O regime de responsabilização da pessoa jurídica e o Programa de Integridade na Lei Anticorrupção

No regime da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) não há, a rigor, um comportamento típico administrativo ou uma norma administrativa interna própria que a lei pretenda tutelar. As condutas pontuadas tratam-se, de regra, de comportamentos ilícitos que tem na sua gênese elementos típicos de verdadeiros crimes tradicionalmente reconhecidos pelo sistema jurídico-penal.

De outra parte, a também chamada Lei da Empresa Limpa tem por objeto a tutela de um bem jurídico supraindividual: a higidez da moralidade e do patrimônio da administração pública (efeito sancionatório). Secundariamente preocupa-se em tutelar um objeto material porventura individualizável: os valores malversados, o prejuízo ou o dano efetivamente sofrido pelo erário (efeito reparatório). Há, na verdade, na Lei Anticorrupção, condutas que substancialmente configuram crimes pertencentes à seara da normal penal, que é regida por cânones próprios.

Daí a dicotomia existente entre os regimes – sanção administrativa-civil e sanção penal – e, no caso brasileiro, a dificuldade para sistematizar a responsabilidade (administrativa) que decorre da violação da Lei Anticorrupção e o dever de indenizar ou reparar o dano à administração pública (esta última obrigação baseada em fundamentos do Direito Civil).

Como na hipótese aqui tratada a opção legislativa foi incorporar a responsabilidade da pessoa jurídica âmbito do Direito Administrativo Sancionador e, a priori, a norma anticorrupção afirma que a culpa é objetiva e independe da responsabilização da pessoa física (gestor, administrador, empregado, etc.), é sobremaneira influente a existência de um Programa de Integridade efetivo e eficaz para a análise da culpabilidade empresarial, aspecto que deve desbordar do efeito pretendido pelo legislador: somente atenuar a gravidade da sanção pecuniária.

É preciso advertir: para conferir eficácia plena à Lei Anticorrupção e manter sua coerência interna e sistêmica é imprescindível estabelecer um corte metodológico e dogmático. Doutrina autorizada tem sustentado que tanto o efeito sancionatório quanto o efeito reparatório derivam de um mesmo pressuposto intrínseco à norma anticorrupção: a responsabilidade que decorre da teoria do risco.

Mas afinal, é sistematicamente sustentável e legítimo apoiar a responsabilidade administrativa (sancionatória) e a responsabilidade civil (reparatória), ambas na teoria do risco? Ou há razões dogmáticas para a afirmação de que a sanção administrativa está alicerçada em fundamento próprio outro – por exemplo, a culpa empresarial por déficit organizacional -, e a obrigação de reparar o dano causado à administração pública, como consectário lógico, está fundamentada na teoria civilista do risco criado pela normal e regular atividade empresarial? Ou, ainda, nenhuma dessas hipóteses: estaria, na verdade, o dever de indenizar (e de reparar os danos) fundado no corolário lógico da existência do ilícito e, portanto, observará a disciplina geral da responsabilidade civil “ex delicto”?

Estas são algumas das questões que, em breve síntese, serão abordadas no texto que se oferece ao leitor.

Se a opção do legislador foi incorporar num mesmo diploma legal um efeito dissuasório e repressivo, prevendo, desde logo, mecanismos de integral reparação dos danos causados à administração pública, então é deveras importante precisar os pressupostos da responsabilidade administrativa nesta seara específica, de um lado, e da responsabilidade civil, de outro, não obstante o fato subjacente comum: o cometimento de atos fraudulentos e de corrupção.

Nesse contexto de análise, o artigo tem por finalidade essencialmente demonstrar que é possível reconhecer na Lei Anticorrupção a opção pela responsabilidade administrativa por déficit organizacional e o papel de protagonismo desempenhado pelo Programa de Integridade, cuja ausência ou ineficiência poderá pressupor e justificar a culpabilidade empresarial administrativa e, consequentemente, a responsabilidade civil (ex delicto) em face da administração pública.

A responsabilidade administrativa da pessoa jurídica. A Lei Anticorrupção, no seu art. 2°, preceitua: “As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não”.

O art. 5º, caput, por sua vez, preocupa-se em informar qual é o conjunto de valores, interesses ou o bem jurídico tutelado pela norma: o patrimônio público, nacional ou estrangeiro, os princípios da administração pública e os compromissos internacionais firmados pelo Brasil.

Na sequência, quanto ao sujeito passivo, o mesmo art. 5º expressamente consagra: pertence a pessoa jurídica o dever de proteção do bem jurídico tutelado, conferindo-a capacidade de ação e culpa própria em consonância, ainda, com o teor do art. 3º, § 1º, que reconhece a responsabilidade autônoma e independente.

Nesse aspecto, a pretexto do menor rigor metodológico supostamente atribuível ao Direito Administrativo Sancionador (em relação ao Direito Penal), a Lei Anticorrupção brasileira pretende conferir culpa própria à pessoa jurídica, entretanto, sem regular as nuances da responsabilização (objetiva) a partir das teorias conhecidas e recentemente adotadas normativamente em outros ordenamentos ao regular matéria semelhante (ora no âmbito penal, ora na esfera administrativa), de que são exemplos a teoria da culpa pela dupla imputação necessária e a teoria da culpa por defeito de organização.

O regime de responsabilidade da pessoa jurídica em Direito comparado por atos de corrupção e outros ilícitos: Argentina – Lei nº 27.401/2017 (responsabilidade penal); Chile – Lei nº 20.393/2009 (responsabilidade penal); Espanha – Código Penal, art. 31.bis, com a alteração da Lei Orgânica nº 1/2015 (responsabilidade penal); França – Código Penal de 1994, art. 121-2, alterado pela Lei nº 2004-204 (responsabilidade penal); Itália – Decreto Legislativo nº 231/2001 (responsabilidade administrativa); Peru – Lei nº 30.424/2016 (responsabilidade administrativa); Portugal – Código Penal, art. 11, com a alteração da Lei nº 59/2007 (responsabilidade penal); Reino Unido – UK Bribery Act, 2010 (responsabilidade penal).

Nesse tema, como poderá ser constatado, a teoria do risco (vocacionada ao Direito Privado) por certo poderá ser fundamento válido e suficiente ao efeito reparatório, mas não ao efeito sancionatório da Lei Anticorrupção.

Relativamente aos atos lesivos objetivamente descritos no 5º e seus incisos é necessário também coerência dogmática. Os bens jurídicos tutelados pela Lei Anticorrupção tradicionalmente sempre incorporaram o Direito Penal pela gravidade daquelas condutas e em razão dos desajustes sociais que causam. Ademais, atos de corrupção de toda sorte e fraudes contra acordos e contratos firmados com o Estado atentam contra valores republicanos e democráticos, daí a dignidade penal que historicamente se confere a tais ilícitos.

Estas são algumas das razões pelas quais não é incomum a afirmação em doutrina que a Lei Anticorrupção, embora formalmente uma norma de Direito Administrativo Sancionador, é substancialmente uma norma penal.

Entretanto, como concebida pelo legislador, a Lei Anticorrupção adquiriu os contornos de norma de responsabilização administrativa. Relevante, destarte, situá-la no contexto histórico de sua edição.

A Lei Anticorrupção foi editada (já tardiamente é preciso dizer) não a pretexto somente de cumprir acordos e tratados internacionais ou promover a paz social fragilizada pelos movimentos populares insatisfeitos com sucessivos escândalos de corrupção e malversação do patrimônio público.

Como de resto no mundo contemporâneo, também no Brasil é interminável o debate sobre situar a pessoa jurídica como centro de imputação jurídico-penal. É tema sobre o qual no Brasil não há nenhum consenso e sobram divergências de toda ordem.

A dificuldade deve-se, sobretudo, porque não é tarefa simples responsabilizar penalmente os gestores, dirigentes, empregados e colaboradores da pessoa jurídica que comentem os mais diversos delitos em seu nome e no seu interesse.

É inegável que nas complexas sociedades empresariais e nos grandes grupos econômicos a cadeia de comando e execução de tarefas é excessivamente dispersa pelos vários setores e departamentos, dificultando demasiadamente a identificação e individualização do delinquente econômico (White Collar Criminal).

Outrossim, importa mencionar as esferas e instâncias obscuras de amplas estruturas corporativas adrede preparadas para o cometimento de corrupção, fraudes, sonegação fiscal etc., tudo a dificultar a persecução penal e a identificação da pessoa física que atua criminosamente no interesse da pessoa jurídica.

Some-se a isso o problema da dispersão dos elementos do tipo penal econômico ou do crime relacionado à pessoa jurídica, posto que, nestas circunstâncias, aquele que executa materialmente o delito nem sempre é detentor das qualidades ou circunstâncias específicas exigidas pelo tipo de ilícito (pertencentes à pessoa jurídica, inimputável à luz do Direito Penal).

De sorte que, o legislador quando opta por responsabilizar administrativamente a pessoa jurídica por uma conduta substancialmente penal – a corrupção e a fraude à licitação, na acepção da norma anticorrupção, são figuras típicas de crime -, propõe resolver o debate sobre a (i)legitimidade da responsabilidade penal das sociedades empresárias.

É disso que se trata, na verdade. O texto de lei permite imputar administrativamente à pessoa jurídica comportamentos que tem no seu substrato fático tipos clássicos de ilícitos penais, nomeadamente nos casos de corrupção. Novamente: esse é o ponto.

Caso a Lei Anticorrupção imputasse expressamente à pessoa jurídica a conduta de “omitir ou deixar de implantar políticas ou programas de integridade” ou, ainda, “deixar de se organizar adequadamente, com o fim de mitigar riscos de cometimento daqueles crimes pressupostos” (ilícitos de infração de dever), então a situação seria diversa: essa uma das soluções possíveis em Direito Comparado como deixa em evidência o Bribery Act ou UKBA (Reino Unido).

Entretanto, não foi essa a orientação do legislador. Somente de forma subliminar é possível interpretação nesse sentindo pela compreensão sistemática do regime de responsabilidade objetiva, conjugada à firme orientação para que a pessoa jurídica se organize mitigando riscos de corrupção e fraude praticados contra a administração pública, por via da implantação de Programas de Integridade.

Devido à gravidade das condutas que encerram os ilícitos, o raciocínio implica em afirmar que é indissociável ao intérprete analisar a Lei Anticorrupção e sua aplicação em consonância com preceitos que primam por preservar direitos e garantais individuais que são típicos de norma de incriminação penal, nessa matéria, extensíveis ao Direito Administrativo Sancionador, segundo pensamos e como já também pontuou autorizada doutrina.

A escolha do legislador pátrio em não responsabilizar penalmente a pessoa jurídica (mas sim administrativamente) tem também as suas implicações metodológicas e de integração normativa, que não se resolvem simplesmente por caracterizar como objetiva a culpa empresarial pelo cometimento de verdadeiros crimes que, rigorosamente, são condutas materialmente executadas por pessoas físicas, não pela entidade empresarial.

A propósito da celeuma é o debate que inaugurou a ADIN nº 5261-DF, ainda em trâmite, na qual a pretensão é exatamente o reconhecimento da inconstitucionalidade da responsabilidade objetiva preconizada na Lei Anticorrupção. Aguardemos, pois, o pronunciamento do Excelso Pretório.

O efeito sancionatório e reparatório da Lei Anticorrupção: modelos de imputação de responsabilidade. A responsabilidade da pessoa jurídica preconizada é de duas ordens. A norma anticorrupção responsabiliza a empresa pelo cometimento de fraude ou ato de corrupção praticados em seu nome e no seu interesse (efeito sancionatório) e, consequentemente, pela integral reparação do dano (material e moral) causado à administração pública (efeito reparatório).

O efeito reparatório é consectário do cometimento dos ilícitos previstos no art. 5º da Lei Anticorrupção. A formação da culpa com a condenação da pessoa jurídica impõe o dever de indenizar a administração pública.

Não obstante o debate em torno da opção político-legislativa que rotula de objetiva a responsabilidade da pessoa jurídica pela prática de atos de corrupção e fraudes contra a administração pública e também pela obrigação de reparar integralmente os danos causados, fato é que dispositivos da Lei Anticorrupção (§ 3o do art. 6º; § 3o do art. 16; e art. 21, par. único) indicam que o fundamento do dever de indenizar derivam do regramento imposto pelo Direito Privado, baseado no risco criado pela atividade empresarial, posto que, de ordinário, a corrupção ou a fraude serão perpetrados objetivando o incremento ou a maximização dos lucros por métodos escusos em prejuízo da administração pública e com violação das regras de livre concorrência e do mercado.

Todavia, a discussão perde um pouco do seu sentido em face do que dispõe o art. 21, parágrafo único, categórico ao consagrar a disciplina geral da responsabilidade civil “ex delicto” nas hipóteses dos ilícitos da Lei Anticorrupção.

Para tal desiderato a norma anticorrupção preceitua que a responsabilidade administrativa da pessoa jurídica é objetiva e independe da responsabilização individual das pessoas naturais. E mais, determina que a “responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito” (art. 3º, §1º).

O texto legal supramencionado, a rigor, não responde a indagação se o modelo de imputação adotado pelo legislador supõe que, para responsabilizar a pessoa jurídica (efeito sancionatório), em procedimento administrativo ou judicial, será imprescindível se proceder à individualização ou investigação sobre a conduta própria da pessoa física: dirigentes e administradores (diretores, conselheiros, empregados e terceiros – art. 3° da Lei Anticorrupção); ou, por outro lado, se é suficiente demostrar que a empresa, há época dos fatos, “não mantinha uma organização adequada” ou “não cumpria o dever de vigilância sobre suas atividades, empregados e prepostos” (infração de dever: deixar de manter um eficiente e eficaz sistema de integridade e governança corporativa), fato revelado, sob a perspectiva da Lei Anticorrupção, simplesmente pelo cometimento do ilícito, que seria indício suficiente de “déficit organizacional” (na hipótese: por ter falhado na prevenção da fraude ou corrupção), logo, presumindo o legislador a responsabilidade da pessoa jurídica.

Culpa pela dupla imputação necessária. Para o sistema da culpa fundada na dupla imputação necessária (sistema vicarial ou da representação), o delito praticado deve desvincular-se de qualquer interesse ou sentimento próprio da pessoa física.

Assim, o ato deve ser praticado para a satisfação de interesse da pessoa jurídica, que será a beneficiária da ilicitude, não seu representante legal (ou empregado, colaborador, etc.) que se limitará a concretizar a conduta ilícita em benefício do ente moral.

Por isso que se diz que a imputação dirigida à pessoa jurídica também se estenderá à pessoa física ou ao seu representante legal: na verdade, a culpa da pessoa física é a própria culpa da pessoa jurídica, estando ambas indissociavelmente imbricadas.

Uma variante dessa concepção da culpa empresarial encontra-se na teoria da identificação, segundo a qual, “a intenção ou o conhecimento de um órgão” (dirigente da alta administração, que deverá ser identificado, por pressuposto) corresponde à vontade da empresa ou da corporação, justificando uma atribuição de culpa própria. Na prática o que se tem é uma extensão da culpa da pessoa física atribuída à pessoa jurídica, o que em certa medida não se afasta do regime da responsabilidade vicarial.

Culpa por defeito de organização. A responsabilidade fundamentada na teoria da culpa por defeito de organização trata-se de um juízo de reprovabilidade que decorre da ausência de medidas exigíveis para que a pessoa jurídica exerça suas atividades negociais com estrito cumprimento do ordenamento jurídico. O déficit organizacional deve anteceder o cometimento do ilícito, praticado em nome e no interesse da pessoa jurídica.

A culpabilidade por defeito de organização pode restar evidenciada não somente pela conduta individual da pessoa física representante do ente coletivo ou empresarial, mas também desde que demonstrado que a infração deriva de um acúmulo de orientações indevidas ou operações individuais inadequadas de pessoas físicas que compõem a estrutura social do ente coletivo; a culpabilidade, diz-se, poderia ser devido, ainda, da falta de vigilância ou regular orientação da pessoa física que deveria praticar a conduta de modo adequado.

No mais, a responsabilidade por déficit organizacional assume como própria a culpa da pessoa jurídica. Ao desconsiderar a necessidade de produzir prova da culpa da pessoa natural, a mencionada teoria tem como prescindível à responsabilização da pessoa jurídica a demonstração da conexão entre a culpa do dirigente, gestor, empregador ou terceiro e a culpa empresarial.

Neste sentido, a teoria poderá concentrar-se em apurar em que medida a pessoa jurídica, antes do cometimento do ilícito, mantinha (ou não) um Sistema de Governança Corporativa e Programa de Integridade efetivo e eficaz.

Responsabilidade da pessoa jurídica por culpa própria e o Programa de Integridade. A autonomia e a independência da responsabilidade da pessoa jurídica por (fato) culpa própria parecem mesmo estar consagradas na dicção dos artigos 2º e 3º da Lei Anticorrupção, em consonância com a exigência implícita para implantação de mecanismos e procedimentos internos de mitigação de riscos de descumprimento de normas, regulamentos e leis por meio dos denominados Programas de Integridade (artigos 41 e 42 do Decreto Federal n° 8.420/2015), que poderá evidenciar, ademais, a existência de boa Governança Corporativa e uma cultura organizacional de fidelidade ao Direito.

A leitura sistemática desses diplomas normativos, s.m.j., nos conduz ao entendimento que, nesta seara, há fundamento hábil à responsabilização da pessoa jurídica sustentada na culpa por déficit organizacional, embora o legislador não tenha instituído dogmaticamente (ou explicitado) um verdadeiro e autêntico sistema de imputação de responsabilidade do ente coletivo ou empresarial baseado naquela teoria.

As lacunas de punibilidade em face das organizações empresariais complexas. Saber se a responsabilidade da pessoa jurídica está baseada na teoria da dupla imputação necessária da culpa ou na teoria da culpa por defeito de organização é de fundamental importância para uma correta leitura e interpretação da Lei Anticorrupção.

Se o que se pretende com a responsabilização da pessoa jurídica (na esfera administrativa), em razão de fraudes ou atos de corrupção nas circunstâncias apontadas na Lei Anticorrupção, é combater a impunidade e proteger o patrimônio da administração pública em face de possíveis lacunas de punibilidade quando no caso concreto não houver meios de individualizar ou identificar qualquer pessoa física que materialmente cometeu o delito, em nome e no interesse da pessoa jurídica (devido à complexidade interna das organizações empresariais) então, responsabilizar a pessoa jurídica independentemente da evidência de culpa da pessoa física é de crucial importância.

Nesse aspecto, na seara do Direito Administrativo Sancionador a culpa por defeito (ou déficit) organizacional pode representar uma solução dogmaticamente viável e adequada aos propósitos da Lei Anticorrupção e, nesse caso, seu texto merece atualização legislativa adequada.

O Projeto de Lei nº 7149/2017 e a obrigatoriedade do Programa de Integridade. A rigor, por ora, a Lei Anticorrupção não obriga a empresa a implantar um Programa de Integridade ou a manter Governança Corporativa comprometida com a observância da lei como critério para avaliação de sua culpabilidade (poderia tê-lo feito). Somente considera tais elementos como causa de redução da pena.

No âmbito das legislações que mais influenciam o Brasil nessa matéria – o FCPA Act (EUA) e o Bribery Act ou UKBA (Reino Unido) -, não é desconsiderada (ainda que por interpretação sistemática) a possibilidade de exclusão da responsabilidade da empresa, caso demonstrada a adequação, eficácia e eficiência do Programa de Integridade e que o ilícito foi um episódio isolado e imprevisível, creditado ao total descumprimento ou inobservância pelo empregado, dirigente, administrador, colaborador ou terceiro, de todas as políticas de conformidade e orientações especificas de “due diligence”, não obstante terem sido submetidos a treinamento e a constatação da atuação preventiva da pessoa jurídica.

Essa a razão pela qual a Lei Anticorrupção não possui coerência interna entre os seus dispositivos e não cumpre substancialmente o princípio da razoabilidade e proporcionalidade na sua função de prevenção e combate à fraude e à corrupção, na medida em que impõe penas severas à empresa presumindo sua culpa, mesmo nos casos em que tenha trilhado calvário dispendioso para implantar Governança Corporativa e Programa de Integridade efetivo e eficaz.

Senão por outras razões, essas duas indefinições ou incoerências da Lei Anticorrupção (modelo de imputação da culpa e atenuação – sem exclusão – da culpa), dentre outras, farão com que, uma vez judicializada uma demanda qualquer, a tendência é ocorrer o mesmo que já se dá em relação à ação para punição de atos de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/1992), também vocacionada à proteção do patrimônio público: alguns casos levarão anos e anos para se definirem nos tribunais, com reflexo na continuidade da impunidade e ineficácia da Lei Anticorrupção, salvo se o legislador resolver, coerentemente, atualizá-la, em respeito ao devido processo legal substancial: estrita observância da legalidade e da razoabilidade, adequação e proporcionalidade.

Importa ressaltar, em arremate, que atualmente encontra-se tramitando na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 7149/2017 para alteração da Lei Anticorrupção, acrescentando-lhe a exigência de implantação de Programa de Compliance para contratação com a administração pública, modificação salutar para o incremento das finalidades para as quais a referida norma foi editada, colocando-a no mesmo patamar do Estatuto Jurídico das Empresas Estatais – Lei nº 13.303/2016 e Resolução nº 4.595/2017 que dispõe sobre a Política de Conformidade das instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, diplomas normativos que exigem expressamente a implantação de Sistema de Integridade (Governança Corporativa + Programa de Compliance).

No contexto da Lei Anticorrupção, o Programa de Integridade e a necessidade de implantar e manter cultura organizacional de fidelidade ao Direito, ou seja, postura proativa constante, comportamento contumaz de respeito às leis, normas, regulamentos, etc., deve ter reflexos não somente na aplicação ou dosimetria da sanção administrativa: se trata de medida de justiça e equidade, sendo dogmaticamente correto o entendimento de que a presença de um sistema de integridade hígido e boa governança corporativa sejam valores levados a efeito na aferição da própria culpabilidade da pessoa jurídica.

É imprescindível, s.m.j., superar o esquema tradicional de meramente utilizar o Programa de Integridade como fator de atenuação da pena, inviabilizando a exclusão da sanção ou da própria responsabilidade administrativa, sem que isso importe afastar o dever de indenizar amplamente a administração pública pelos danos materiais e morais causados (que decorre do efeito reparatório da Lei Anticorrupção, cuja obrigação permanece incólume, mesmo em face da isenção da culpa, pois fundamentada em pressupostos diversos da sanção-pena pela prática do ilícito administrativo).

Por outro lado, autorizar a exclusão da culpa da pessoa jurídica quando demonstrada a eficácia e eficiência do Programa de Integridade, como instrumento de mitigação de riscos de fraude ou corrupção, converte-se em medida de grande incentivo às empresas para que implantem seus sistemas de integridade corporativa que, apesar dos seus indissociáveis benefícios à corporação e à higidez dos seus negócios, importa em dispêndio de tempo e às vezes grandes somas, conforme o porte e complexidade das organizações empresariais.

Para além da proposta de alteração para obrigar a pessoa jurídica a implantar Programa de Integridade (Compliance), o legislador poderia aproveitar o ensejo das alterações pretendidas com o Projeto de Lei nº 7149/2017 para fazer acrescentar à norma previsão de que a existência de sistema de integridade efetivo e eficaz, que anteceda o cometimento do ilícito, e cultura organizacional de conformidade às leis, normas e regulamentos aos quais estejam submetidos a pessoa jurídica, são circunstâncias a serem consideradas na avaliação da sua culpabilidade e aplicação das sanções pela violação das disposições previstas na Lei Anticorrupção.

Com esta previsão a Lei Anticorrupção brasileira daria um grande salto de qualidade nas suas disposições, com respeito à legalidade e aqueles outros princípios supramencionados, reverberando em mais um grande fator de justiça e equidade que motivaria mais incisivamente as empresas à implantação de seus Programas de Integridade.

Ademais, estes acréscimos à atual redação da Lei Anticorrupção colocariam o Brasil em igualdade de condições com algumas das mais importantes legislações anticorrupção em Direito Comparado e que influenciam diuturnamente os negócios e o cotidiano de muitas empresas brasileiras e estrangeiras aqui sediadas, que precisam constantemente se adaptar àquelas normas de que são exemplos o Foreing Corrupt Practices Act (FCPA, Estados Unidos) e o United Kingdom Bribery Act (UKBA, Reino Unido).

Não obstante a Lei Anticorrupção preveja, de regra, a responsabilidade objetiva, princípios que norteiam o Direito Administrativo sancionador não podem desconsiderar o modo como a empresa se comporta no mundo corporativo, sua cultura interna e a existência ou não do Programa de Integridade, elementos que se circunscrevem em critérios de avaliação da culpabilidade empresarial.

Logo, atende aos cânones constitucionais da razoabilidade, adequação e proporcionalidade e do devido processo legal, ter em conta a existência de Programa de Integridade efetivo e eficaz (que anteceda o ilícito), não somente para fins de aplicação da sanção, mas também como instrumento de defesa da pessoa jurídica, principalmente nos casos em que ficar demonstrado que o ilícito foi praticado por empregado, gestor, ou colaborador que, atuando premeditadamente, com ardil e fraudulentamente, superou os melhores mecanismos de controle e prevenção, a pretexto de estar atuando em nome e no interesse da empresa.

 

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Angélica GiorgiaArnaldo Quirino de Almeida. Pós-graduado em Direito Penal Econômico & Europeu (Universidade de Coimbra, Portugal). Pós-graduado em Direito e Processo Penal (Universidade Mackenzie, São Paulo). Pós-graduado em Direito Corporativo & Compliance (Escola Paulista de Direito, São Paulo). Governança Corporativa, Compliance, Controle de Riscos e Lavagem de Capitais (Saint Paul Escola de Negócios, São Paulo).
Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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