Juiz não pode ordenar, de ofício, que a parte prove que necessita dos benefícios da assistência judiciária

* Francisco Demontiê Gonçalves Macêdo

           Está se tornando prática comum os juízes determinarem à parte requerente dos benefícios da assistência judiciária gratuita que comprove não possuir condições de pagar as custas processuais, sem prejuízo próprio ou de sua família.

            Sucede que tal determinação é manifestamente inconstitucional, ilegal e abusiva, pois contraria frontalmente: 1) toda a doutrina relativa à Separação dos Poderes, à qual a Constituição da República Federativa do Brasil é adepta (art. 2º); 2) o princípio da legalidade (art. 5º, da Constituição); 3) o princípio da presunção de constitucionalidade das leis; 4) o princípio de que, no julgamento da lide, cabe ao juiz aplicar as normas legais (art. 126 do CPC); e 5) o regramento legal da assistência judiciária previsto na Lei 1.060/50, consoante se passa a demonstrar.

            A Separação dos Poderes constitui um dos cânones mais eficazes do Estado liberal, coroado na afirmação inscrita no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, de que "qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição".

            Embora discutida a prioridade de Montesquieu na sua formulação, é fácil descobrir a importância da Separação dos Poderes [01] nessa breve síntese do pensador: "Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o Poder Legislativo, o Poder Executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o Executivo das que dependem do direito civil. Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos este último o poder de julgar e, o outro, simplesmente, o Poder Executivo do Estado. A liberdade política num cidadão é esta tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada um possui de sua segurança: e, para que se tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo, que um cidadão não possa temer outro cidadão. Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o Poder Legislativo está reunido ao Poder Executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo Senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tranqüilamente. Se estivesse ligado ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos".

            Em resumo: pela doutrina constitucional da Separação dos Poderes não é dado aos juízes julgar e legislar ou mesmo tempo.

            O princípio da legalidade, por seu turno, tem como objetivo limitar o poder do Estado impedindo sua utilização de forma arbitrária. Em um Estado Democrático de Direito, como o nosso, a lei desempenha função singular, visto que só ela pode impor ao indivíduo o fazer ou deixar de fazer alguma coisa (art. 5º, II, da Constituição). Enfim, somente as espécies normativas primárias integrantes do ordenamento jurídico dispõem do poder de impor obrigações, de exigir condutas positivas e negativas e de estabelecer restrições a direitos dos indivíduos.

            Assim, se somente a lei pode impor ao indivíduo o fazer ou deixar de fazer alguma coisa, com muito mais forte razão os órgãos e entidades do Estado, inclusive os juízes, têm de pautar todas as suas condutas pelo disposto na lei, sob pena de desrespeito ao postulado da legalidade, alicerce maior de um Estado de Direito.

            A submissão de todos (indivíduos e, principalmente, o Estado, que só pode fazer o que a lei permite) ao comando da lei é uma decorrência lógica dos princípios democrático e republicano adotados pela Constituição, que, entre outras características, outorgam ao povo o poder de criar as regras jurídicas do Estado.

            Da conjugação desses dois postulados tem-se que todo o poder do Estado emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de seus representantes eleitos (CF, art. 1º, par. ún.).

            Por esse motivo – elaboração normativa segundo a vontade popular – as leis editadas pelo Poder Legislativo são protegidas pelo princípio da presunção de constitucionalidade das leis.

            Como decorrência desse princípio, as leis estatais devem ser consideradas constitucionais, válidas, legítimas até que venham a ser formalmente declarados inconstitucionais por um órgão competente para tanto. Enquanto não formalmente reconhecidas como inconstitucionais ou revogadas, deverão ser cumpridas.

            4) No dizer daquele que é um dos maiores, senão o maior processualista brasileiro, Cândido Rangel Dinamarco [02]: "O Estado deposita no juiz, seu agente, os poderes que legitimam a realização desses atos. Mas o juiz não exerce só poderes, como também deveres".

            Entre os deveres judiciais diretamente ligados à concessão de tutela jurisdicional, está a obrigatoriedade de julgamento (art. 126 do CPC). Ocorre que o poder-dever de julgar, de que o juiz é investido, segundo o referido mestre, sujeita-se à limitação consistente na necessária observância à lei (art. 126 e 127 do CPC), sendo certo que julgar segundo a lei significa dar aos julgamentos o teor que resulte da ordem jurídica material como um todo, a saber, das normas contidas no direito positivo de todos os níveis e espécies (Constituições, leis primárias, leis secundárias etc.).

            Conclui o insigne doutrinador: "Fora das hipóteses de expressa autorização legal, é dever do juiz o cumprimento da lei, nos termos dos art. 126 e 127 do Código de Processo Civil". (destaquei)

            Sem embargo, há no Brasil há um regramento muito claro a respeito da assistência judiciária gratuita. Tal regramento está contido na Lei 1.060/50, que é muita clara ao estabelecer que "a parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família" (art. 4º, caput).

            Esta Lei também é igualmente clara ao preconizar que "presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei" (art. 4º, parágrafo único), sendo certo que "o juiz, se não tiver fundadas razões para indeferir o pedido, deverá julgá-lo de plano, motivando ou não o deferimento dentro do prazo de setenta e duas horas" (art. 5º).

            Diante de todos os princípios acima alinhavados, é fácil perceber que é dentro destes limites que o juiz deve orientar seu campo de cognição, a fim de conceder o provimento jurisdicional.

            É certo que os referidos dispositivos da Lei 1.060/50, foram todos recepcionados pela Constituição, como nos assegura o citado mestre Dinamarco, in verbis:

            "Á primeira vista, a Constituição teria negado recepção à presunção instituída pela lei, porque atribuiu ao interessado o ônus de comprovar a insuficiência de recursos. Como porém as declarações de direitos e garantias em uma Constituição significam somente a oferta de um mínimo que a lei não pode negar, prevalece o entendimento de que continua vigente a disposição infraconstitucional que transfere ao adversário o ônus de provar a capacidade financeira do interessado – continuando a ser havida por suficiente a mera alegação, nessa medida."

            Aliás, o colendo Superior Tribunal de Justiça não se cansa de aplicar os dispositivos da referida Lei, in verbis:

            "PROCESSUAL CIVIL – CONCESSÃO DOS BENEFÍCIOS DA JUSTIÇA GRATUITA – LEI 1.060/50 – INDEFERIMENTO DO PEDIDO COM BASE NA PROVA DOS AUTOS – SÚMULA 7/STJ.

            1. O STJ tem entendido que, para a concessão dos benefícios da Justiça Gratuita, basta a declaração, feita pelo interessado, de que sua situação econômica não permite vir a juízo sem prejuízo de seu sustento e de sua família.

            2. Entretanto, tal declaração goza de presunção juris tantum de veracidade, podendo ser indeferido se houver elementos de prova em sentido contrário.

            3. Hipótese dos autos em que o indeferimento do pedido encontrou amparo na prova dos autos, sendo insuscetível de revisão em sede de recurso especial, ante o óbice da Súmula 7/STJ.

            4. Agravo regimental improvido." (STJ – 2ª T – MINISTRA ELIANA CALMON – AgRg no Ag 802673 / SP – Julgamento em 06.02.07).

            No mesmo sentido, o entendimento do egrégio Supremo Tribunal Federal, in verbis:

            "ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA – PESSOA JURÍDICA. Ao contrário do que ocorre relativamente às pessoas naturais, não basta a pessoa jurídica asseverar a insuficiência de recursos, devendo comprovar, isto sim, o fato de se encontrar em situação inviabilizadora da assunção dos ônus decorrentes do ingresso em juízo.

            Diante do exposto, todos os despachos que transferem à parte requerente dos benefícios da assistência judiciária gratuita, são passíveis de reforma nas instâncias superiores, ante à sua manifesta ilegalidade latu sensu.

 


 

 

            01 MONTESQUIEU. O espírito das leis. Coleção Os Pensadores. v. XXI. Trad. de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo: Editor Victor Civita, 1973. p. 156 e ss.

            02 Instituições de direito processual civil. v. II. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 228 e ss.

 


 

DADOS BIOGRÁFICOS

Francisco Demontiê Gonçalves Macêdo,  advogado.

Notas

Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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