O caso Minas Gerais: da atrofia do Estado Social à maximização do Estado Penal

Cláudio Alberto Gabriel Guimarães[1]   

RESUMO:  O presente artigo objetiva demonstrar que o Brasil,  na esteira das Políticas Públicas desenvolvidas nos Estados Unidos da América, já se encontra deslocando seus gastos, até então empregados na área social, ou seja, cortando recursos empregados no desenvolvimento de políticas públicas sociais voltadas para os hipossuficientes, e aplicando tais recursos na área de segurança pública, cujo ápice é a privatização/terceirização de presídios.

Palavras-chave: Políticas públicas, privatização/terceirização de presídios, Estado Social, Estado Penal.

Sumário: 1. Introdução 2. Políticas públicas neoliberais 3. A indústria do controle do delito 4. A indústria do controle do delito no Brasil 5. Conclusão

Introdução

Recentemente foi anunciada pelo Governo do Estado de Minas Gerais e alardeada em toda a imprensa nacional, a implantação de um sistema de co-gestão do sistema penitenciário mineiro, co-gestão esta compartilhada entre o Estado e a iniciativa privada.

 Assim, todos os vinte e dois presídios do Estado de Minas Gerais, seguindo a linha já adotada nos Estados Unidos da América, serão geridos por empresas privadas, cujo maior objetivo, como é sabido por todos, é o lucro.

 Salvo melhor juízo, é mais um passo dado no sentido de adotar as políticas que interessam à ideologia neoliberal que, de forma simples, podem ser assim resumidas: quem não se adequar à ideologia do mercado pela incapacidade de gerar lucros através do consumo, ou seja, quem não puder comer o famoso sanduíche Big Mac da rede internacional Mac Donald’s, nem beber Coca-Cola ou, ainda, usar tênis Nike – entre outras tantas imposições midiáticas que alimentam o consumismo desenfreado –, necessariamente produzirá lucro como matéria prima da indústria do controle do delito.  

 Em tal contexto, várias questões ficam no ar ante as políticas de repressão máxima capitaneadas pelas políticas neoliberais. É inadiável que se discuta, nessa sociedade globalizada, como equacionar os custos que advêm da implementação de tais políticas, tanto na esfera financeira, como também e, principalmente, na esfera social.

 Quais as estratégias que o Estado adotará para arcar com toda a despesa decorrente da construção e manutenção de presídios, do aumento dos efetivos de pessoal ligado ao sistema penal, enfim, como sustentar financeiramente todo o aparato repressivo de contenção da maioria excluída pelo novo modelo de gestão política?

 No âmbito social, como o Estado poderá enfrentar o crescente processo de desestabilização das estruturas de relações comunitárias, onde impera o medo e a insegurança e a palavra de ordem é a segregação espacial, onde público e privado se confundem, havendo inclusive uma preponderância deste sobre aquele, enfim, como impedir o desenvolvimento do processo de ampla desestabilização das relações intersubjetivas na sociedade?   

2.  Políticas públicas neoliberais

 Como forma de legitimar a decisão tomada, o Estado de Minas Gerais elenca vários fatores que, em última instância, foram decisivos para a adoção da medida, sendo dois os preponderantes, quais sejam: diminuição do custo per capita dos detentos de R$ 1.623,00 mensais para R$ 1.300,00; agilização do processo de aquisição de equipamentos e realização de obras.

Em um dos mais sérios e elaborados trabalhos acadêmicos realizados sobre o tema no Brasil, o pesquisador Minhoto (2000, p. 92; 170) chama atenção para o fato de que:  

Se, de um lado, há evidências fundadas de que a operação privada de estabelecimentos correcionais não tem executado um serviço mais eficiente nem tampouco mais barato, como também não tem conseguido fazer frente aos objetivos internos do sistema de justiça criminal, notadamente, o alívio da superpopulação e a reabilitação dos detentos, além de despertar forte polêmica, é certo que paradoxalmente as prisões privadas vêm se expandindo e as companhias ampliando largamente suas margens de lucratividade”. Em relação ao Brasil, adverte que “Em grande medida, essa proposta resulta de um intenso lobby realizado por uma empresa brasileira de segurança privada, a Pires Segurança Ltda., destinado a transpor as prisões privadas para o contexto brasileiro, a partir da manipulação seletiva da ‘experiência estrangeira’ – sobretudo da experiência norte-americana –, invocada como argumento de autoridade.

 Não sendo objeto do presente trabalho a abordagem de tal polêmica, opta-se por fazer uma análise mais ampla do problema e, para tanto, toma-se como ponto de partida a contextualização política e econômica, adotando-se o entendimento fundamental segundo o qual a globalização, fundada nos pressupostos da ideologia econômica neoliberal – traduzida como enfraquecimento da capacidade de intervenção social dos Estados e da perda de soberania política –, está a produzir um alarmante quadro de exclusão social. (BARATTA, 2001, p. 14-15)

 Somando-se o retro exposto ao fato de que a exclusão social se origina da concentração de riqueza nas mãos de uns poucos privilegiados, sobrando para a maioria da população mundial um grave quadro de desemprego, fome, doença, ignorância, em resumo, de ampla negação do mínimo que se pode definir como cidadania, chega-se a iniludível conclusão de que está a se concretizar um quadro sem precedentes em toda a história da humanidade: a triste constatação de que a miséria, traduzida em exclusão social, está mais visível do que nunca, e que a visibilidade dos pobres e miseráveis acaba por influenciar negativamente o bem-estar dos incluídos.

 No Brasil, a pobreza é um problema que pode ser adjetivado de gravíssimo. A pobreza absoluta – aquela que se caracteriza pelo não atendimento das necessidades vinculadas ao mínimo vital – e a pobreza relativa – aquela em que apenas o mínimo para a sobrevivência física é alcançado – são verificadas em larga escala no país, sem que se possa precisar, com algum alcance de certeza, qual das duas formas predomina. (ROCHA, 2003, p. 11-12)

 A única certeza que se tem em tal seara é a de que a pobreza brasileira[2] está diretamente ligada à desigual distribuição de renda; ao inacesso à educação; à desnutrição; à completa falta de acesso a mínimas oportunidades de inclusão social. A pobreza brasileira é um retrato vivo da impossibilidade do exercício da cidadania.

 Os sem-teto, os sem-terra, os sem-comida, os sem-saúde, os desempregados estão nas ruas, em todas as partes, sujos, ofensivos, provocantes em sua inutilidade, o que traz a reboque as inevitáveis exigências sociais dos com-terra, com-teto, com-comida, com-saúde, com-conforto, com-lazer, dos que têm emprego, de que eles sejam afastados da vista e se possível, também, dos pensamentos.      

 Não é à toa que novas prisões são construídas diariamente como fábricas de exclusão das pessoas habituadas a sua condição de excluídas, em que, como verdadeiros laboratórios, são testadas técnicas de confinamento espacial do lixo e do refugo social produzidos pelo ideal neoliberal[3].

 Nesses tempos de globalização, em que, cada vez mais, menos ganham e muitos perdem, os gastos orçamentários do Estado com as despesas ligadas à manutenção da ‘lei e da ordem’ – como os efetivos policiais e os serviços penitenciários e, principalmente, os gastos com equipamentos ligados à tecnologia de segurança nas prisões – crescem em todo o planeta. Os malefícios infligidos através da pena de prisão atingiram o nível de comercialização como de qualquer outro produto. 

 Percebe-se nitidamente que todo o processo globalizador é alimentado pela autopropulsão do medo. E isso se transforma em capital político, pois “o que se possa fazer a respeito da segurança é incomparavelmente mais espetacular, mais visível, ‘televisível’, que qualquer gesto voltado para as causas mais profundas do mal-estar, mas – pela mesma razão – menos palpáveis e aparentemente mais abstratas” (BAUMAN, 1999, p. 126).

 Todo o medo e insegurança gerados pela crescente parcela de excluídos da sociedade é então somatizado pela população ainda incluída, que vê como única saída para combater esse mal, que assola a humanidade, as instituições carcerárias. 

 Tal constatação acaba por acarretar uma inexorável conseqüência: o alívio dos governos, já que ninguém, ou muito poucos, tendem a pressionar politicamente para que se realize algo acerca de coisas que são frágeis demais para que se perceba e controle. Ao contrário, a construção de novas prisões, a hipertrofia da legislação punitiva, a disseminação das infrações punidas com pena de prisão tendem a aumentar a popularidade dos governos, conferindo-lhes a imagem da austeridade, da seriedade, da severidade, de quem faz algo severo, palpável, concreto, visível e convincente, em prol da segurança individual dos governados. (BAUMAN, 1999, p. 126-127).

 As punições são, portanto, um ato político, haja vista que demonstram o poder do Estado soberano e, em última instância, trazem ao conhecimento dos súditos qual o órgão que detém o poder absoluto[4].

 Quanto mais firme for o Estado em relação à dureza das punições, daquelas poucas que o Poder Judiciário pode impor aos infelizes que caíram em suas malhas, mais se afirma perante a incauta opinião pública como órgão apto a controlar o crime, suscitando vasto apoio popular, mas, na verdade, tais atos de barbárie punitiva objetivam escamotear a realidade da completa falência em prover segurança à população como um todo. (GARLAND, 2002, p. 83)

 Na concepção de Wacquant (2002a, p. 8),

O desequilíbrio do social para o penal é evidente nas inflexões recentes do discurso público sobre o crime, nas desordens urbanas e nas incivilidades, que se multiplicam à medida que a ordem estabelecida perde sua legitimidade para quem é condenado à marginalidade pelas mutações econômicas e políticas vigentes.

 Como forma de escamotear tal quadro desolador[5], a ideologia em voga aponta todas as mazelas para causas individuais e responde com a mais poderosa arma de que dispõe o poder estabelecido, que é o Direito Penal. Quanto maior o caos, maior a necessidade de repressão penal, o que acaba por confirmar uma equação há muito conhecida, ou seja, mais exclusão social, mais pobres, mais incômodos para as classes privilegiadas, mais repressão penal, mais presos e, agora, um novo dado: mais lucros para a indústria do controle do crime.

 A supremacia do mercado sobre todos os outros valores e instituições ligados à gestão política e econômica do Estado acaba por limitar em larga escala o poder outrora imanente à soberania, restando pouco a ser feito nessa área.

 Ao Estado, antes soberano, nada mais resta, ou quase nada[6]. A economia e a política, antes símbolos de sua soberania, não mais pertencem a sua esfera de atribuições. Restou apenas a função policial, o policiamento do território e da população, os poderes de repressão, já que  

No mundo das finanças globais, os governos detêm pouco mais que o papel de distritos policiais superdimensionados; a quantidade e qualidade dos policiais, varrendo os mendigos, perturbadores e ladrões das ruas, e a firmeza dos muros das prisões assomam entre os principais fatores de ‘confiança dos investidores’. (BAUMAN, 1999, p. 128).

 Os Estados Unidos da América[7], como matriz desse novo tipo de gestão dos problemas sociais, exportam para todo o planeta o lucrativo modelo de controle das massas miserabilizadas pelo neoliberalismo, como bem coloca Christie (1998, p. 122): 

 A população potencialmente perigosa é afastada e colocada sob completo controle, como matéria-prima para uma parte do próprio complexo industrial que os tornou supérfluos e ociosos fora dos muros da prisão. Matéria-prima para o controle do crime ou, se quiserem, consumidores cativos dos serviços da indústria do controle.  

Nunca é demais lembrar que toda indústria para se estabelecer, previamente, estuda os limites da potencialidade de oferta da matéria prima a ser utilizada, para garantir seus lucros a curto, médio e longo prazos, visto que sabe da imprescindibilidade da oferta desta para continuação de suas atividades, que no caso presente são seres humanos criminalizáveis e/ou criminalizados. 

 Assim sendo, todo o movimento que hodiernamente permeia o Direito Penal objetivando criminalizar condutas através de uma hiperinflação da edição de leis, aumentar penas, diminuir garantias e benefícios em sede de execução, entre outras medidas que possibilitam uma expansão da tipificação de condutas, assim como, o aumento do tempo de cumprimento de pena, com toda certeza atendem aos interesses da indústria do controle do delito.

 Queiramos ou não o ser humano foi transformado em mercadoria! 

3 – A indústria do controle do delito 

A princípio, a indústria do controle do delito estava voltada para a produção de equipamentos de segurança, para o recrutamento, seleção e treinamento de agentes de segurança privados, fabricação de equipamentos pessoais de segurança voltados principalmente para a proteção do patrimônio, entre outros tantos itens. 

Posteriormente, em razão do novo contexto social originado com as políticas neoliberais, perceberam os proprietários de tais indústrias um novo filão, com matéria prima inesgotável e lucro certo e garantido pelo próprio Estado.   

Um verdadeiro golpe de mestre: o que fazer com as pessoas que não produzem nenhum tipo de lucro – fim maior do capitalismo –, já que totalmente excluídas da possibilidade de consumo? Excluí-las mais ainda, só que agora com uma direção predeterminada, ou seja, em direção à lucrativa indústria dos presídios, privados ou não, pois os que não são privados são amplamente terceirizados, gerando lucro da mesma maneira[8].  

Entretanto, é bom que fique claro, os lucros da indústria do controle do crime não se originam tão-somente da administração e construção dos presídios. Outras importantes fontes de lucro se verificam na automação dos acessos às unidades carcerárias, na instalação dos controles de segurança, com alarmes, câmaras de vídeo, sensores, entre outros dispositivos e, até mesmo, com o controle dos que estão em sursis ou livramento condicional, através de braceletes que monitoram seu deslocamento.

 Parece haver ares de irreversibilidade neste novo filão a ser explorado pelo capitalismo, haja vista que a matéria prima, caso se utilize a estratégia certa – crescente exclusão social – é inesgotável.

 Para arcar com os elevados custos de implementação e manutenção da repressão intensiva e ostensiva, o Estado tem que deslocar seus gastos, suprimindo grande parte das despesas inerentes à assistência social e deslocando essa verba para o sistema de justiça criminal[9]. Ademais, a verba que era direcionada para programas de ressocialização e reinserção dos detentos, agora é utilizada para o aumento da capacidade de encarceramento do sistema. 

 Concisamente pode-se resumir a atual situação em uma frase: “a guerra contra a pobreza, nos idos do Estado de bem-estar, transformou-se agora em guerra contra os pobres”. (WACQUANT, 2001b, p. 24)

 Esse estado de beligerância, que se reflete na guerra declarada pelo sistema repressivo penal – principal política social do Estado neoliberal – contra a pobreza, pode ser analisado sob vários aspectos.

 Inicialmente, essa é a única forma de se lidar com os grandes contingentes populacionais excluídos pela retração do emprego e que precisam ser eficazmente controlados. A característica marcante das políticas neoliberais é exatamente o corte de empregos para maximização dos lucros, sem que com essa medida a economia perca a capacidade de crescimento e as empresas o constante aumento na auferição dos mesmos.

 Portanto, à massa excluída do consumo pela falta de trabalho resta a opção de obtenção de lucros com o encarceramento desta, em outras palavras, o dinheiro público ao invés de ir para programas sociais, inclusive de criação de empregos, vai para o sistema de justiça penal pagar pelo custo de seus detentos e, assim, fazer com que a economia continue aquecida.

 Outro importante fator é que as políticas de repressão, em razão do trabalho realizado pela mídia, são mais bem aceitas pela opinião pública que quaisquer políticas sociais, que hoje carregam o estigma de estímulo à desocupação, vez que tais políticas solapam a vontade de trabalhar, alimentando uma cultura de dependência para com o Estado.

 O princípio do less eligibility – segundo o qual as condições de vida no cárcere deveriam ser sempre menos favoráveis que as condições de vida das categorias mais baixas dos trabalhadores livres –, apesar de ter sido inventado há mais de duzentos anos, também está presente e em pleno vigor. Assim, é melhor aceitar a péssima remuneração que é oferecida no exíguo mercado de trabalho do que ficar desempregado arriscando-se a entrar para as estatísticas do sistema penal.

 Encarcerando em massa os miseráveis, via de regra por pequenos delitos contra o patrimônio ou por condutas ligadas ao uso de estupefacientes, que em nada afetam a harmonia da convivência social, desvia-se a atenção dos grandes crimes e criminosos, estes últimos responsáveis pela criminalidade econômica, delitos estes que abalam as estruturas do Estado e, conseqüentemente, da sociedade[10].

 Por fim, a característica mais execrável da substituição do Estado de bem-estar pelo Estado policial ou penal, é o lucro fácil que os grandes grupos empresariais auferem com a administração do medo imposto à sociedade na forma de insegurança total. As empresas de segurança privada, de prestação de serviços para o sistema penitenciário, de pretenso combate ao crime de uma forma geral, nunca lucraram tanto como nos dias atuais[11].

 Explicitando, os próprios grupos responsáveis pelas políticas de exclusão social de grande parte da população são, via de regra, os que lucram com a situação deletéria por si próprios criada, encarcerando o “lixo social” produzido ou vendendo segurança contra os possíveis incômodos que possam vir a ser provocados por tal tipo de gente.

4 – A indústria do controle do delito no Brasil

No Brasil, já não se pode taxar de novidade a intensificação do uso do cárcere como forma privilegiada de controle social de uma determinada camada da população. Os espaços proibidos também já se fazem notar em toda sua pujança. O que surgiu de novo, por clara influência norte-americana, no âmbito do controle social punitivo, é tão-somente o fato da implementação em terras tupiniquins da incipiente, mas promissora, indústria do controle do crime. 

Já existem por aqui empresas privadas lucrando com o fornecimento de alimentação, serviços de saúde, trabalho e educação para os detentos, além da própria administração e manutenção dos presídios. Há toda uma política sendo desenvolvida, inclusive com apoio da mídia, para expansão do gerenciamento privado das penitenciárias brasileiras[12].

Portanto, a iniciativa mineira somente é pioneira na questão quantitativa, pois houve a terceirização de todas as unidades prisionais do Estado, ao contrário de Paraná, Ceará, São Paulo, entre outros Estados que somente terceirizaram algumas unidades.

A conjugação dos esforços para terceirização dos presídios parece refletir os indicativos políticos neoliberais que frente à desagregação social, à separação espacial urbana, à intolerância face à diferença, à constante suspeita em relação ao outro, à fragmentação do espaço público e sua transformação imposta em espaços privados, almejam que tudo isso seja resolvido através de medidas coercitivas.

Criam-se a todo vapor espaços proibidos, destinados a separar o joio – excluídos – do trigo – incluídos -, e para isso se paga muito bem. Mais uma vez o lucro se sobrepõe a qualquer valor ligado a essência do ser humano[13].

Há uma preocupante e crescente desumanização de vastas parcelas da população. Determinados estratos sociais são vistos e tratados abertamente como inimigos, como ofensores/infratores em estado de latência, que ao menor descuido desencadeariam uma verdadeira pilhagem contra o patrimônio daqueles que se acham – ainda – em condições de consumir. Logo, é premente e inadiável que se promova o total isolamento entre as classes sociais, hoje limitadas a incluídos e excluídos.

Desse modo confunde-se pobreza com delinqüência, violência estrutural com violência criminal. Não há mais classes sociais, as possibilidades de divergências políticas também estão sendo criminalizadas, reprime-se para manutenção do caos e dos lucros .   

Bauman (1999, p. 28), sobre o tema, afirma que  

Esses e outros ‘espaços proibidos’ não servem a outro propósito senão transformar a extraterritorialidade da nova elite supralocal no isolamento corpóreo, material, em relação à localidade. Eles também dão um toque final na desintegração das formas localmente baseadas de comunhão, de vida comunitária. A extraterritorialidade das elites é garantida da forma mais material – o fato de serem fisicamente inacessíveis a qualquer um que não disponha de uma senha de entrada.  

Em seu último livro publicado no Brasil, Bauman (2003b, p. 100-111) avança na questão da desagregação social e cunha o termo “guetos voluntários” para definir o isolamento forçado a que se estão auto-impondo as elites, com seus guardas, cães amestrados, alarmes, cercas elétricas, enfim, enclaves defensáveis com acesso seletivo em contraposição aos guetos de exclusão – no Brasil favelas – em que grande parte da população é isolada, para que fique confinada longe do território das elites. 

 Wacquant (2001c, p. 163-182), na mesma linha de raciocínio acima desenvolvida por Bauman, aponta para o fenômeno da marginalidade avançada, que está a surgir e se desenvolver exatamente nos territórios onde as classes excluídas são confinadas, como conseqüência da extrema pobreza e da destituição social. Assim, a marginalidade avançada é mais um fator de desagregação social, tendo em vista que se concentra em territórios bem-identificados, bem-demarcados e cada vez mais isolados, espaços estes vistos interna e externamente como purgatórios sociais, como infernos urbanos, onde somente o refugo da sociedade aceita habitar[14].  

 Para os excluídos, portanto, existem dois caminhos a serem trilhados no atual contexto social, político e econômico, pautado pelas políticas neoliberais do livre mercado: assentirem em ocupar os espaços que lhes restam ou engrossarem as estatísticas dos sensos penitenciários. Favelas e prisões são os dois tipos de estratégias usadas para confinar e imobilizar os indesejáveis.

5. Conclusão

O que inicialmente parecia uma tímida experiência no âmbito da gestão terceirizada de penitenciárias, com alguns poucos casos isolados, com o advento da total terceirização do sistema penitenciário do Estado de Minas Gerais, solidifica-se tal tipo de postura dos gestores públicos, ao mesmo tempo em que se mostra como um forte indicativo das políticas penitenciárias que doravante serão adotadas pelos outros Estados brasileiros.

Definitivamente, o Brasil já se filiou ao rol de países que optaram por gerir a sociedade sob a égide da repressão. Ao responder com repressão e punição a problemas cujo formato evidencia uma natureza explicitamente social, ao desrespeitar os mais básicos direitos humanos com o encarceramento massivo dos excluídos por suas próprias políticas públicas, está configurada e consumada a passagem do Estado social para o Estado penal. 

Como ponto culminante da gestão adotada, tem-se o início de um amplo processo de terceirização e, muito provavelmente em um curto espaço de tempo, de privatização total das penitenciárias brasileiras, evidenciando a importação e adoção das políticas americanas cujo principal instrumento utilizado no combate as injustiças sociais, principalmente o grave quadro de desemprego e, consequentemente, de exclusão social, é o encarceramento massivo e lucrativo dos indesejados pobres, na semântica dos neoliberais, não-cidadãos.  

REFERÊNCIAS

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[1] Promotor de Justiça do Estado do Maranhão, Coordenador Estadual da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP, Especialista em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina, Especialista em Docência Superior Pelo UNICEUMA, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. calguimaraes@yahoo.com.br 

[2] Segundo a pesquisadora Rocha (2003, p. 9), “Pobreza é um fenômeno complexo, podendo ser definido de forma genérica como a situação na qual as necessidades não são atendidas de forma adequada. Para operacionalizar essa noção ampla e vaga, é essencial especificar que necessidades são essas e qual nível de atendimento pode ser considerado adequado. A definição relevante depende basicamente do padrão de vida e da forma como as diferentes necessidades são atendidas em determinado contexto socioeconômico. Em última instância, ser pobre significa não dispor dos meios para operar adequadamente no grupo social em que se vive”.

[3] Na visão de Batista (2000, p. 107), “Uma das características dos novos sistemas penais do empreendimento neoliberal consiste numa radical transformação nas finalidades da privação de liberdade, que passam daquilo que Zaffaroni chamou de ‘ideologias re’ (reinserção social, recuperação laborativa, redisciplinamento, etc.) a uma assumida técnica de neutralização do condenado”.

[4] Segundo Christie (2002, p. 93), “São as decisões político-culturais que determinam a estatística carcerária e não o nível ou evolução da criminalidade. Essas decisões exprimem e definem ao mesmo tempo a que sociedade escolhemos pertencer”.

[5] Western, Beckett e Harding (2002, p. 41) chamam atenção para outro grave fato que se origina do proposital encarceramento em massa dos miseráveis, a saber: “O encarceramento em massa mascara uma forte tendência ao desemprego, subtraindo das estatísticas uma grande massa de adultos em idade de trabalhar. Assim, o baixo índice de desemprego americano dos anos 90 é, em parte, um resultado e um artifício do elevado índice de encarceramento. Longe de ser exemplo de regulamentação, como se procura demonstrar, o mercado americano é de fato modelado, através de seu sistema penal, por uma forte e coercitiva intervenção penal”.  

[6] Sobre o Estado social residual, cfr. Wacquant (2001b, p. 23).

[7] Garland (2002, p. 88) adverte que “Em sociedades como as do Reino Unido e dos Estados Unidos, onde se manifestam divisões sociais e raciais profundas, que ensejam a experiência de taxas de criminalidade e de níveis de insegurança elevados, onde as soluções sociais foram politicamente desacreditadas, onde há poucas perspectivas de reinserção dos antigos delinqüentes pelo trabalho ou pela família e onde, para completar esse quadro deprimente, um setor comercial em expansão encoraja e favorece o aumento do encarceramento, essa cultura punitiva está provocando um encarceramento em massa, a uma escala jamais alcançada nos países democráticos e raramente encontrada na maioria dos países totalitários”.

[8] Sobre o orçamento para cobrir os custos da indústria do controle do crime, cfr. Wacquant (2001b, p. 77).

[9] Segundo a visão de Farias (2000, p. 13), “Nesse contexto de reestruturação econômica, portanto, em cujo âmbito o mercado é quem passa a comandar o jogo, o acesso aos serviços essenciais não depende mais de políticas governamentais, mas de contratos privados de compra e venda firmados com base no que os consumidores podem ou estão dispostos a pagar numa troca livre. Desse modo, o que era basicamente um tema de direitos humanos ou de direitos sociais é convertido numa questão de caráter meramente mercantil. Aprofundando o argumento: tudo – trabalho, terra e até seres humanos – acaba sendo reduzido ao conceito geral de mercadoria. Inclusive aqueles que, por terem transgredido as leis penais, foram condenados pela justiça”.

[10] Segundo Wacquant (2001b, p. 37), “A gestão policial e carcerária da insegurança social tem certamente como efeito o controle dos membros da ‘gentalha’ infamante, mas tem também o efeito de ‘confirmar seu status e recompor suas fileiras’. […] a campanha de mortificação penal da miséria nos espaços públicos contribui para agravar o sentimento de insegurança e de impunidade ao ‘embaralhar a distinção entre o verdadeiro crime e os comportamentos que são apenas incômodos e chocantes’. Ela é feita realmente para desviar a atenção pública da criminalidade organizada, cujos estragos humanos e custos econômicos são bem mais importantes e mais insidiosos que os da delinqüência de rua”.

[11] Sobre a próspera indústria do controle do crime, cfr. Christie (1998), Wacquant (2001a), Wacquant (2001b).

[12] O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) elaborou as diretrizes em 1992, para adoção das prisões privadas no Brasil as quais, em resumo, propunham que “A admissão das empresas seria feita por concorrência pública e os direitos e obrigações das partes seriam regulados por contrato. O setor privado passaria a prover serviços penitenciários tais como alimentação, saúde, trabalho e educação aos detentos, além de poder construir e administrar os estabelecimentos”. Sobre a incipiente privatização/terceirização dos presídios brasileiros, cfr. Minhoto (2000, p. 161-192), Oliveira (1997, p. 195-224), G. Rodrigues (1995, p. 30-32), Freire (1995, p. 106-110).

[13] Sobre a nova forma de administrar a insegurança, Bauman (1999, p. 29) entende que “As elites escolheram o isolamento e pagam por ele prodigamente e de boa vontade. O resto da população se vê afastado e forçado a pagar o pesado preço cultural, psicológico e político do seu novo isolamento. Aqueles incapazes de fazer de sua vida separada uma questão de opção e de pagar os custos de sua segurança estão na ponta receptora do equivalente contemporâneo dos guetos do início dos tempos modernos; são pura e simplesmente postos para ‘fora da cerca’ sem que se pergunte a sua opinião, têm o acesso barrado aos ‘comuns’ de ontem, são presos, desviados e levam um choque curto e grosso quando perambulam às tontas fora de seus limites, sem notar os sinais indicadores de ‘propriedade privada’ ou sem perceber o significado de indicações não verbalizadas mas nem por isso menos decididas ‘não ultrapasse’’’.

[14] Há mais de quinze anos Pavarini (1985, p. 641-661) já chamava atenção para o fenômeno da “ghetização” nas políticas de controle social. Para um melhor entendimento do processo, necessária a leitura de Bentham (2000).

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

   Cláudio Alberto Gabriel Guimarães: Promotor de Justiça do Estado do Maranhão, Coordenador Estadual da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP, Especialista em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina, Especialista em Docência Superior Pelo UNICEUMA, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. calguimaraes@yahoo.com.br 

 


Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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