Neurociência, moral e direito: seriedade e prudência

Atahualpa FernandezÓ e Marly Fernandez[1]Æ 

Por mais que a atividade científica seja desde há mais de um século o motor -inclusive econômico- das sociedades avançadas, por muito que resulte exemplar a dedicação dos investigadores à tarefa inacabada sempre de saber os “porquês” deste universo, em ocasiões os logros dos laboratórios têm um ponto de exploração publicitária que atrai tentações de risco por parte do mundo mediático. As notícias acerca dos descobrimentos científicos deveriam tratar-se com um rigor mais apurado, ainda que, para dizer a verdade, essa exigência é também necessária para as notícias políticas e econômicas. Se já não faz nenhuma diferença o fato de que todos dias a imprensa publique o último atropelo político do país, porque no mundo da política já enlouquecemos todos e se manejam cifras de escândalo como se se tratasse de uma troca de figurinhas em uma atividade que já não mais ultrapassa o umbral do trivial, com algo de tanta seriedade como é uma descoberta científica não se pode ir com frivolidades.

Um dos mehores exemplos do que estamos nos referindo parece ser, sem dúvida, a franca e crescente revolução das denominadas neurociências. A cada dia que passa, sucedem-se no noticiário novas tecnologias para obtenção de imagens detalhadas do cérebro em funcionamento, novas substâncias moduladoras da atividade cerebral e novas promessas de aniquilação de flagelos antigos como a depressão, a obesidade, a infelicidade , a perda de memória, etc. Todas essas promessas gritam  para nós das portadas sensacionalistas de livros, revistas, jornais, etc., todos “inspirados” nos recentes ( e constantes) resultados provenientes das investigações neurocientíficas – já há, inclusive, autores que falam de uma nova área de conhecimento: o “neurodireito”. A “neurocultura” parece estar, definitivamente, de moda.

Pois bem, para o que aqui nos interessa, a questão é saber que efeito as neurociências e as neurotecnologias em desenvolvimento têm sobre nosso sentido de natureza humana. Como caberia aplicar a ciência (particularmente a neurociência) ao direito e a moral sem tergiversar o sentido destes últimos? Até que ponto a neurociência e as novas neurotecnologias podem vir a afetar os sistemas jurídicos e éticos e a aplicação da justiça ( por exemplo, nosso senso de liberdade, crime e responsabilidade individual)?

Explicamos: a neurociência, em uma de suas vertentes, é a área de conhecimento que permite uma aproximação ao conhecimento de como se hão construído e que circuitos neuronais estão involucrados e participam na elaboração das decisões que toma o ser humano, a memória, emoção e o sentimento, e até mesmo os juízos e os pensamentos envolvidos nas condutas éticas. Trata-se de uma disciplina que  experimentou um crescimento espetacular nos últimos quinze anos. De seu modesto começo como um ramo da fisiologia, o estudo da relação cérebro/mente – também chamado de neurociência – se expandiu consideravelmente em anos recentes, agora fadado a se tornar a rainha das ciências.

O número de artigos em revistas especializadas ou destinadas ao público em geral cresceu quase exponencialmente desde inícios da passada década. E este incremento no número de estudos e o correspondente aumento dos conhecimentos sobre o cérebro e seus correlatos comportamentais não passou desapercebido. A tal ponto que, recentemente, em um artigo publicado em Nature Neuroscience  por destacados neurocientistas de vários países, se fez um chamamento acerca da importância que os conhecimentos aportados pela nova disciplina, a neuroética, tem para a sociedade, logrando atrair a atenção de um número crescente de investigadores de reconhecido prestígio e removendo os outrora apáticos cimentos das distintas disciplinas das quais emergiu ( isto é, das múltiplas interfaces entre medicina, biologia, psicologia e filosofia – para citar apenas as mais destacadas).

Seja como for , a localização dos correlatos cerebrais relacionados com o juízo moral, usando tanto técnicas de neuroimagem como por meio dos estudos sobre lesões cerebrais , parece ser, sem dúvida,  uma das grandes notícias  da  história  das  ciências sociais normativas. E na medida em que a neurociência permite um entendimento cada vez mais sofisticado do cérebro ( o órgão necessário da consciência, do pensamento, da memória e da identidade), as possíveis implicações e as novas relações provocadas por esses avanços, para além de sua extraordinária relevância científica, também carregam consigo importantes conotações filosóficas, jurídicas e morais, particularmente no que se refere à  compreensão  dos processos  cognitivos superiores relacionados com o juízo ético-jurídico, entendidos estes como estados funcionais de processos cerebrais.

Mas o atual esforço mundial realizado sobre as neurociências, potencialmente louvável, não deixou de gerar alguns problemas porque, como soe ocorrer quando uma área de trabalho e investigação altera súbita e radicalmente sua face, ao igual que um campo imantado de fascinação, acabou por provocar um pouco de desconcerto e desorientação: proliferam novos conceitos, fatos e argumentos a tal ponto que, de um lado, tornam por momentos difíceis – senão impossível – manter um panorama global, coerente e bem informado; do outro, tornam fluxos, débeis e vulneráveis os critérios de avaliação gerais que permitem julgar ditos conceitos, fatos e argumentos. O resultado de tais inconvenientes, pode ver-se, por exemplo, na desmedida produção de uma massa indigesta de fatos em todos os níveis e pelos diferentes discursos (descritivos e/ou explicativos) que estes acabam por gerar sobre a atividade mental e o cérebro.

O objetivo parece ser, em princípio,  o intento de aclarar a localização de funções cognitivas elevadas entendidas como apomorfias do Homo sapiens, ao estilo da capacidade para  a elaboração de juízos morais. Parte-se da convicção de que, para comprender essa parte esencial do universo ético e jurídico, é preciso dirigir-se para dentro do cérebro, para os substratos cerebrais responsáveis por nossos juizos morais e cuja gênese e funcionamento deverão  então ser reintegrados na história evolutiva própria de nossa espécie.

 E em que pese o fato de que as pesquisas da neurociência  acerca do juízo moral e do juízo normativo no direito e na  justiça ainda se encontram em uma fase muito precoce, sua utilidade parece ser indubitável. Com uma condição: que em um terreno tão delicado como o da investigação neurocientífica haverá de tomá-las em conta com muita prudência . Porque a ciência , que seguramente servirá para garantir mais conhecimento sobre a natureza humana, não poderá garantir,  por si mesma, valores morais como podem ser um maior respeito à vida , à igualdade , à liberdade e à dignidade humanas.

O desenho do cérebro que está aparecendo graças aos estudos da engenharia cerebral aponta já algumas pistas dignas de menção. Em primeiro lugar, a confirmação daquelas hipótesis lançadas por Crick e Koch  acerca da consciência como uma atividade sincronizada de neurônios que se encontram situados em lugares distintos do córtex cerebral, coisa que acaba por colocar em cheque algumas das ideáis mais firmes do funcionalismo computacional e da concepção estrita do suposto da modularidade dos processos cognitivos (Fodor), como por exemplo: o de um processador central e um progresso bottom-up da percepção até chegar aos processos superiores. Por outro lado, a caracterização neurológica da moral sim que parece compatível com uma psicologia evolucionista que entenda que uns mesmos processos cognitivos intenvenham em diferentes tarefas ou para resolver diferentes problemas (Shapiro e Epstein).

 Com relação ao Direito, a investigação neurocientífica sobre a cognição moral e jurídica poderá vir, de certa forma, revolucionar nosso entendimento acerca da natureza do pensamento e da conduta humana, com consequências profundas que podem vir a afetar o domínio próprio da “racionalidade” jurídica. Da mesma forma, os avanços neurocientíficos podem vir a ter um destacado papel no âmbito (ontológico e metodológico) do fenômeno jurídico. Em primeiro lugar, em um sentido direto e explícito, algumas técnicas podem constituir-se em elementos de prova, enquanto outras técnicas ou neurofármacos podem vir a ser usadas como medidas associadas à pena ou à reabilitação dos transgressores. Em segundo lugar, e de um modo mais difuso mas também mais profundo, os novos conhecimentos podem influir nas intuições morais da sociedade assim como nas obrigações percebidas. O grau em que isso seja possível e o calibre das resistências que encontrará é algo cuja resposta nos chegará quiçá antes do que podemos prever.

 Mas resulta precipitado pensar que as primeiras investigações neurocientíficas acerca do juízo moral  já nos abrem a porta a uma humanidade melhor. Acreditamos que isso seria simplificar as coisas ao extremo. Assim como o criacionismo ingênuo pode condenar aos humanos a uma minoria de idade permanente, assim também um modelo neurocientífico incompleto pode levar-nos a conceber ilusões impróprias. Porque não é definitivamente certo que um maior e melhor conhecimento dos condicionantes neuronais dos humanos nos proporcione automaticamente uma vida humana mais digna. Oxalá fossem as coisas tão simples!

Pensar que a relação cérebro/moral/direito é tudo pode levar-nos a olvidar que a medida do Direito, a própria idéia e essência do Direito, é o humano, cuja natureza resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural.

O mistério dos humanos consiste precisamente em advertir que cada um é um mistério para si mesmo. A neurociência nos ajudará a entender uma série de elementos que configuram o mistério, mas não o eliminará de todo. A mente humana se desenvolve baixo contínuas influências que interatuam desde o exterior e desde o interior. De fato, ainda resulta muito difícil especificar relações diretas entre os descobrimentos das neurociências (ou os elementos do genoma) e os diferentes aspectos da mente . E o intento de fazê-lo pode vir a conformar um caminho desviado e inútil para a compreensão  da mente humana. (Dupré).

Ainda assim, dando por sentado que o mistério permanecerá sempre, a ciência talvez possa levar-nos a entender melhor que a compreensão da conduta humana pode considerar-se, antes de tudo, como a arqueologia dessas estruturas e correlatos cerebrais relacionados com o processamento das informações morais e ético-jurídicas, em forma de uma explicação científica da mente , do cérebro e da natureza humana, isto é, em forma de uma explicação de  como são os seres humanos, considerados sob uma ótica muito mais empírica e respeitosa com os métodos científicos.

Poderá, inclusive, ajudar-nos a compreender que a moral e o direito se formulam precisamente a partir de uma posição antropológica e põe em jogo uma fenomenologia do atuar humano; que somente situando-se desde o ponto de vista do ser humano e de sua natureza será possível  representar o sentido e a função da moral e do direito como unidades de um contexto vital, ético e cultural. Esse contexto estabelece que os seres humanos  vivem das representações e significados desenhados para a cooperação, o diálogo e a argumentação e que são processados em suas estruturas cerebrais . Que, em seu "existir com" e situado em um determinado horizonte histórico-existencial, os membros da humanidade reclamam continuamente aos outros, cuja alteridade interioriza, que justifiquem suas eleições aportando as razões que as subjacem e as motivam.

Estamos longe ainda de contar com um mapa preciso das ativações espaço-temporais relacionadas com os processos cognitivos, mas parece que vamos trilhando  um bom caminho para começar a fazê-lo e a compreendê-lo. Já sabemos, por exemplo, que na tarefa de realização de juízos morais (assim como de juízos normativos no direito e na justiça) é essencial a conexão fronto-límbica (p.e., Damasio, Adolphs et al., Greene et al., Moll et al., Goodenough e Prehn, Hauser). Sabemos que a percepção estética implica a ativação do córtex préfrontal esquerdo (Cela-Conde et al.). Sabemos como se realiza o processamento das cores a partir dos centros visuais primários do córtex ocipital (p.e., Zeki e Marini, Bartels e Zeki), assim como a ativação neuronal relacionada com a identificação de objetos percebidos mediante a visão (Heekeren, Marrett, Bandettini e Ungerleider). Em termos gerais vai aparecendo um panorama em que o córtex préfrontal joga um papel de primera ordem respeito do que são os processos cognitivos superiores, coisa que, por outra parte, havia sido já sugerida, ainda que fosse a título de hipóteses especulativa, pelos paleoantropólogos (Deacon).

O ardente antidarwinismo nas ciências  sociais e humanas  tem, tradicionalmente, temido que uma abordagem evolutiva acabe por afogar seus imaculados modos de pensar – junto com seus heróicos autores, inventores, filósofos, juristas e outros defensores e amantes de idéias. Eles tendem a declarar, com convicção desesperada, mas sem provas ou argumentos, que a cultura e a sociedade humanas só podem ser interpretadas, e nunca explicadas por meios causais, usando métodos e pressuposições que são completamente incomparáveis com os ou  intraduzíveis nos métodos e pressuposições das ciências naturais: “o abismo é intransponível”, afirmam.

Sem embargo, hoje já sabemos que a evolução cultural e a evolução genética estão interligadas. Todos os seres humanos são produtos da co-evolução de um grupo de genes ( que é quase idêntico em todas as culturas) e um grupo de elementos culturais (que é diferente nas várias culturas, mas assim mesmo limitado pelas capacidades e predisposições da mente humana). Dessa maneira, os genes e as culturas co-evoluíram ; estes são afetados mutuamente e nenhum processo pode ser estudado isolado para os seres humanos: somos objetos físicos (corpo e cérebro) dos quais as mentes emergem  e, de algum modo, de nossas mentes  se formam as sociedades e as culturas. Dito de outro modo, o ser humano, em cérebro e mente, é claramente o resultado de um processo evolutivo.

E nossa natureza, em toda sua plenitude, surje dessa contínua e recíproca interação :  cérebro, corpo e mundo. Como demonstram os resultados das investigações neurocientíficas, quando miramos dentro do cérebro vemos que nossas ações derivam de nossas percepções e nossas percepções (assim como nossa consciência) são um produto ou são construídas pela atividade do cérebro. Essa atividade, por sua vez, é ditada por uma estrutura neuronal  formada pela interação de nossos genes com o entorno. Não há nenhum rastro de uma antena cartesiana que sintonize com outro mundo, não há nenhum fantasma em nosso solo, não há monstros nas profundidades, não há terras regidas por dragões. O que os viajantes da mente estão descobrindo é um sistema biológico de assombrosa complexidade. Já não temos mais a necessidade de satisfazer nossa ânsia de assombro conjurando fantasmas: o mundo que há dentro de nossas cabeças é mais maravilhoso (e misterioso) que qualquer coisa que possamos inventar em sonhos (Carter).

Daí que  para  entender-nos  completamente temos que tomar em consideração o físico, o psicológico e o sociocultural, a partir de uma perspectiva evolutiva. O abismo é uma ficção da imaginação temerosa. Poderemos nos perceber melhor como campeões de idéias, elaboradores de normas de conduta  e defensores de valores se primeiro examinarmos como chegamos a ocupar esse lugar especial.

Sem olvidarmos, claro está, de outros aspectos distintivos da natureza do comportamento humano à hora de decidir sobre o sentido da justiça concreta e a existência de universais morais determinados pela natureza biológica de nossa arquitetura cognitiva (neuronal). Afinal é o cérebro que nos permite dispor de um sentido moral, o que nos proporciona as habilidades necessárias para atuar e viver em sociedade, para tomar decisões e solucionar determinados conflitos sociais, e o que serve de base para as discussões e reflexões filosóficas mais sofisticadas sobre direitos, deveres, justiça e moralidade.

Mas o trato mediático de tudo isso requer , acima de tudo, seriedade e prudência.



REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Atahualpa FernandezÓPós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular da  Unama/PA;Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

Marly Fernandez[1]Æ:  Doutoranda em Filosofía (Cognición y Evolución Humana)/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha ;Research Scholar  da Universitat de les Illes Balears/ UIB-Espanha (Etología, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana).

Æ Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2006; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez: Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, 2007.

 

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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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