Ligeiras observações sobre a im(p)unidade penal nos crimes contra o patrimônio

*Claudio da Silva Leiria

“Na história da sociedade há um ponto de fadiga e enfraquecimento doentios em que ela até toma partido pelo que a prejudica, pelo criminoso, e o faz a sério e honestamente” (F. Nietsche, Para além do bem e do mal).

Resumo: No presente artigo, defende-se que as imunidades previstas no artigo 181 do Código Penal não são absolutas, mas dependem de representação, sob pena de entendimento contrário ferir o princípio da igualdade de todos perante a lei e os direitos fundamentais à propriedade e segurança.   

Sumário:  1. Introdução. 2. Da necessidade de uma nova interpretação do artigo 181 do Código Penal. 2.1 Colisão de direitos fundamentais. 2.2 Do direito fundamental à segurança e à propriedade. 2.3 Lei Maria da Penha e imunidades penais 3. A objeção ideológica.  4. Breves conclusões. 5. Abstract. 6. Referências.

Palavras-chaves: Crimes patrimoniais. Imunidades. Segurança. Propriedade. Ação.

 


 

 

1. INTRODUÇÃO 

Prescreve o artigo 181 do Código Penal que é isento de pena quem comete delitos contra o patrimônio em prejuízo do cônjuge, na constância da sociedade conjugal (inciso I) e de ascendentes ou descendentes, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, civil ou natural (inciso II).

 Já nos incisos I, II e III do artigo 182 do Diploma Repressivo é previsto que somente se procede mediante representação se os crimes contra o patrimônio  forem praticados em detrimento de cônjuge desquitado ou judicialmente separado; de irmão, legítimo e ilegítimo;  de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.

 Não se aplica o disposto nos dois artigos acima citados se o crime é de roubo ou extorsão, ou, em geral, quando haja o emprego de grave ameaça ou violência à pessoa; ao estranho que participa do crime; se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 anos, conforme dispõe os incisos I, II e III do artigo 183 do Código Penal.  

 No presente artigo, pretende-se demonstrar que a norma veiculada no artigo 181, inciso I, do Código Penal deve ser relativizada,  pois, dentre outros motivos,  sua ‘interpretação tradicional’ (literal) fere o princípio constitucional da isonomia, além de servir de fomento à impunidade.

 2. Da necessidade de nova interpretação do artigo 181 do Código Penal.

 Refere NUCCI que ‘imunidade é um privilégio de natureza pessoal, desfrutado por alguém em razão do cargo ou da função exercida, bem como por conta de alguma condição ou circunstância de caráter pessoal.  No âmbito penal, trata-se (art. 181) de uma escusa absolutória, condição negativa de punibilidade ou causa pessoal de exclusão da pena.  Assim, por razões de política criminal, levando em conta motivos de ordem utilitária e baseando-se nas circunstâncias de existirem laços familiares ou afetivos entre os envolvidos, o legislador houve por bem afastar a punibilidade de determinadas pessoas”[1].

 O citado autor prossegue afirmando que ‘Ensina Nélson Hungria que a razão dessa imunidade nasceu, no direito romano, fundado na co-propriedade familiar.  Posteriormente, vieram outros argumentos: a) evitar a cizânia entre os membros da família; b) proteger a intimidade familiar; c) não dar cabo do prestígio auferido pela família.  Um furto, por exemplo, ocorrido no seio familiar deve ser absorvido pelos próprios cônjuges ou parentes, afastando-se escândalos lesivos à sua honorabilidade (Comentários ao Código Penal, v. 7, p. 324).

 No entanto, o legislador não poderia, pura e simplesmente, face ao princípio de que todos são iguais perante à lei, blindar contra a ação persecutória do Estado o agente que pratica crimes patrimoniais em prejuízo de seus ascendentes, descendentes e cônjuges. 

 Está-se, vez mais, diante do problema de colisão de direitos fundamentais.  De um lado, o direito fundamental à segurança e à propriedade de que a vítima é titular; de outro, o direito do réu a uma imunidade penal, qual seja, não ver-se processado pelo Estado por uma conduta ilícita.

 2.1 Colisão de direitos fundamentais

 É pacífico na doutrina e na jurisprudência que os direitos fundamentais não são intocáveis e absolutos.  Como o homem vive em sociedade, estando em contato permanente com seu semelhante – que também goza de direitos e garantias -, natural que surjam situações de conflitos e choques entre esses direitos.

 Tem-se colisão ou conflito de direitos sempre que a Constituição proteja, ao mesmo tempo, dois valores ou bens que estejam em contradição em um caso concreto.

 Conforme CANOTILHO, uma colisão autêntica de direito fundamentais ocorre quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular.

 E no âmbito penal, não se pode ter visão monocular do Direito.  Os interesses da sociedade também devem ser tutelados.  Importante relembrar a lição do Supremo Tribunal Federal: “A lei deve ser interpretada não somente à vista dos legítimos interesses do réu, mas dos altos interesses da sociedade, baseados na tranqüilidade e segurança social[2]”.

 O princípio da proporcionalidade tem dupla face: se de um lado há a proibição de excesso, para conter o arbítrio do Estado, de outro existe a proibição da proteção deficiente aos que têm seus direitos fundamentais violados.

 2.2  Do direito fundamental à segurança e à propriedade

 Toda pessoa que se encontre no território do país tem direito à segurança e à propriedade, cabendo ao poder público promover este direito, garantindo à população o direito de ir e vir, de se estabelecer com tranqüilidade, de ter sua intimidade preservada, sem que seu patrimônio, integridade física, moral ou psicológica sejam colocados em risco.

 A Declaração Universal dos Direitos do Homem, datada de 1948, no seu artigo 3, prescreve que “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”  No art. 8 há a previsão de que todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhes sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.  E, por fim, prescreve o artigo 17, itens 1e 2,  da referida Declaração:

 “I – Todo homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.

“II – Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.”

 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (o famoso ‘Pacto de São José da Costa Rica’), no seu artigo 7º assegura que ‘toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais’.

 A Constituição Brasileira garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade – art. 5º, ‘caput’. 

 É absolutamente necessário que os operadores do Direito passem a enxergar que não somente o indivíduo tem direitos, mas que a coletividade pacata e ordeira precisa de ordem e segurança para  levar em paz sua vida.  O contrato social precisa ser protegido.  O Estado tem sua razão maior de ser na proteção do todo, e não somente da da parte.  Invoca-se ensinamento de SAMPAIO DÓRIA (grifos não constantes do original): 

“Em verdade, o Estado, que o homem organiza, se destina ao bem do homem, e não à sua desgraça.  Ninguém constrói, por exemplo, uma estrada de ferro para ser esmagado por um desastre.  Nem mesmo para servi-la.  Mas para se servir dela.  Da mesma forma, não é para ser anulado que o homem organiza o Estado.  As sociedades se formam em função dos indivíduos, e para eles.  E, nas sociedades, a organização política, ou Estado, surge, mas é para garantir, igualmente, a cada um a liberdade, isto é, fazer, ou deixar de fazer, o que generalizado, não destrua, nem prejudique a vida social.  Nunca para suprimir aos homens a dignidade da existência”[3].   

A solução que se alvitra para o conflito de direitos fundamentais é fazer interpretação condicionando à representação as situações previstas nos incisos do art. 181 do Código Penal. 

Muitos são os motivos pelos quais se deve considerar condicionada à representação a ação penal nos crimes contra o patrimônio em que são vítimas as pessoas referidas no artigo 181 do Código Penal.  

Em primeiro lugar, face ao princípio da igualdade, o patrimônio dessas vítimas não é menos digno de proteção do que o das demais pessoas.   

A Constituição brasileira, no ‘caput’ do art. 5º, prescreve que todos são iguais perante a lei, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade. 

A interpretação literal do art. 181 do CP gera teratóide: cidadãos de segunda classe, cujo patrimônio não teria a proteção penal.  E lembre-se que o patrimônio é protegido pela Constituição e pelo Pacto de São José da Costa Rica.

 A igualdade perante a lei penal exige que a mesma lei penal, com as sanções correspondentes,  seja aplicada a todos quantos pratiquem o fato típico nela descrito.

 Ao tratar sobre o tema ‘inconstitucionalidade’, JOSÉ AFONSO DA SILVA ensina que  “A outra forma de inconstitucionalidade revela-se em se impor obrigação, dever, ônus, sanção ou qualquer sacrifício a pessoas ou grupos de pessoas, discriminando-as em face de outros na mesma situação que, assim, permanecem em condições mais favoráveis.  O ato é inconstitucional por fazer discriminação não autorizada entre pessoas em situação de igualdade[4]”.

 Se a Constituição Federal de um lado impõe limites ao legislador ordinário na escolha dos bens jurídicos a serem tutelados pelo direito penal, de outro impõe a obrigação de incriminar a ofensa de certos bens jurídicos e determina a exclusão de certos benefícios.

 Ao dispor que ‘a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais’ (art. 5º, inciso XLI), a Constituição está protegendo a propriedade (direito fundamental), e via de conseqüência, impedindo que de forma absoluta o legislador penal prescreva imunidades no que diz respeito aos crime contra o patrimônio praticados pelas pessoas referidas no artigo 181 do Código Penal.   Configura-se um direito constitucional a não ser discriminado em função dos direitos fundamentais.

 Não pode o legislador infraconstitucional simplesmente negar proteção penal a bens jurídicos de primazia e fundamentalidade, como a propriedade, face a ataques repulsivos, como os delitos de furto, estelionato, apropriação indébita, abuso de incapazes, etc.

 Na esteira do ensinamento de LUCIANO FELDENS, “Passamos a perceber, pois, uma situação de intrínseca conexão entre o dever de prestação normativa em matéria penal e o tema da prospecção objetiva dos direitos fundamentais, haja vista a exigência que se impõe ao Estado de protegê-los….Por essa razão, e tal como reconhecido por penalistas de primeira grandeza, a problematização em torno dos mandados constitucionais de criminalização deve partir de bases normativo-constitucionalistas[5].”  

 Em segundo, a meta optata do artigo 181 do Código Penal é acobertar a intimidade familiar, protegê-la de escândalos perante terceiros.   No entanto, há outras formas de se fazer isso e ainda assim dar proteção ao patrimônio das vítimas.

 Isso poderia ser facilmente obtido determinando-se o segredo de justiça para o inquérito policial ou processo judicial criminal envolvendo as partes elencadas no art. 181 do CP.  Preservada ficaria a honorabilidade da família (enquanto instituição) e de seus membros (no particular).

 Em terceiro, em muitas situações, a vítima não tem qualquer sentimento de amor ou afeto pelo agente que lhe causou um desfalque patrimonial.  Nem é preciso mencionar  que são inúmeros os casamentos ‘de ‘fachada’, em que os cônjuges não nutrem o menor sentimento de amor um pelo outro, ou de pais que até odeiam seus filhos. 

 Nesses casos, que motivo racional haveria para tornar os autores dos ilícitos imunes a uma persecução penal? 

 Frise-se ainda que a família modificou-se radicalmente.  Novos padrões de comportamento são adotados.  Na década de 40, quando o Código Penal entrou em vigor, o Brasil ainda era uma sociedade agrária e patriarcal.  A religião, especialmente a católica, era de enorme influência.  Os sentimentos de unidade e de honra de uma família eram bem mais acentuados do que nos tempos atuais.   A matriarca apenas cuidava dos filhos e dos afazeres domésticos. O dinheiro da família era guardado em cofres ou debaixo do colchão. O divórcio sequer existia.

 Importante destacar que na seara infracional, o Tribunal de Justiça de São Paulo improveu recurso de adolescente contra a sentença que lhe aplicou a medida socioeducativa de internação porque subtraiu vários objetos de seus pais com o intuito de comprar substâncias entorpecentes.  No julgamento, os Desembargadores entenderam que os atos infracionais praticados  foram mais danosos ao grupo familiar do que a preservação da instituição familiar.

 Em quarto, como conseqüência do ponto anterior, mencione-se que a vítima pode ter interesse em futura ação indenizatória, na esteira do que dispõe o art. 63 do CPP[6], para o que será de enorme utilidade o trânsito em julgado de uma sentença condenatória na órbita criminal.

 Em quinto, a imunidade prevista no artigo 181 do CP quebra a coerência interna do sistema jurídico.  Ora, um crime no seio familiar seria sempre grave, independentemente do bem jurídico afetado.  Então, qual a lógica de permitir a imunidade para os crimes patrimoniais quando ela não se aplica a delitos que afetam outros bens jurídicos?  Por que conceder imunidade para delitos com maior quantitativo de pena e negá-la para delitos menos graves?

 É de bom alvitre salientar que o Código Penal capitula como agravante o crime cometido contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge, nos termos do seu artigo 61, inciso II, ‘e’.  E assim sendo, os delitos não-patrimoniais cometidos contra as pessoas referidas no art. 181 do CP também não prejudicariam o ‘bom nome da família?  Não semeariam a cizânia?

 Não se pode olvidar, também, que a imunidade penal prevista no artigo 181 do CP é fator criminógeno, pois sabendo que não poderá haver a persecução penal pelo Estado, o indivíduo não se intimidará em realizar a conduta ilícita.  

 Para a pobre vítima, restaria apenas uma ação indenizatória contra o agente.  Mas qualquer um que tenha os pés na realidade sabe a crise que atravessa a execução: muitos bens não são penhoráveis, o agente via de regra não terá bens para pagar o devido, o escamoteamento de bens é de fácil realização (venda do bem, colocação do bem em nome de terceiros, ocultamento de bens, etc).

 Deve-se, sempre, portanto, deixar ao crivo do familiar ou cônjuge lesado a decisão de possibilitar a deflagração da ação penal.   É a única forma de manter-se o equilíbrio entre os direitos da vítima e do acusado.

 O Parlamento parece estar atento para a questão. Visando corrigir a absurda situação consagrada pelo art. 181 do Código Penal, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n.º 3.764/2004, de autoria do Deputado Coronel Alves, prevendo a revogação desse artigo e dando nova redação ao artigo 182, nos seguintes termos: 

Art. 1º. Esta lei revoga o art. 181 e dá nova redação ao art. 182 do Código Penal Brasileiro.

“Art. 2º.  Fica revogado o artigo 181 do Decreto-lei n.º 2848, de 7 de dezembro de 1940.

“Art. 3º.  O art. 182 do Decreto-lei 2848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 182…………………………………………………………..

I –  do cônjuge, na constância da sociedade conjugal ou judicialmente separado;

II – de ascendente, descendente e colateral até o 3º grau.

Na justificativa do Projeto de lei, o parlamentar argumenta:

 Para melhor adequar o texto à realidade brasileira e não beneficiar o parente que praticou a infração contra a própria família, entendemos que a melhor hipótese seria a revogação do art. 181, pois traz a isenção de pena, quando o mais correto deve ser a representação, deixando para a família a decisão da responsabilidade penal ou não.

“Assim, este projeto visa aperfeiçoar o texto e ampliar a ação familiar na correção dos atos delituosos, dentro do espírito das penas alternativas.” 

2.3. LEI MARIA DA PENHA E IMUNIDADES PENAIS 

Com o advento da Lei Maria da Penha, tende a se formar um consenso doutrinário de que as imunidades penais entre cônjuges e parentes não teriam mais aplicabilidade quando se tratar de violência patrimonial contra a mulher, nos termos do artigo 5º, incisos I a III, c/c o artigo 7º, inciso IV, da Lei n.º 11.340/06)[7]. 

Nesse diapasão é o entendimento da douta Desembargadora gaúcha Maria Berenice Dias, verbis: 

"A partir da vigência da Lei Maria da Penha, o varão que ‘subtrair’ objetos da sua mulher pratica violência patrimonial (art. 7º., IV). Diante da nova definição de violência doméstica, que compreende a violência patrimonial, quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar, não se aplicam as imunidades absoluta ou relativa dos arts. 181 e 182 do Código Penal. Não mais chancelando o furto nas relações afetivas, cabe o processo e a condenação, sujeitando-se o réu ao agravamento da pena (CP, art. 61, II, f)"[8] 

A interpretação acima é a única que se afina com o espírito da lei de garantir a proteção à mulher.  Entender que as imunidades do artigo 181 do Código Penal prevalecem sobre o disposto no artigo 7º, inciso IV, da Lei Maria da Penha, seria tornar o último dispositivo mero ornamento legal e propiciar a continuidade das subtrações patrimoniais contra a mulher nas esferas familiar e residencial.

No mínimo, há de se entender pela derrogação dos artigos 181 e 182 do Código Penal face ao disposto no artigo 2º, 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil – a lei posterior revoga a anterior quando com ela incompatível.   

3. A OBJEÇÃO IDEOLÓGICA 

Com certeza, as posições externadas no presente artigo atrairão os protestos dos autodesignados ‘penalistas modernos’, que, escandalizados, focarão suas críticas no fato de que direitos dos acusados, expressos legislativamente, não poderiam ser suprimidos na ‘via interpretativa’. 

Na dogmática ‘garantista’, o Direito Penal existe tão-somente para a proteção daquele que seus adeptos denominam ‘o mais débil’ (o acusado) diante do Leviatã (O Estado).   

Nessa visão estreita e unilateral do fenômeno jurídico, o Direito Penal tem como única finalidade   proteger o acusado da fúria punitiva do Estado.  

Só não percebeu o ‘garantista’, ‘neto retardatário do Iluminismo’, que na realidade brasileira o débil na relação penal é o Estado (depauperado, sem condições de equipar sua polícia e o Poder Judiciário, ou dar vida digna aos seus cidadãos), enquanto o Leviatã é o criminoso, cada vez mais ousado, organizado e bem armado.   Isso é mais uma prova do equívoco que é transplantar-se doutrinas alienígenas para aplicação em solo pátrio, sem qualquer observância das realidades locais. 

Na linha de pensamento ‘garantista’, conforme as necessidades de proteção do ‘mais débil’, ora a legalidade se flexibiliza (concedendo-se direitos sem previsão legal), ora torna-se uma muralha intransponível (restringindo-se interpretações desfavoráveis ao acusado).

 Essa cegueira ideológica, no entanto, não se harmoniza com a Constituição brasileira, que deve ser a bússola na interpretação do Direito.    Pode-se dizer que se extrai do sistema constitucional o mandamento de criminalizar os delitos patrimoniais praticados pelos agentes elencados no artigo 181 do Código Penal. 

 O ‘garantista’ constrói sobre areia movediça, ao interpretar o Código Penal e a Constituição com olho de Polifemo: ‘só o delinqüente tem direitos’.

 Ora, análise ponderada da Constituição revela, como não poderia deixar de ser, que ela faz o justo equilíbrio entre a proteção dos direitos individuais do acusado e a defesa da sociedade (individual x coletivo).  Pode-se dizer com todas as letras que a Constituição Federal não acolheu o comando normativo estampado no artigo 181 do CP.

 A não ser assim, o Direito Penal chancelaria situações teratológicas e afrontosas aos mais elementares sentimentos de justiça, como, por exemplo, não punir o agente que lesa patrimonialmente a mãe com 59 anos de idade, cega e analfabeta; ou então, isentar de pena o agente relacionado no art. 181 do CP pela prática do grave delito de abuso de incapaz débil mental.

 Como já referido neste texto, se de um lado o Estado não pode usar de arbítrio contra o cidadão, excedendo-se no rigor punitivo (proibição de excesso), também não pode pecar pela proteção deficiente à coletividade na seara penal.

 E é justamente a tarefa do aplicador do direito encontrar o ponto de equilíbrio entre direitos do acusado e os direitos da sociedade, não permitindo o aniquilamento de uma espécie por outra.   Não existem ‘modelos’ de interpretação pré-definidos, sujeitando-se o intérprete, também, às variáveis sociais. 

 No Brasil, infelizmente, os operadores do Direito que se intitulam ‘garantistas’ (termo que usurparam) cingem-se a criar doutrinas pró-delinqüentes, esquecendo que as vítimas também têm direitos, o que faz relembrar as agudas palavras de VOLNEY CORRÊA JÙNIOR[9] 

“Todos os séculos registram surtos espasmódicos de contracultura e anticivilização.  Neste fim de século, a revivescência cínica em voga é a bandidolatria.  Cegos à dramática situação da população atormentada por assaltantes e surdos aos gemidos das vítimas, insensatos há que se propõem a identificar no ladrão-assaltante uma auréola robin-hoodiana: ele, a seu modo e em última instância, estaria a promover redistribuição de renda…Seria cômico, se não fosse trágico. 

“Humanismo sadio é o que se volta para o trabalhador pacato: para a faxineira e para a lavadeira (que não delinqüem); para o balconista e para o ascensorista (que não delinqüem); para o metroviário e para o bancário (que não delinqüem); para o rurícola, cujo único crime é suplicar um pedaço de terra; para o funileiro, o carpinteiro, o operário em construção (que não delinqüem); para todos quantos se vêem submetidos a formas espoliativas de trabalho, abrigam-se em sub-habitações, alimentam-se precariamente, vestem-se mal, afligem-se em corredores de hospitais deficientes (e não delinqüem, não delinqüem, não delinqüem, porque mansos de espírito, puros, dotados de boa índole). 

“Falso e hipócrita humanismo é o que prodigaliza benesses aos que estupram, seqüestram, matam e roubam.”

 

4. BREVES CONCLUSÕES 

1. A imunidade prevista no artigo 181 do Código Penal, tal como posta, é inconstitucional, pois: a) fere o princípio da igualdade, já que o patrimônio da vítima naquelas hipóteses é tão digno de proteção quanto o de qualquer cidadão; b) a proteção à intimidade familiar, buscada pelo instituto, pode ser alcançada por outros meios, tal como a decretação de sigilo no procedimento investigatório; c) muitas vezes não há vínculos afetivos a proteger entre autor e vítima; d) a vítima pode ter interesse na condenação do culpado para exercer a ação ex delicto;  e) há uma quebra de coerência interna do sistema penal, já que a imunidade não é aplicada para outros delitos cometidos pelos agentes relacionados no art. 181 do CP, inclusive para os com menor quantitativo de pena.  

2. Ainda, a imunidade positivada no artigo 181 do Código Penal estimula a impunidade, pois sabendo de antemão que não poderá ser perseguido penalmente, o simples temor de sofrer uma ação indenizatória, de difícil execução posterior, não intimidará o agente. 

3. Contra as pessoas elencadas no artigo 181 do CP pode haver a deflagração de ação penal, mas condicionada à representação da vítima. 

4. A Lei 11.340/06 (“Maria da Penha”) derrogou tacitamente o artigo 181 do Código Penal, fazendo com que as imunidades penais entre cônjuges e parentes não tenham mais aplicabilidade quando se tratar de violência patrimonial contra a mulher (artigo 5º, incisos I a III, c/c o artigo 7º, inciso IV).

5.  O Direito Penal não pode ser visto somente sob a ótica dos direitos do acusado (visão monocular), devendo a interpretação da lei levar em consideração os interesses da vítima, pois o princípio da proporcionalidade é uma via dupla: de um lado, contém o arbítrio do Estado, de outro proíbe proteção deficiente ao lesado em seus direitos fundamentais. 

5. ABSTRACT

                   In the present article, it is defended that the immunities foreseen in article 181 of the Criminal Code are not absolute, but depend on representation, duly warned contrary agreement to wound the principle of the equality of all before the basic law and rights to the property and security.

 Keywords: Larcenies. Immunities. Security. Property. Action.

6. REFERÊNCIAS

DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. Editora RT, 2007.

DÓRIA, A. Sampaio. Direito Constitucional, 5ª edição, vol. I, Tomo I, São Paulo:  Max Limonad, 1962.

FELDENS, Luciano. A Constituição Penal – A dupla face da proporcionalidade no controle das leis penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005.

JÚNIOR, Volney Corrêa Leite de Moraes. Crime e Castigo – Reflexões Politicamente Incorretas. Campinas: Millennium Editora, 2002.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 5ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores. 



NOTAS

[1] Código Penal Comentado, 5ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, P. 731. 

[2] RHC 63.673-0-SP, DJU 20.06.1986, p. 10.929.

[3] DÓRIA, A. Sampaio. Direito Constitucional, 5ª edição, vol. I, Tomo I, São Paulo:  Max Limonad, 1962, p. 244.

[4] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, p. 208. 

[5] A Constituição Penal – A dupla face da proporcionalidade no controle das leis penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 73. 

[6] Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.

[7] Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

(…)

Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I , II, III – (omissis)

IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

[8] A Lei Maria da Penha na justiça, RT, pp. 88-89.

[9] Crime e Castigo – Reflexões Politicamente Incorretas. Campinas: Millennium Editora, 2002, p. 90.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

CLÁUDIO DA SILVA LEIRIA:    Promotor de Justiça no RS

Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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