* Nathalie Carvalho Cândido
INTRODUÇÃO
O direito ao planejamento familiar refere-se a todo cidadão, sendo assegurado constitucionalmente e regulamentado pela Lei nº. 9.263, de 12.01.96. Este direito é entendido como “o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”. Essas ações são de função do Estado, e o Ministério da Saúde, preocupado em garantir os direitos de homens e mulheres em idade reprodutiva, lançou a Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, ampliando as ações voltadas ao projeto parental.
Um dos eixos de ação dessa Política é a introdução das tecnologias de reprodução assistida no Sistema Único de Saúde. As técnicas de reprodução assistida se mostram necessárias, pois, segundo a Organização Mundial de Saúde, entre 8% e 15% dos casais têm algum problema de infertilidade, caracterizado como a incapacidade de engravidar após doze meses de relações sexuais regulares sem uso de contraceptivos. Existem várias técnicas de reprodução assistida e este trabalho abordará apenas a inseminação artificial heteróloga, cuja aplicação envolve aspectos éticos, morais e também efeitos jurídicos ainda não regulamentados pelo nosso ordenamento.
A inseminação artificial heteróloga é a técnica de reprodução assistida que envolve a doação de gametas de terceiro anônimo estranho ao casal, seja por impossibilidade biológica do homem ou da mulher. É citada no artigo 1.597, V do Código Civil e regulamentada pela Resolução nº. 1.358 do Conselho Federal de Medicina. Embora não esteja expressamente citada na lei 9.263/96, é entendida como um dos processos de concepção cientificamente aceitos oferecidos de acordo com o art. 9º desta lei. Falta, entretanto, uma lei específica que melhor esclareça os efeitos de sua aplicação.
Na utilização desta técnica, observa-se de um lado um doador que se propõe anônimo, oferecendo seus gametas para viabilizar o projeto parental de outrem e que nessa função não deseja desenvolver vínculos afetivos ou responsabilidades patrimoniais em relação ao ser gerado. No outro extremo, temos uma criança que, embora tenha mãe e pai, ao crescer poderá reclamar o direito de conhecer sua ascendência genética e quem sabe querer exigir direitos sucessórios do doador (a) que lhe possibilitou o nascimento.
Tem-se, então, um conflito entre o direito ao conhecimento da ascendência genética e o direito à intimidade, um problema que envolve os chamados direitos fundamentais de quarta geração e uma nova discussão a respeito do Direito de Família, todos revolucionados pelos progressos da engenharia genética.
A evolução das manipulações genéticas bioengenheiradas modificou a idéia que até pouco tempo tinha-se de maternidade e paternidade. Os casais que nutriam a esperança de serem pais e que tinham problemas de infertilidade acharam nas várias técnicas de reprodução humana medicamente assistidas a realização de seus projetos, mas se encontraram diante de questões éticas, morais, jurídicas e psicológicas que exigiam respostas.
Como todos os progressos científicos que envolvem a manipulação de material genético humano, as técnicas de reprodução assistidas instigaram inúmeras discussões não só no campo das ciências biológicas, como também no campo jurídico e é isso que torna o tema deste trabalho tão interessante quanto importante.
O direito, apesar da dificuldade de regulamentar as técnicas científicas com a mesma rapidez com que elas surgem, não pode se abster de legislar e, assim, esclarecer a população sobre os efeitos da aplicação destas técnicas. Essa necessidade decorre do fato que estão envolvidos no caso em tela os princípios constitucionais que baseiam nosso Estado e nossa vida em sociedade.
No desenrolar do presente trabalho procura-se responder aos seguintes questionamentos: O ser gerado através de inseminação artificial heteróloga tem direito de conhecer sua ascendência genética? A ação de investigação de paternidade é o mecanismo adequado ao conhecimento da ascendência genética? Quais efeitos jurídicos são gerados pelo conhecimento da ascendência genética?
Tem-se como objetivo geral apresentar o conflito entre o direito à intimidade e o direito ao conhecimento da ascendência genética nos casos de reprodução assistida heteróloga, bem como examinar a diferença entre o estado de filiação e origem genética. Como objetivos específicos busca-se verificar se o direito ao conhecimento da verdade biológica se sobrepõe ao direito à intimidade nos casos de aplicação da técnica de reprodução assistida heteróloga, mostrar a ação de investigação de paternidade não é meio adequado para o conhecimento da origem genética e que no estado atual do direito o fator mais importante para definir a paternidade é a relação sócio-afetiva entre duas pessoas e não a carga genética do indivíduo, e, finalmente, examinar se o conhecimento da ascendência genética gera efeitos jurídicos que impeçam a formação de vínculos parentais em desacordo com as normas do Código Civil.
Em relação aos aspectos metodológicos, as hipóteses são investigadas através de pesquisa bibliográfica. No que tange à tipologia da pesquisa, esta é, segundo a utilização dos resultados, pura, visto ser realizada apenas com o intuito de aumentar o conhecimento, sem transformação da realidade. Quanto à abordagem, é quantitativa, através da pesquisa de fatos e dados objetivos, e qualitativa, com a observação intensiva de determinados fenômenos sociais. Quanto aos objetivos, a pesquisa é exploratória, definindo objetivos e buscando maiores informações sobre o tema em questão, e descritiva, apresentando fatos, natureza, características, causas e relações com outros fatos.
No primeiro capítulo, define-se o conceito de direitos reprodutivos e são abordados seus antecedentes históricos, bem como sua efetivação no Brasil através das instituições de planejamento familiar. Demonstram-se as diferenças entre regulação de fecundidade, controle de natalidade e planejamento familiar. Apresentam-se as principais técnicas de reprodução medicamente assistida e os questionamentos jurídicos decorrentes da aplicação destas técnicas.
No segundo capítulo, analisa-se a evolução dos conceitos de maternidade e paternidade desde os tempos romanos até a atualidade, apresentando as principais normas jurídicas que fundamentam o atual conceito destes institutos, diferenciando-os da origem genética do indivíduo.
No terceiro capítulo, faz-se um estudo sobre os direitos fundamentais que baseiam o direito à intimidade dos doadores de gametas e o direito ao conhecimento da origem genética do indivíduo, como também sua colisão nos casos de reprodução assistida heteróloga. Apresenta-se como solução da colisão de direitos fundamentais o princípio constitucional fundamental da dignidade da pessoa humana.
No quarto capítulo, procede-se à análise crítica dos projetos de lei que dispõem acerca da reprodução medicamente assistida. Discorre-se sobre o posicionamento doutrinário a respeito da ação adequada para o conhecimento da ascendência genética, e, por fim, sobre os efeitos do conhecimento da ascendência genética para todos os envolvidos.
Os novos parâmetros jurídico-culturais da relação de paternidade são objetos desse estudo, que não objetiva responder a todas estas questões levantadas pela sociedade, mas sim fornecer informações sobre os valiosos estudos de juristas pioneiros acerca destas novas formas de entender as relações familiares e, conseqüentemente, ajudar os interessados a formular opiniões próprias sobre o assunto.
1. DIREITOS REPRODUTIVOS
A criação do termo “Direitos Reprodutivos” é atribuído às feministas norte-americanas que, inicialmente, o usaram substituindo a expressão “saúde da mulher” em encontros promovidos por mulheres determinadas a ter um maior controle sobre sua capacidade reprodutiva.
Este termo foi considerado o mais adequado para sintetizar os direitos humanos relativos à concepção e à contracepção abordados na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento realizada em 1994 no Cairo. Hoje é compreendido como o direito de “todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência” (Plataforma do Cairo §7.3 apud CORRÊA et al, 2003, on-line).
Os Direitos Reprodutivos não devem ser confundidos com o direito de não ter filhos. Esse entendimento de Direitos Reprodutivos como simplesmente o direito de não ter filhos deve-se ao fato de que as mulheres, em sua luta pelo direito de regular sua fecundidade, se opuseram a leis que proibiam o uso de métodos contraceptivos e à Igreja, que sempre associou relacionamento sexual à procriação. Devemos notar que as mulheres defendiam não somente o direito de não ter nenhum filho, mas também de tê-los controlando seu número e a época do nascimento, já que filhos em excesso podem ser um “fardo” para as mães que suportam as atribuições domésticas e ainda o trabalho externo. Embora o acesso à contracepção seja, realmente, um aspecto dos Direitos Reprodutivos, não é o único.
Também não devemos confundir Direitos Reprodutivos com instrumentos de política populacional. Essa é a compreensão equivocada de alguns autores que o entendem mais como um controle de natalidade do que como direito ao planejamento familiar. A professora de Antropologia Gilda de Castro Rodrigues, em seu livro Planejamento Familiar (1990, p.9), escreve: “[…] Espero então analisar justamente as nuanças dessa política de planejamento familiar como um novo instrumento de dominação sobre um segmento social para o qual não se cogita participação em outras conquistas da sociedade moderna.”. Essa compreensão em parte se deve à imagem passada à sociedade brasileira nos anos sessenta, como será estudado nos próximos tópicos.
1.1 Antecedentes históricos dos direitos reprodutivos
Antes do surgimento das idéias sobre Direitos Reprodutivos, a sociedade já praticava regulação de fecundidade para adequar o número de nascimentos as disponibilidades de alimentos e outros recursos necessários à subsistência humana. Assim, nas épocas mais prósperas, a natalidade aumentava, enquanto que em épocas de escassez, a natalidade diminuía. Essa diminuição podia acontecer através do aborto ou do infanticídio, como afirma Gilda de Castro Rodrigues (1999, p.11):
[…] Ou seja, em qualquer lugar e desde o início do processo de humanização, a sociedade humana desenvolveu meios para promover ajustamentos entre seus índices de fertilidade e mortalidade com as disponibilidades materiais que houvessem no ambiente para garantir a sobrevivência das pessoas.
[…] O infanticídio deve ter sido a primeira interferência ao potencial reprodutivo, mas, à medida que o processo de simbolização foi envolvendo o comportamento humano, surgiram também a restrição sexual e o aborto provocado.
Com o surgimento das grandes cidades e certa estabilidade de recursos, a regulação de fecundidade evoluiu com as regras sociais e religiosas, e os homens passaram a impor condições para que fossem exercitadas as suas capacidades reprodutivas, como a exigência do casamento, por exemplo. Nesse momento histórico, a religiosidade presente nas civilizações antigas estimulava muito a natalidade, não sendo o fato de ter filhos algo decorrente da vontade das pessoas, mas sim uma verdadeira obrigação para com a família devido à necessidade da continuidade do culto aos mortos. Fustel de Coulanges[1], em sua obra A Cidade Antiga, escreve:
[…] cada pai esperava da sua posteridade a série de banquetes fúnebres que devia assegurar a seus manes repouso e felicidade. Essa opinião era o princípio fundamental do direito doméstico entre os antigos, derivando daí, em primeiro lugar, a regra de que cada família devia perpetuar-se para sempre. Os mortos tinham necessidade de que sua descendência não se extinguisse. No túmulo, onde viviam, não tinham outra preocupação. Seu único pensamento, como seu único interesse, era ter sempre um varão de seu sangue para levar-lhe ofertas ao túmulo […] Tocamos aqui em um dos caracteres mais notáveis da família antiga. A religião, que a formou, exige imperiosamente sua continuação […] O grande interesse da vida humana é continuar a descendência para continuar o culto.
Além do aspecto religioso, outro motivo que levava as taxas de natalidade a não diminuir muito era a exigência de um número elevado de trabalhadores nas atividades agropecuárias, o que fez com que a sociedade incentivasse a natalidade.
Embora o ideal reprodutivo variasse de acordo com a população, a religião e os Estados sempre tiveram uma conduta pró-natalista em decorrência do pensamento que o matrimônio tinha como objetivo maior a procriação. Nesta época, grandes filósofos como Platão e Aristóteles, associaram o crescente número de filhos ao aumento da pobreza e crimes, passando a defender atos de regulação de natalidade como infanticídio e aborto, apesar da posição oficial do Estado ser a favor da natalidade.
Com a Revolução Francesa e depois com a Revolução Industrial, impressionantemente o nível de pobreza aumentou e o inglês Thomas Robert Malthus, sem considerar o problema da concentração de renda, desenvolveu a Teoria Malthusiana que afirmava que o crescimento da população era associado ao crescimento da pobreza, pois a população cresce em progressão geométrica enquanto os alimentos cresciam em progressão aritmética. Segundo Edméia de Almeida et al. (2000, p.37) “a idéia de uma medicina social surgiu durante a Revolução Francesa, no século XVIII, porém, foi a Inglaterra que criou os primeiros mecanismos para transformá-la em uma política de Estado.”
No século dezenove, em países com problemas com superpopulação como os Estados Unidos e outros na Europa, a Teoria Malthusiana foi utilizada como fundamento para uma política de controle de natalidade. Essa política de controle de natalidade sempre foi muito criticada por atingir geralmente apenas as camadas de baixa renda, o que se caracteriza como discriminação social. Afirmam ainda estudiosos, como Gentil Corazza, Paulo de Tarso Almeida Paiva e Simone Wajnman, que o caminho para erradicação da pobreza é uma distribuição eqüitativa de renda, o que exige grandes transformações sociais, não simplesmente o controle da capacidade reprodutiva de uma classe social. Nesse sentido, defende a socióloga Dulce Xavier (apud SARMIENTO, 2006, on-line) que “poucos filhos não é sinônimo de desenvolvimento, já que a pobreza é conseqüência da má distribuição de renda”.
Apesar de alguns Estados começarem a aceitar as idéias de controle de natalidade, a Igreja Católica, predominante na época, continuava a recriminar a utilização de contraceptivos e ainda no século dezenove, quando a idéia de controle de natalidade amadurecia, uma mulher chamada Annie Besant foi julgada e condenada por defender que as mulheres tinham direito de controlar sua maternidade em 1877, quando foi presa por distribuir a reimpressão de um panfleto do clínico Charles Knowlton, escrito em 1831, defendendo e ensinando a utilização dos métodos contraceptivos. O julgamento de Annie chamou os católicos para uma discussão acerca da utilização de métodos anticoncepcionais e deu-se um grande avanço quando, em 1951, o Papa Pio XII aprovou o chamado Calendário Ogino[2] por declarar que “a regulagem das nascenças, contrariamente àquilo a que se chama controle das nascenças, é compatível com a Lei de Deus” (1851 apud BATAILLE, 1967, p.42). Observa-se que o próprio Papa, autoridade católica máxima, fez diferença entre o controle de natalidade e a regulação de natalidade, como o fez João Evangelista dos Santos Alves em seu artigo Direitos Humanos, Sexualidade e Integridade na Transmissão da Vida ao dividir em três categorias os métodos programação de natalidade. São essas categorias:
I – Métodos que destroem a vida: aborto provocado (métodos criminosos – Antinatalismo);
II – Métodos que impossibilitam a vida, tornando infecundos os atos sexuais que seriam normalmente fecundos: anticoncepção ou contracepção (métodos artificiais – Controle de Natalidade);
III – Métodos que respeitam a vida e as fontes de vida: fisiológicos (Planejamento Familiar pelos Métodos Naturais, Paternidade Responsável). [3]
No início do século vinte, ainda não estava estabelecida a compreensão da contracepção como direito reprodutivo, para muitos a contracepção estava inserida na idéia de controle de natalidade. Segundo Ávila (1992, apud COELHO et al., 2000, p.39):
Três linhas de pensamento foram formadas nesse período: a das feministas, que consideravam a contracepção um direito fundamental; a dos neomalthusianos que a defendiam como meio para melhorar a situação de pobreza; e a dos eugenistas, que viam no controle de natalidade um caminho para melhorar a qualidade genética.
Na França, em 1955, surgiu o primeiro movimento objetivando a regularização do Direito ao planejamento familiar, sendo este considerado o Direito à regulação de fecundidade e não ao controle de natalidade. Foi neste momento que a compreensão de Direitos Reprodutivos começou a ganhar os contornos que hoje possui.
1.2 Direitos reprodutivos e instituições de planejamento familiar no Brasil
Durante todo o século dezenove o Brasil se manteve afastado das discussões acerca de políticas de controle de natalidade, incentivando-a, já que os altos índices de mortalidade minavam o crescimento populacional. Entretanto, no século vinte, o crescimento demográfico aumentou devido às melhores condições sanitárias e o país começou a sofrer pressões dos países desenvolvidos para adotar políticas de controle de natalidade. Os países mais desenvolvidos continuavam a se apoiar na Teoria Malthusiana para justificar a interferência na capacidade reprodutiva das camadas mais pobres. O governo brasileiro se opôs aos interesses internacionais até que, nos anos sessenta, completamente dependente do capital estrangeiro, cedeu às “chantagens” externas, pois os Estados vinculavam a obtenção de empréstimos à adoção de políticas de controle populacional. De acordo com Edméia de Almeida et al. (2000, p.40):
Uma vez dependente do capital internacional, o Brasil se rendeu às entidades americanas consideradas de planejamento familiar, apesar da resistência de militares, da Igreja e do próprio governo, que justificavam a importância de uma grande população, tanto do ponto de vista estratégico como econômico.
Para facilitar a aceitação pela sociedade, houve uma propaganda do controle de natalidade como planejamento familiar e a criação de um órgão, o BEMFAM (Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar) em 1965. Esse órgão foi financiado por empresas internacionais e facilitava o acesso a métodos contraceptivos sem promover educação e muito menos prestar atendimento médico àqueles que se “beneficiavam” desses métodos. O governo brasileiro, embora não apoiasse as atividades das empresas privadas, adotava uma conduta completamente permissiva em relação ao seu funcionamento. A socióloga Maria José Duarte Osis (apud SARMIENTO, 2006, on-line) afirma que “logo nos anos 60 houve associação de planejamento familiar com política de controle de natalidade, enfatizado por países mais desenvolvidos que apontavam a causa da pobreza e do subdesenvolvimento era o número excessivo de filhos nos países mais pobres”.
Em 1975, por recomendação da Organização Mundial de Saúde, foi desenvolvido o PMI, Programa de Saúde Materno Infantil. Esse programa ainda possuía o mesmo aspecto controlador que a BEMFAM, mas oferecia atendimento médico àqueles casais ou mulheres que, após numerosas gestações, desejavam dispor de algum método de contracepção. Segundo Marques (apud COELHO et al., 2000, p.41), o PMI “acelerou as especializações, a tecnificação, a concentração médica nos grandes centros urbanos, a prática hospitalar, a impessoalidade, a multiplicidade de empregos e uma prática médica curativa em detrimento da preventiva”.
Na década de oitenta, os grupos feministas brasileiros acirraram os debates sobre natalidade no país, opondo-se fervorosamente tanto aos interesses controlistas estrangeiros quanto aos interesses natalistas do governo. O PAISM, Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, segundo Coelho et al. (2000, p.41), foi resultado da visão de diferentes grupos sociais, os feministas, demógrafos, cientistas sociais entre outros, sendo a primeira instituição brasileira que, de fato, oferecia serviços de planejamento familiar tendo como objetivos:
Atender a mulher, através de atividades de assistência integral clínico-ginecológica e educativa, voltadas para o aprimoramento do controle pré-natal, do parto e do puerpério; a abordagem dos problemas presentes desde a adolescência até a terceira idade; o controle das doenças transmitidas sexualmente, do câncer de cérvico-uterino e mamário e a assistência para concepção e contracepção.
Com os serviços oferecidos pelo PAISM os Direitos Reprodutivos passaram a ser efetivamente atendidos. São protegidos no Brasil por lei desde a Constituição Federal de 1988 que em seu art.226, § 7º dispõe sobre o planejamento familiar que vem a ser, segundo a Lei nº. 9.263, de 12 de janeiro de 1996, “o conjunto de ações de fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”.
Até hoje, apesar das políticas de planejamento familiar, muitos brasileiros continuam a associar planejamento familiar ao controle da natalidade. Isto em parte se deve ao fato que nos muitos municípios brasileiros em que existe atendimento de planejamento familiar, pouco ou nada é feito em termos de educação e de atendimento aos casos de infertilidade.
Os resultados do trabalho de pesquisa realizado por Ana Maria Costa (2006, on-line) que levam à seguinte conclusão a respeito da integralidade na atenção à saúde das mulheres no Brasil: “Os resultados denunciam a dissociação entre as práticas educativas e a rotina de atenção ao planejamento familiar; restrições qualitativas e quantitativas de acesso aos métodos contraceptivos e ainda a baixa oferta de atenção à infertilidade […]”.
O atendimento a infertilidade é um importante aspecto dos Direitos Reprodutivos, pois dados da Organização Mundial de Saúde, OMS, mostram que entre 8 e 15% dos casais tem problemas de infertilidade. Para garantir à população o exercício de seus direitos reprodutivos no que se refere à assistência à infertilidade foi que, em 2003, o Ministério da Saúde lançou a Política de Direitos Sexuais e Reprodutivos, para difundir ações de planejamento familiar entre os anos de 2005 e 2007, sendo um dos eixos dessa política é a introdução de tecnologias de reprodução assistida no Sistema Único de Saúde (SUS), tecnologias estas explanadas no tópico seguinte.
1.3 O projeto parental, reprodução assistida e biodireito
A vontade de ter filhos é inerente ao ser humano. Desde os tempos mais remotos a maternidade e a paternidade são valorizadas pela sociedade. Segundo Bee (1997 apud NASCIMENTO et al., 2006, on-line) “o papel de pai traz uma grande satisfação, um senso maior de propósito e autovalia e uma sensação de amadurecimento, bem como uma sensação de alegria que é compartilhada entre o marido e a mulher”.
Entretanto, devido a problemas de diversas origens, o desejo de ter um filho nem sempre pode ser realizado de forma natural. Embora as sanções para aqueles que não podem ter filhos não mais existam de forma pública, existe a sanção moral que homens e mulheres aplicam a si mesmos quando se deparam com a impossibilidade de gerar uma vida. De acordo com o ensinamento de Luci Helena Baraldo Mansur (2003, on-line):
Não querer um filho é diferente de querer e não ser capaz de ter. Se, por um lado, a limitação de uma mulher com problemas de fertilidade pode ser considerada apenas do ponto de vista físico e sua capacidade de amar avaliada como estando preservada, os termos técnicos "estéril" ou "infértil" carregam a noção pejorativa de que ela é vazia, seca e sem vida por dentro, colocando em cheque seu valor pessoal e feminilidade, através da avaliação de sua fecundidade
Com a inserção dos direitos reprodutivos no elenco de direitos fundamentais, o tratamento para os casos de infertilidade passou a ser função também do Estado, como está determinado no parágrafo sétimo do art. 226 da Carta Magna, in verbis:
Art. 226.[…]
§7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
[…]
A partir desse dispositivo constitucional, homens e mulheres que se sentiam prejudicados em seus direitos reprodutivos passaram a ter auxílio do Estado para colocar em prática o seu projeto parental, através das modernas técnicas de reprodução assistida cientificamente aceitas. Conforme entendimento de Sérgio Abdalla Semião (2000, p.161-162):
A revolução cultural ocorrida no início dos anos 60, tornou moralmente aceitável o sexo sem concepção, como também possibilitou a concepção sem sexo.
Um grande número de mulheres que não tinham esperanças de serem mães, por serem estéreis, homossexuais, estarem em pós-menopausa, casadas com homens também estéreis ou até mesmo, por não desejarem repartir o carinho de seus filhos com um pai conhecido, passaram a recorrer aos diversos métodos científicos da reprodução humana assistida.
As técnicas de reprodução humana assistida que hoje tentam concretizar o projeto parental de inúmeras famílias são objeto de estudo científico há muito tempo. Segundo Alejandra Ana Rotania (2003, on-line), a descoberta, em 1770, de que a fecundação ocorre com a junção de esperma com óvulos pelo biólogo Spallanzani, foi o primeiro grande passo da ciência que favoreceu o desenvolvimento dessas técnicas. Apenas vinte e um anos depois foi realizado pelo cientista inglês Hunter o primeiro registro da experiência de reprodução assistida com a injeção de esperma do marido no útero de sua esposa. Em 1799 foi registrado o primeiro caso de gravidez resultante da técnica. Dessa primeira gravidez até hoje as pesquisas científicas campo da reprodução permitiram desenvolvimento de técnicas cada vez mais eficazes e seguras.
As técnicas mais conhecidas de reprodução medicamente assistida são a inseminação artificial e a fertilização artificial. A inseminação artificial (IA) é a técnica mais antiga de reprodução assistida tendo sido utilizada pela primeira vez com sucesso em 1799 (ROTANIA, 2003, on-line). Consiste basicamente em inserir o esperma na cavidade uterina através da vagina por meios mecânicos, a partir dessa transferência a continuidade do processo reprodutivo ocorre naturalmente, podendo ou não resultar em uma gestação. Conforme a explicação de Regina Fiúza e Severo Hryniewicz (2000, p.92) “a técnica da Inseminação Assistida é relativamente simples e consiste na introdução do esperma na vagina, por meio de uma cânula. É a técnica mais antiga, que teve um longo processo de desenvolvimento e não causou grandes polêmicas desde que foi desenvolvida”.
De acordo com Luis Irajá (2004, p.261) esta técnica é indicada para os casos em que a mulher ou o homem possuem má formação dos órgãos sexuais, por motivo de impotência masculina, má formação dos espermatozóides que prejudique sua mobilidade (astenospermia), quantidade pequena de espermatozóides (oligoespermia) e até mesmo para selecionar o sexo da criança a fim de evitar doenças hereditárias ligadas ao sexo, como por exemplo, a hemofilia. A partir de 1954, o desenvolvimento da técnica de congelamento do esperma permitiu que pacientes que fossem se submeter aos tratamentos que prejudicassem sua fertilidade armazenassem seu sêmen para futuras inseminações (sauwen; Hryniewicz 2000, p. 93).
Na técnica de fertilização artificial, diferentemente do que ocorre na inseminação artificial, a fecundação realiza-se extra corporalmente, in vitro e não in vivo. Por esse motivo que a técnica é mais conhecida como fecundação in vitro (FIV) ou ainda bebê de proveta (WELTER, 2003, p.219), pois a fecundação ocorre na proveta. O procedimento da fecundação in vitro é bem mais complexo que o da inseminação artificial: primeiro, com a estimulação hormonal, faz-se com que a mulher libere óvulos e, depois, retiram-se estes através de laparoscopia[4], incisão abdominal ou de forma transvaginal por controle ecográfico (Rotania, 2003, on-line). Coletam-se também os gametas masculinos do esperma obtido pela masturbação. Coletados os gametas colocam-se ambos em meio nutritivo que favoreça a fertilização.
Obtido o zigoto é realizada pela técnica de transferência intratubária de zigotos, conhecida pela sigla inglesa ZIFT (Zigot intra-falopian transfer), que consiste na colocação desses zigotos resultantes para o interior das tubas uterinas (antes denominadas trompas de falópio) para que naturalmente ocorra a nidificação. Como explica Sergio Abdalla Semião (2000, p.169):
Após a fecundação, que é provocada artificialmente, o óvulo fecundado, já embrião, é transportado para a mulher, quando se espera que se dê a nidação, que é a fixação desse óvulo embrionário no endométrio (mucosa uterina), onde passará a se desenvolver a gestação, que nem sempre ocorre. Atualmente o êxito dessa técnica está em torno dos 26%, com algumas variações.
Pode-se também esperar que o zigoto incubado in vitro sofra as primeiras divisões até formar o embrião e só nesse estágio transferi-lo para o útero ou para as tubas uterinas. Esta técnica é chamada de fertilização in vitro seguida de transferência de embriões ou FIVETE. Conforme Luis Irajá (2004, p.262):
Temos também como técnica de RMA(s) a FIVETE, isto é, a Fertilização In Vitro Seguida de Transferência de Embriões; o zigoto ou zigotos continuam a ser incubados in vitro no mesmo meio em que surgiram, até que se dê a sua segmentação. O embrião ou embriões resultantes (no estágio de
A fertilização in vitro pode ser ainda seguida de uma maternidade de substituição, popularmente conhecida por “barriga de aluguel”, bastando para isso que o zigoto ou embrião seja transportado para as tubas ou útero de uma mulher saudável pela impossibilidade física da que forneceu os gametas. “A técnica vulgarmente conhecida como “barriga de aluguel”, ou gestação substituta, é na realidade um arranjo social quando uma mulher não pode realizar o ciclo da gestação em seu próprio útero. Trata-se de realizar uma FIV e transferir o embrião ao útero de uma mulher diferente da solicitante” (ROTANIA, 2003, on-line).
A injeção intracitoplasmática (ICSI) é também uma técnica de fertilização artificial desenvolvida em 1993 para os casos em que mesmo colocando-se os gametas em meio propício para fecundação a fusão dos gametas não ocorria. Nesta técnica injeta-se um espermatozóide pré-selecionado no interior do óvulo com o auxílio de uma microagulha dez vezes mais fina que um fio de cabelo. É a técnica mais recomendada quando existem alterações na forma do espermatozóide que desfavoreça a fecundação segundo Alejandra Ana Rotania. Após a fusão procede-se à ZIFT, à FIVETE ou a gestação substituta dependendo do caso.
Outra técnica de reprodução assistida é a transferência intratubária de gametas ou GIFT. Assim como na inseminação artificial, a fecundação nesta técnica ocorre in vivo. Nesta técnica, os dois gametas, óvulo e espermatozóide, são coletados assim como na primeira etapa da fertilização in vitro e depois são transferidos para as tubas uterinas onde ocorre a fecundação. Esta técnica é indicada quando se desconhece a razão da impossibilidade da gravidez se dar de forma natural, “os defensores dessa técnica afirmam que seriam passíveis de tratamento, cerca de 40 % dos casos que, por motivo de patologia conhecida ou ainda desconhecida e nem sempre superáveis com a inseminação artificial, não alcançam a concepção” (SCRECCIA, 1996, p.417 apud SÁ JÚNIOR, 2004, p.261).
Todas as técnicas citadas podem ser realizadas tanto com os gametas daqueles que desejam a criança quanto com gametas de doadores. No caso da reprodução assistida ser realizada com gametas do casal ela é chamada homóloga, caso seja realizada com gametas de terceiros ela é chamada heteróloga. No caso específico da inseminação artificial, apenas o espermatozóide pode ser de doador, enquanto nas outras técnicas podemos ter o óvulo também doado, por isso dividi-se a técnica em inseminação artificial com esperma do cônjuge, IAC, e inseminação artificial com esperma de doador, IAD.
O desenvolvimento de técnicas de reprodução medicamente assistida (RMAs) trouxe grandes alegrias aos homens, mulheres e casais que desejavam filhos, mas que por diversos motivos não podiam gerá-los. Entretanto, o desenvolvimento científico que possibilitou esses “milagres” não poderia deixar de estar acompanhado por diversos questionamentos de ordem psicológica, moral, religiosa, científica e jurídica, uma vez que as técnicas de reprodução assistida envolvem vidas, tanto daqueles que desejam ser pais quanto daqueles que virão a ser filhos. Segundo Belmiro Pedro Welter (2003, p.209):
[…] é preciso transnacionalizar a ética universal na reprodução humana medicamente assistida, que reclama o cumprimento de alguns princípios para garantir o bem estar das pessoas que são os destinatários ou os participantes das pesquisas genéticas: o princípio da beneficência, da autonomia, da justiça e da dignidade da pessoa humana.
Os princípios citados por Welter são os princípios da Bioética, considerada a “ética das ciências da vida”, segundo Maria Helena Diniz (2001, p.6):
Um novo domínio da reflexão que considera o ser humano em sua dignidade e condições éticas para uma vida humana digna, alertando a todos sobre as conseqüências nefastas de um avanço incontrolado da biotecnologia e sobre a necessidade de uma tomada de consciência dos desafios trazidos pelas ciências da vida.
No que compete ao princípio da dignidade da pessoa humana devemos ressaltar a importância da bioética para o Direito, pois o Direito mostra-se como um sistema de resolução de conflitos, ou, diferentemente, pode apresentar-se como um sistema de preservação de direitos (BrauneR, 2003, on-line), dentre os quais o princípio da dignidade da pessoa humana, que é reconhecido como fundamental e como base para todo o ordenamento jurídico. O biodireito surge, então, dessa relação entre bioética e Direito, sendo, para Maria Helena Diniz “o estudo jurídico que, tomando por fontes imediatas à bioética e à biogenética, teria a vida por objeto principal” (1998, p.40 apud SÁ JÚNIOR, 2004, p. 260).
De acordo com Sergio Abdalla Semião (2000, p. 165): “o biodireito e a bioética invadiram a vida dos casais inférteis que um filho ou, até mesmo, o direito a um filho, no entendimento de alguns”. Essa invasão ganha relevância quando se fala do biodireito em relação ao vínculo parental, pois “a procriação humana assistida perturba valores, crenças e representações que se julgavam intocáveis. Ela divorcia a sexualidade da reprodução, a concepção da filiação, a filiação biológica dos laços afetivos e educativos, a mãe biológica da mãe substituta” (SEMIÃO, 2000, p.168). Observam-se discussões especialmente nos casos de reprodução medicamente assistida heteróloga, tanto quanto à determinação do vínculo parental, já que na reprodução assistida homóloga as filiações afetivas e biológicas se confundem, quanto em relação ao anonimato do doador, que gera uma colisão de direitos fundamentais. A filiação no contexto das novas tecnologias reprodutivas será o objeto do estudo do próximo capítulo, enquanto a colisão de diretos fundamentais será abordada no capítulo subseqüente.
2. FILIAÇÃO NA REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA
O conceito etimológico de filiação é derivado do latim filiatio, termo que distinguia a relação de parentesco estabelecida entre pessoas que concederam a vida a um ente humano e este (Grunwald, 2003). Como se aufere do conceito do instituto, a percepção inicial da filiação tinha como fato originário a procriação, a relação sexual entre duas pessoas. Conforme definição citada por Astried Brettas Grunwald (2003, on-line):
A filiação, pois, é fundada no fato da procriação, pelo qual se evidencia o estado de filho, indicativo do vínculo natural ou consangüíneo, firmado entre gerado e progenitores. É assim, a relação de parentesco entre pais e os filhos, considerados na ordem ascensional, destes para os primeiros, do qual também procedem, em ordem inversa, os estados de pai (paternidade) e de mãe (maternidade).
Atualmente, o conceito de filiação já não é mais tão facilmente estruturado. As mudanças que o Direito de Família sofreu ao longo dos anos, principalmente em tempos de grandes avanços da biotecnologia, impõem novas formas de vivenciar e compreender as relações entre pais e filhos.
2.1 Das Espécies de Filiação
A filiação, como vínculo de parentesco do filho em relação aos pais, envolve a idéia de paternidade e maternidade, como vínculo de parentesco dos pais em relação aos filhos. Conforme Andrada e Silva (1919, p.218 apud BARROS, 2005, p.56):
Filiação é a relação que o fato de procriação estabelece entre duas pessoas, das quais uma é nascida da outra. Considerada com respeito ao filho, esta relação toma particularmente o nome de filiação; com respeito ao pai, o de paternidade e com respeito à mãe o de maternidade.
Então, para a análise da evolução histórica do conceito de filiação, é imprescindível analisar a evolução da idéia de paternidade e maternidade desde o Direito Romano até os dias atuais.
O Direito de Família Romano entendia a instituição familiar como o conjunto de pessoas subordinadas ao paterfamilias, o pai de família, nota-se daí a característica básica da família romana: o patriarcalismo. Segundo o patriarcalismo, o chefe da família era o pater, chefe absoluto, pois somente a ele cabia o exercício dos seguintes direitos: dominica potestas sobre os escravos; dominiun sobre os bens; manus sobre a esposa; pratia potestas sobre os filhos e mancipium sobre as pessoas livres (TABOSA, 1999, p.166). Outra característica importante da família romana sempre foi a monogamia, assim, só se podia ter uma esposa ou um marido legalmente estabelecido através das justas núpcias, justae nuptiae, ou seja, o casamento legal.
A paternidade no Direito Romano era atribuída àquele que era casado com a mãe, pois era o casamento que formava a família ao legalizar as relações sexuais que originavam os filhos. A maternidade era sempre certa, semper est certa mater, pois como assevera Lafayette (apud BARROS, 2005, p.57) revela-se por sinais exteriores, claros e positivos, como a gravidez e o parto, enquanto que a paternidade se resolvia através da presunção legal de que a criança concebida na constância do casamento tem como pai o marido de sua mãe, pois pater est quem nuptiae demonstrant. Como resume Grunwald (2003, on-line):
O casamento era então a base da formação da família, a legalização das relações sexuais de onde se originava a prole; até então o que originava a filiação era essa relação matrimonial de tal modo que os filhos havidos fora do casamento não faziam parte do núcleo familiar, não podiam nem mesmo ser registrados com o nome paterno sendo este casado.
A discriminação da filiação em legítima e ilegítima tinha como base a situação dos progenitores. O parentesco legítimo, filiação legítima, existia quando o nascimento decorria de matrimônio legal, já o ilegítimo, se dividia em dois tipos: o parentesco natural, que existia entre o gerado e os genitores quando estes não eram casados legalmente embora não houvesse impedimentos para tal ato, e o parentesco espúrio, este ocorrendo quando o ser gerado tinha como pais pessoas que não eram legitimamente casadas por estarem, por exemplo, impedidas por já terem contraído justas núpcias, ou seja, o filho seria adulterino. O parentesco espúrio originado do adultério era estabelecido quando o marido questionava sua paternidade, entretanto, esta só podia ser questionada quando houvesse comprovação da não coabitação no período da concepção ou se provada a impotência do marido, pois existia a presunção de fidelidade da mulher, já que o pater tinha poder de fiscalizar sua mulher, sendo detentor do manus sobre a esposa. Fernanda Otoni de Barros explica citando Andrada e Silva (2005, p.58):
A regra que derivava a paternidade da relação matrimonial só poderia ser questionada se fosse comprovado não ter havido coabitação ao tempo da concepção legítima, mas se, pelo menos um dia, nesse tempo, os amantes tivessem se encontrado, não poderia ser questionada a legitimidade da paternidade. Outro caso que suportaria a contestação seria prova inequívoca pericial de impotência do marido. Pai é aquele com quem a mãe se deita, presumidamente, pelo assentimento social e legal, no tempo da constância do casamento.
Nem o adultério comprovado era capaz de derrubar a filiação legítima da paternidade. A prova do adultério não destruía a presunção legal da paternidade, porque, não obstante as relações criminosas da mulher com outra pessoa, o filho bem pode ser do marido, e, na dúvida prevalece a presunção em favor da legitimidade.
As idéias de família, filiação, paternidade e maternidade que permeavam o Direito Romano chegaram praticamente intocadas até o legislador do Código Civil Brasileiro de 1916, Lei nº. 3.071, de 1º de janeiro de1916. No título V, sobre as relações de parentesco, o legislador destinou dois capítulos para filiação: o capítulo II, da filiação legítima, e o capítulo IV, do reconhecimento da filiação ilegítima. No tangente à filiação legítima, continua firme a presunção de paternidade, como se aduz da leitura do art.338:
Art.338. Presumem-se concebidos na constância do casamento:
I – os filhos nascidos 180 (cento e oitenta) dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II – os nascidos dentro nos 300 (trezentos) dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite, ou anulação.
As possibilidades de contestar a paternidade permaneceram as mesmas do antigo Direito Romano, quais sejam: a prova da não coabitação ao tempo da concepção (art.340) e a prova da absoluta impotência (art.342). A prova do adultério continua não sendo suficiente para alegar contra legitimidade do filho e essa contestação continua sendo privativa do homem, como o era nos tempos romanos, nos quais se considerava que ao permitir que outros propusessem a ação estaria retirando-se do marido o direito de resguardar a sua dignidade e a honra da família, uma vez que envolve a denúncia de adultério (ANDRADA E SILVA, 1919, p.223 apud BARROS, 2005, p.58). A inovação trazida pelo código de 1916 foi a possibilidade de investigar a paternidade, dando aos filhos legitimados os mesmos direitos e deveres relativos aos filhos legítimos. Entretanto, essa investigação de paternidade só era possível quando o parentesco fosse natural e a legitimação não acontecesse por vontade do pai. Os filhos espúrios, fossem adulterinos, incestuosos ou sacrílegos, não podiam investigar sua paternidade.
Com o Decreto-Lei nº. 4.737 de 1942 que tratava sobre a regularização da situação dos filhos naturais, os filhos adulterinos puderam ser reconhecidos após o desquite de seus pais, pois o artigo primeiro do Decreto-Lei determina que “o filho havido pelo cônjuge fora do matrimônio pode, depois do desquite, ser reconhecido, ou demandar que se declare sua filiação”. De acordo com Caio Mário da Silva Pereira (1977, p. 40-41):
A cláusula circunstancial – “depois do desquite” – é modificativa de reconhecimento, e não da concepção, enquanto que a expressão “fora do matrimônio” é que se prende diretamente à geração […] pouco importa que o filho tenha sido gerado antes ou depois de dissolvida a sociedade conjugal; qualquer que seja a época de seu nascimento, poderá ser reconhecido após o desquite.
A doutrina e jurisprudência entenderam que a partir desse Decreto-Lei, qualquer que fosse o motivo pelo qual a sociedade conjugal se dissolvesse, como por exemplo, a morte de um dos cônjuges ou a anulação do casamento, o filho adulterino poderia reclamar sua paternidade. Entretanto, não era qualquer filho adulterino. O filho adulterino a patre, ou seja, aquele que é filho de pai casado e mãe solteira, poderia reclamar sua paternidade, mas aqueles que fossem adulterinos a matre, cuja mãe é casada e o pai solteiro, ou ainda os filhos cujos dois progenitores fossem casados, não poderiam investigar sua paternidade uma vez que esta é resolvida pela presunção pater est quem nuptiae demonstrant, salvo prova de não coabitação ou tempo da concepção, ou prova de impotência absoluta, cabendo essa ação negatória de paternidade privativamente ao marido. Esse entendimento doutrinário e jurisprudencial foi efetivamente positivado em 1949, com a Lei nº. 883. Apesar disso, alguns tribunais passaram a permitir a investigação de paternidade que contrariasse a presunção em casos especiais, de acordo com Caio Mario da Silva Pereira (1991, p.140):
Sem quebrar o princípio, vem-se notando nos tribunais a tendência de considerar as situações de fato, em que, vigendo embora a sociedade conjugal, a presunção pater est se acha ostensivamente contrariada. […]
O Supremo Tribunal Federal tem tão repetidamente cogitado da espécie que já se considera jurisprudência sua apreciar a legitimidade ad causam do adulterino a matre em face das circunstâncias de fato […].
A paternidade, então, era presumida desde os tempos romanos enquanto a maternidade sempre foi certa. Em 1953, as implicações da descoberta do DNA (ácido desoxirribonucléico) nos estudos jurídicos sobre o Direito de família modificaram a tradicional presunção de paternidade. Não que esta tenha deixado de existir, mas perdeu a força na medida em que as descobertas da biotecnologia possibilitaram descobrir, com um nível quase absoluto de certeza, o progenitor de cada indivíduo. Os exames laboratoriais de comparação do DNA, que carrega todo o código genético de todas as pessoas, tornaram-se o grande trunfo das ações de investigação de paternidade. Para Magda Guadalupe dos Santos (2001, p.245):
Acima de tudo, visava-se à identificação biológica do pai, reduzindo a Paternidade a uma simples seqüência de dados genéticos. A Filiação, por sua vez, equivalia ao mero fato do nascimento, moldando uma compreensão de família assentada apenas nos dados de consangüinidade e instituída a partir de uma unidade de caráter econômico e social.
Surge então, o critério biológico de estabelecimento da filiação, que diferentemente do critério jurídico, considerado como “mentira jurídica pela paz social”, busca a “verdade real” da filiação. Nesse sentido, a proibição dos filhos adulterinos a matre e dos filhos bilateralmente adulterinos investigarem sua paternidade perdeu sua razão de ser quando testes laboratoriais puderam averiguar qual era o pai biológico. O teste de DNA foi um avanço nas ações de investigação de paternidade, mas quando confrontado com o princípio jurídico da presunção pater is est quem nuptia demostrant, foi motivo de conflito de opiniões. Uma vez que esta presunção era praticamente absoluta e que nem sempre os pais juridicamente estabelecidos queriam negar sua paternidade. Como ficaria a situação do filho quando, por exemplo, sua mãe admitia o adultério e o pai biológico queria reconhecê-lo após a dissolução da sociedade conjugal? Seria justo manter o pai civilmente estabelecido baseado na presunção jurídica quando o teste de DNA comprovasse a paternidade biológica de outro? Será que seria justo desconstituir a paternidade quando o filho havia vivido desde seu nascimento tendo como pai o presumido e este querendo manter o vínculo?
Esses questionamentos tiveram sua resposta com a promulgação da Constituição de 1988, do Código Civil de 2002, Lei nº. 10.406 de 10 de janeiro de 2002, e do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº. 8.069 de 13 de julho de 1990. Atualmente, a presunção de paternidade continua existindo positivada no atual Código Civil em seu art.
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido
Esta presunção existe de forma absoluta, iuris et de iure, quanto às hipóteses dos incisos III, IV e V, entretanto, existe de forma relativa, iuris tantum, nos casos descritos nos incisos I, II, pois pode ser elidida pela prova da impotência marital (art. 1599). Além disso, a não propositura de ação de negatória de paternidade privativa do marido não obsta que o filho proponha a ação de investigação de paternidade, ou seja, embora caiba ao pai negar a paternidade, a investigação desta pode ser proposta mesmo quando o pai presumido não negue a filiação. Esse entendimento é corroborado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente quanto este dispõe em seu art.27 que “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”.
A popularização do teste de DNA em ações investigatórias de paternidade facilitou a decisão dos juízes das varas de família de todo o Brasil que antes tinham que decidir baseando-se na verossimilhança dos fatos articulados, entretanto, a prova da verdade biológica não é suficiente para desconstituir a paternidade presumida, pois surgiu a idéia de uma nova espécie de filiação: a filiação socioafetiva. Segundo Eduardo de Oliveira Leite (2004, p.77):
O novo Código Civil realiza, aquilo que chamamos de “a passagem do modelo clássico para o modelo contemporâneo de filiação”. O que o novo Código Civil resgata, sem vacilações, é que a filiação pode decorrer de fontes plúrimas e não mais, exclusivamente biológica, como preconizava a proposta codificada de 1916. Agora, a filiação pode decorrer dos meros laços sanguíneos (parentesco natural), da mera adoção, ou eleição (parentesco civil), como da pura afeição (parentesco resultante das procriações artificiais).
A filiação socioafetiva se comprova através do estado de filho e garante os mesmos direitos e deveres da filiação natural, estando essa igualdade garantida constitucionalmente:
Art. 227
[…]
§ 6º – Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Portanto, baseados na idéia de família trazida pelos novos dispositivos legais, nas mudanças sociais e nos princípios de responsabilidade dos pais quanto aos filhos compreende-se atualmente o instituto da filiação como algo decorrente das relações afetivas entre pais e filhos. Este instituto pode ou não se confundir com a origem genética do indivíduo, o mais importante é o bem estar do indivíduo no âmbito familiar seja sua família consangüínea ou não. Citando ainda Eduardo Oliveira Leite (2004, p.77):
Relativizando as conquistas obtidas pela verdade genética (atualmente, plenamente garantidas através dos seguríssimos exames de DNA), as novas técnicas de reprodução revelam não só a fragilidades da verdade biológica, mas retomam a validade de novos princípios informadores da relação paterno-materno-filial, como é a verdade afetiva.
No tocante às técnicas de reprodução medicamente assistida, esse entendimento de paternidade e maternidade como algo decorrente das relações afetivas ganha relevância. Sabe-se que estes procedimentos podem ser realizados de forma heteróloga, ou seja, com a utilização de material genético de terceiros, portanto, num possível teste de DNA, a carga genética do indivíduo não será compatível com a do seu pai civil, pode até mesmo não ser compatível com a da própria mulher que o gerou, o que não pode ser utilizado como argumento para a desconstituição da paternidade nem de maternidade, pois estes institutos não se confundem com identidade genética.
2.2 O estado de filho na filiação socioafetiva decorrente das técnicas de reprodução medicamente assistida heteróloga
Observam-se, atualmente, três modelos de filiação: o primeiro e mais antiga é o modelo tradicional, ou filiação presumida, que segue o critério jurídico, positivada no Código Civil de 2002 no art.1.597, derivada do casamento legal; o segundo é o científico, ou filiação biológica, geralmente determinada em sede de ação de investigação de paternidade e maternidade quando o genitor não quer reconhecer o vínculo de filiação espontaneamente no registro civil; O terceiro modelo representa a filiação socioafetiva, recentemente albergada nas decisões judiciais embora não esteja expressa em nenhum dispositivo legal de nosso ordenamento, que tem lugar nas relações baseadas no principio da afetividade das relações. Cada uma destas formas de se constituir o vínculo entre pais e filhos tem seu espaço próprio, mas em alguns casos elas podem coexistir quanto a uma mesma pessoa e nestes casos a jurisprudência deve decidir qual dos tipos de filiação deve prevalecer em detrimento da outra já que o mesmo indivíduo não pode ter “dois pais” nem “duas mães”.
A Constituição de 1988 preconiza a igualdade dos filhos, independente de sua origem, portanto, independente também do tipo de filiação. Mas não se manifesta no caso delas coexistirem. Por exemplo: uma mulher solteira deseja um filho, mas não tem ovários, e por ser estéril, recorre a um banco de gametas para proceder a um tratamento de reprodução medicamente assistida com a técnica de fertilização in vitro seguida de transferência intratubária de embriões (FIVETE) e, tendo o filho, o cria. Depois, a doadora do óvulo, por um motivo de doença se torna estéril, e, descobrindo a criança concebida com seu óvulo, quer que seja decretada a sua maternidade alegando a maternidade biológica. Quem é realmente a mãe, a biológica ou a socioafetiva? De acordo com Tycho Brahe Fernandes (apud Aldrovandi, 2002, on-line):
Ante a possibilidade de um conflito de maternidade, é fundamental estabelecer juridicamente que a maternidade deverá cair sempre naquela que será a mãe socioafetiva, até porque o projeto de maternidade partiu dela ao escrever o seu direito constitucional do planejamento familiar.
Outros casos diferentes de conflito podem ocorrer. Quanto à maternidade viu-se que este conflito se resolve geralmente em favor da mãe socioafetiva, mas, e nos casos de conflito de paternidade em que o casal, por não ser unido em matrimônio, realiza o seu projeto parental com o auxílio de uma técnica de reprodução assistida heteróloga e depois o doador do sêmen quer reconhecer a criança concebida? Neste caso, não há presunção de paternidade do homem que consentiu na utilização da técnica, pois não há matrimônio. Os tribunais brasileiros, seguindo as disposições do Capítulo VII do Título VIII da Constituição Federal de 1988, que trata da família, da criança, do adolescente e do idoso, bem como as disposições da Lei nº. 8.069 de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), têm decidido pela filiação que representa maior benefício para criança de acordo com o princípio do maior interesse da criança. Vejamos os artigos 4º e 6º do ECA:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
[…]
Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
Assim, as decisões têm sido no sentido de apontar a paternidade e maternidade àqueles pais que podem garantir o melhor desenvolvimento do menor valendo-se para isso da aplicação do princípio do maior interesse da criança, como assevera Paulo Luiz Netto Lobo (2004, on-line):
O princípio impõe a predominância do interesse do filho, que norteará o julgador, o qual, ante o caso concreto, decidirá se a realização pessoal do menor estará assegurada entre os pais biológicos ou entre os não-biológicos. De toda forma, deve ser ponderada a convivência familiar, constitutiva da posse do estado de filiação, pois ela é prioridade absoluta da criança e do adolescente.
Nas palavras de Magda Guadalupe dos Santos (2001, p.248-249):
Em tempos mesmo de pós-modernidade dá-se, inclusive, a possibilidade de reprodução in vitro de um almejado filho, ampliando, de forma significativa, os parâmetros jurídico-culturais da relação entre pais e filhos […] Ungido pela dimensão do tempo, o direito assenta-se, pois, no estatuto simbólico da afeição, reconhecendo como pai aquele que uma durante uma vida soube proteger e zelar pelo filho, ensejando-lhe o acesso à sociabilidade, com ele repartindo seus projetos, construindo seu olhar sobre o mundo, dando-lhe seu nome e seu apreço. Reconhece-se àquele que registra, educa, ama e protege uma criança o direito de ser nomeado Pai de seu filho.
Então, como se aduz do texto, a verdadeira filiação nem sempre é a biológica. A verdade real da filiação surge, nos dizeres de Paulo Luiz Netto Lôbo (2004, on-line), “na dimensão cultural, social e afetiva, donde emerge o estado de filiação efetivamente constituído”. Segundo o autor “o direito deu um salto à frente do dado da natureza, construindo a filiação jurídica com outros elementos”. Esses outros elementos que compõem a filiação socioafetiva não foram determinados pelo legislador, mesmo porque o estado de filiação, considerado como a exteriorização da convivência familiar e da afetividade, não é expresso na lei, mas se pode afirmar que três quesitos são pacificamente elencados pela doutrina: o nome, o trato e a fama.
O nome (nomem) se caracteriza pela utilização do nome de família do pai e da mãe pelo filho. O trato (tractatus) é a atenção dispensada pelos pais à pessoa do filho, revela-se no cuidado com a educação, alimentação, vestuário, enfim, pelo zelo com bem-estar do filho, não só através da assistência material, mas também da moral. Finalmente a fama (fama) que é exteriorização para o público do estado de filho.
Belmiro Pedro Welter, Paulo Luiz Netto Lobo, José Bernardo Ramos, Arnaldo Fonseca, entre outros autores, fazem parte da maioria doutrinária que indica que o elemento nome não é tão importante, isso por que, em tempos modernos, os indivíduos são reconhecidos pelo prenome e não pelo nome de família, que ao longo dos anos vem perdendo sua importância. Segundo Welter (2003, p.157) “a doutrina, em sua maioria, dispensa o requisito do nome, bastando a comprovação dos requisitos do tratamento e da reputação, visto que o filho é quase sempre identificado pelo prenome”. Por este motivo a falta do primeiro elemento não descaracteriza o estado de filho.
O segundo elemento, ao contrário do primeiro, é essencial para caracterização do estado. É através do tratamento deferido que se reconhece a relação afetiva existente, mas é importante observar que o tratamento na relação socioafetiva acontece de acordo com as possibilidades de cada família. Assim, não se pode descaracterizar o estado de filiação quando, por exemplo, o filho não tiver um plano de saúde sendo que o pai não tem condições financeiras de pagar um. Segundo Paulo Luiz Netto Lôbo (2004, on-line):
Neste aspecto podem subsistir as assistências material e moral, ou então somente a material, ou a moral. Pois, para caracterização deste elemento deve-se levar em consideração a situação pessoal do suposto pai, quer dizer, pode ocorrer que o pai não tenha condições econômicas para prestar assistência ou então o filho dela não necessite. No caso da assistência moral, o pai pode ter dificuldades de expressar seus sentimentos ao filho, seja por temperamento,seja por conveniência.
Quanto ao último quesito, a fama, esta relação entre pais e filho deve ser pública de maneira a convencer terceiros do vínculo da filiação. Com relação à fama, levando em consideração que a prova desta se faz através da oitiva de testemunhas, a doutrina se divide quanto à necessidade da unanimidade dos depoimentos. Segundo Eduardo dos Santos (1999) citado por Belmiro Pedro Welter (2003, p.160), “se não há unanimidade de juízos, é porque a reputação e o tratamento pela pretensa mãe (ou pai) são bem capazes de estar desviados”. Já o próprio Welter reputa esta idéia de unanimidade defendendo que deve ser analisada a boa-fé nos depoimentos.
Então, na filiação derivada das técnicas de reprodução medicamente assistida heteróloga existem então duas formas de determinação de paternidade e maternidade: a forma presumida para os filhos nascidos na constância do casamento por força do inciso V do art. 1.597 do Código Civil. Na explicação de Guilherme Calmon (2003, p.18): “a vontade acoplada à existência do vínculo conjugal e ao êxito da técnica de procriação assistida heteróloga se mostra o elemento fundamental para o estabelecimento da paternidade que, desse modo, se torna certa, insuscetíveis de impugnação pelo marido”.
A segunda forma é relativa aos casais que não se uniram em matrimônio, cujos filhos, portanto, não terão a filiação enquadrada nos casos de filiação presumida, mas que procuram, de forma espontânea, um tratamento doloroso, caro e que acima de tudo apresenta riscos para a mulher, movidos pelo desejo de ter um filho que não veio de forma natural, são considerados pais socioafetivos com todos os direitos e deveres derivados do instituto, sem qualquer possibilidade da paternidade ou maternidade serem confundidas com a origem genética do indivíduo, pois aqueles que doaram os gametas para concepção do embrião não são obrigatoriamente pais, afinal, pais são aqueles que desejam e lutam pelo filho, torcendo pelo seu nascimento, cuidando do seu bem-estar e propiciando-lhe uma família.
2.3 O interesse do filho socioafetivo em conhecer sua ascendência genética.
A filiação decorrente das técnicas de reprodução medicamente assistida heteróloga pode decorrer de uma presunção legal de acordo com o art. 1597, V do Código Civil de 2002, quando os requerentes do procedimento forem casados e estiverem de comum acordo quanto ao método, mas pode derivar também da relação afetiva entre a criança concebida pela técnica e a mulher solteira que lhe gerou, ou ainda entre a criança e o homem que socialmente o expõe como filho de acordo com os elementos que caracterizam o estado de filho, explanados no tópico anterior.
Não se pode, porém, ao determinar a paternidade e maternidade da criança concebida através de uma técnica de reprodução heteróloga em favor dos pais socioafetivos, olvidar que além dos pais, a criança também tem interesses e que, entre estes interesses, pode estar o de conhecer sua ascendência genética. Em alguns casos, este desejo pode ter como causa a falta de um pai ou de uma mãe juridicamente estabelecido quando a técnica foi utilizada só por um indivíduo; pode também ser movido pela vontade de ver desconstituída a paternidade anteriormente estabelecida, seja por ambição material, seja por desentendimentos com os que lhe criaram; pode surgir da necessidade de se analisar o material genético de seu ascendente para preservar a saúde do filho socioafetivo; como pode também ter como partida a mera curiosidade sobre aquele ou aqueles que permitiram a concretização do projeto parental daqueles que reconhece como pais.
Na primeira hipótese, em que o desejo de conhecer o doador é originado pela falta de um pai ou mãe juridicamente estabelecido, deve-se considerar a decisão da Constituição Federal de 1988 em reconhecer como entidade familiar a “comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (art. 226, § 4º, CF/88). Reconhecendo a família monoparental, seria absurdo excluir as pessoas solteiras da possibilidade de serem beneficiárias das técnicas de reprodução medicamente assistida, por isso que a Lei 9.263/96, que regulamenta o direito constitucional ao planejamento familiar, em seu art.3º dispõe:
Art. 3º. O planejamento familiar é parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde.
Parágrafo único. As instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde, em todos os seus níveis, na prestação das ações previstas no caput, obrigam-se a garantir, em toda a sua rede de serviços, no que respeita a atenção à mulher, ao homem ou ao casal, programa de atenção integral à saúde, em todos os seus ciclos vitais, que inclua, como atividades básicas, entre outras:
I – a assistência à concepção e contracepção;
[…] (grifou-se)
Dada a possibilidade de solteiros se beneficiarem dos métodos, não são poucas as pessoas que possuem em seu registro de nascimento apenas o nome do pai ou da mãe. É natural que estas pessoas venham requerer judicialmente o conhecimento do pai ou da mãe que lhes falta, pois é sabido da importância das figuras paterna e materna no desenvolvimento pleno do indivíduo, uma vez que estes são referências de comportamento para os filhos, base indispensável da formação como ser humano. Entretanto, o reconhecimento do direito ao conhecimento da ascendência genética nestes casos não é pacífico, enquanto alguns doutrinadores reconhecem o direito do filho, outros não reconhecem. Para Silmara de Abreu Juny Chinelato (1996 apud MOREIRA FILHO, 2002, on-line):
Ter direito ao reconhecimento da origem genética não significa subjugação, discriminação ou preponderância da filiação biológica em face da filiação socioafetiva, pois tal entendimento só seria relevante quando tratamos da discussão travada em um conflito positivo de paternidade, mas, ao tratar de uma criança que não terá pai algum e desejando conhecer seus verdadeiros pais, nada mais lógico que se reconheça esse direito.
Para a doutrinadora, no caso da ausência do pai, o filho tem direito ao conhecimento da origem genética. Importante se faz neste momento diferenciar o mero conhecimento de sua origem genética do reconhecimento de paternidade ou maternidade, pois conhecer o doador que possibilitou a aplicação da técnica de R.M.A. não implica necessariamente em impor vínculos familiares, o que é efeito próprio do reconhecimento de paternidade ou maternidade. Este é o entendimento também do jurista Paolo Vercellone que aceita o direito ao conhecimento dos filhos inseridos em famílias monoparentais, mas reconhece que este conhecimento não gera responsabilidades alimentares, por exemplo, ou quaisquer outras tipicamente paternas ou maternas. De acordo com a citação de Lílian Lúcia Graciano (2003, on-line):
Na obra do jurista italiano Paolo VERCELLONE, sobre direito familiar, nega a possibilidade do doador de esperma tornar-se pai do nascido, mas permite ao filho, ao atingir a maturidade, conhecer a pessoa de cujo corpo proveio o sêmen que participou de sua própria criação, e, portanto é responsável pelo seu nascimento e por seus caracteres genéticos.
Mas existem, como dito, autores contrários ao posicionamento de Silmara de Abreu Juny Chinelato. Afirma esta parte da doutrina que o argumento em que se baseiam os defensores do direito ao conhecimento, que se funda nos direitos de personalidade, alegando a necessidade do ser gerado de forma heteróloga de conhecer sua origem como meio para formar sua própria identidade, não é forte o bastante, pois inúmeras crianças crescem em famílias monoparentais e formam sua identidade, de forma que o conhecimento da própria origem não é imprescindível elemento construtor da personalidade humana. Neste sentido, assevera Albertino Daniel de Melo citado por Belmiro Pedro Welter (2003, p.229): o filho não perde a sua identidade por não conhecer os pais genéticos, por que, “com a afirmação dos direitos da personalidade, é certo que a identidade se altera com o esforço pessoal-próprio, ganhando nova imagem, foros de honra, de intimidade, tudo isso com que a sociedade se engrandece”.
Passando à segunda possibilidade citada, o filho sociológico também pode desejar a desconstituição da paternidade ou maternidade anteriormente existente, no caso a socioafetiva, por interesses financeiros ou desentendimentos com as pessoas que o criaram. É comum, embora moralmente reprovável, que visando ganhos financeiros, sabendo o filho socioafetivo, seja através de que forma for, que o doador (a) é pessoa de posses, intente ação investigatória de paternidade para constituir um novo vínculo parental e desconstituir o anterior. Cumpre verificar nos casos concretos se há realmente paternidade ou maternidade estabelecida, isto por que João Baptista Villela (1999 apud SANTOS, 2001, p.251) deixa claro o escopo da ação investigatória de paternidade ao afirmar que “o direito ao reconhecimento tem-no, entretanto, todo aquele, e somente aquele, a quem falte o pai juridicamente estabelecido”, então, tendo em vista a função da ação, não poderia ser aceita a propositura de uma ação deste tipo quando já se estabeleceu a paternidade da pessoa, seja presumidamente, seja socioafetivamente.
Quanto aos desentendimentos que filhos socioafetivos possam vir a ter com seus pais, estes não podem ser aceitos como motivo para desconstituição da filiação socioafetiva, pois é natural que discussões e problemas surjam na convivência familiar, já que ninguém é tão parecido com outro que não tenha idéias diferentes que possam gerar conflitos. Mesmo que estes conflitos sejam tão absurdos ao ponto de descaracterizar o estado de filho, eles não irão se resolver através da atribuição da paternidade ou da maternidade ao doador (a).
A terceira hipótese, relativa à possibilidade da análise da ascendência genética se fazer útil à manutenção da vida do ser gerado, tem-se em conta a atual evolução da medicina que permite que doenças possam ser evitadas, reconhecidas e tratadas com eficiência quando se tem conhecimento da carga genética do indivíduo. De acordo com Guilherme de Oliveira (1998 apud WELTER, 2003, p.183): “o progresso dos meios de diagnóstico e dos meios terapêuticos das doenças genéticas tornou fundamental, em certos casos, conhecer os antecedentes biológicos de um indivíduo”. Nesse aspecto, uma das justificativas do projeto de lei do deputado José Carlos Araújo (2004, on-line) que prevê o direito ao conhecimento da origem genética, foi que “este direito, também, pode ser conveniente se o filho vier a sofrer alguma enfermidade vinculada a herança genética, ou então, queira prevenir tais doenças”.
A prevenção dessas doenças hereditárias pode ser evitada também impedindo a união matrimonial entre doador e a criança, ou ainda entre a criança e os parentes próximos do doador, uma vez que a freqüência de manifestação de doenças recessivas é maior quanto mais parecida for a carga genética dos indivíduos. E mesmo que fosse desconsiderada a possibilidade de doenças devido à semelhança das cargas genéticas, não se pode mensurar as implicações psicológicas que surgiriam da posterior descoberta pelo filho socioafetivo do casal que se casou com a filha do doador que lhe possibilitou o nascimento ao perceber que em outras circunstâncias esta seria considerada “meia-irmã” como se costuma denominar os irmãos em relação a um dos pais somente. Assim, o conhecimento à origem genética é defendido, também, como forma de manutenção dos impedimentos matrimoniais previstos no atual Código Civil.
Finalmente, quanto à última hipótese, em que existe a curiosidade acerca do doador ou doadores, pode-se afirmar que a doutrina vem reconhecendo este direito pelo mesmo motivo que reconhece o direito do filho inserido em família monoparental, ou seja, baseia-se na imperiosa necessidade psicológica de conhecer a ascendência como forma de compor a própria personalidade. Esse conhecimento, é preciso lembrar, não é aceito pacificamente na doutrina como já esclarecido.
Independente do motivo pelo qual surja o interesse da criança em conhecer sua ascendência genética existirá um empecilho à concretização de seu desejo: o anonimato do doador determinado na única regulamentação a respeito da aplicação das técnicas de reprodução medicamente assistida, que é a Resolução nº. 1.358 do Conselho Federal de Medicina, CFM, de 1992. No tocante à doação de gametas ou pré-embriões a resolução determina: “os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa” bem como “obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente pra médicos, resguardando-se a identidade civil do doador”.
Resta então, pelo menos em face da resolução do CFM, frustrado o intento dos filhos socioafetivos de conhecer os doadores, que alguns autores denominam “pai biológico”, embora seja uma expressão completamente equivocada dada a nova dimensão dos conceitos de filiação, maternidade e paternidade no atual direito de família. Tem-se então um conflito que vai além da determinação da filiação na reprodução assistida heteróloga: enquanto a resolução confere o direito ao anonimato do doador, fundado no direito fundamental à intimidade, a doutrina entende que o direito do ser gerado de conhecer sua ascendência genética faz parte da gama de direitos fundamentais de personalidade. O conflito envolve os dois direitos fundamentais cuja solução se percebe pela análise do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, tema que será abordado no próximo capítulo.
3. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E AS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA HETERÓLOGA
Os direitos fundamentais são direitos que visam à manutenção da vida humana de forma livre e digna. A origem desses direitos é largamente discutida pela doutrina, pois podem ser vislumbrados em diversas perspectivas. De acordo com Judicael Sudário Pinho (2002, p.78):
Os direitos fundamentais podem ser vistos em, pelo menos, três dimensões: perspectiva filosófica ou jusnaturalista (direito de todos os homens, em todos os tempos e em todos os lugares), perspectiva universalista ou internacionalista (direitos de todos os homens ou categorias de homens, em todos os lugares e em certo tempo) e perspectiva estatal ou constitucional (direitos dos homens – cidadãos – num determinado tempo e lugar, é dizer, num Estado concreto).
É pacífico, entretanto, que modernamente, os direitos fundamentais protegidos pelas diversas constituições no mundo têm como base a Declaração Universal dos Direitos do Homem (Paris, 1948) cuja realização se deu pelos esforços da Organização das Nações Unidas, ONU. De acordo com Fábio Konder Comparato (apud BESSA, 2006, p.16) “os direitos fundamentais são direitos humanos reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribui o poder de editar normas”.
Estes direitos, enquanto “guardiões” da dignidade da pessoa humana não se mantiveram estáticos no tempo, por isso mesmo, são classificados em quatro gerações de acordo com a abrangência de sua proteção. Segundo Celso de Mello, citado por Alexandre de Moraes (2002, p. 59):
Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais, concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.
A quarta geração dos direitos fundamentais, não citada por Celso de Mello, é esclarecida por Regina Fiúza e Severo Hryniewicz (2000, p.74), que se baseiam nos ensinamentos de Norberto Bobbio. Segundo os autores: “neste fim de século estão surgindo os chamados direitos de quarta geração. Entre esses estão principalmente os que têm por finalidade normatizar os efeitos da revolução biotecnológica sobre a sociedade em geral”.
O ordenamento jurídico brasileiro acolhe diversos direitos humanos constitucionalmente garantidos como direitos fundamentais como forma de proteção ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto no art.1º, III, da Constituição Federal de 1988, inclusive direitos de quarta geração, que protegem as pessoas envolvidas em procedimentos biotecnológicos como o de aplicação de técnicas de reprodução medicamente assistida heteróloga. O direito à intimidade e o direito ao conhecimento da ascendência genética que serão analisados a seguir estão no rol destes direitos de quarta geração protegidos pelo ordenamento jurídico brasileiro.
3.1 Direito à intimidade e direito ao conhecimento da ascendência genética
O direito à intimidade e o direito ao conhecimento da ascendência genética são direitos fundamentais de personalidade garantidos pelo nosso ordenamento jurídico. São fundamentais porque são direitos humanos que o legislador recepcionou no ordenamento, e são de personalidade porque são direitos subjetivos atribuídos ao homem despido do seu tipo social (OLIVEIRA, 2004, p.115). A saber, direitos fundamentais e de personalidade não são sinônimos, pois estes últimos têm uma amplitude mais restrita que os primeiros, assim, todo direito de personalidade é fundamental, mas nem todos os direitos fundamentais são de personalidade.
O direito à intimidade, que protege o anonimato do doador na reprodução assistida heteróloga determinado na Resolução nº. 1.358 do CFM, é previsto na Constituição Federal em seu art. 5º, X, que dispõe ser inviolável “a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Edson Ferreira da Silva (apud STOCO, 2004, p.1641) dá ao direito à intimidade o seguinte conceito: “consiste no poder jurídico de subtrair do conhecimento alheio e de impedir qualquer forma de divulgação de aspectos da nossa existência que de acordo com os valores sociais vigentes interessa manter sob reserva”.
O estudioso Adriano De Cupis (apud DOTTI, 1980, p.24) divide o direito à intimidade quanto ao conteúdo em cinco grupos, quais sejam: direito à vida e à integridade física; direito à liberdade; direito à honra e à reserva; direito à identidade pessoal e direito moral. Dentre as matérias relativas ao direito de honra e reserva, existe o direito ao segredo, sobre o qual José Roberto Neves Amorim (2006, on-line) escreve:
Dentro de um aspecto geral da intimidade, as confidências íntimas de cada pessoa devem permanecer no recôndito de sua consciência até que ela resolva ou autorize a divulgação, correspondendo ao segredo ou sigilo. […] No âmbito privado, referente ao lar, à família, à correspondência, o sigilo guarda razões personalíssimas, caracterizando ato de intromissão a divulgação ou o uso indevido de confidências. Todos têm direito a reserva sobre o conhecimento de fatos pessoais íntimos.
Compreende-se assim, que o doador ou doadora de gametas tem direito a manter este ato em segredo, ou seja, na intimidade, de forma que as outras pessoas dele não tenham conhecimento.
Se por um lado é defendido o direito ao anonimato do doador na aplicação de técnica de R.M.A. heteróloga, por outro lado também é deferida proteção ao direito da criança de conhecer sua ascendência genética. Alguns autores defendem este direito fazendo referência ao princípio da dignidade da pessoa humana, como podemos citar Belmiro Pedro Welter (2003, p.229), que afirma: “[…] em qualquer caso, o filho, o pai e a mãe têm o direito de investigar e/ou de negar a paternidade ou a maternidade biológica, como parte integrante de seus direitos de cidadania e de dignidade de pessoa humana”. No entanto, o direito ao anonimato do doador também é protegido pelo princípio, uma vez que o direito à intimidade é um desdobramento dos direitos fundamentais que existe justamente para garantir a dignidade da pessoa humana.
Pode-se entender também o direito ao conhecimento da origem genética como decorrente do disposto no art. 227, § 6º da Constituição Federal de 1988, que indica que todos os filhos terão os mesmos direitos e qualificações, assim sendo, deve-se dar à criança gerada por reprodução assistida heteróloga o direito de saber sua origem da mesma forma que outro indivíduo nascido de relações sexuais tem conhecimento. Segundo entendimento de Tycho Brahe Fernandes (apud MORREIRA FILHO, 2002, on-line): "ao se negar a possibilidade do aforamento de ação investigatória por criança concebida por meio de uma das técnicas de reprodução assistida, em inaceitável discriminação se estará negando a ela o direito que é reconhecido a outra criança, nascida de relações sexuais".
Outro entendimento que defende o direito ao conhecimento da origem genética é fundado no direito de personalidade, tanto em relação ao direito à vida, quanto no que diz respeito ao direito à identidade. Quanto ao direito à vida e a integridade física, deve-se considerar a possibilidade, frente ao desenvolvimento da medicina nos últimos anos, de se evitar, reconhecer e curar doenças genéticas pela análise da ascendência biológica. Nesse sentido leciona Paulo Luiz Netto Lôbo (2004, on-line):
O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o direito da personalidade, na espécie direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos para prevenção da própria vida.
Quanto ao direito à identidade, afirma Marcílio José da Cunha Neto (2006, on-line): “Quanto ao filho, como direito inerente à sua personalidade, lhe é reservada a possibilidade de conhecer a identidade do doador. Isso se dá, em primeiro lugar, porque o direito à identidade é um direito personalíssimo e, portanto, insuscetível de obstaculização”.
Enfim, não restam dúvidas que ambos os interesses, do doador e da criança, encontram guarida no texto constitucional, portanto temos uma colisão de direitos fundamentais.
O Direito assenta-se em normas, normas estas divididas em princípios e regras. Os princípios são espécies do gênero norma, considerados “vigas mestras do ordenamento jurídico”, pois, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (1990 apud PINHO, 2002, p.68):
[…] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.
Consoante o ensinamento do doutrinador, os princípios é que dão uniformidade ao ordenamento jurídico e que mostram às demais espécies normativas o “caminho” a ser trilhado, daí a importância do estudo dos princípios. Ensina Paulo Bonavides que, "sem aprofundar a investigação acerca da função dos princípios nos ordenamentos jurídicos não é possível compreender a natureza, a essência e os rumos do constitucionalismo contemporâneo" (apud TOVAR, 2005, on-line).
Os princípios são normas mais genéricas que as regras, não dizem respeito a um fato específico, mas devem ser entendidos “como indicadores de opção pelo favorecimento de determinado valor, a ser levada em conta na apreciação jurídica de uma infinidade de fatos e situações possíveis […]” (PINHO, 2002, p.69). Este grau de abstração maior nos princípios que nas regras é extremamente importante na solução de conflitos: na coexistência de regras contrárias, verificamos uma antinomia sanável pela aplicação de critérios de especialidade, hierarquia, antiguidade, etc, em que uma excluirá a outra, enquanto que na existência de dois princípios opostos, não se pode utilizar estes critérios, uma vez que são gerais, não obedecem a uma hierarquia, bem como surgem ao mesmo tempo, por atuação do constituinte originário. Conforme o ensinamento de Canotilho (1993, p.168):
Em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objetos de ponderação, de harmonização, pois eles contêm apenas “exigências” ou “standards” que em primeira linha (prima facie), devem ser realizados; as regras contêm fixações normativas definitivas, sendo insustentável a validade de regras contraditórias.
Quando se trata de direitos fundamentais, embora estes não sejam princípios, deve-se aplicar a mesma forma de solução de conflito destes, uma vez que os direitos fundamentais, enquanto direitos destinados a manter a vida humana dentro dos valores de liberdade e dignidade, servem de alicerce ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, não podendo, assim, ser objeto de exclusão em caso de conflito. Importante observar que os direitos fundamentais são normas genéricas assim como os princípios, não sendo sua colisão caso de contrariedade, ou seja, um direito não é contrário ao outro, apenas opostos no caso concreto. Edílson Pereira de Farias (1996, p.41) explica:
Os princípios são utilizados para a tarefa importante de solucionar o conflito ou colisão de normas tão freqüentes nos ordenamentos jurídicos, devido à expansão dos direitos fundamentais e a outros valores constitucionais relevantes, ambos possuidores do caráter de princípios.
Nos casos de colisão de direitos fundamentais existem três princípios que podem ser utilizados como parâmetros para que se verifique qual deve prevalecer: o princípio da unicidade da constituição e da concordância prática, o princípio da proporcionalidade e o princípio da dignidade da pessoa humana (BESSA, 2006, on-line). Através da aplicação do princípio da unicidade da constituição é possível perceber qual dos direitos deve ser mantido, sendo que o escolhido para o caso deve ser o ideal para harmonizar o texto constitucional. Conforme ensinamento de Edílson Pereira de Farias (1996, p. 98): “De acordo com o princípio da concordância prática, os direitos fundamentais e valores constitucionais deverão ser harmonizados […] por meio de juízo de ponderação que vise preservar e concretizar ao máximo os direitos e bens constitucionalmente protegidos”.
O princípio da proporcionalidade se aplica definindo qual dos princípios deve ser utilizado de acordo com os fins que se busca alcançar, ou seja, afasta-se um direito já que outro protege um bem superior e mais adequado para a situação. Segundo Carlos Affonso e Patrícia Regina (2006, on-line):
subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito diz respeito a um sistema de valoração, na medida em que ao se garantir um direito muitas vezes é preciso restringir outro, situação juridicamente aceitável somente após um estudo teleológico, no qual se conclua que o direito juridicamente protegido por determinada norma apresenta conteúdo valorativamente superior ao restringido.
Por último, quando não for possível alcançar a solução através da interpretação harmônica da constituição e pela valoração de direitos fundamentais, recorre-se ao princípio da dignidade da pessoa humana para definição do direito fundamental que deve se sobrepor. Como todos os direitos fundamentais objetivam a proteção da dignidade humana, mais justo é permanecer aquele que em maior grau defenda esta dignidade.
3.3 O princípio da dignidade da pessoa humana como forma de solução de conflitos
A pessoa é a principal razão de ser do ordenamento jurídico, ela é, nos dizeres de Regina Fiúza e Severo Hryniewicz (2002, p. 61), “o valor absoluto”, isso porque é dotada de racionalidade, espiritualidade e superioridade física em relação aos demais seres. Por ser o valor da pessoa humana o motivo da existência de um ordenamento é que se deduz que as normas existam em benefício da pessoa, ou seja, a serviço de sua dignidade. É o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana a tradução jurídica do valor da pessoa humana.
A importância do princípio da dignidade da pessoa humana na solução de conflitos de direitos fundamentais se apresenta na medida em que é ele que dá sentido ao leque de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Edílson Pereira de Farias (1996, p.54) enuncia:
O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana cumpre um relevante papel na arquitetura constitucional: o de fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais. Aquele princípio é o valor que dá unidade e coerência ao conjunto dos direitos fundamentais. Dessarte, o extenso rol de direitos e garantias fundamentais consagrados pelo título II da Constituição Federal de 1988 traduz uma especificação e densificação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
Assim, a colisão de direitos fundamentais que ocorre quando o âmbito da proteção de um invade o âmbito de proteção do outro, tem solução quando da análise do caso concreto se vislumbra qual deve ser o direito a se manter por ser o que mais protege a dignidade da pessoa. Como exposto, estes direitos são normas não passíveis de exclusão, não só pela equiparação aos princípios, mas também por serem cláusulas pétreas, entretanto, podem ser objetos de ponderação em caso de conflito, por isto, a afirmação de Ingo Wolfgang Sarlet (1998, p.364) de que: “intangível não é o direito fundamental em si, mas, sim, o seu conteúdo em dignidade da pessoa humana”, e ainda escreve:
[…] no plano da eficácia dos direitos fundamentais assume lugar de destaque o princípio da proporcionalidade e da harmonização dos valores em jogo, sugerindo-se que o limite seja, também aqui, reconduzido ao principio fundamental do respeito e da proteção da dignidade da pessoa humana, fio condutor de toda a ordem constitucional, sem o qual ela própria acabaria por renunciar à sua humanidade, perdendo até mesmo a sua razão de ser (p.374).
Na colisão que toma forma pela aplicação das técnicas de reprodução assistida heteróloga, para definir se o interesse que deve prevalecer é o do ser gerado ou do doador, é preciso verificar em cada situação de conflito, o quanto em dignidade da pessoa humana o direito fundamental em questão protege. Foram apresentados os seguintes motivos pelos quais a criança desejaria conhecer o seu ascendente genético: a falta de um pai ou de uma mãe juridicamente estabelecido quando a técnica foi utilizada só por um indivíduo; a vontade de ver desconstituída a paternidade anteriormente estabelecida, seja por ambição material, seja por desentendimentos com os que lhe criaram; da necessidade de se analisar o material genético de seu ascendente para preservar a saúde do filho socioafetivo; a preocupação em evitar vínculos parentais em desconformidade com a moral e os costumes ou, finalmente, a mera curiosidade sobre aquele ou aqueles que permitiram a concretização do projeto parental daqueles que reconhece como pais.
Nas hipóteses em que o desejo tem como fato gerador a falta de um pai ou mãe juridicamente estabelecido ou a curiosidade sobre seu doador, o interesse do filho em conhecer sua ascendência genética só deve prevalecer sobre o direito à intimidade do doador quando e se for comprovado que esse conhecimento seja uma necessidade psicológica do ser gerado. José Roberto Moreira Filho (2002, on-line) esclarece:
Ao legar ao filho o seu direito de conhecer a sua verdadeira identidade genética, estamos reconhecendo-lhe o exercício pleno de seu direito de personalidade e a possibilidade de buscar nos pais biológicos as explicações para as mais variadas dúvidas e questionamentos que surgem em sua vida, como, por exemplo, as explicações acerca da característica fenotípica, da índole e do comportamento social[…].
H. Scholler (apud SARLET, 1998, p.294), manifesta-se a respeito ao afirmar que “a dignidade da pessoa humana apenas estará assegurada quando for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade”, assim, o direito da criança de conhecer suas origens é superior ao direito à intimidade por que, enquanto que a diminuição da proteção à intimidade no caso concreto pode gerar apenas poucos embaraços, o desconhecimento da ascendência genética pode interferir na vida do indivíduo causando-lhe seqüelas morais para o resto de sua existência.
Na hipótese de necessidade de se conhecer o ascendente para a preservação de sua vida é incontestável a superioridade em termos de importância do direito ao conhecimento da origem genética em detrimento do direito à intimidade. O resguardo de uma pessoa não pode ter um valor maior que a vida de outra, pois a vida é o maior bem da pessoa e que merece a mais ampla forma de proteção pelo ordenamento. Neste aspecto, a legislação pátria deve seguir o exemplo da lei sueca, que, segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama (apud ALMEIDA JÚNIOR, 2005, p. 95):
Apesar do anonimato dos doadores ser a regra em praticamente em todos os países que possuem legislação a respeito, atendendo aos interesses da criança ou do adolescente, a lei sueca exatamente não prevê o sigilo, o anonimato, tendo em vista a necessidade de prevenir doenças genéticas, além de permitir que a pessoa possa, com a maioridade, conhecer o genitor biológico.
Quanto à questão do conhecimento da origem para se evitar a formação de vínculos parentais em desacordo com as normas do Código Civil, Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior manifesta-se (2005, p.96):
[…] os filhos devem ter acesso aos dados biológicos do doador para descoberta de possível impedimento matrimonial, pois em se mantendo esse sigilo de forma absoluta, isso poderia redundar, futuramente, em relações incestuosas.
Sendo totalmente anônima a paternidade biológica, mantida sob a égide de um sigilo absoluto, nada impede que irmãos (filhos nascidos de material pertencente ao mesmo doador) ou mesmo o próprio doador e uma filha contraiam casamento por absoluta ignorância com relação as suas verdadeiras origens.
Nesta hipótese, o direito à intimidade deve ser colocado em segundo plano mesmo porque podem existir situações em que o próprio doador terá interesse em saber se a pessoa com quem quer contrair vínculo foi ou não gerada a partir de seu material genético. O anonimato absoluto iria de encontro à dignidade da pessoa de forma absurda, se, após contrair núpcias, o casal descobrisse que existia algum impedimento de ordem moral para o casamento.
Nas hipóteses até aqui mencionadas, a dignidade da pessoa humana é garantida pela manutenção do direito fundamental ao conhecimento e não do direito à intimidade. René Ariel Dotti (1980, p.73) explana sobre a prevalência de outros interesses frente ao direito à intimidade:
O direito à intimidade da vida privada tem um conteúdo extraordinariamente amplo e variável, em função do titular a que respeite, por outro lado, mesmo no plano da tutela do núcleo essencial da intimidade que se considera comum a toda pessoa humana, há que atender a que o direito à intimidade que se pretende tutelar, como qualquer outro, não é ilimitado, antes deve ser cercado pelas limitações inerentes à sua eventual subordinação a outros interesses superiores ou de igual valor.
Entretanto, nas outras duas hipóteses, quais sejam: a de querer conhecer a identidade genética para desconstituir vínculo parental estabelecido por motivos financeiros ou descontentamento com a instituição familiar, é praticamente unânime a opinião dos doutrinadores em manter o anonimato do doador, pois nestes casos o conhecimento da origem genética não estaria defendendo a dignidade da pessoa humana, mas sim interesses financeiros pessoais do ser gerado ou mesmo estaria ferindo a dignidade dos pais estabelecidos se, após anos cuidando do filho, tivessem desconstituídas a maternidade e paternidade, num ato de ingratidão imensurável. Neste sentido Andréa Aldrovandi (on-line) cita motivos pelos quais o doutrinador Eduardo Oliveira Leite se manifesta a favor do anonimato do doador:
Pode haver maior respeito à dignidade humana no não conhecimento da origem genética de alguém, do que neste conhecimento.
Defender o direito à ação de investigação de paternidade contra o doador do sêmen seria defender que todas as crianças adotadas tenham direito a buscar sua origem genética.
[…]
O anonimato evita que, tanto o doador como a criança, procurem estabelecer relações com vistas a obtenção de meras vantagens pecuniárias.
José Roberto Moreira Filho (2002, on-line), sobre o assunto, afirma:
O direito ao reconhecimento da origem genética não importa, igualmente, em desconstituição da filiação jurídica ou socioafetiva e apenas assegura a certeza da origem genética, a qual poderá ter preponderância ímpar para a pessoa que a busca e não poderá nunca ser renunciada por quem não seja o seu titular.
Percebe-se, portanto, que o conhecimento da ascendência genética pode ser preponderante sobre o direito à intimidade do doador, pois é o direito que protege de forma mais ampla a dignidade da pessoa humana em alguns casos na utilização da reprodução assistida heteróloga, permitindo o desenvolvimento da personalidade da criança e a manutenção de sua vida. Esse direito, entretanto, está restrito há três situações, conforme a explanação de Belmiro Pedro Welter (2003, p. 232):
Em ambos os casos (doação de sêmen e/ou óvulo), a paternidade ou a maternidade também pode ser investigada, pois tanto o filho quanto o pai biológico têm o sagrado, natural e constitucional direito de saber a sua origem, a sua ancestralidade, que faz parte da personalidade e dos princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana. Porém, essa investigação, se já existente a paternidade e/ou maternidade socioafetiva, estará restrita aos três efeitos jurídicos, quais sejam: 1. por necessidade psicológica ao conhecimento da origem genética; 2. para segregar os impedimentos do casamento; 3. para preservar a saúde e a vida dos pais e do filho biológico nas graves doenças genéticas.
Deve-se lembrar que o direito ao conhecimento da ascendência genética é um direito e não um dever, assim, a criança não sentindo nunca a necessidade de conhecer suas origens não pode ser obrigado a conhecê-las, podendo permanecer, se assim desejar, na ignorância a respeito de sua ascendência. De acordo com Reinaldo Pereira (2003, p.87):
[…] é importante ter claro que o conhecimento da ascendência biológica é um verdadeiro direito, não é um dever. Em outras palavras, ninguém pode ser obrigado a conhecer sua ascendência biológica, mas todos os filhos têm o direito de conhecê-la caso o queiram, pouco importando a natureza de seus vínculos familiares (adoção tradicional, recurso às técnicas de reprodução medicamente assistida etc.)
Trata-se, no caso, do respeito à dignidade da pessoa humana na proteção da intimidade da pessoa física na espécie de direito à reserva, que, segundo René Ariel Dotti (1980, p.76) é reconhecido por Paulo Cunha como o “direito que cada um tem de se opor à investigação ou divulgação de quaisquer fatos a ela referentes, subtraindo-os ao conhecimento dos outros em particular e da curiosidade pública em geral”.
Infelizmente, o direito ao conhecimento da origem genética e o direito à intimidade determinados constitucionalmente não são efetivamente protegidos nos casos de reprodução assistida heteróloga. O tema, pela sua relevância, necessita de uma lei especial que regularize a situação de doadores e de receptores, bem como dos indivíduos havidos por meio destas técnicas. Alguns deputados, mobilizando-se pela melhoria de nosso ordenamento, lacunoso quanto às questões neste trabalho levantadas, apresentaram para votação projetos de lei dispondo sobre a reprodução assistida heteróloga que serão estudados no próximo capítulo.
4. O CONHECIMENTO DA ASCENDÊNCIA GENÉTICA
O presente trabalho buscou até agora apresentar os inúmeros posicionamentos doutrinários acerca da utilização das técnicas de reprodução assistida relativos às questões levantadas sobre a filiação e a possível identificação do doador de gametas. Muitos dos posicionamentos aqui mencionados contribuíram para a elaboração de projetos de lei apresentados por deputados e senadores com o objetivo de preencher as lacunas existentes no Código Civil em vigor a respeito da reprodução heteróloga.
Importante se faz lembrar que muitas das questões jurídicas originadas pela aplicação das novas técnicas de reprodução não foram abordadas no Código Civil de 2002, Lei n°. 10.406/02, porque, à época da apresentação do Projeto de Lei que culminou com a promulgação do código, os legisladores não previram o avanço científico tão acelerado no campo da reprodução humana. O projeto, datado de 1975, tornou-se lacunoso não só por causa do desenvolvimento da medicina, como também pelo advento da Constituição Federal de 1988. De acordo com Guilherme Calmon (2003, p. 13):
O texto do projeto do Código Civil […] desde a apresentação na Câmara até a sua apresentação no Senado, decorreu período de tempo superior a vinte anos. Durante tal lapso temporal sobrevieram várias modificações de relevo no âmbito da regulamentação legislativa de vários institutos de direito civil, mas especialmente é imperioso destacar a promulgação da Constituição Federal em 05.10.1988 que, como se sabe, propiciou uma autêntica revolução no direito de família e em vários outros segmentos do direito civil. O texto da Constituição de 1988 gerou a inocuidade de inúmeras regras constantes do projeto do novo Código, inclusive por vício de inconstitucionalidade material. (grifo original)
Além dos problemas relativos à demora na tramitação do projeto do Código Civil, também a omissão em legislar sobre aspectos da reprodução humana se deve a impedimentos de ordem formal. Segundo o relatório geral do Deputado Ricardo Fiúza (2000, apud GAMA, 2003, p.15):
Diz-se, por exemplo, que o projeto não versa sobre os direitos do nascituro fertilizado in vitro. O Prof. Miguel Reale, quando compareceu à primeira das muitas audiências públicas realizadas pela nossa Comissão Especial, respondeu a algumas dessas questões, afirmando que “novidades, como o filho de proveta, só podem ser objeto de leis especiais. Mesmo porque transcendem o campo do direito civil”.
Em vista do limite formal à inclusão de normas para regulamentação da utilização de reprodução humana medicamente assistida, urgente é a publicação de uma lei que regule estes procedimentos, que já são uma realidade, com o fito de garantir a proteção dos interesses dos envolvidos, bem como os direitos fundamentais garantidos na Carta Magna de 1988. Adiante, far-se-á um estudo sobre os principais projetos apresentados na Câmara com principal foco no objeto de estudo deste trabalho, qual seja: a possibilidade da pessoa conhecer a identidade civil dos doadores de gametas que lhe possibilitou o nascimento e a constituição da paternidade e maternidade do ser gerado através da reprodução assistida heteróloga.
4.1 Projetos de lei sobre reprodução assistida
Foram apresentados na Câmara vários projetos com o objetivo de regulamentar a reprodução humana medicamente assistida, entre eles: o Projeto de Lei n°.3638/97, de autoria do Deputado Luiz Moreira; o Projeto de Lei n°.90/99, escrito pelo Senador Lúcio Alcântara; o Projeto de Lei n°.1184/03, apresentado pelo Senador José Sarney; o Projeto de Lei n°.120/03 do Deputado Roberto Pessoa e também o Projeto de Lei n°.4686/04, do Deputado José Carlos Araújo.
O projeto mais antigo, do Deputado Luiz Moreira, é uma cópia da Resolução do CFM n°. 1.358 de 1992. Este projeto defende o anonimato absoluto do doador, prevendo apenas a possibilidade de em casos de problemas de saúde da criança, as informações sejam fornecidas somente para médicos. Como defendido no capítulo três, o sigilo absoluto da identidade do doador fere o princípio da dignidade da pessoa humana nos casos em que fazendo a análise do caso concreto verifica-se a superioridade do interesse na quebra do sigilo em detrimento de sua manutenção.
O projeto defendido pelo Senador Lúcio Alcântara traz várias inovações, sendo o projeto mais avançado no processo legislativo e estando em tramitação no Senado Federal. Por ter sido objeto de várias deliberações a redação original já foi alterada por duas vezes resultando em dois substitutivos, o primeiro de 1999 do Senador Roberto Requião e o segundo de 2001 do Senador Tião Viana.
A redação original do projeto 90/99 previa em seu art. 1º, I como possíveis beneficiários das técnicas de reprodução assistida as mulheres ou casais que solicitassem do emprego da reprodução assistida. Sobre o artigo, vale ressaltar a discussão sobre a abrangência do acesso às técnicas: seria este restrito à concretização do projeto parental de um casal, ou poderia ser a reprodução realizada em favor de solteiros? A dúvida existe diante o reconhecimento por parte da Constituição Federal da família monoparental. Para Guiherme Calmon Nogueira Gama, bem como para Belmiro Pedro Welter, há de se decidir pela possibilidade da reprodução assistida ser favorável aos solteiros, porque não se pode contrariar os preceitos constitucionais que reconhecem a monoparentalidade e deixar de possibilitar o acesso às técnicas reprodutivas pelos solteiros. Opinião divergente tem o doutrinador Eduardo Oliveira Leite (apud ALDROVANDI, 2002, on-line) para o qual o acesso restrito das técnicas de R.M.A. garante à criança que será gerada o direito ao biparentesco. O primeiro substitutivo tentou limitar o acesso aos casais, mas não logrou êxito, pois a primeira redação, que permitia a utilização das técnicas pelos solteiros, foi mantida pelo segundo substitutivo que corrobora o entendimento da Lei nº. 9.263/96.
Deve-se perceber que no projeto original, a maternidade de substituição seria permitida, por isso, baseado na igualdade entre os sexos, deveriam ser também beneficiários os homens solteiros, o que não foi previsto. Apesar de ter mantido a redação original, o segundo substitutivo não mais permite, em seu art. 3º, a maternidade de substituição, o que torna infrutífera a discussão acerca da constitucionalidade da restrição de uso aos homens solteiros, uma vez que, por impossibilidades físicas e sem condições de recorrer ao popular “útero de aluguel”, mesmo que lhes possibilitassem a utilização das técnicas não haveria concretização do projeto parental por eles.
O Projeto de Lei 90/99 original prevê a necessidade do consentimento livre e esclarecido não só pelos beneficiários, como também dos doadores, que deveriam estar conscientes de sua eventual identificação civil por parte do ser gerado, como também da obrigatoriedade de reconhecimento da criança em casos previstos na lei (art.3°, §2°). A identificação civil poderia ocorrer quando a criança completasse a maioridade, ou a qualquer tempo em casos de falecimento de ambos os pais (art.12, caput). Já o reconhecimento poderia ocorrer se a criança não tivesse no registro a filiação relativa à pessoa do mesmo sexo do doador ou da mãe substituta (art. 12, §1º).
Interessante notar que o art. 12 prevê a possibilidade da criança não ter no registro o nome da mãe substituta como se esta fosse uma exceção, mas esta não é uma exceção e sim a regra, levando-se em consideração que a maternidade de substituição visa efetivar o projeto parental de uma mulher solteira ou casada, cujo nome é que irá configurar no registro de nascimento como a mãe. Considerando os beneficiários previstos no Projeto de Lei, não existiriam crianças geradas sem registro de mãe, já que os homens, como exposto anteriormente, não poderiam ser beneficiados.
Os dois substitutivos do projeto não albergam a necessidade do consentimento livre e esclarecido em relação ao reconhecimento, mas somente em relação à identificação (art.4º, § 2º). Isso porque, diferentemente do projeto original que prevê a paternidade e a maternidade como dos beneficiários, mas com algumas exceções, os projetos seguintes não apresentam nenhuma exceção à declaração de paternidade e maternidade plena aos beneficiários (art. 18 do substitutivo de 1999 e art.16 do substitutivo de 2001).
Outras diferenças importantes são percebidas na evolução do projeto: o original dispunha que a identificação poderia ocorrer quando a criança completasse a maioridade, ou a qualquer tempo em casos de falecimento de ambos os pais. O substitutivo de 99, apesar de exigir a declaração de consentimento do doador de que ele poderá vir a ser identificado civilmente, não permite a identificação pela criança. Quando o primeiro substitutivo indica no art.9º, §2º, que o médico poderá entrevistar o doador, dispõe que deverá ser resguardada a identidade civil, então, compreende-se que essa entrevista deverá ser feita por outra forma que não pessoal ou que o médico é que poderá conhecer a identidade do doador e que deva omiti-la do paciente. Já o substitutivo de 2001 informa em seu art. 9º, §1º que a criança poderá a qualquer tempo conhecer a identidade do doador, inclusive através de representação ou assistência enquanto incapaz.
O projeto e seus substitutivos determinam a obrigatoriedade de registros dos casos de reprodução assistida e de dados sobre o doador para caso de necessidade de informações aos médicos, como também para conhecimento de disponibilidade para transplante de órgãos. No original o período de registro era obrigatório por vinte e cinco anos, seus substitutivos aumentaram para o período de cinqüenta anos. O projeto original e seus substitutivos prevêem a possibilidade de consulta desses registros através do médico sem a necessidade da criança vir a conhecer seu ascendente. Embora no substitutivo de 99 essa possibilidade tenha sido prevista graças ao sigilo absoluto da identidade do doador, no projeto original e no substitutivo de 2001 essa possibilidade vem para concretizar o direito “de não saber”, pois, como já apresentado, o conhecimento da origem genética é direito e não dever, assim, o substitutivo de 2001 prevê duas possibilidades ao ser gerado: este poderá requerer a identificação do doador ou apenas a revelação dos dados acerca do doador para o médico.
O Projeto de Lei 1184 de 2003 de autoria do Senador José Sarney é apenas uma reprodução do substitutivo de 2001 do Projeto de Lei n°90/99 do Senador Lúcio Alcântara. O Projeto de Lei n°. 120/03 do Deputado Roberto Pessoa objetiva o acréscimo do art. 6º – A na Lei 8560 de 1992, que trata da investigação de paternidade. Neste artigo é prevista a possibilidade da identidade dos doadores, sem ressalvas. Por fim, o Projeto de Lei n°. 4686 de 2004 do Deputado José Carlos Araújo é uma proposta e acréscimo do art. 1.597-A ao Código Civil, prevendo a identificação civil do doador a qualquer tempo, inclusive através de representante legal também sem nenhuma restrição. Apesar das disposições deste projeto serem parecidas com as do substitutivo de 2001 do projeto 90/99, deve-se lembrar das limitações formais das normas do Código Civil, então, provavelmente, esse projeto não será aceito pelo mesmo motivo que o assunto não foi abordado na redação original do Código: a reprodução humana é assunto que deve ser objeto de leis especiais.
4.2 Ação adequada à busca da origem genética
Os projetos de lei, em sua maioria, defendem o sigilo do doador como regra que pode ser quebrada pela vontade expressa da criança em qualquer hipótese, embora tenha sido demonstrado no capítulo três do presente trabalho que não é sempre que o interesse em conhecer a origem genética deve prevalecer sobre o direito à intimidade. Apesar de permitirem o conhecimento da ascendência genética, de todos os projetos apresentados, apenas o projeto nº. 120/03 define a ação própria para esta identificação como sendo a ação investigatória de paternidade, mas também são encontrados posicionamentos no sentido de se considerar o habeas data, previsto constitucionalmente, a ação competente para a busca da ascendência biológica.
O entendimento da doutrina é majoritário no sentido de reconhecer como meio adequado para o conhecimento da origem genética a ação de investigação de paternidade prevista na Lei nº. 8.560/92. Neste sentido Belmiro Pedro Welter (2003, p.230) defende a utilização da ação para efetivação do direito de se conhecer o doador, bem como Tycho Brahe Fernandes (apud ALDROVANDI, 2002, on-line), que defende que impedir a ação investigatória de paternidade é discriminação do filho originado de concepção heteróloga, e Álvaro Villaça Azevedo que indica, segundo Andréa Aldrovandi (2002, on-line), que “o filho gerado através de uma das técnicas de reprodução assistida poderá, a qualquer tempo, investigar a sua paternidade, devendo os responsáveis pelos dados do doador, fornecê-los, em segredo de justiça”.
Entretanto, é um posicionamento combatido com base em fortes argumentos. De acordo com Paulo Luiz Netto Lôbo (2004, on-line), para garantir a efetivação do direito fundamental do conhecimento da origem genética, não é preciso investigar a paternidade. Em suas palavras:
Toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica […] Uma coisa é vindicar a origem genética, outra a investigação de paternidade. A paternidade deriva do estado de filiação, independente de origem (biológica ou não). O avanço da biotecnologia permite, por exemplo, a inseminação artificial heteróloga, autorizada pelo marido […]. Nesse caso, o filho pode vindicar os dados genéticos do doador anônimo de sêmen que conste nos arquivos da instituição que o armazenou, para fins de direito da personalidade, mas não poderá fazê-lo com escopo de atribuição de paternidade. Conseqüentemente, é inadequado o uso da ação de investigação de paternidade, para tal fim.
Como escrito no capítulo dois deste trabalho, a filiação, em sua atual compreensão, diverge da origem biológica da pessoa, pois “a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo” (LÔBO, on-line). Com base nesta afirmação é que se pode defender a não utilização da ação de investigação de paternidade para o conhecimento da origem, pois se tratam de institutos diferentes.
A paternidade e a maternidade são conseqüências do estado de pai e mãe, ou seja, decorrentes do fato do filho estar na posse do estado de filho daquelas pessoas. A filiação é comprovada pela certidão de nascimento, na qual, no caso da reprodução medicamente assistida heteróloga, deverá constar o nome dos beneficiários do processo. Assim, uma vez registradas a paternidade e a maternidade, não se pode modificar o estado de filiação salvo por erro ou falsidade deste registro. Neste sentido encontram-se as disposições do Código Civil de 2002:
Art. 1.603. A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil.
Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.
A Lei nº 8560 de 1992, que disciplina a ação investigatória, determina em seu art. 2º, que a ação investigatória tem lugar quando o filho não possui em seu registro de nascimento a paternidade estabelecida:
Art. 2º Em registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida, o oficial remeterá ao juiz certidão integral do registro e o nome e prenome, profissão, identidade e residência do suposto pai, a fim de ser averiguada oficiosamente a procedência da alegação.
Tratando-se, portanto, do indivíduo que possui pai e mãe juridicamente estabelecidos, mesmo havendo possibilidade de propositura de ação investigatória, uma vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente não prevê restrições, essa não deverá ter efeitos próprios da investigação de paternidade, em vista da paternidade já estar estabelecida e não existirem motivos para descaracterizá-la, principalmente quando se percebe a paternidade socioafetiva ganhando cada vez mais importância no momento de definição de parentesco. A ação deverá ter efeitos limitados ao conhecimento da ascendência genética.
A investigação pode ocorrer na hipótese prevista na Lei nº.8560/92 se, sendo uma mulher solteira beneficiária da técnica de reprodução assistida heteróloga, esta registre a criança apenas em seu nome. Neste caso também a investigação deve ter efeito limitado ao conhecimento da origem genética, porque o doador não deve ser obrigado a arcar com os efeitos do reconhecimento, visto que o projeto parental é de autoria da mulher solteira e a criança concebida de sua responsabilidade. Neste aspecto, verifica-se a insuficiência da ação para buscar o conhecimento da origem, pois, entre as técnicas de reprodução heteróloga, está contida a possibilidade tanto da doação de gametas femininos quanto masculinos, daí, considerando-se a necessidade da criança concebida com óvulo doado buscar sua origem, esta busca não poderia acontecer através da investigação de paternidade.
Além dos limites relacionados ao interesse de agir da pessoa que deseja reconhecer sua ascendência, considerando que esta, tendo pai, terá a ação que ser declarada de efeitos limitados, resta também prejudicado o argumento desta ação ser a ideal para o objetivo do conhecimento da origem pelo fato dos efeitos da ação serem opostos à real finalidade buscada, como se verifica na leitura do art. 1.616 do Código Civil de 2002:
Art. 1.616. A sentença que julgar procedente a ação de investigação produzirá os mesmos efeitos do reconhecimento; mas poderá ordenar que o filho se crie e eduque fora da companhia dos pais ou daquele que lhe contestou essa qualidade.
Percebe-se então, que o indivíduo que deseja buscar sua origem, mesmo sendo a ação possibilitada, os efeitos da sentença deverão ser limitados, pois ação investigatória de paternidade, quando julgada procedente, gera efeitos de reconhecimento, tanto morais quanto patrimoniais. Dentre os efeitos morais está a submissão ao pátrio poder (PEREIRA, 1977, p.151), atualmente entendido como poder familiar, cujo exercício compreende os seguintes direitos e deveres de acordo com o art. 1634 do Código Civil de 2002:
Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I – dirigir-lhes a criação e educação;
II – tê-los em sua companhia e guarda;
III – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV – nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
V – representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VI – reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
VII – exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Conclui-se, assim, que a ação investigatória de paternidade se mostra imprestável para busca do conhecimento da origem genética, primeiramente por passar a impressão equivocada de que origem genética se confunde com o instituto da paternidade, segundo por não atender ao direito de todos aqueles que desejam o conhecimento de suas origens por não poder ser proposta para investigação da doadora de óvulos, e, finalmente, pelos seus efeitos de constituição de novo vínculo parental, desconstituindo o anterior e submetendo o investigando ao poder familiar do doador, o que é totalmente diferente do fim desejado. Infelizmente, uma vez que o ECA não prevê restrições à sua propositura e também pelo fato de não existir ação própria, a ação investigatória de paternidade vem sendo utilizada de forma equivocada por aqueles que desejam conhecer sua ascendência genética, sendo uma tendência concedê-la com efeitos limitados.
O habeas data é ação prevista no art 5º, LXXII da Constituição Federal de 1988. Seu objetivo é levar ao conhecimento do impetrante dados relativos à pessoa do impetrante, constantes de arquivos, cujo órgão responsável tenha se negado a fornecer.
Art. 5º
[…]
LXXII – conceder-se-á habeas data:
a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;
b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo;
Fernanda de Fraga Balan (2006, on-line) anuncia o entendimento de Guilherme Calmon Nogueira da Gama:
O autor acredita que, para fazer valer esse direito, a criança gerada poderia valer-se do remédio constitucional do habeas data, previsto no artigo 5º, inciso LXXI, “a”, da Constituição Federal […].
O habeas data não se restringiria à Administração Pública, podendo atingir entidades que mantenham bancos de dados de caráter público; o que abrange casas de saúde, bancos de sêmen e de embriões e, fundamentalmente, as pessoas dos profissionais que se responsabilizaram pelo procedimento médico concernente à procriação assistida heteróloga.
Assim como a investigação de paternidade, o habeas data também não deve considerado a ação própria para o conhecimento da ascendência genética por alguns motivos claros percebidos na análise do inciso LXXII do art.5º da Constituição Federal. Dois pontos devem ser analisados no artigo constitucional. O primeiro ponto a ser abordado é o objeto do conhecimento: “informações relativas à pessoa do impetrante”. Mesmo que as informações acerca da origem genética sejam relativas ao impetrante, na sua busca pede-se informações relativas à pessoa do doador, o que não pode ser fornecido através do habeas data.
O segundo ponto controverso é a necessidade destes arquivos constarem “de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público”. Se a aplicação da técnica de reprodução medicamente assistida ocorreu em hospital público existirá o caráter público, o que não acontecerá se o procedimento se der em empresas particulares. Conforme explicação de Alexandre de Moraes (2002, p.157):
Poderão ser sujeitos passivos do habeas data as entidades governamentais, de administração pública direta ou indireta, bem como as instituições, entidades e pessoas jurídicas privadas que prestem serviços para o público ou de interesse público, e desde que detenham dados referentes às pessoas físicas ou jurídicas.
Tem-se, portanto, como inadequada a propositura do habeas data com objetivo de se encontrar a origem genética, por dois motivos: pelas informações buscadas serem relativas também ao doador e não somente ao impetrante, como também pela não caracterização dos bancos de gametas e das empresas que utilizam as técnicas de reprodução assistida heteróloga como sendo de caráter público, primeiramente porque seus serviços são dirigidos para uma parcela específica da população e porque seus serviços não são de interesse público.
Considerando que o direito fundamental ao conhecimento da ascendência genética deve ser preservado e que não existe no ordenamento jurídico brasileiro nenhuma ação adequada para concretização deste direito, percebe-se uma urgência no sentido de concentrar esforços no legislativo para criação de ação própria que permita a efetivação deste direito constitucionalmente protegido. Inclusive, esta ação deverá conter limitações quando à possibilidade de sua propositura, sendo interessante que limite o conhecimento da origem genética aos casos em que o direito fundamental ao conhecimento se sobreponha ao direito à intimidade do doador, e não em todos os casos, como se entende da leitura do Projeto de Lei 90/99 na versão atual de 2001 do Senador Tião Viana.
4.3 Efeitos pessoais e patrimoniais do conhecimento da origem genética
O projeto de Lei 90/99 de autoria do Senador Lúcio Alcântara, em sua redação original, previa a possibilidade de reconhecimento por parte do doador da criança através de reprodução assistida heteróloga, no caso do ser gerado não possuir o nome do pai no registro de nascimento. Deste reconhecimento derivaria uma série de direitos e deveres inerentes ao reconhecimento da paternidade ou maternidade. Este reconhecimento pelo doador era, porém, uma exceção, devendo em regra ser os beneficiários os responsáveis pela criança, pois é destes o projeto parental.
Essa possibilidade de reconhecimento, entretanto, não se manteve nos dois substitutivos do projeto, que dispõem que não existirá qualquer vínculo ou direitos decorrentes da doação de gametas. Desse modo, o art. 19 do substitutivo de 99 e o art. 17 do substitutivo de 2001, prevêem como efeitos do conhecimento da ascendência genética apenas os impedimentos matrimoniais previstos no Código Civil em seu art.
Art. 1.521. Não podem casar:
I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II – os afins em linha reta;
III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;
V – o adotado com o filho do adotante;
VI – as pessoas casadas;
VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
A determinação da atual versão do projeto está de acordo com o entendimento majoritário da doutrina da qual faz parte Belmiro Pedro Welter, Guilherme Calmon Nogueira Gama e Paulo Luiz Netto Lobo, que tem sido no sentido de vedar os efeitos típicos de reconhecimento de paternidade ou maternidade por ocasião do conhecimento da ascendência genética, exceto os impedimentos matrimoniais. Existe na opinião destes autores uma equiparação dos efeitos do conhecimento da origem genética aos efeitos da adoção, tanto que o Deputado José Carlos Araújo, no projeto de Lei nº. 4686/04 que objetiva o acréscimo do art. 1597-A ao Código Civil indica que “o conhecimento da verdade biológica impõe a implicação dos artigos 1521, 1596, 1626, 1628 (segunda parte) deste código”. O art. 1521 do Código Civil de 2002 contém os impedimentos matrimoniais, o 1596 dispõe sobre a igualdade dos filhos independente de origem, e os artigos 1626 e 1628 fazem parte do capítulo sobre adoção. Dispõem os artigos:
Art. 1.626. A adoção atribui a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes consangüíneos, salvo quanto aos impedimentos para o casamento.
Art. 1.628. Os efeitos da adoção começam a partir do trânsito em julgado da sentença, exceto se o adotante vier a falecer no curso do procedimento, caso em que terá força retroativa à data do óbito. As relações de parentesco se estabelecem não só entre o adotante e o adotado, como também entre aquele e os descendentes deste e entre o adotado e todos os parentes do adotante. (grifou-se)
José Carlos Araújo, em sua justificativa para o Projeto de Lei nº4686/04 afirma:
[…] não deverá haver nenhum vínculo, nem paternal, nem patrimonial , bem como direito sucessório entre a pessoa concebida por técnica medicamente assistida heteróloga e o doador de gametas. O conhecimento da origem genética não modifica em nada as relações jurídico- familiares que tal indivíduo possui com seus pais e sua família afetiva.
Segundo Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior (2005, p.97) “não há parentesco entre o doador do sêmen e o concebido, e, por razão maior, não há que se falar em obrigação ou dever alimentar entre eles”. Importante as palavras de Guilherme Calmon (2003, p.22 e 23) sobre a relação entre reprodução assistida heteróloga e adoção:
[…] vários dispositivos que expressamente somente se referem à adoção deverão ser estendidos à procriação assistida heteróloga tendo como base o fundamento que ambos os institutos jurídicos, ou seja, a origem não-sangüínea para fins de parentesco civil[…] Entre as normas do Código Civil, destaca-se o art. 1.626: “ A adoção atribui a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes consangüíneos, salvo os impedimentos para o casamento.[…]
É, então, predominante o entendimento de não haver parentesco entre doador e a criança, mesmo quando esta venha a conhecer sua ascendência em sede de ação ainda não definida em lei, o que representa a inexistência de qualquer vínculo jurídico, obrigando somente doador e criança concebida a obedecerem aos impedimentos matrimoniais, ou seja, permanecem os vínculos naturais.
CONCLUSÃO
O direito ao planejamento familiar, uma das formas de proteção aos direitos reprodutivos, está previsto no art.226, § 7º, da Carta Magna e, de acordo com a Lei nº. 9.693, de 11 de janeiro de 1996, garante a todos, homens, mulheres e casais, o acesso às técnicas de reprodução medicamente assistida como forma de concretizar seus projetos parentais, sem, contudo, determinar de forma mais aprofundada como deva ser a aplicação e quais os efeitos jurídicos que de sua utilização decorrem.
Com as possibilidades trazidas pela biotecnologia, cujas pesquisas no campo da reprodução humana foram uma constante nos últimos anos, cada vez mais técnicas de concepção humana assistida são desenvolvidas e aplicadas mesmo sendo escassas as regulamentações sobre sua prática e efeitos.
O desejo de ter um filho juntamente com as intenções lucrativas das empresas de engenharia genética fazem com que, a cada dia, várias crianças sejam concebidas através de reprodução assistida e criam uma situação fática que revoluciona as formas de compreender a família moderna e que clama pela promulgação de lei especial.
O presente estudo versou sobre dois problemas decorrentes da aplicação das técnicas de reprodução medicamente assistida heteróloga: a possibilidade de haver o conhecimento da identidade do doador por parte da criança concebida, em vista do conflito entre o direito à intimidade do doador e o direito ao conhecimento da ascendência genética, bem como a determinação da ação adequada à busca da origem biológica, analisando, inclusive, os efeitos decorrentes desse conhecimento.
Quanto à possibilidade da criança concebida por meio de algumas das técnicas de reprodução assistida heteróloga, importante foi, ao longo do trabalho, a análise da colisão de direitos fundamentais. À respeito, conclui-se que, pelo fato dos direitos fundamentais visarem a proteção à dignidade da pessoa humana, eles não podem ser objetos de exclusão, e sim, ponderação no caso concreto.
Existem diversas formas de se garantir a dignidade da pessoa humana e nem sempre a forma de efetivar este direito fundamental é permitir à criança concebida por meio de reprodução heteróloga o conhecimento do doador que lhe possibilitou o nascimento. Assim, são hipóteses de possibilidade de se buscar a origem genética: a imperiosa necessidade psicológica, a necessidade de se preservar a saúde da criança e, por último, a averiguação de existência de impedimentos matrimoniais. Nos outros casos de aplicação das técnicas o direito fundamental a ser preservado é o da intimidade do doador, conservando a identidade deste no anonimato.
Em relação à ação adequada à busca da origem genética, concluiu-se que a ação investigatória de paternidade não é a ideal. A ascendência genética não se confunde com a paternidade e para comprovar esta afirmação recorreu-se ao estudo dos três modelos de filiação, que em relação à determinação da filiação coexistem atualmente, sendo eles o tradicional, o científico e o socioafetivo.
No modelo tradicional o critério é a presunção de paternidade ou maternidade em benefício do casal que a concebeu na constância do casamento. No científico o critério é o biológico, sendo considerado pai e mãe aqueles que passaram sua herança genética à criança concebida. Por fim, tem-se no modelo socioafetivo o critério afetivo, que define a paternidade ou maternidade me favor daqueles que desejaram e realizaram o projeto parental, independente de este ter se concretizado com material genético próprio ou de terceiros.
Este último tem função importante de servir como solução para o conflito entre os modelos, isso porque, dentre todos, é o que melhor garante os interesses da criança, objetivo maior a ser buscado na determinação da filiação de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Assim, a ação investigatória de paternidade não deve ser utilizada para o conhecimento da verdade biológica por ter efeitos indesejados, quais sejam: a desconstituição da paternidade anterior e a declaração de uma nova paternidade, quando, em realidade, muitas vezes o objetivo desejado é apenas o conhecimento da origem e não extinção de vínculo já estabelecido.
O habeas data também não se adequa à busca da origem, pois contém requisitos previstos constitucionalmente, tais como: a busca de dados deve ser relativa ao impetrante e os dados devem ser de arquivos públicos ou de caráter público, requisitos estes que não se verificam na intenção de se conhecer o doador.
Percebe-se, portanto, que na ausência de uma ação prevista, deve o legislador criar um novo tipo de ação, que inclusive deve limitar a possibilidade de conhecimento da origem genética às hipóteses já elencadas e cujos efeitos se restrinjam à imposição de impedimentos matrimoniais, pois a união entre consanguíneos é moralmente condenada pela sociedade, desconsiderando qualquer vínculo jurídico entre doador e criança, uma vez que esta foi concebida para efetivação do projeto parental de outras pessoas.
Conclui-se também pela necessidade de publicação de lei especial que regulamente a aplicação de técnicas de reprodução medicamente somente em pessoas com reais problemas de infertilidade, para que não se desvie da finalidade da Lei de Planejamento Familiar, que não visa criar novas formas de concepção, mas sim meios auxiliares para efetivação de direitos reprodutivos.
Infelizmente não é possível, em sede de trabalho monográfico, exaurir a discussão em torno de assunto tão polêmico e interessante, que mobiliza doutrinadores de todo o mundo, mas espera-se ter contribuído, através do desenvolvimento da presente pesquisa, para difusão do assunto e futuros estudos a respeito do tema.
LIVROS:
ALVES, João Evangelista dos Santos. Direitos humanos, sexualidade e integridade na transmissão da vida. In: BRANDÃO, Dernival da Silva et al. A vida dos direitos humanos: bioética médica e jurídica. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1999.
BARROS, Fernanda Otoni. Do direito ao pai. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
BATAILLE, Sylvaine. Controle de Natalidade. Rio de Janeiro: Tridente, 1967.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra: Almedina, 1993.
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001.
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[1] COULANGES, Numa-Denys Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Editora das Américas S.A. – EDAMERIS: 1961. Tradução de Frderico Ozanam Pessoa de Barros. Disponível em: <http:// www.ebooksbrasil.org/eLibris/cidadeantiga.html#B3>. Acesso em: 22 de out. 2006.
[2] O Ogino-Knauss, Método do Ritmo, Calendário ou Tabelinha é um método natural de contracepção, que permite obter, mediante cálculos matemáticos, os dias de fertilidade do casal.
[3] Essas categorias não representam a atual idéia de planejamento familiar no Brasil, pois a Lei nº. 9.263/96 em seu artigo nove garante que, para o exercício pleno dos Direitos Reprodutivos, serão aceitos quaisquer métodos cientificamente aceitos, isso inclui os métodos artificiais citados na categoria II.
[4] Laparoscopia é um procedimento de exame e manipulação da cavidade abdominal através de instrumentos de ótica e/ou vídeo bem como de instrumentos cirúrgicos delicados que são introduzidos através de pequenos orifícios no abdome. É um procedimento cirúrgico realizado geralmente com anestesia geral.
REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
Nathalie Carvalho Cândido: Advogada em Fortaleza, Ceará – OAB nº.19206
REFERÊNCIAS