POR: Rosana A. Valderano de Lima
INTRODUÇÃO
O interesse em desenvolver o presente artigo se deu em razão da grata oportunidade de poder participar de palestra ministrada pela Dra. Katia Boulos, juntamente com a Dra. Adriana Aguiar Brotti, organizada pelo Instituto Prolegis, na pessoa de seu fundador, Dr. Clovis Brasil Pereira, amigo de longa data, por quem tenho grande carinho, respeito e gratidão.
O assunto abordado nos fez refletir sobre a necessidade da busca, cada vez mais, de meios alternativos na solução de conflitos, para além da conciliação e a mediação já conhecidas e praticadas.
As práticas colaborativas buscam a solução da controvérsia por meio de métodos não adversariais, de forma a possibilitar a mudança do estado de ruptura do vínculo amoroso e sentimental que se apresenta especialmente na dissolução do casamento, da união estável e ainda em disputas pela guarda de filhos e o direito de convivência, para uma situação funcional com a qual os envolvidos possam efetivamente conviver e preservar o respeito e a tolerância, além dos laços do relacionamento que, por vezes, jamais poderão ser desatados.
Neste contexto, parece absurdo que aqueles que conviveram ou tiveram vida em comum a partir de um sentimento de amor, simpatia, afinidade, compartilhando o, lar, o leito, enfim, a vida, no momento posterior, transformem tudo isso em rancor, ódio, desprezo e sentimento de vingança.
Mais complexo ainda é pensar em um relacionamento que frutificou com o nascimento de filhos e que, no momento posterior, pelo desgaste ou desamor, cegue os envolvidos a ponto de desejarem buscar o mal do outro, esquecendo que este “outro”, é o pai ou a mãe de seu filho.
- O CONFLITO
Sem a pretensão de esgotar o tema, é da essência do ser humano a vida em sociedade, pois, necessita do outro, não apenas para ter supridas as suas necessidades, mas também para a sua realização enquanto pessoa.
Nos ensinamentos de Dalmo de Abreu Dalari[1] a socialidade leva a solidariedade, pois, ainda que não reconheça, toda pessoa humana se beneficia da existência do outro. Todavia, é justamente o convívio social que gera o conflito.
Partindo desta premissa, não é possível conceber a vida em sociedade sem que haja conflito, sendo este um fato social, um fenômeno inevitável e presente em todos os níveis da sociedade humana.
Ao refletirmos sobre o conflito, logo nos vem à mente a ideia de confronto, controvérsia, discussão, embate, desavença o que, inevitavelmente, resulta em grande potencial de dano a todos os envolvidos.
Todavia, podemos identificar no conflito também aspectos positivos, uma vez que é a partir destes que a sociedade se modifica, se renova e se transforma, sendo essencial a capacidade de separar as pessoas dos problemas, de forma a solucioná-los pacificamente,
Assim, podemos dizer que, o conflito, enquanto fenômeno social é inevitável, todavia, o desgaste é opcional, valendo anotar que, sob a ótica dos conflitos familiares, a condução adequada na sua resolução pode, até mesmo, proporcionar o desenvolvimento das relações entre aqueles que, em algum momento, inicialmente, se uniram por um sentimento de amor, respeito e cumplicidade.
- A CULTURA DA LITIGIOSIDADE
Há muito, temos que o ensino jurídico no Brasil, se propõe a formação de operadores do direito aptos ao conflito. Desde os bancos universitários, aprendemos tudo sobre processo, provas, prazos, recursos, enfim, todo o necessário para o confronto judicial.
Desde cedo, já nas aulas iniciais, aprendemos a definição de lide, cunhado por Carnelutti, como pretensão resistida.
E esta cultura não para por aí, ao longo de todos os anos de formação, o que continua na atuação profissional, sempre somos instigados a cultura da litigiosidade.
Vem a memória a leitura de uma obra, por ocasião do Mestrado, em que o autor afirma que a judicialização é paradigma para a materialização do direito e não o contrário, enfatizando que é justamente no seio do Poder Judiciário que o direito se materializa[2]
Todavia, há algum tempo o próprio Poder Judiciário reconhece a sua inoperância para na solução de conflitos de natureza subjetiva, em especial aqueles familiares.
Corrobora o CPC 2015, ao dispor em seu artigo 694 que nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação e conciliação.
Por outro lado, termos o artigo 133 da Constituição Federal, que leciona o advogado é essencial a administração da justiça, o que corrobora também o estatuto da advocacia, em seu artigo 2º, que acrescenta em seu §1º que a advocacia é função social.
Dito isso, concluímos que, de fato, é no Poder Judiciário que o direito se materializa, todavia, tratando-se de direitos subjetivos, não podemos afirmar que a solução da lide seja, de fato, a pacificação do conflito.
Assim, entendemos que, a atuação do advogado, função social e essencial à justiça, vai muito além da mera busca da decisão judicial que, nem sempre, põe fim ao conflito.
- MUDANÇA DE PARADIGMA
A cultura da litigiosidade abordada no tópico anterior não é privilégio dos profissionais de formação mais antiga. Verificamos que, mesmo os profissionais mais jovens de profissão, ainda praticam a mesma cultura.
Todavia, ficou para trás há muito tempo o pensamento de que o melhor profissional é aquele mais impetuoso e que coleciona em seu portfólio maiores vitórias. No momento atual, melhor se destaca àquele que obtém melhor sucesso no menor tempo e, principalmente, com o mínimo desgaste entre os envolvidos.
Ocorre que, essa conta não bate, se a solução do conflito ficar a cargo da decisão judicial, por melhor e mais completa que seja esta.
Isso porque, posto ao crivo judicial, temos que, nos conflitos de direito de família, a decisão pode levar anos, a custo financeiro alto e, ainda assim, mesmo após o provimento jurisdicional, o conflito continua, haja visto que, diferentemente das questões que envolvem apenas o patrimônio, temos como estopim do conflito as relações pessoais que, na maioria dos casos, não se encerra após a sentença.
Neste contexto, nas relações familiares, haja ou não filhos, nem sempre é possível virar a página, com a mera atribuição de que se dê a cada um o que lhe e devido.
Tomemos como exemplo o divórcio: como é sabido, jamais os ex-cônjuges retornarão à condição de solteiros. O documento ostentado após a dissolução, ainda é a certidão de casamento.
Se da relação resultou prole, a questão é ainda mais complexa já que, até o fim de suas vidas, terão em comum os filhos. Neste caso, o término da relação, por vezes, não é o fim do conflito, mas, lamentavelmente, na maior parte dos casos, o começo.
Vejamos os conflitos que envolvem guarda, direito de convivência e alimentos. Nestes, sabiamente, o legislador determinou que a decisão judicial não faz coisa julgada formal, justamente por se tratar de questões onde podem ocorrer modificações que demandem adequações e, por isso, nas hipóteses legais, o conflito, por vezes, se renova.
É neste contexto que as práticas colaborativas ganham maior vulto de importância, já que, em sendo possível a pacificação do conflito de forma mais humanizada e por métodos não adversariais, de forma em que as partes sejam protagonistas da construção do resultado, o benefício é mútuo.
Todavia, na atuação do advogado, juntamente com a equipe multidisciplinar, se faz necessário que estes, além da formação necessária à sua atuação colaborativa, devem apresentar um perfil conciliador, ético, de escuta ativa, tolerância e respeito, empenhando os melhores esforços para que as partes alcancem a melhor solução, um com o outro, e não um contra o outro.
- DAS PRÁTICAS COLABORATIVAS EM DIREITO DE FAMÍLIA
As práticas colaborativas surgiram nos Estados Unidos da América, na década de 1980, tendo aplicabilidade inicial nas relações negociais. Todavia, já na década de 1990, Stuart Webb, advogado familiarista americano, motivado pela inquietude e sentimento de impotência, típico dos profissionais que atuam nesta área, passa a atuar com práticas colaborativas.
O modelo criado por Webb, propõe a solução da controvérsia e a pacificação do conflito por meio de atuação extrajudicial, não adversarial e colaborativa, de forma que cada um dos envolvidos seja assistido por advogado colaborador, além da equipe multidisciplinar: profissionais da saúde mental, administradores, contadores, todos imbuídos na mesma empreitada, a solução da controvérsia de forma humanizada.
A atuação do advogado colaborador está condicionada concordância e assinatura de pacto de não litigância, de forma que, se não for possível a solução por meio das práticas colaborativas, ambos os profissionais estarão impedidos de atuar na defesa dos interesses dos seus clientes na esfera judicial.
Assim, o que impera nas práticas colaborativas é a cultura da paz, do respeito, da ética e da busca dos interesses da família e não apenas nos interesses individuais de seus contratantes.
Por meio das práticas colaborativas, busca-se a mudança de paradigma, onde, na judicialização, onde temos o perde/ganha e até mesmo o perde/perde, dá lugar ao ganha/ganha, uma vez que a solução foi alcançada pelas partes, como a assistência dos profissionais colaborativos.
Desta forma, as Práticas Colaborativas propiciam a solução do conflito por meio de um método autocompositivo, não adversarial, obtivo por meio do diálogo e negociação assistida, de forma a amenizar a potencialidade de danos, com a finalidade principal de reconstruir a relação entre as partes e prevenir conflitos futuros.
Na grande maioria, os profissionais que enveredam para a atuação colaborativa têm em comum a inquietude, sentimento de impotência, frustração, angústia e até mesmo a decepção com os métodos tradicionais de solução de conflitos familiares.
Isso porque a decisão judicial, por melhor e mais bem prolatada que seja, não tem o poder de encerrar o conflito entre as partes. Ainda que haja um vencedor da demanda, nem sempre o cumprimento da decisão é algo simples e satisfatório, o que leva também a frustração das partes que, após litigar por anos, se deparam com novos conflitos, quer seja em razão dos filhos, quer seja em razão de bens materiais.
Por fim, trazemos a colação o entendimento da ilustre Mestre Katia Boulos[3], que enumera a finalidade e as vantagens das práticas colaborativas, que colacionamos a seguir:
- Autonomia das partes
- Viabilização do diálogo, fim “da lógica adversarial”
- Distinção entre relação conjugal e relação parental
- Desconstrução do conflito
- Reconstrução das relações
- Redução dos custos financeiros e do tempo para a resolução dos conflitos
- Projeção no tempo, pela prevenção de conflitos futuros
CONCLUSÃO
Ao finalizar este singelo estudo, concluímos que ninguém melhor que as próprias partes que, como dito, em algum momento de suas vidas se conheceram e viram despertar afinidades e paixões, o que os levou a travar um relacionamento afetivo, pode identificar a melhor e menos desgastante forma de encerrar, de forma pacífica e respeitosa, aquele relacionamento.
Se aqueles que dividiram parte de suas vidas com o outro não forem capazes de encontrar a melhor solução para as suas vidas e, eventualmente, de seus filhos, não será a letra fria da lei que restabelecerá a paz e o convívio harmonioso.
Desde os bancos universitários, aprendemos que a decisão judicial passada em julgado põe fim a lide. Todavia, esta não tem o desígnio de apaziguar os ânimos entre os envolvidos, em especial nas relações familiares, aonde os conflitos vão muito além dos autos e peças processuais.
Neste contexto, por vezes, os autos e peças processuais, elaboradas por profissionais moldados ao litígio, acabam por causar maiores danos aos envolvidos uma vez que, lamentavelmente, não raras as vezes, se apresentam de forma desrespeitosa e agressiva, o que, de toda sorte, tente a fomentar ainda mais o conflito.
Desta forma, entendemos que as Práticas Colaborativas se apresentam como uma grande expectativa, e por que não dizer esperança, de mudança de paradigma, não só em relação as partes, mas também em relação aos operadores do direito, todos colaborativos, em prol dos interesses da família, base da sociedade.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição Federal de 1988.
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105 de 2015.
BRASIL. Estatuto da Advocacia. Lei 8.906 de 1994.
BOULOS, Katia. Palestra. Práticas Colaborativas no Direito de Família. 2021: on line. Instituto Prolegis.
DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juizes. 3 ed. São Paulo: Saraiva. 2007.
FONTAINHA, Fernando de Castro. Acesso A Justiça: Da Contribuição de Mauro Cappelletti à Realidade Brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
LUCCA, Jamile Garcia de. Práticas colaborativas: um caminho não adversarial e interdisciplinar na transformação dos conflitos de família. Disponível em
http://repositorio.unesc.net/bitstream/1/7642/1/Jamile%20Garcia%20de%20%20Lucca.pdf. Data de acesso: 15/12/21.
MACIEL, José Fabio Rodrigues, coord. Formação Humanística em Direito. São Paulo: Saraiva, 2012.
NUNES, Rizzatto. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
ROCHA, Cesar Asfor. A Luta pela Efetividade da Jurisdição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
WINTER, Natália. Coord. Práticas Colaborativas. Comitê de Jovens Profissionais Colaborativos, 2020. Ebook, disponível em https://ibpc.praticascolaborativas.com.br/wp-content/uploads/2020/12/E-book-final-publicar-1.pdf, data do acesso: 15/12/21.
[1] DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. 3 ed. São Paulo: Saraiva. 2007
[2][2] FONTAINHA, Fernando de Castro. Acesso A Justiça: Da Contribuição de Mauro Cappelletti à Realidade Brasileira. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009.
[3] Palestra. Práticas Colaborativas no Direito de Família. 2021: on line. Instituto Prolegis.
Rosana A. Valderano de Lima Advogada familiarista, mestre em direito, especialista em relações familiares, professora universitária, presidente da Comissão de Direito de Família da OAB Subseção Guarulhos, triênio 2013-2015. |