Notas sobre Direito e arbítrio

*Paulo Queiroz 

Casos:  

1. Arábia Saudita: uma mulher é estuprada por sete homens; submetidos a julgamento, são absolvidos e a mulher condenada, pois, de acordo com os costumes sauditas, uma mulher não pode se encontrar com um homem em lugar público;

2. Inglaterra (Londres): brasileiro, confundido com terrorista, é perseguido e morto por policiais ingleses; os policiais são absolvidos;

3. Brasil: sob proteção da Funai, tribos indígenas praticam infanticídio de gêmeos ou criança com deficiência física.

Todos esses exemplos parecem demonstrar que qualquer conduta, comissiva ou omissiva, dolosa ou culposa, violenta ou não, pode ser considerada conforme o direito (e também contrária, claro), a depender dos interesses, das relações e interpretações em jogo. Dizer simplesmente que nada isso é direito não seria a forma mais adequada de tratar tais questões.

É que o conceito de direito, como de resto todos os demais conceitos a que remete explícita ou implicitamente (v.g., justiça, liberdade, pessoa humana, bem jurídico) são conceitos históricos e, pois, não existem para além do tempo e do espaço; mais: não podemos afirmar se algo é justo ou injusto, lícito ou ilícito, desprezando, sem mais, a religião, os costumes e valores que estão co-implicados nesse processo social de produção de sentidos. Ademais, nossos juízos de valor são juízos analógicos, que remetem, conscientemente ou não, a experiências, sempre novas, de justiça, moral etc.

Exatamente por isso, o que é justo hoje ou o foi ontem não será necessariamente amanhã. Pode ocorrer inclusive de se ter por justo e legal num determinado momento algo que se tornará injusto e ilegal – e eventualmente criminoso – em momento posterior (v.g., a discriminação de homossexuais ou de filhos havidos fora do casamento, danos ao meio ambiente), podendo-se imaginar que no futuro, tal como já ocorre nalguns países, muito do que atualmente é ilegal se tornará legal (e vice-versa), como a eutanásia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção por tais casais, a mudança de sexo etc.

Apesar disso, haverá quem diga que existem coisas que sempre foram e serão proibidas e permanecerão assim; e o melhor exemplo disso é a proibição de matar, pois sempre existiu e existirá o mandamento “não matarás”.

Mas isso não é verdade, porque historicamente nem todas as pessoas foram consideradas como sujeitos de direito (v.g., estrangeiros, prisioneiros de guerra, mulheres, escravos), os quais podiam ser licitamente mortos em determinadas circunstâncias.

Dir-se-ia que isso é coisa do passado; mas também isso não é correto, porque alguns países (v.g., Holanda) já admitem a eutanásia; muitos adotam a pena de morte (formais e informais); vários permitem o aborto no caso de gravidez que ponha em perigo a vida da gestante ou que resulte de estupro (embora o feto não tenha culpa alguma quanto à violência que o gerou); no Brasil lei há que autoriza a destruição de aeronaves e, portanto, a morte de seus passageiros (ainda que nem todos sejam culpáveis), suspeitas de tráfico de droga, desde que respeitado o procedimento no sentido de fazer o avião pousar conforme determinação do órgão competente.

Dir-se-á que são situações diferentes, mas ainda assim uma coisa é certa: todos esses casos dizem respeito à legitimação da morte de pessoas, inocentes inclusive, sob diferentes pretextos: políticos, jurídicos, morais, religiosos.

Dos casos inicialmente citados, pode-se também concluir que o que é conforme ou contrário ao direito depende dos interesses (especialmente políticos), das leis, dos costumes e da moral que estão em causa. Também por isso, não é exato criticar a justiça ou injustiça de um ato ou instituição (v.g., a escravidão) desconsiderando o contexto em que surgiram. Não é de admirar, por isso, que no futuro, tal como já ocorre nalguns países, se for abolida a repressão ao tráfico ilícito, drogas passem a ser vendidas livremente em drogarias e a história da sua repressão seja vista como selvageria ou algo similar.

Os exemplos citados deixam claro também que absolutamente qualquer ação pode ser considerada conforme ou contrária ao direito. Dito de outro modo: em nome do direito é possível matar, estuprar etc., ainda que eventualmente as leis digam o contrário, mesmo porque todo texto pressupõe um determinado contexto. Quanto ao estupro, bastaria lembrar que em passado recente diversos autores entendiam que mulher casada não podia ser vítima de crime praticado pelo marido em virtude dos deveres do casamento; ainda hoje a doutrina penal entende, em geral, que mulher casada pode, sim, ser vítima de estupro, “desde que tenha justa causa para se opor ao ato”. De acordo com semelhante perspectiva, muitos atos de violência contra a mulher serão considerados como não-violência, como lícitos, e, pois, conforme a lei e o direito.

Ademais, tanto os atos que a lei e o direito pretendem reprimir, como a forma como reagem a isso, são igualmente constitutivas de violência, afinal o direito, especialmente o penal, é lesão de bens jurídicos para proteção de bens jurídicos1, ou seja, é combate de violência por meio de violência. Pode ocorrer inclusive de a resposta do direito implicar violência maior do que aquela que pretende prevenir. Além disso, a pena de morte, as prisões e internação de loucos em hospitais-prisões não são outra coisa senão homicídios e seqüestros patrocinados pelo Estado. Mudam os nomes e a justificação, mas os constrangimentos são os mesmos.

Parece certo assim que qualquer conteúdo pode em tese ser direito2, mesmo porque, a rigor, o direito não está nos fatos, nem nas leis, mas na cabeça das pessoas, afinal o direito é interpretação.

Finalmente, o caráter arbitrário ou não das decisões e instituições jurídicas só pode ser corretamente avaliado tendo em conta a tradição moral, religiosa, política, histórica, econômica etc., na qual estão inseridas, porque, se a ignorarmos sem mais, a arbitrariedade residirá justamente nos nossos julgamentos.

Tudo isso parece demonstrar ainda que o direito é de fato um capítulo da anatomia política3, logo, não é a paz, mas a guerra por outros meios, motivo pelo qual não existe neutralidade quando nos posicionamos juridicamente, porque decisões jurídicas são decisões políticas, inevitavelmente.

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Notas

1 A expressão é de Franz von Liszt.

2 Tal como reconhecera Kelsen, quando, de uma perspectiva distinta, afirmava que “todo e qualquer conteúdo pode ser Direito. Não há qualquer conduta humana que, como tal, por força do seu conteúdo, esteja excluída de ser conteúdo de uma norma jurídica”. Teoria Pura do Direito. S. Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 221.

3 A expressão é de Foucault, que escreve textualmente: “a lei nasce das batalhas reais, das vitórias, dos massacres, das conquistas que têm sua data e seus heróis de horror; a lei nasce das cidades incendiadas, das terras devastadas; ela nasce com os famosos inocentes que agonizam no dia que está amanhecendo. Mas isto não quer dizer que a sociedade, a lei e o Estado sejam como que o armistício nessas guerras, ou a sanção definitiva das vitórias. A lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regulares. A guerra é que é o motor das instituições e da ordem: a paz, na menor de suas engrenagens, faz surdamente a guerra. Em outras palavras, cumpre decifrar a guerra sob a paz: a guerra é a cifra mesma da paz. Portanto, estamos em guerra uns contra os outros; uma frente de batalha perpassa a sociedade inteira, contínua e permanentemente, e é essa frente de batalha que coloca cada um de nós num campo ou no outro. Não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversários de alguém”.

Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. pp. 58-59.

 

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

PAULO QUEIROZ:  Doutor em Direito (PUC/SP), é Procurador Regional da República, Professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e autor do livro Direito Penal, parte geral, S. Paulo, Saraiva, 3ª edição, 2006.

Website: www.pauloqueiroz.net


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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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