve cumprir a Constituição.
A visão procedimentalista pretende reservar à Constituição uma função minimalista do ponto de vista material.
Portanto, que a Lex Fundamentalis não subtraia das maiores futuras e vindouras a legitimidade para propor reformas legislativas, conforme os novos e próprios valores, políticos e objetivos.
Já o substancialismo oriundo da escola norte-americana, de Ronald Dworkin e John Ely Hart, que sustentam caber à Constituição Federal apenas impor um conjunto de decisões valorativas que sejam essenciais e consensuais.
Propõe, portanto, que seja determinadora de metas políticas e de valores fundamentais de caráter compromissário.
Porém não pertence às maiorias futuras a intervenção no quadro político-axiológico, salvaguardada pelas opções constitucionais.
À ótica substancialista, a função da jurisdição constitucional é essencial para a condução da vida política da nação.
Apesar dos poderes constituídos gozarem de autonomia, compete ao Judiciário moderar a vontade desses poderes no sentido inclusive de instituir controle de políticas públicas e, coibir práticas e normas que não estejam coerentes com os valores sociais no Texto Maior.
Vejamos que recentemente o STF orientou-se pelo viés substancialista conforme se percebe, in litteris:
“RE-AgR 410715 / SP – SÃO PAULO
AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator: Min. CELSO DE MELLO
DJ 03-02-2006 PP-00076 EMENT VOL-02219-08 PP-01529
RIP v. 7, n. 35, 2006, p. 291-300
E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO – CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE – ATENDIMENTO
Decisão
A Turma, por votação unânime, negou provimento ao recurso de agravo,
nos termos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, neste
julgamento, a Senhora Ministra Ellen Gracie e o Senhor Ministro Gilmar
Mendes. 2ª Turma, 22.11.2005.”
Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+410715%2ENUME%2E%29+OU+%28RE%2EACMS%2E+ADJ2+410715%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos
Em defesa dos procedimentalistas, argumenta-se usualmente que a judicialização das políticas públicas afronta a separação de poderes, sendo levantados, ainda como obstáculos ao controle jurisdicional de políticas públicas, as limitações orçamentárias e a reserva do possível.
Ao analisar tais argumentos, principalmente em razão da concretização dos direitos fundamentais positivos, exige a disponibilidade orçamentária e está sujeita a limitações de recursos financeiros.
A Constituição vincula a elaboração e execução das leis orçamentárias, exigindo a previsão de programas e planos de ação governamental destinados à implementação dos direitos fundamentais sociais.
Não podemos enxergar o orçamento como mera peça contábil de previsão de receita e despesa, mas revela-se como autêntico planejamento estatal voltado ao desenvolvimento social e econômico.
Então a real materialização dos direitos sociais constitucionalmente assegurados esbarra infelizmente na escassez de recursos públicos.
E, para solver o impasse e garantir o cumprimento dos direitos fundamentais, propõe a doutrina, o uso do método de ponderação pelo qual a prestação exigida do Poder Público deve cingir-se ao razoavelmente (a reserva do possível).
Há o limite do razoável, impende perceber o direito a um mínimo vital, à educação escolar, à assistência médica, à formação profissional, que deve ter a efetivação garantida pelo Poder Público, por conta de que, é mínimo, o conflito com os demais princípios constitucionais, competindo ao Judiciário assegurá-lo.
Outra questão é sobre a posição hierárquica dos Tratados Internacionais que outrora tiveram o status de Lei Ordinária.
O Ministro Gilmar Mendes já vinha defendendo a revisão de tal entendimento, mas com a EC 45/2004, somente os tratados Internacionais relativos aos Direitos Humanos, passaram a integrar o direito interno constitucional.
De acordo com o conteúdo e forma de aprovação, os tratados internacionais poderão ter três posições hierárquicas distintas:
I. Tratados e convenções internacionais de direitos humanos, aprovados em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às Emendas Constitucionais (art. 5º, § 3º).
II. Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos, aprovados pelo procedimento ordinário terão status supralegal, situando-se abaixo da Constituição e acima da Legislação Ordinária.
III. Tratados e Convenções Internacionais que NÃO versem sobre os direitos humanos ingressarão no ordenamento jurídico brasileiro com força da Lei Ordinária.
Na sôfrega tentativa de superar o tradicional antagonismo existente entre direito natural e o direito positivo gerou uma nova dogmática que, embora incipiente, vem ganhando divulgação e adesão, em particular do Direito Constitucional.
Entre as principais características do pós-positivismo ou neopositivismo, destaca-se a relevância dada aos valores tais como a proteção, preservação e promoção da dignidade da pessoa humana.
Consagrada como valor supremo principalmente em face dos direitos fundamentais e ainda, o caráter normativo atribuído aos princípios.
Portanto como bem leciona Luiz Prieto Sanchis, in verbis:
“mais princípios que regras; mais ponderação que subsunção; onipresença da Constituição em todas as áreas jurídicas e em todos os conflitos minimamente relevantes, em lugar de espaços isentos em favor da opção legislativa ou regulamentária; onipotência judicial em lugar da autonomia do legislador ordinário; e, por último, coexistência de uma constelação plural de valores, às vezes, tendencialmente contraditórios, em lugar de uma homogeneidade ideológica em torno de um punhado de princípios…”
SANCHÍS, Luis Prieto. Neoconstitucionalismo y ponderación judicial. In: CARBONELL, Miguel (Ed.).
Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta, 2005.
Infelizmente, não há consenso e nem acerto conceitual para definir neoconstitucionalismo, mas é propulsionado pelos seguintes aspectos:
a) Falência do padrão normativo que fora desenvolvido no século VXIII, baseado na supremacia do Parlamento;
b) Influência da Globalização;
c) Pós-modernidade;
d) Superação do positivismo clássico;
e) Centralidade dos Direitos Fundamentais;
f) Diferenciação qualitativa entre princípios e regras;
g) Revalorização do Direito.
O modelo normativo proposto pelo neoconstitucionalismo não é o descritivo ou prescritivo e sim, axiológico.
Enquanto segundo o constitucionalismo clássico, a diferença entre as normas constitucionais e infraconstitucionais era apenas em função de grau; no neoconstitucionalismo, a diferença é também e, principalmente axiológica.
Portanto, a Constituição é apenas um valor em si.
Vide que não podemos enxergar contudo o Direito como mero apêndice da moral e o texto positivo como standard determinante para aplicação normativa.
O contrato dialético exigido do operador de Direito deve ser calcado na simétrica entre a hermenêutica socorrer-se de elementos metajurídicos que permitam a adequada concretização da densidade dos direitos fundamentais.
Não se postula através do neoconstitucionalismo que haja um judicial Power, mas permite-se que seu ativismo venha propiciar a realização dos direitos fundamentais, assegurando o mínimo suficiente.
A reafirmação da força normativa e eficacial da Constituição pressupõe o fortalecimento da imperatividade das normas constitucionais, surge uma legalidade superior a uma legalidade ordinária e se propõe a nítida primazia do sujeito constituinte, composto de forma plural pelos mais diferentes segmentos da sociedade.
Deixa a Lex Mater[4] de ser a norma de valor meramente pragmático para reafirmar seu valor normativo e operar plenamente como norma jurídica de eficácia direta ou horizontal e imediata.
Decretou o neoconstitucionalismo o fim dos modelos político-institucionais, em que o poder estabelecido não tinha nenhum comprometimento com a materialização dos dispositivos constitucionais, podendo implementar livremente políticas públicas em nome da soberania popular.
Assim a lei constitucional aumenta sua força normativa e transforma-se em mandamento vinculante para os legislador ordinário.
Transforma os critérios de validade em materiais extra-sistêmicos, formais de parâmetro substancial e cogitando limitação ao procedimento jurídico.
Propõe análise hermenêutica eclética com a conjugação dos elementos do positivismo jurídico, do realismo jurídico e do jusnaturalismo.
Em suma, o neoconstitucionalismo outorga remoralização do fenômeno jurídico, reconhecendo-o como fato social, que não pode ser analisado de forma neutra e deve ser lido pela ótica axiológica da realidade.
Portanto, os parâmetros de justiça que outrora eram externos, passam a ser internos, sendo a Constituição interpretada como espécie de ponte entre o discurso jurídico e o discurso moral.
Porém, não satisfaz as demandas com respeito a maior segurança jurídica.
Com a inclusão dos elementos axiológicos impõe-se superior a metodologia jurídica lógico-formal, não podemos transformar a Constituição[5] em texto semântico, pretende-se romper com o dogma de separar a descrição da prescrição.
Conclui-se que as antigas premissas positivistas não mais resolvem os problemas da atual realidade jurídica e, nem cumpre a honrosa promessa de construir um sólido Estado Social Democrático de Direito.
NOTAS
[1] O panconstitucionalismo diferentemente do neoconstitucionalismo radicaliza, levando a extremo a positividade e a superposição do texto constitucional. Perigo é a Constituição se tornar um “Big Brother” a vigiar toda a legalidade do Estado Democrático.
[2] É a forma de assegurar que os atores governamentais respeitem a Constituição e não usem seus imbuídos poderes de maneira ilegítima.
[3] Apregoa-se mais pela Constituição do que as leis; mais juízes do que legisladores; mais princípios do que regras; mais ponderação do que subsunção; mais concretização do que interpretação.
[4] Apesar da falta de consenso doutrinário sobre a definição de Constituição, esta pode ser revelada como sistema de normas jurídicas escritas ou consuetudinárias, que estabelecem a forma do Estado, do Governo e o regime político; legitimam o modo de aquisição e o exercício dos poderes constituídos; estruturam a Administração Pública limitando seu campo de atuação em face dos cidadãos, disciplinam os direitos fundamentais e regulam o processo gerador de rendas e riquezas, bem como a titularidade dos fatores de produção e como o fim de promover a justiça distributiva.
[5] É mais que um documento legal. Tem intenso significado simbólico e ideológico, refletindo a realidade da sociedade e, ainda, seus anseios para o futuro. É a máxima manifestação volitiva do povo, deve, espelhar todas as classes sociais. Vai além da positivação de valores representando uma semântica da realidade social.