O Noblesse Oblige, a Ética da Convicção, e a Ética da Responsabilidade como a base para o Decoro Parlamentar

*Bruno J. R. Boaventura 

Muito se fala em necessidade de moralização da política brasileira, mas raros sãos momentos em que existe o necessário aprofundamento teórico desta questão.

O dia a dia demonstra que convivemos com uma moralidade destorcida, como uma vida sem pudor, sem credo e sem o menor dos menores valor. A imagem televisa nos mostra o que não acreditávamos que fosse possível acontecer, e que amanhã já será comum ter acontecido, e isso é o retrato da visão da sociedade sobre a moralidade política.

Da doutrina do Noblesse Oblige como razão da diferenciação da Ética Política

As Casas Legislativas no Brasil possuem instrumentos a fim de que seus membros devam obrigatoriamente seguir os primados éticos que, necessariamente, fazem parte da atividade parlamentar, sob pena de perderem seus mandatos.

Tais instrumentos visam resguardar o Congresso, as Assembléias Legislativas e as Câmaras Municipais de agentes políticos que não tenham conduta compatível com o cargo ocupado, tentando principalmente preservar a incolumidade da própria instituição, como bem lecionou o professor Miguel Reale:

“O ‘status’ do deputado, em relação ao qual o ato deve ser medido (e será comedido ou decoroso em razão dessa medida) implica, por conseguinte, não só o respeito do parlamentar a si próprio, como ao órgão ao qual pertence (…). No fundo, falta de decoro parlamentar é falta de decência no comportamento pessoal, capaz de desmerecer a Casa dos representantes (incontinência de conduta, embriaguez etc.) e falta de respeito à dignidade do Poder Legislativo, de modo a expô-lo a críticas infundadas, injustas e irremediáveis de forma inconveniente.[1] 

Esta respeitabilidade institucional é a própria garantia da integridade do parlamento, é a base para que as ações resultantes da ação institucional (leis e fiscalização) sejam respeitadas pela sociedade, e isto somente existe quando seus próprios membros a respeitam e se respeitem, como ensina Raul Livino Ventim de Azevedo: 

“Cumpre insistir na asserção de que a prática de atos atentatórios ao decoro parlamentar, mais do que ferir a dignidade individual do próprio titular do mandato legislativo projeta-se, de maneira altamente lesiva, contra a honorabilidade, a respeitabilidade, o prestígio e a integridade político-institucional do parlamento, vulnerando, de modo extremamente grave, valores constitucionais que atribuem, ao Poder Legislativo, a sua indisputável e eminente condição de órgão da própria soberania nacional.[2] 

O respeito mútuo como parte integrante da respeitabilidade institucional é a causa da necessidade de conduta diferenciada daqueles que integram o poder público. 

Os poderes diferenciados da representação, exercidos através do mandato parlamentar, devem ser concretizados com respeito as responsabilidades próprias desta função pública.  

Em razão do contexto diferenciado das relações vividas cotidianamente, as responsabilidades próprias, como o decoro parlamentar, proíbem aos homens públicos a prática de ações que ao homem comum são permitidas, é a chamada doutrina do noblesse oblige, trazida por Noberto Bobbio

“O que talvez caracterize a conduta do soberano é a extraordinária freqüência com que se vê em situações excepcionais se comparado com o homem comum: essa freqüência deve-se ao fato de que lê opera em contexto de relações, em especial com os outros soberanos, no qual a exceção é elevada, por mais que possa ser considerado contraditório, a regra (mas contraditório não é, porque aqui se trata de regra no sentido de regularidade, e a regularidade de um comportamento contrário não invalida a regra dada). Mesmo que possa parecer essa que a derrogação é sempre vantajosa para o soberano (e precisamente essa vantagem foi vista com hostilidade pelos moralistas), também pode acontecer o contrário, ainda que mais raramente: a derrogação de fato pode agir extensivamente porque permite ao soberano aquilo que é moralmente proibido, mas pode também agir restritivamente porque proíbe o cumprimento de ações que ao homem comum são permitidas: noblesse oblige[3]. 

Esta necessidade de conduta diferenciada pode ser representada pela máxima que todo grande poder tem a sua grande responsabilidade, e fazer parte de uma instituição pública que representa o povo é ter consciência que o comportamento dentro do plenário das deliberações é a janela para visualização do comprometimento ético com o decoro parlamentar. 

A base do decoro parlamentar: ética da convicção e a ética da responsabilidade.

Bobbio esclarece que pelas lições de Weber a ação de um político comprometido eticamente com o decoro parlamentar é a não dissociação de sua convicção com a sua responsabilidade. A prática política convicta sem responsabilidade gera o fanático que todo sabe e tudo faz, e a prática política com responsabilidade mas sem convicção leva ao cínico que em tudo quer ter sucesso[4]. 

Figuras estas, a do fanático e do cínico, são moralmente desprezíveis, pois não atentam para o decoro parlamentar, não acreditam na respeitabilidade institucional, pois agem, respectivamente, sem  responsabilidade em suas ações, e sem convicção ideológica em seus resultados. 

Agir com decoro parlamentar é fazer de sua conduta diária um exemplo desta elevada moralidade (ética da convicção e da responsabilidade), e não ferir uma só vez a dignidade do Parlamento, ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho[5]. Agir com decoro parlamentar é ter uma conduta impecável com padrões éticos proporcionais a dignidade da função que exerce como representante de um povo, dita Celso Bastos[6]. 

Assim a Casa Legislativa deve ser a juíza daqueles que possuem ou não decoro o suficiente para exercer os poderes inerentes a atividade parlamentar, devendo punir com a cassação aqueles que em suas ações e falas dentro da Casa demonstrem serem incompatíveis com a dignidade do parlamento. 

Acaso tal poder não existisse seria impraticável as deliberações com decência e ordem, seria crer que comportamentos destemperados se tornassem a regra de convivência entre os parlamentares, seria permitir na Casa que deve criar a normas de conduta social a total desobediência as normas de conduta institucional, assim a punição com cassação daquele que não exerce a atividade parlamentar com decoro não é uma questão de conveniência, e sim de indispensável medida para sobrevivência institucional, assim já alertava Joseph Story[7]. 

O político é ser impetuoso com ego inchado pelas benesses e reconhecimento público de autoridade advindo do poder de representação de centenas, milhares e em alguns casos de milhões, precisa não tão somente ser probo, necessita ser eticamente convicto e responsável. Conceitos estes que remetem a uma conduta moralmente mais elevada do que ser simplesmente incorruptível, precisa demonstrar respeito por aqueles que lhe confiaram o poder de representação do interesse público pelo voto e também respeitar todos os outros que como ele decidirão o futuro de um ente federado. Então poderíamos chamar de decoro parlamentar: a prática da consciência da dignidade de ser um representante do povo.


NOTAS

[1] In: Decoro Parlamentar e Cassação de mandato Eletivo”. in Revista de Direito Público, vol. X, p.89

[2]In: Renúncia e Decoro Parlamentar. Revista do Administrador Público. Boletim Legislativo. Curitiba:Governet. 05/2007. p. 266.

[3] In: Teoria geral da política. RJ:Campus, 2000, p.187.

[4] “Na ação do grande político, ética da convicção e ética da responsabilidade não podem, segundo Weber, caminhar separadas uma da outra. A primeira, tomada em si mesma, levada às últimas conseqüências, é própria do fanático, figura moralmente repugnante. A segunda, totalmente apartada da consideração dos princípios a partir dos quais nascem as grandes ações, e totalmente voltada apenas para o sucesso (recordemos o maquiavélico “faça um príncipe de modo a vencer”), caracteriza a figura, moralmente não menos reprovável, do cínico.” In: Teoria geral da política. RJ:Campus, 2000, p.197.

[5] “Entende-se por atentatório ao decoro parlamentar a conduta que fira os padrões elevados da moralidade, necessários ao prestígio do mandato, à dignidade do Parlamento.” In: Comentários à constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 1. p.330.

[6] “O parlamentar deve ter conduta impecável, condizente com o prestígio da função que desempenha. O comportamento incompatível do congressista com os padrões éticos exigidos pela dignidade do Parlamento é causa bastante para a perda do mandato.” In: Comentários à constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 4, t. 1. p.243.

[7] “if the power did not exist, it would be utterly impracticable to transact the business of the nation, either at all, or al least with decency, deliberation, and order. The humblest assembly of men is understood to posses this power; and it would be absurd to deprive the councils of the nation of a like authority. But the power to make rules would be nugatory, unless it was coupled with a power to punish for disorderly behaviour, or disobedience to those rules. And as a member might be so lost to all sense of dignity and duty, as to disgrace the house by the grossness of his conduct, or interrupt its deliberations by perpetual violence or clamour, the power to expel for very aggravated misconduct was also indispensable, not as a common, but as an ultimate redgress for the grievance.” In: Commentaries on the Constitution of the United States. Hilliard, Gray and Company. 1833. p.298.

 


 

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA 

BRUNO J. R. BOAVENTURA: advogado militante em Cuiabá em direito público, sócio-gerente da Boaventura Advogados Associados S/C;  Especialista em Direito do Estado, com ênfase em Constitucional, pela Escola Superior de Direito de Mato Grosso.

E-mail: bboaventura@hotmail.com

Clovis Brasil Pereira
Clovis Brasil Pereirahttp://54.70.182.189
Advogado; Mestre em Direito; Especialista em Processo Civil; Professor Universitário; Coordenador Pedagógico da Pós-Graduação em Direito Processual Civil da FIG – UNIMESP; Editor responsável do site jurídico www.prolegis.com.br; autor de diversos artigos jurídicos e do livro “O Cotidiano e o Direito”.

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