Não se pode obrigar o pai registral a manter uma relação de afeto baseada no vício de consentimento, impondo-lhe os deveres da paternidade, sem que ele queira assumir essa posição de maneira voluntária e consciente. Esse foi o entendimento firmado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ ao dar provimento a um recurso para anular registro de paternidade, constatada a ausência de vínculo biológico e socioafetivo.
Para o Tribunal de Justiça do Paraná – TJPR, embora tivesse mantido relacionamento casual com a mãe e fosse presumível que ambos pudessem ter outros parceiros sexuais, o autor da ação reconheceu a paternidade voluntariamente, na época do nascimento. Portanto, não teria sido induzido ao erro, tampouco poderia agora, cerca de dez anos depois, levantar dúvida sobre esse fato.
No STJ, com relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, a Terceira Turma considerou com unanimidade que o suposto pai foi induzido em erro na ocasião do registro, bem como não criou vínculo socioafetivo com a criança. Bellizze ressaltou que a paternidade socioafetiva deve prevalecer quando em conflito com a verdade biológica, e o pedido de anulação de registro só pode ser atendido com a demonstração de grave vício de consentimento.
A paternidade socioafetiva exige, por parte do pai, a vontade de ser reconhecido como tal – intenção que não pode decorrer de vício de consentimento, como se verificou no caso concreto. Assim, Bellizze reconheceu que o pai registral assumiu a paternidade por acreditar que a criança fosse fruto de seu relacionamento com a mãe, o que se revelou falso após o exame de DNA.
Para o ministro, que restabeleceu a sentença de primeiro grau, embora os relacionamentos contemporâneos sejam “cada vez mais superficiais e efêmeros”, isso não implica a presunção de que eventual gravidez deles advinda possa ser considerada duvidosa quanto à paternidade, “sob pena de se estabelecer, de forma execrável, uma prévia e descabida suspeita sobre o próprio caráter da genitora”.
“Comprovada a ausência do vínculo biológico e de não ter sido constituído o estado de filiação, os requisitos necessários à anulação do registro civil estão presentes, o que justifica a procedência do pedido inicial”, concluiu o relator.
Excepcionalidade do caso justifica decisão
A decisão do STJ cuida de um caso muito peculiar, segundo o advogado Ricardo Calderón, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. “A situação fática reúne os elementos excepcionais considerados pela jurisprudência do próprio STJ para afastar um vínculo de filiação. Esses elementos foram demonstrados e comprovados nos autos de forma concomitantemente, o que permitiu que a conclusão fosse pela procedência da anulação da paternidade”, comenta.
De forma concomitante, foi comprovada a inexistência de vínculo biológico e socioafetivo de paternidade, bem como o vício do consentimento no momento de assunção da paternidade pelo requerente. “Com a conjunção desses três elementos, entende o STJ que, nestas situações muito peculiares, é possível o afastamento de uma dada filiação.
Essa é uma decisão que retrata uma situação excepcional, mas adequada à jurisprudência do Tribunal.”
Outro aspecto destacado pelo advogado é que a relação entre o suposto pai e a mãe da criança foi casual. “Não havia um casamento, união estável nem mesmo um longo relacionamento afetivo que desse respaldo à concepção da criança que envolvesse um projeto de vida ou uma convivência mais contínua com o autor da ação”, observa Calderón.
“Essa foi uma conclusão muito particular, pela presença desses elementos jurídicos excepcionais citados acima e também porque foi corroborada por uma situação fática e não usual, que não se repete em muitos outros do estilo. A peculiaridade fática influenciou a formação da conclusão final do julgamento, então é necessário que se tenha essa cautela para interpretar adequadamente essa decisão, em face de várias outras do tribunal, evitando transpor a conclusão muito específica desta situação para outros casos sem fazer essa devida mediação e verificação de uma similaridade tanto jurídica quanto fática.”
Melhor interesse da criança
Segundo Ricardo Calderón, o STJ avaliou que não ofenderia o melhor interesse da criança, princípio que deve balizar sempre todos os casos. “As circunstâncias fáticas e o arcabouço jurídico envolto permitiu uma conclusão de que a revisão do vínculo de paternidade não afetaria o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, vértice que também deve ser considerado em casos do estilo.”
Por isso, a decisão do STJ se difere de outra proferida em outubro, que reformou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP. Na ocasião, um homem que buscava retificar o registro civil de uma criança que, cinco anos depois do nascimento, descobriu não ser seu filho biológico teve o pedido negado pela Terceira Turma. O entendimento foi de que a inexistência de vínculo biológico não é suficiente e a mudança depende de prova robusta de que o suposto pai foi, de fato, induzido ao erro ou coagido.
“Naquele caso, o entendimento se lastreou basicamente em dois elementos que são distintos do acórdão que agora é noticiado. Naquele caso, houve a informação de que o pai não demonstrou ou não comprovou vício do consentimento na assunção da paternidade, ou seja, ele não conseguiu comprovar que teria sido induzido a erro”, difere Calderón.
No caso de São Paulo, também houve notícias da presença da socioafetividade entre o homem e o menino. Tal situação, na esteira da jurisprudência do STJ, impede que seja revista a filiação, em atenção ao melhor interesse da criança. “Havia também um matrimônio, um relacionamento de conjugalidade entre pai e mãe que estava subjacente a esse nascimento ou seja a esta prole”, acrescenta o advogado.
“No caso mais recente, do Paraná, havia um relacionamento fugaz e eventual entre o suposto pai e a mãe, sem relacionamento afetivo de longo período entre eles. Essas particularidades fática são fulcrais para a distinção de conclusão entre aquela deliberação do caso São Paulo e deliberação do caso do Paraná”, explica Calderón.
Ele conclui: “É possível concluir que a regra e a orientação prevalecentes na jurisprudência do STJ seguem sendo prestigiar a filiação socioafetiva e manter os laços sempre que presente a sua demonstração fática. Demonstrada a existência de um vínculo afetivo, a regra tem sido manter a paternidade”.
O número do processo não é divulgado em razão de segredo judicial.
FONTE: IBDFAM, 18 de novembro de 2021.