Repetição de Indébito. Confusão em torno do prazo pescricional trazida pela LC nº 118/05

* Kiyoshi Harada 

A polivalente Lei Complementar nº 118, de 9 de fevereiro de 2005, que já comentamos em vários de seus aspectos, trouxe mais uma questão que está causando celeuma na doutrina especializada. Trata-se do art. 3º que confere efeito interpretativo ao inciso I do art. 168 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), para consignar que a ‘extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1º do art. 150 da referida Lei’.

Como afirmado pela doutrina quase unânime, na prática, o art. 3º da LC nº 118/05 estaria reduzindo o prazo prescricional para repetição de indébito, que seria de 10 (dez) anos, para 5 (cinco) anos.

O prazo de cinco anos para o ingresso em juízo com a ação de repetição conta-se a partir da data da extinção do crédito tributário (art. 168, I do CTN). E a extinção do crédito tributário, no lançamento por homologação, ocorre no momento da homologação dos atos praticados pelo contribuinte (§ 1º do art. 150 do CTN), ou, na omissão do fisco, cinco anos a partir da ocorrência do fato gerador, salvo casos de dolo, fraude ou simulação (§ 4º do art. 150 CTN).

Logo, esse prazo nem sempre é de dez anos. Basta o fisco agir com diligência, ao invés de ficar curtindo o ócio, à espera de providências legislativas tendentes a promover automática fiscalização e arrecadação tributária, para reduzir o prazo prescricional da ação de repetição, que poderá ser de seis anos, sete anos, oito anos etc., até dez anos. Afinal, nada existe no CTN que proíba o fisco de agir, homologando, prontamente, se for o caso, os pagamentos antecipados pelo contribuinte, antes do decurso do prazo de cinco anos.

A chamada ‘tese dos cinco anos mais cinco’, na realidade, resultante de simples e elementar interpretação conjugada dos arts. 165, I1 , 168, I2 e 150, § 4º3 do CTN, repousa na presumível inércia permanente do fisco em sua função de fiscalizar, preferindo a automática constituição do crédito tributário, por omissão, ao cabo de cinco anos, a contar do surgimento da obrigação tributária com a ocorrência do respectivo fato gerador.

Se a jurisprudência firmou a ‘tese dos cinco anos mais cinco’ é porque o fisco, despudoradamente, pretendeu emprestar uma interpretação distorcida aos dispositivos retromencionados que, pela sua clareza lapidar, dispensam maiores esforços do aplicador da lei. Não se trata de uma construção doutrinária ou jurisprudencial, mas de simples aplicação do direito proclamado com solar clareza.

Entretanto, o fisco acionou o astuto legislador que, por meio da chamada interpretação autêntica, tentou reduzir o prazo prescricional da ação de restituição do indébito, invariavelmente, para cinco anos, fixando o seu termo inicial para a data do pagamento antecipado, independentemente de sua homologação que resultaria na constituição do crédito tributário.

Ocorre que, a chamada interpretação autêntica não tem, nunca teve e jamais poderá ter o condão de alterar a interpretação dada pelo Poder Judiciário, detentor único da prerrogativa de aplicar a lei em última análise. A atividade preponderante do Legislativo é a de elaborar normas jurídicas gerais e abstratas para regular a convivência social. Não é sua função interpretar as leis que elabora. A do Executivo é executar as leis e administrar os negócios públicos, isto é, governar. O Judiciário não participa do processo legislativo, salvo em casos expressos na Constituição, mas é o Poder incumbido da aplicação definitiva das leis às hipóteses de conflitos de interesses visando sua composição. Daí a absoluta impossibilidade jurídica de derrogar o entendimento jurisprudencial, acerca de determinado dispositivo legal, pelo Poder Legislativo, por via de preceito interpretativo como o do dispositivo sob comento. No caso, repita-se, o Judiciário limitou-se a aplicar os dispositivos legais claros, incontroversos e de facilíssima compreensão, repelindo a amalucada interpretação dada pelo fisco.

Entretanto, o dispositivo sob comento permite uma segunda leitura. Pode-se entender que está alterando a redação do § 1º do art. 150 do CTN para os seguintes termos:

‘O pagamento antecipado pelo obrigado nos termos deste artigo extingue o crédito, independentemente de ulterior homologação do lançamento’.

Enfrentemos, pois essa alternativa, em tese passível de admissão pelo intérprete.

Examinada a questão sob esse enfoque, salta aos olhos a total absurdeza jurídica da disposição legal sob comento. Descabe falar em extinção de algo que não existe. Para que o crédito tributário exista como tal é preciso que seja ele previamente constituído pelo lançamento, que é privativo da autoridade administrativa tributária, nos precisos termos do art. 142 do CTN.

Permitir a restituição do que foi pago, antes do formal reconhecimento do fisco como crédito tributário seria instaurar o caos, a insegurança jurídica. Acabaria por flexibilizar o instituto do lançamento, que serve de marco divisor entre a decadência e prescrição. Mais do que isso, seria abolir do sistema jurídico-tributário a modalidade de lançamento por homologação que, ironicamente, o fisco dela vem se utilizando com intensidade cada vez maior, quer por atribuir o ônus da correta interpretação da confusa legislação tributária exclusivamente ao contribuinte, quer para se livrar dos cansativos trabalhos de calcular o montante do imposto devido e notificar o contribuinte para pagamento. Enfim, o fisco quer os benefícios da comodidade e da economia de custos que o lançamento por homologação lhe propicia, mas não quer a dilação do prazo prescricional para a ação de repetição de indébito que essa modalidade de lançamento provoca, na hipótese de omissão da administração tributária.

Por isso, o esperto legislador disfarçou o encurtamento do prazo de repetição do indébito, conferindo à norma do apontando art. 3º, o caráter interpretativo, no que foi infeliz e desastroso. Agiu como uma avestruz, que enterra a cabeça na areia para que ninguém o veja.

Em tese, é possível ao legislador derrogar a jurisprudência. A Emenda Passos Porto (EC nº 23/83), por exemplo, sepultou três teses de natureza constitucional proclamadas pela Corte Suprema. Da mesma forma, a legislação infraconstitucional pode alterar o dispositivo legal e com isso acarretar mudança de jurisprudência. Só que isso deve ser feito, acima de tudo com ética, e com respeito ao sistema jurídico vigente, alicerçado nos direitos e garantias fundamentais do contribuinte, sob pena de vulnerar o princípio da segurança jurídica, que se extrai do art. 5º da CF, que tem natureza pétrea, insusceptível de alteração por Emendas.

O princípio da segurança jurídica pressupõe normas jurídicas estáveis, regulares e previsíveis, porque conformadas com os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Carta Política em nível da cláusula pétrea. A previsibilidade de normas jurídicas futuras é inerente ao sistema de segurança jurídica. Normas casuísticas e imprevisíveis, ditadas por legisladores idiossincráticos, que surgem do nada, na calada da noite, com toda certeza, não se harmonizam com o sistema jurídico fundamentado na Constituição Federal, pelo contrário, são normas bastardas que devem ser repelidas e expurgadas do mundo jurídico.

A falta de lealdade do Estado para com seus cidadãos, que não mais conseguem pisar em solo firme, vem se acentuando de forma alarmante e perigosa. A mesma LC nº 118/05 enxertou o art. 185-A, já objeto de nossos comentários, instituindo a imediata indisponibilidade universal de bens e direitos do executado, por meio eletrônico, seguida de levantamento imediato do excesso que vier a ser constatado. Em outras palavras, prescreveu-se a aplicação prévia da pena capital a todo e qualquer acusado da prática de qualquer tipo de delito, seguida de imediata redução da pena aplicada, caso venha ser constatado, posteriormente, o excesso da penalidade aplicada. O art. 46 da Lei nº 10.833/03, que prescrevia a variação cambial dos investimentos no exterior como receita ou despesa financeira foi vetado pelo Executivo, porque no ano calendário de 2003 os computadores da Receita sinalizaram a variação cambial negativa. Agora, como esses mesmos computadores sinalizaram variação cambial positiva, o esperto legislador palaciano enxertou o art. 9º ao texto da Medida Provisória nº 232/04, que batizamos de ‘tsunami tributário’, prescrevendo a tributação da variação cambial dos investimentos no exterior, avaliados pelo método de equivalência patrimonial. Vale dizer, ressuscitou o antigo art. 46, vetado na época, porque não convinha ao governo, rompendo o necessário ponto de equilíbrio da lei. O art. 6º da Lei nº 11.051/04, também, já comentado anteriormente, a pretexto de explicitar o alcance da norma do caput do art. 40 da Lei nº 6.830/80, veio introduzir sorrateiramente o § 4º, dilatando o prazo de prescrição intercorrente, procurando driblar a jurisprudência dos tribunais. Vários outros exemplos de deslealdade legislativa poderiam ser citados.

O expediente aético e maroto, utilizado pelo ardiloso legislador na redação do art. 3º sob exame, um verdadeiro ato de improbidade legislativa, certamente, há de ser repelido pelo STJ, que já sinalizou no sentido da invalidade dessa norma afrontosa sob todos os aspectos ao sistema jurídico, alicerçado nos direitos e garantias fundamentais.

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Notas de rodapé convertidas

1. Art. 165. O sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento, ressalvado o disposto no § 4º do artigo 162, nos seguintes casos:
I – cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido em face da legislação aplicável, ou da natureza ou circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido.

2. Art. 168. O direito de pleitear a restituição extingue-se com o decurso do prazo de cinco anos contados:
I – nas hipóteses dos incisos I e II do artigo 165, da data da extinção do crédito tributário;

3. Se a lei não fixar prazo à homologação, será ele de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador, expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.


Referência  Biográfica

Kiyoshi Harada  –  Sócio da Harada Advogados Associados. Professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. Membro do Instituto do Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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