Reconhecimento da paternidade após adoção por viúva, gera obrigação alimentar ao pai biológico

DECISÃO:  STJ – Íntegra da decisão inédita do STJ que reconheceu o direito de uma jovem receber alimentos do pai biológico, depois de adotada por uma mulher.


RECURSO ESPECIAL Nº 813.604 – SC (2006⁄0011178-7)
RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE: L C DOS S – MENOR PÚBERE
REPR.POR: A C DE O DOS S
ADVOGADO: PEDRO ANTONIO PEREIRA
RECORRIDO: S M
ADVOGADO: RODRIGO PEREIRA MAUS E OUTRO(S)

EMENTA

Direito civil. Família. Investigação de paternidade. Pedido de alimentos. Assento de nascimento apenas com o nome da mãe biológica. Adoção efetivada unicamente por uma mulher.

– O art. 27 do ECA qualifica o reconhecimento do estado de filiação como direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, o qual pode ser exercitado por qualquer pessoa, em face dos pais ou seus herdeiros, sem restrição.

– Nesses termos, não se deve impedir uma pessoa, qualquer que seja sua história de vida, tenha sido adotada ou não, de ter reconhecido o seu estado de filiação, porque subjaz a necessidade psicológica do conhecimento da verdade biológica, que deve ser respeitada.

– Ao estabelecer o art. 41 do ECA que a adoção desliga o adotado de qualquer vínculo com pais ou parentes, por certo que não tem a pretensão de extinguir os laços naturais, de sangue, que perduram por expressa previsão legal no que concerne aos impedimentos matrimoniais, demonstrando, assim, que algum interesse jurídico subjaz.

– O art. 27 do ECA não deve alcançar apenas aqueles que não foram adotados, porque jamais a interpretação da lei pode dar ensanchas a decisões discriminatórias, excludentes de direitos, de cunho marcadamente indisponível e de caráter personalíssimo, sobre cujo exercício não pode recair nenhuma restrição, como ocorre com o Direito ao reconhecimento do estado de filiação.

– Sob tal perspectiva, tampouco poder-se-á tolher ou eliminar o direito do filho de pleitear alimentos do pai assim reconhecido na investigatória, não obstante a letra do art. 41 do ECA.

– Na hipótese, ressalte-se que não há vínculo anterior, com o pai biológico, para ser rompido, simplesmente porque jamais existiu tal ligação, notadamente, em momento anterior à adoção, porquanto a investigante teve anotado no assento de nascimento apenas o nome da mãe biológica e foi, posteriormente, adotada unicamente por uma mulher, razão pela qual não constou do seu registro de nascimento o nome do pai.

Recurso especial conhecido pela alínea "a" e provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Castro Filho, por unanimidade, conhecer do recurso especial e dar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Castro Filho, Ari Pargendler e Carlos Alberto Menezes Direito votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, ocasionalmente, nesta assentada, a Sra. Ministra Nancy Andrighi. Não participou do julgamento o Sr. Ministro Humberto Gomes de Barros.

Brasília (DF), 16 de agosto de 2007.(data do julgamento).

MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora

RELATÓRIO

Recurso especial interposto por L. C. dos S. com fundamento nas alíneas "a" e "c" do permissivo constitucional.

Ação: de alimentos, proposta pela recorrente em face de S. M., ora recorrido, em razão do resultado de exame pericial pelo método DNA, realizado nos autos de ação de investigação de paternidade, cuja conclusão atestou a probabilidade de 99,99% da paternidade.

Decisão interlocutória: recebeu a ação de alimentos como medida cautelar incidental à investigatória de paternidade, e arbitrou os alimentos provisionais no equivalente a 12,5% dos rendimentos do recorrido, que exerce função de Delegado de Polícia.

Acórdão: conferiu provimento ao recurso de agravo de instrumento interposto pelo recorrido, nos termos da seguinte ementa:

(fl. 271) – AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE ALIMENTOS – ADOÇÃO – INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE – ART. 27 DO ECA – RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE – DEVER DE PRESTAR ALIMENTOS DO ADOTANTE E NÃO DO PAI BIOLÓGICO – ROMPIMENTO DOS VÍNCULOS COM A FAMÍLIA NATURAL – ART. 41 DO ECA – DECISÃO INTERLOCUTÓRIA REFORMADA – RECURSO PROVIDO.

A partir da adoção, as ligações com a família natural desaparecem, nada mais ligará a criança ou o adolescente aos pais sangüíneos, sendo o adotado equiparado, nos direitos e obrigações, ao filho sangüíneo.

Cessa o dever do pai biológico de prestar alimentos à filha, ante o rompimento dos vínculos de filiação ocorrido com a adoção.

Embargos de declaração: rejeitados.

Recurso especial: interposto sob alegação de ofensa ao art. 27 do ECA e conseqüente interpretação equivocada do art. 48 da mesma Lei, por entender a recorrente que a regra contida nesse dispositivo (art. 48 do ECA) "não pode atingir o pai biológico que não participou da adoção autorizada pela mãe biológica" (fl. 303), sem descurar que deve sempre militar em favor da criança e do adolescente a interpretação dada ao ECA.

Traz ainda à colação diversos julgados desta Corte para ilustrar o dissídio jurisprudencial.

O recurso especial foi inadmitido na origem e subiu por meio de agravo de instrumento (fl. 321).

Não houve contra-razões, conforme atesta certidão à fl. 329.

Parecer do MPF (fls. 341⁄346): o i. Subprocurador-Geral da República, Henrique Fagundes Filho, opinou pelo conhecimento e provimento do recurso especial tão-somente pela alínea "a".

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

A peculiar questão trazida a debate consiste em definir se o pai reconhecido como tal em exame pericial pelo método DNA, nos autos de ação de investigação de paternidade, deve prestar alimentos à filha que foi anteriormente adotada por uma viúva, com quem reside.

Por ocasião de seu nascimento, em 22⁄4⁄1982, a recorrente teve registrado em seu assento apenas o nome da mãe biológica. Posteriormente, foi adotada por uma viúva que trabalhava no abrigo de crianças da cidade onde residia. Transitou em julgado a sentença de procedência do pedido de adoção em 15⁄8⁄1996, contando a recorrente com 14 anos de idade.

Ajuizada ação de investigação de paternidade em face do recorrido, foi confirmada a paternidade pelo exame de DNA, o que redundou no deferimento de alimentos provisionais, postulados pela recorrente. Ressalte-se que à época da decisão deferindo alimentos, a recorrente contava com 20 anos de idade e cursava faculdade de enfermagem, o que foi considerado pelo Juízo.

O Tribunal Estadual reformou a decisão interlocutória, ao entendimento de que, embora a recorrente tenha o direito de ver reconhecida sua paternidade, por causa do rompimento do vínculo de filiação natural produzido pela adoção, cessa o dever do pai biológico de prestar alimentos à filha.

Todavia, tal interpretação não se mostra adequada, a uma, porque não há vínculo anterior com o pai para ser rompido, o que é decorrência lógica da investigatória de paternidade; a duas, porque a matéria controvertida, em processos alusivos aos interesses de crianças e adolescentes, deve ser invariavelmente visualizada sob os contornos da fundamental proteção aos menores definidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (art. 6º).

Anote-se que, no processo em julgamento, a recorrente propôs a investigatória de paternidade em 29⁄3⁄1999, quando tinha 16 anos de idade, o que lhe conferiu o direito de postular sob o manto de proteção do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Necessário, portanto, para a solução do embate jurídico, pautar a controvérsia sob a perspectiva dada pelo art. 27 do ECA, que qualifica o reconhecimento do estado de filiação como direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, o qual pode ser exercitado em face dos pais ou seus herdeiros, sem restrição. Tal dispositivo, portanto, assenta a respeito do amplo e irrestrito direito de toda pessoa ao reconhecimento do respectivo estado de filiação.

De outra sorte, o art. 41 do ECA impõe, como efeito imanente à adoção, o rompimento de qualquer vínculo do adotado com pais ou parentes biológicos, salvo quanto aos impedimentos matrimoniais.

A respeito do tema, conquanto sob base empírica diversa, releva destacar que a Terceira Turma deste Tribunal já decidiu questão semelhante, em precedente da lavra do i. Min. Eduardo Ribeiro, DJ de 28⁄8⁄2000, nos termos da seguinte ementa:

"Adoção. Investigação de paternidade. Possibilidade.

Admitir-se o reconhecimento do vínculo biológico de paternidade não envolve qualquer desconsideração ao disposto no artigo 48 da Lei 8.069⁄90. A adoção subsiste inalterada.

A lei determina o desaparecimento dos vínculos jurídicos com pais e parentes, mas, evidentemente, persistem os naturais, daí a ressalva quanto aos impedimentos matrimoniais. Possibilidade de existir, ainda, respeitável necessidade psicológica de se conhecer os verdadeiros pais.

Inexistência, em nosso direito, de norma proibitiva, prevalecendo o disposto no artigo 27 do ECA."

No aludido julgado, a adoção consumou-se sob o regime do Código Civil de 1916, na vigência do antigo Código de Menores (Lei n.º 6.697⁄79), denominada adoção simples, instituto abolido pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, no intuito de extirpar eventual discriminação entre filhos naturais e adotivos.

Assim, embora afastada a identidade empírica entre o precedente mencionado e o processo ora em julgamento, as teses jurídicas se entrelaçam, porque cuidam igualmente da existência ou não de efeitos do reconhecimento da paternidade em relação à adoção.

Por tudo isso, a adoção persiste inalterada, porque o reconhecimento da paternidade não tem o condão, muito menos a pretensão de revogar o vínculo adotivo. Não fere, tampouco, a intenção do legislador, ao impor a irrevogabilidade do instituto de adoção, vedando qualquer discriminação em relação à sua condição peculiar de adotado.

Distinção estar-se-ia fazendo, isto sim, na hipótese de não permitir ao adotado a busca da sua verdade biológica, o que, repita-se, de forma alguma interage no relacionamento estabelecido entre adotante e adotado.

Ademais, ao estabelecer o art. 41 do ECA que a adoção desliga o adotado de qualquer vínculo com pais ou parentes, por certo que não tem a pretensão de extinguir os laços naturais, de sangue, que perduram por expressa previsão legal no que concerne aos impedimentos matrimoniais, demonstrando, assim, que algum interesse jurídico subjaz.

Por outro lado, há de se respeitar a necessidade psicológica do conhecimento da verdade biológica, amplamente albergada pelo ECA, conforme já exposto, de acordo com os lindes do art. 27.

Não se deve concluir que o referido dispositivo alcança apenas aqueles investigantes que não foram adotados, porque jamais a interpretação da lei pode dar ensanchas a decisões discriminatórias, excludentes de direitos de cunho marcadamente indisponível e de caráter personalíssimo, sobre cujo exercício não pode recair nenhuma restrição, como ocorre com o Direito ao reconhecimento do estado de filiação.

Sob tal perspectiva, tampouco poder-se-á restringir ou até mesmo eliminar, como o fez o Tribunal de origem, o direito do filho de pleitear alimentos do pai assim reconhecido na investigatória, não obstante a letra do art. 41 do ECA.

Em complemento, retira-se do § 1º do art. 41 do ECA que, ao regular hipótese diversa, ressalva a subsistência do vínculo entre o adotado e o cônjuge ou concubino do adotante, quando este adota filho do companheiro. Em raciocínio não muito diverso enquadra-se o dilema da recorrente que, tendo apenas o nome da mãe biológica em seu registro, vem a ser adotada unicamente por uma mulher.

Aqui reside a peculiaridade do processo em julgamento e norteadora da tese jurídica abraçada: não há vínculo anterior, com o pai biológico, para ser rompido, simplesmente porque jamais existiu tal ligação, notadamente, em momento anterior à adoção. Ressalte-se que tal raciocínio é imanente à natureza da investigatória de paternidade, porquanto busca tal ação declarar a existência de vínculo ocultado do investigante e, portanto, inexistente em qualquer momento da vida deste, em especial, anterior à formulação do pleito.

Acresça-se à premissa anterior, que não se deve impedir uma pessoa, qualquer que seja sua história de vida, tenha sido adotada ou não, de ter reconhecido o seu estado de filiação, nos termos em que dispõe o art. 27 do ECA.

Extrai-se, por fim, do Parecer exarado pelo i. Subprocurador-Geral da República, Henrique Fagundes Filho, percuciente consideração:

(fl. 345) – "(…) Imagine-se a satisfação do genitor imoral e insensível ao ser obsequiado com a adoção de seu rebento renegado, não lhe restando, assim, nenhuma responsabilidade sobre aquele, quer moral, quer patrimonial. Melhor solução não haveria a pessoas dessa índole.

A irrevogabilidade da adoção e a extinção dos vínculos com a família biológica, não foram concebidas, por evidente, para premiar o progenitor irresponsável, ausente, imoral, que pretende escapar das conseqüências advindas de seus atos de instinto fisiológico, tão somente. A intenção da norma é prestigiar as situações familiares consolidadas.

Ora, no caso vertente, a insubsistência dos laços de parentesco consangüíneos apenas beneficia o genitor desidioso, não protege a recorrente, muito menos a adotanda, tomando a norma contornos para os quais não foi concebida, não atingindo os fins sociais para os quais se destina.

Desta feita, ainda que se entenda dever subsistir a adoção da recorrente, não é possível obstar que conheça quem é seu pai biológico, exigindo dele o cumprimento dos deveres concernentes a esse estado."

Consideradas as peculiaridades do processo, notadamente aquela atinente à inexistência de anterior vínculo com o pai, deve prevalecer, portanto, o disposto no art. 27 do ECA, no sentido de se admitir amplamente o reconhecimento do estado de filiação e suas conseqüências jurídicas, inclusive patrimoniais, sempre em benefício da criança ou do adolescente, dispositivo esse que foi vulnerado pelo acórdão recorrido.

Ressalte-se, quanto ao dissídio jurisprudencial, que não há similitude fática entre os acórdão alçados a paradigma e o julgado ora impugnado, o que impõe o conhecimento do recurso especial tão-somente pela alínea "a".

Forte em tais razões, CONHEÇO do recurso especial, pela alínea "a" do permissivo constitucional e, DOU-LHE PROVIMENTO para cassar o acórdão recorrido e restabelecer a decisão interlocutória que deferiu os alimentos provisionais à recorrente.

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO CASTRO FILHO: Trata-se de pedido de vista formulado em processo de relatoria da eminente Ministra Nancy Andrighi, cujo ponto nodal da controvérsia está em definir se o pai reconhecido como tal em exame pericial pelo método DNA, nos autos de ação de investigação de paternidade, deve prestar alimentos à filha que foi anteriormente adotada por uma viúva, com a qual reside atualmente.

Após relatar o feito, a ilustre Ministra proferiu seu voto no sentido de conhecer do recurso especial e dar-lhe provimento, para cassar o acórdão recorrido e restabelecer a decisão interlocutória que deferiu os alimentos provisionais à recorrente.

Estou de acordo, pois compartilho do mesmo entendimento exarado pela douta relatora, no sentido de que deverão ser preservados os interesses do menor, que sobrelevam a qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado, na linha, inclusive, da jurisprudência desta Corte, citada no seu voto.

Cabe, ainda, considerar as doutas ponderações emitidas pelo parquet federal, que bem elucidou a questão, assim arrematando:

"Desta feita, ainda que se entenda dever subsistir a adoção da recorrente, não é possível obstar que conheça quem é seu pai biológico, exigindo dele o cumprimento dos deveres concernentes a esse estado." (fls. 344⁄345)

Destarte, acompanho, integralmente, a conclusão da eminente relatora, dando provimento ao recurso.

É o voto.


FONTE:  STJ, julgado em 16 de agosto de 2007.

Clovis Brasil Pereira
Clovis Brasil Pereirahttp://54.70.182.189
Advogado; Mestre em Direito; Especialista em Processo Civil; Professor Universitário; Coordenador Pedagógico da Pós-Graduação em Direito Processual Civil da FIG – UNIMESP; Editor responsável do site jurídico www.prolegis.com.br; autor de diversos artigos jurídicos e do livro “O Cotidiano e o Direito”.

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