Cláudio Alberto Gabriel Guimarães[1]
RESUMO: O presente artigo objetiva demonstrar que o Brasil, na esteira das Políticas Públicas desenvolvidas nos Estados Unidos da América, já se encontra deslocando seus gastos, até então empregados na área social, ou seja, cortando recursos empregados no desenvolvimento de políticas públicas sociais voltadas para os hipossuficientes, e aplicando tais recursos na área de segurança pública, cujo ápice é a privatização/terceirização de presídios.
Palavras-chave: Políticas públicas, privatização/terceirização de presídios, Estado Social, Estado Penal.
Sumário: 1. Introdução 2. Políticas públicas neoliberais
Introdução
Recentemente foi anunciada pelo Governo do Estado de Minas Gerais e alardeada em toda a imprensa nacional, a implantação de um sistema de co-gestão do sistema penitenciário mineiro, co-gestão esta compartilhada entre o Estado e a iniciativa privada.
2. Políticas públicas neoliberais
Em um dos mais sérios e elaborados trabalhos acadêmicos realizados sobre o tema no Brasil, o pesquisador Minhoto (2000, p. 92; 170) chama atenção para o fato de que:
Se, de um lado, há evidências fundadas de que a operação privada de estabelecimentos correcionais não tem executado um serviço mais eficiente nem tampouco mais barato, como também não tem conseguido fazer frente aos objetivos internos do sistema de justiça criminal, notadamente, o alívio da superpopulação e a reabilitação dos detentos, além de despertar forte polêmica, é certo que paradoxalmente as prisões privadas vêm se expandindo e as companhias ampliando largamente suas margens de lucratividade”. Em relação ao Brasil, adverte que “Em grande medida, essa proposta resulta de um intenso lobby realizado por uma empresa brasileira de segurança privada, a Pires Segurança Ltda., destinado a transpor as prisões privadas para o contexto brasileiro, a partir da manipulação seletiva da ‘experiência estrangeira’ – sobretudo da experiência norte-americana –, invocada como argumento de autoridade.
Na concepção de Wacquant (2002a, p. 8),
O desequilíbrio do social para o penal é evidente nas inflexões recentes do discurso público sobre o crime, nas desordens urbanas e nas incivilidades, que se multiplicam à medida que a ordem estabelecida perde sua legitimidade para quem é condenado à marginalidade pelas mutações econômicas e políticas vigentes.
No mundo das finanças globais, os governos detêm pouco mais que o papel de distritos policiais superdimensionados; a quantidade e qualidade dos policiais, varrendo os mendigos, perturbadores e ladrões das ruas, e a firmeza dos muros das prisões assomam entre os principais fatores de ‘confiança dos investidores’. (BAUMAN, 1999, p. 128).
A população potencialmente perigosa é afastada e colocada sob completo controle, como matéria-prima para uma parte do próprio complexo industrial que os tornou supérfluos e ociosos fora dos muros da prisão. Matéria-prima para o controle do crime ou, se quiserem, consumidores cativos dos serviços da indústria do controle.
Nunca é demais lembrar que toda indústria para se estabelecer, previamente, estuda os limites da potencialidade de oferta da matéria prima a ser utilizada, para garantir seus lucros a curto, médio e longo prazos, visto que sabe da imprescindibilidade da oferta desta para continuação de suas atividades, que no caso presente são seres humanos criminalizáveis e/ou criminalizados.
3 – A indústria do controle do delito
A princípio, a indústria do controle do delito estava voltada para a produção de equipamentos de segurança, para o recrutamento, seleção e treinamento de agentes de segurança privados, fabricação de equipamentos pessoais de segurança voltados principalmente para a proteção do patrimônio, entre outros tantos itens.
Posteriormente, em razão do novo contexto social originado com as políticas neoliberais, perceberam os proprietários de tais indústrias um novo filão, com matéria prima inesgotável e lucro certo e garantido pelo próprio Estado.
Um verdadeiro golpe de mestre: o que fazer com as pessoas que não produzem nenhum tipo de lucro – fim maior do capitalismo –, já que totalmente excluídas da possibilidade de consumo? Excluí-las mais ainda, só que agora com uma direção predeterminada, ou seja, em direção à lucrativa indústria dos presídios, privados ou não, pois os que não são privados são amplamente terceirizados, gerando lucro da mesma maneira[8].
Entretanto, é bom que fique claro, os lucros da indústria do controle do crime não se originam tão-somente da administração e construção dos presídios. Outras importantes fontes de lucro se verificam na automação dos acessos às unidades carcerárias, na instalação dos controles de segurança, com alarmes, câmaras de vídeo, sensores, entre outros dispositivos e, até mesmo, com o controle dos que estão em sursis ou livramento condicional, através de braceletes que monitoram seu deslocamento.
4 – A indústria do controle do delito no Brasil
No Brasil, já não se pode taxar de novidade a intensificação do uso do cárcere como forma privilegiada de controle social de uma determinada camada da população. Os espaços proibidos também já se fazem notar em toda sua pujança. O que surgiu de novo, por clara influência norte-americana, no âmbito do controle social punitivo, é tão-somente o fato da implementação em terras tupiniquins da incipiente, mas promissora, indústria do controle do crime.
Já existem por aqui empresas privadas lucrando com o fornecimento de alimentação, serviços de saúde, trabalho e educação para os detentos, além da própria administração e manutenção dos presídios. Há toda uma política sendo desenvolvida, inclusive com apoio da mídia, para expansão do gerenciamento privado das penitenciárias brasileiras[12].
Portanto, a iniciativa mineira somente é pioneira na questão quantitativa, pois houve a terceirização de todas as unidades prisionais do Estado, ao contrário de Paraná, Ceará, São Paulo, entre outros Estados que somente terceirizaram algumas unidades.
A conjugação dos esforços para terceirização dos presídios parece refletir os indicativos políticos neoliberais que frente à desagregação social, à separação espacial urbana, à intolerância face à diferença, à constante suspeita em relação ao outro, à fragmentação do espaço público e sua transformação imposta em espaços privados, almejam que tudo isso seja resolvido através de medidas coercitivas.
Criam-se a todo vapor espaços proibidos, destinados a separar o joio – excluídos – do trigo – incluídos -, e para isso se paga muito bem. Mais uma vez o lucro se sobrepõe a qualquer valor ligado a essência do ser humano[13].
Há uma preocupante e crescente desumanização de vastas parcelas da população. Determinados estratos sociais são vistos e tratados abertamente como inimigos, como ofensores/infratores em estado de latência, que ao menor descuido desencadeariam uma verdadeira pilhagem contra o patrimônio daqueles que se acham – ainda – em condições de consumir. Logo, é premente e inadiável que se promova o total isolamento entre as classes sociais, hoje limitadas a incluídos e excluídos.
Desse modo confunde-se pobreza com delinqüência, violência estrutural com violência criminal. Não há mais classes sociais, as possibilidades de divergências políticas também estão sendo criminalizadas, reprime-se para manutenção do caos e dos lucros .
Bauman (1999, p. 28), sobre o tema, afirma que
Esses e outros ‘espaços proibidos’ não servem a outro propósito senão transformar a extraterritorialidade da nova elite supralocal no isolamento corpóreo, material, em relação à localidade. Eles também dão um toque final na desintegração das formas localmente baseadas de comunhão, de vida comunitária. A extraterritorialidade das elites é garantida da forma mais material – o fato de serem fisicamente inacessíveis a qualquer um que não disponha de uma senha de entrada.
Em seu último livro publicado no Brasil, Bauman (2003b, p. 100-111) avança na questão da desagregação social e cunha o termo “guetos voluntários” para definir o isolamento forçado a que se estão auto-impondo as elites, com seus guardas, cães amestrados, alarmes, cercas elétricas, enfim, enclaves defensáveis com acesso seletivo em contraposição aos guetos de exclusão – no Brasil favelas – em que grande parte da população é isolada, para que fique confinada longe do território das elites.
5. Conclusão
O que inicialmente parecia uma tímida experiência no âmbito da gestão terceirizada de penitenciárias, com alguns poucos casos isolados, com o advento da total terceirização do sistema penitenciário do Estado de Minas Gerais, solidifica-se tal tipo de postura dos gestores públicos, ao mesmo tempo em que se mostra como um forte indicativo das políticas penitenciárias que doravante serão adotadas pelos outros Estados brasileiros.
Definitivamente, o Brasil já se filiou ao rol de países que optaram por gerir a sociedade sob a égide da repressão. Ao responder com repressão e punição a problemas cujo formato evidencia uma natureza explicitamente social, ao desrespeitar os mais básicos direitos humanos com o encarceramento massivo dos excluídos por suas próprias políticas públicas, está configurada e consumada a passagem do Estado social para o Estado penal.
Como ponto culminante da gestão adotada, tem-se o início de um amplo processo de terceirização e, muito provavelmente em um curto espaço de tempo, de privatização total das penitenciárias brasileiras, evidenciando a importação e adoção das políticas americanas cujo principal instrumento utilizado no combate as injustiças sociais, principalmente o grave quadro de desemprego e, consequentemente, de exclusão social, é o encarceramento massivo e lucrativo dos indesejados pobres, na semântica dos neoliberais, não-cidadãos.
REFERÊNCIAS
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[1] Promotor de Justiça do Estado do Maranhão, Coordenador Estadual da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP, Especialista em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina, Especialista
[2] Segundo a pesquisadora Rocha (2003, p. 9), “Pobreza é um fenômeno complexo, podendo ser definido de forma genérica como a situação na qual as necessidades não são atendidas de forma adequada. Para operacionalizar essa noção ampla e vaga, é essencial especificar que necessidades são essas e qual nível de atendimento pode ser considerado adequado. A definição relevante depende basicamente do padrão de vida e da forma como as diferentes necessidades são atendidas em determinado contexto socioeconômico. Em última instância, ser pobre significa não dispor dos meios para operar adequadamente no grupo social em que se vive”.
[3] Na visão de Batista (2000, p. 107), “Uma das características dos novos sistemas penais do empreendimento neoliberal consiste numa radical transformação nas finalidades da privação de liberdade, que passam daquilo que Zaffaroni chamou de ‘ideologias re’ (reinserção social, recuperação laborativa, redisciplinamento, etc.) a uma assumida técnica de neutralização do condenado”.
[4] Segundo Christie (2002, p. 93), “São as decisões político-culturais que determinam a estatística carcerária e não o nível ou evolução da criminalidade. Essas decisões exprimem e definem ao mesmo tempo a que sociedade escolhemos pertencer”.
[5] Western, Beckett e Harding (2002, p. 41) chamam atenção para outro grave fato que se origina do proposital encarceramento em massa dos miseráveis, a saber: “O encarceramento em massa mascara uma forte tendência ao desemprego, subtraindo das estatísticas uma grande massa de adultos em idade de trabalhar. Assim, o baixo índice de desemprego americano dos anos 90 é, em parte, um resultado e um artifício do elevado índice de encarceramento. Longe de ser exemplo de regulamentação, como se procura demonstrar, o mercado americano é de fato modelado, através de seu sistema penal, por uma forte e coercitiva intervenção penal”.
[6] Sobre o Estado social residual, cfr. Wacquant (2001b, p. 23).
[7] Garland (2002, p. 88) adverte que “Em sociedades como as do Reino Unido e dos Estados Unidos, onde se manifestam divisões sociais e raciais profundas, que ensejam a experiência de taxas de criminalidade e de níveis de insegurança elevados, onde as soluções sociais foram politicamente desacreditadas, onde há poucas perspectivas de reinserção dos antigos delinqüentes pelo trabalho ou pela família e onde, para completar esse quadro deprimente, um setor comercial em expansão encoraja e favorece o aumento do encarceramento, essa cultura punitiva está provocando um encarceramento em massa, a uma escala jamais alcançada nos países democráticos e raramente encontrada na maioria dos países totalitários”.
[8] Sobre o orçamento para cobrir os custos da indústria do controle do crime, cfr. Wacquant (2001b, p. 77).
[9] Segundo a visão de Farias (2000, p. 13), “Nesse contexto de reestruturação econômica, portanto, em cujo âmbito o mercado é quem passa a comandar o jogo, o acesso aos serviços essenciais não depende mais de políticas governamentais, mas de contratos privados de compra e venda firmados com base no que os consumidores podem ou estão dispostos a pagar numa troca livre. Desse modo, o que era basicamente um tema de direitos humanos ou de direitos sociais é convertido numa questão de caráter meramente mercantil. Aprofundando o argumento: tudo – trabalho, terra e até seres humanos – acaba sendo reduzido ao conceito geral de mercadoria. Inclusive aqueles que, por terem transgredido as leis penais, foram condenados pela justiça”.
[10] Segundo Wacquant (2001b, p. 37), “A gestão policial e carcerária da insegurança social tem certamente como efeito o controle dos membros da ‘gentalha’ infamante, mas tem também o efeito de ‘confirmar seu status e recompor suas fileiras’. […] a campanha de mortificação penal da miséria nos espaços públicos contribui para agravar o sentimento de insegurança e de impunidade ao ‘embaralhar a distinção entre o verdadeiro crime e os comportamentos que são apenas incômodos e chocantes’. Ela é feita realmente para desviar a atenção pública da criminalidade organizada, cujos estragos humanos e custos econômicos são bem mais importantes e mais insidiosos que os da delinqüência de rua”.
[11] Sobre a próspera indústria do controle do crime, cfr. Christie (1998), Wacquant (2001a), Wacquant (2001b).
[12] O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) elaborou as diretrizes em 1992, para adoção das prisões privadas no Brasil as quais, em resumo, propunham que “A admissão das empresas seria feita por concorrência pública e os direitos e obrigações das partes seriam regulados por contrato. O setor privado passaria a prover serviços penitenciários tais como alimentação, saúde, trabalho e educação aos detentos, além de poder construir e administrar os estabelecimentos”. Sobre a incipiente privatização/terceirização dos presídios brasileiros, cfr. Minhoto (2000, p. 161-192), Oliveira (1997, p. 195-224), G. Rodrigues (1995, p. 30-32), Freire (1995, p. 106-110).
[13] Sobre a nova forma de administrar a insegurança, Bauman (1999, p. 29) entende que “As elites escolheram o isolamento e pagam por ele prodigamente e de boa vontade. O resto da população se vê afastado e forçado a pagar o pesado preço cultural, psicológico e político do seu novo isolamento. Aqueles incapazes de fazer de sua vida separada uma questão de opção e de pagar os custos de sua segurança estão na ponta receptora do equivalente contemporâneo dos guetos do início dos tempos modernos; são pura e simplesmente postos para ‘fora da cerca’ sem que se pergunte a sua opinião, têm o acesso barrado aos ‘comuns’ de ontem, são presos, desviados e levam um choque curto e grosso quando perambulam às tontas fora de seus limites, sem notar os sinais indicadores de ‘propriedade privada’ ou sem perceber o significado de indicações não verbalizadas mas nem por isso menos decididas ‘não ultrapasse’’’.
[14] Há mais de quinze anos Pavarini (1985, p. 641-661) já chamava atenção para o fenômeno da “ghetização” nas políticas de controle social. Para um melhor entendimento do processo, necessária a leitura de Bentham (2000).
REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
Cláudio Alberto Gabriel Guimarães: Promotor de Justiça do Estado do Maranhão, Coordenador Estadual da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP, Especialista em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina, Especialista