* Paulo Queiroz
De acordo com a Constituição Federal, à Polícia Federal compete “exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária” (art. 144, §1°, IV). Discute-se então se outras instituições, à exemplo das Polícias Legislativas, poderiam ou não investigar, instaurar inquérito policial e assim exercer atividades de polícia judiciária.
Parece-nos que, apesar da “exclusividade” a que se refere a lei, outras instituições podem, sim, investigar e instaurar inquéritos, relativamente aos crimes de sua competência, especialmente a Polícia Legislativa, mesmo porque, numa perspectiva político-criminal voltada para apuração das infrações penais mais graves, especialmente a chamada criminalidade do poder, isto é, praticada por agentes do Estado, em particular autoridades responsáveis pela segurança pública, quanto mais órgãos puderem investigar tanto melhor. O que convém evitar é a possibilidade de todos poderem tudo investigar, e arbitrariamente, daí a necessidade de criação de instituições especializadas com competência claramente definida, sujeitas ao controle ministerial e judicial inclusive. Afinal, a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos (CF, 144, caput), motivo pelo qual a pretensão de conceder exclusividade a um único órgão ou instituição para investigar crimes federais seria contrária ao Estado de Direito.
Exatamente por isso, a expressão “exclusivamente” a que se refere a Constituição Federal não pode ser interpretada literalmente, nem considerada de forma assistemática, mesmo porque todo texto pressupõe um dado contexto. Ademais, a atividade de polícia judiciária da União, que constitui uma das possíveis formas de investigação, não a única, nem a mais importante, é apenas uma das várias funções cometidas à Polícia Federal, conforme dispõe o art. 144, §1°, IV, da Constituição.
Na verdade, a exclusividade a que se refere o artigo visou a um tempo ressaltar a competência da Polícia Federal e afastar a eventual ingerência da polícia judiciária dos Estados e do Distrito Federal nas infrações penais de competência da Polícia Federal, além das demais polícias federais (Rodoviária, Ferroviária etc.).
A propósito, AURY LOPES JÚNIOR escreve:
Não dispôs a Constituição que a polícia judiciária tenha competência exclusiva para investigar, pois o art. 144, §§ 1º, I, e 4º, simplesmente prevêem que a Polícia Federal e a Civil deverão exercer as funções de polícia judiciária, apurando as infrações penais. Não existe exclusividade desta tarefa, inclusive porque quando pretendeu estabelecer a exclusividade de competência o legislador o fez de forma expressa e inequívoca. Tampouco a natureza da atividade ou dos órgãos em discussão permite ou exige uma interpretação restritiva; ao contrário, trata-se de buscar a melhor forma de administrar justiça.1
No mesmo sentido, ELMIR DUCLERC:
Não nos convence o argumento conforme o qual os órgãos policiais têm exclusividade na tarefa de investigar. O que se pode depreender do art. 144 da CF é que a Polícia Civil e a Polícia Federal devem investigar infrações penais no âmbito de suas atribuições, e que à última cabe, com exclusividade, a função de polícia judiciária da União. Levando-se em conta, todavia, a noção de polícia judiciária (manifestação do poder de polícia do Estado, que visa restringir certas liberdades para apurar infrações penais) já estabelecida linhas acima, parece claro que exclusividade nessa atividade não significa, necessariamente, exclusividade na função de reunir informações para exercício da ação penal, coisa que pode ser realizada até mesmo pela própria vítima. A exclusividade a que se refere o legislador constituinte, assim, só tem sentido quando considerada em face de outros órgãos (como as policias civis), que também exercem a atividade policial.2
E também CLÈMERSON MERLIN CLÈVE:
Percebe-se que há uma distinção no texto, correta ou não, entre as funções de apuração de crimes e polícia judiciária. Diante disso, ressalva-se que, ao tratar da Polícia Federal, o Constituinte só reservou a exclusividade quanto à função de polícia judiciária, e não quanto à apuração de crimes. Em relação à Polícia Civil, a diferenciação também se manifesta, como se percebe pela leitura do § 4º do art. 144 da Constituição Federal.
Levando a cabo a interpretação do dispositivo em questão, resta assentado que à Polícia Federal é reservada, com exclusividade, a função de polícia judiciária da União, ou seja, não há exclusividade quanto à apuração de crimes e a exclusividade referida se opera em relação ao âmbito de atuação das funções de polícia judiciária – federal – em contrapartida ao das polícias civis. Assim, não há exclusividade constitucionalmente garantida aos órgãos que exercem função de polícia judiciária para a apuração de infrações criminais.
Não é outra a conclusão decorrente da interpretação do dispositivo constitucional senão a de que a exclusividade conferida à Polícia Federal se dá apenas em relação a outros órgãos policiais, e não em prejuízo dos demais mecanismos de apuração de infrações penais. Frise-se que não se pretende aqui restringir a interpretação constitucional à técnica gramatical, olvidando os métodos mais festejados de otimização dos preceitos superiores. Assim, nem mesmo a regra da exclusividade da Polícia Federal deve ser entendida de forma absoluta.
Ainda que se entenda que a separação entre as funções de polícia judiciária e de apuração de crimes decorra de censurável técnica legislativa – o que parece ser correto – e que a titularidade da primeira engloba a segunda, não se poderia concordar com a impossibilidade de qualquer outro órgão público exercer excepcionalmente atividades enquadradas na função de polícia judiciária. Tanto é verdade que nem mesmo os resistentes mais empedernidos podem olvidar o que está disposto expressamente no Código de Processo Penal.
(…)
Apenas por hipótese, ainda que o dispositivo conferisse literalmente à polícia judiciária a exclusividade das investigações criminais em quaisquer circunstâncias, não feriria a harmonia da ordem constitucional a previsão, explícita ou implícita, de outro órgão dotado de semelhante atribuição. A explicação é simples, exigindo, apenas, compromisso com a concretização da Constituição: as normas constitucionais formam um sistema em que a dotação absoluta de sentidos cede passo a uma relativização tributária da otimização no quadro de inter-relação dinâmica em que se encontram os órgãos constitucionais, atravessados pelos valores, bens, interesses e objetivos (positivados) da sociedade plural.
No mesmo sentido, de afastar a alegada exclusividade da Polícia Federal relativamente às funções de polícia judiciária, FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO3, EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA4, DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR5 e diversos outros autores.
E tanto não há exclusividade no particular, que compete ao chefe do Ministério Público (Procurador-Geral da Justiça e Procurador-Geral da República) a apuração de infração penal praticada por seus membros (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, art. 41); ao Tribunal de Justiça, a investigação dos crimes praticados por magistrado (Lei Complementar n° 35, de 14.03.1979); e o Regimento Interno do STF (art. 43) prevê que, ocorrendo infração penal em sua sede ou dependência, o Presidente instaurará inquérito. Caberia citar ainda os inquéritos a cargo das forças armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), quanto à apuração das infrações penais de sua competência.
Não bastasse isso, as investigações por infração penal ou não-penal – distinção que não preexiste à interpretação, mas é dela resultado – são cometidas a um sem número de órgãos e instituições, no âmbito de suas respectivas atribuições: polícias ostensivas ou especializadas (Polícia Militar, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal); órgãos administrativos (Secretaria da Receita Federal, Secretaria da Receita Previdenciária, INSS, Controladoria-Geral da União, IBAMA, Polícia Florestal); Comissões Parlamentares de Inquérito, Tribunais de Contas, Ministério Público e também empresas públicas, autarquias etc., relativamente às infrações de que são vítimas.
Tais hipóteses estão a demonstrar, primeiro, que o termo “exclusividade” não pode ser levado a extremos; segundo, que a possibilidade de apuração de infração penal é comum aos três Poderes da República (Executivo, Judiciário e Legislativo), e não é prerrogativa de um único poder (o Executivo), mesmo porque, apesar da classificação tripartida, tudo isso é Estado, e o Estado, como monopólio organizado da força, não pode ser refém de suas próprias instituições. Nem tampouco a sociedade poderia sê-lo, afinal o Estado – que não é um fim em si mesmo, mas um meio – deve servir ao homem, e não o contrário.
Se é certo, assim, que não existe monopólio da investigação criminal, razão pela qual, em princípio, até particulares poderiam, em tese, prender em flagrante e fazer apurações paralelas ou complementares, tampouco poderia existir exclusividade para instaurar e presidir inquérito policial, que é apenas uma das possíveis formas/nomes que as investigações podem assumir. Aliás, o nome a ser dado a esse procedimento (se inquérito, se investigação) é o que menos importa. Mais: se existe um poder de investigar, há de também existir, em conseqüência, o respectivo dever de submeter a investigação ao controle ministerial e judicial, e de lhe dar prosseguimento/conclusão na forma da lei.
Portanto, não cabe tomar em termos absolutos o vocábulo “exclusividade” a que se refere o art. 144, § 1º, IV, da CF, nem o “inviolabilidade”, “inviolável”, “livre” e semelhantes, tão freqüentes no texto constitucional, especialmente quando a própria Constituição (art. 52, XIII) diz competir ao Senado (“privativamente”) dispor sobre sua polícia, mesmo porque, se assim não fosse, ter-se-ia criado uma instituição grandemente inútil, isto é, uma polícia sem funções de polícia, seja porque tais funções poderiam ser exercidas pelas polícias já existentes (militar, civil), seja porque as infrações cometidas por seus servidores poderiam ser apuradas na forma da lei, sem mais.
Também não faria sentido interpretar tais palavras (exclusividade etc.) acriticamente, por não existirem princípios absolutos, até porque absolutizá-los implicaria a negação mesma do direito6. O sentido das coisas (palavras, textos etc.) não é dado pelas próprias coisas, mas por quem as interpreta. Como diz PAUL RICOEUR, “graças à escrita, o discurso se liberta da tutela de intenção do autor, das circunstâncias e da orientação voltada para o leitor primitivo, sendo que a autonomia semântica que resulta dessa tripla libertação garante uma carreira independente do texto e abre para interpretação um campo de exercício considerável”.7
E, a pretexto de conferir exclusividade a uma dada instituição para investigar (a Polícia Federal, do Poder Executivo), extinguir-se-ia uma outra (a do Senado, do Poder Legislativo), violando-se o princípio da divisão de poderes, inclusive.
Finalmente, releva notar que a Polícia Legislativa, que resulta da autonomia do Parlamento, remonta à Constituição do Império de 18248 (art. 21), sendo também prevista nas Constituições de 19349 (art. 91, VI), 193710 (art. 41), 194611 (art. 40) e 196712 (art. 32). Na Constituição Federal de 1988, além dos artigos 51, IV, e 52, XIII, relativamente à Câmara e Senado, há previsão, ainda, quanto às Assembléias Legislativas dos Estados e do Distrito Federal, conforme dispõem os artigos 27, §3º e 32, §3º.
Não é preciso dizer que o Código de Processo Penal (art. 4°, parágrafo único), ao tratar da polícia judiciária, dispõe que a competência definida nesse artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.
Em semelhante contexto, não há como recusar validade à Súmula 397 do STF, independentemente do contexto jurídico-constitucional – Constituição de 1946 – em que foi forjada13, que também previu a Polícia Legislativa, conforme assinalado. Convém também lembrar que a Resolução n° 20, de 28 de maio de 2007, do Conselho Nacional do Ministério Público, prevê o controle externo das polícias legislativas pelo Ministério Público (art. 1°), reconhecendo-lhe, assim, a similitude com as demais polícias. Nenhum vício há, ainda, no que diz respeito à Resolução do Senado n° 59/2002, que cuidou de regulamentar a sua polícia.
Não há, pois, cogitar de exclusividade de instituição alguma quanto ao poder de investigar. De todo modo, parece que, a prevalecer a tese de exclusividade para exercer a função de polícia judiciária, o mais correto seria admitir, em virtude do princípio da especialidade, a competência constitucional do parlamento (especial), em prejuízo da competência da Polícia Federal (geral), e não o contrário, à semelhança do que se passa com as instituições militares.
Uma última observação: o conceito de “polícia judiciária”, que remonta ao direito francês, não é unívoco e nem seu exercício é exclusivo da Polícia Civil ou Federal, havendo quem afirme, como JOSÉ CRETELLA JR., que “no Brasil, a distinção da polícia judiciária e administrativa, de procedência francesa e universalmente aceita, menos pelos povos influenciados pelo direito inglês (Grã-Bretanha e Estados Unidos) não tem integral aplicação, porque a nossa Polícia é mista, cabendo ao mesmo órgão, como dissemos, atividades preventivas e repressivas".14
É de se reconhecer, portanto, que a competência da Polícia Federal para exercício das funções de polícia judiciária não exclui, necessariamente, a competência de outras instituições também dotadas de poderes de polícia judiciária na forma da própria Constituição, razão pela qual a Polícia Legislativa pode, sim, prender em flagrante, presidir inquérito etc., sob o controle do Poder Judiciário e do Ministério Público, relativamente aos crimes praticados em suas dependências.
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Notas e referências
1. LOPES JR., Aury. Sistema de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris/Editora. 2ª edição, p.p.154-155.
2. DUCLERC, Elmir. Curso Básico de Direito Processual Penal . Rio de Janeiro: Lumen Juris/Editora. Volume 1. 2ª : edição, pág 109.
3. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. I. 29ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 194: “O inquérito, de regra, é policial, isto é, elaborado pela Polícia Civil. Todavia, o parágrafo único do art. 4º. do CPP estabelece que “a competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”. Observa-se, desse modo, que o dispositivo invocado deixa entrever a existência de inquéritos extrapoliciais, isto é, elaborados por autoridades outras que não as policiais, inquéritos esses que têm a mesma finalidade dos inquéritos policiais. Nota-se que o texto do parágrafo único do art.4º. fala em “autoridade administrativa a quem por lei seja cometida a mesma função”, isso é, a função de apurar as infrações penais e sua autoria. Como bem disse Tornaghi, o parágrafo quis, apenas, ressalvar a competência de outras autoridades administrativas para procedem a inquéritos. Assim, nos crimes contra a saúde pública, em determinadas infrações ocorridas nas áreas alfandegárias, têm as autoridades administrativas poderes para elaborar inquéritos que possam servir de alicerce à denúncia. Veja-se, ainda a alínea b do art. 33 da Lei nº 4.771, de 15/09/1965, sobre infração ambiental.”
4. DE OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris/Editora, 2008., p.63. “Concluindo: não há regra de interpretação possível que não recorra ás exigências da lógica e da não-contradição. Não há como conceder uma leitura constitucional que permita a investigação ao Ministério Público dos Estados e a vede ao Ministério Público Federal; ambos pertencem a uma mesma e vocacionada instituição exclusivamente, que se encontra no citado art. 144, § 1º, da CF, nada mais faz que esclarecer que, no âmbito das policias da União – Policia Federal, Polícia Ferroviária Federal. Polícia Militar e Polícia Rodoviária Federal – , caberia apenas á primeira (a Polícia Federal) a função de Polícia Judiciária. Nada mais.”
5. DIRLEY DA CUNHA, Curso de Direito Constitucional. Salvador: Juspodivum, 2008. “A polícia legislativa é órgão de segurança interna das casas legislativas, responsável pelas atividades típicas de polícia, porém limitada ao âmbito dos fatos ocorridos no recinto da Câmara, do Senado e do Congresso”.
6. Sequer o direito à vida o é, tanto que a lei admite a pena de morte nalguns casos excepcionais; é assegurada a legítima defesa; e o aborto está autorizado para certos casos. E tão importante quanto o direito à liberdade de expressão, por exemplo, é o direito à honra, igualmente protegido constitucionalmente, razão pela qual, a pretexto de absolutizar o primeiro, extinguir-se-ia o segundo (e vice-versa).
7. in o justo e a essência da justiça, instituto Piaget, Lisboa, 1995.
8. Art. 21. ”A nomeação dos respectivos presidentes, vice-presidentes e secretários das Câmaras, verificação dos poderes dos seus membros, Juramento e sua polícia interior se executará na forma de seus Regimentos.”
9. Art 91 – “Compete ao Senado Federal: VI – eleger a sua Mesa, regular a sua própria polícia, organizar o seu Regimento Interno e a sua Secretaria, propondo ao Poder Legislativo a criação ou supressão de cargos e os vencimentos respectivos”;
10. Art 41 – “A cada uma das Câmaras compete:
– eleger a sua Mesa;
– organizar o seu Regimento interno;
– regular o serviço de sua polícia interna;
– nomear os funcionários de sua Secretaria”.
11. Art 40 – “A cada uma das Câmaras compete dispor, em Regimento interno, sobre sua organização, polícia, criação e provimento de cargos”.
12. Art 32 – “A cada uma das Câmaras compete dispor,
13. Dispõe a Súmula que “o poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito”.
14. Polícia Militar e Poder de Polícia no Direito Brasileiro, in Direito Administrativo da Ordem Pública. Rio: Forense, 2ª ed., 1987, p. 173. Também HELY LOPES MEIRELLES afirma que "pode a Polícia Militar desempenhar função de polícia judiciária, tal como na perseguição e detenção de criminosos, apresentando-os à Polícia Civil para o devido inquérito a ser remetido, oportunamente, à Justiça Criminal. Nessas missões a Polícia Militar pratica atos discricionários, de execução imediata" . Polícia de Manutenção da Ordem Pública e suas Atribuições", in Direito Administrativo da Ordem Pública. Rio: Forense, 2ª ed., 1987, pp. 154-155.
REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
Paulo Queiroz: Doutor em Direito (PUC/SP), é Professor Universitário (UniCeub), Procurador Regional da República em Brasília, e autor, entre outros, do livro Direito Penal, parte geral, 3ª edição, Saraiva, 2006.