Hermenêutica jurídica: mente, cérebro e “prejuízo”

*Atahualpa Fernandez e *Marly Fernandez

Haga lo que haga un hombre, antes debe hacerlo con la mente, cuya maquinaria es el cerebro. La mente sólo puede hacer aquello para lo que el cerebro esté capacitado, así que todo hombre debe descubrir qué tipo de cerebro posee antes de poder comprender su propio comportamiento” (Gaer Luce y Julios Segal). 

1. Neurociência e “prejuízo” 

Durante os últimos anos a ciência há logrado avanços espetaculares em diferentes áreas do conhecimento. Patricularmente no que se refere ao nosso conhecimento sobre o cérebro humano, a ciência também há progressado significativamente e hoje entendemos melhor como se produzem a linguagem, o reconhecimento do mundo, o pensamento, a memória, os sonhos e a tristeza. Cada vez mais os progressos provenientes da neurociência nos têm ensinado que nossa atividade “mental” e o comportamento surgem de uma parte especializada do corpo: nosso cérebro.

O objetivo da neurociência é precisamente o estudo do cérebro e da atividade cerebral, isto é, das bases neuronais do pensamento, da percepção, do comportamento e da emoção, isto é, dos mecanismos da relação cérebro/mente ou, o que é o mesmo, dos mecanismos cerebrais que nos ajudam a entender a função dos genes na configuração do cérebro, o papel dos sistemas neuronais na percepção do entorno e a relevância da experiência como princípio de orientação nas ações futuras. O enfoque de seu estudo pode ser o nível molecular intra e interneuronal e/ou o nível integrativo ou global no que se analisam conexões, redes neuronais e comportamentos. Também é possível visualizar a atividade mental como os eventos que ocorrem em um tempo tão breve como milisegundos, que é o tempo que transcorre quando um neurônio se comunica com outro, ou tão largo como o que sucede através de toda uma vida.

Ademais, trata-se de uma área do conhecimento ( a neurociência ou neurociências) que está conformada por um número de disciplinas interrelacionadas que estudam o funcionamento do cérebro a distintos níveis e com distintos ramos de especialização. De forma muito geral é possível dividir a neurociência em dois ramos: neurociência básica e neurociência das condutas e/ou cognitivas. As neurociências básicas estudam os aspectos biológicos de forma direta – por exemplo, a neurobiologia, a neurofisiologia e a neuroquímica -, enquanto que o enfoque das neurociências da conduta e as neurociências cognitivas é mais integrativo e estudam a relação entre a organização e o funcionamento cerebral,  os processos cognitivos e a conduta humana.

Graças às investigações levadas a cabo pela neurociência, o desenho do cérebro que está aparecendo aponta já algumas pistas dignas de menção. Em primeiro lugar, a confirmação daquelas hipóteses lançadas por Crick e Koch (1990) acerca da consciência como uma atividade sincronizada de neurônios que se encontram situados em lugares distintos do córtex cerebral. Já sabemos, também, que na tarefa de realização de juízos morais (assim como de juízos normativos no direito e na justiça) é essencial a conexão fronto-límbica (Damasio, 1994; Adolphs et al, 1998; Greene et alii, 2001 e 2002; Moll et alii, 2002 e 2003; Goodenough & Prehn, 2005; Hauser, 2006). Sabemos que a percepção estética implica a ativação do córtex préfrontal esquerdo (Cela-Conde et al, 2004). Sabemos como se realiza o processamento das cores a partir dos centros visuais primários do córtex ocipital (Zeki & Marini, 1998; Bartels & Zeki, 1999), assim como a ativação neuronal relacionada com a identificação de objetos percebidos mediante a visão (Heekeren, Marrett, Bandettini & Ungerleider, 2004). Sabemos das “neuronas espelho” que, longe de ser uma mera curiosidade, parecem ser muito importantes para compreender a maioria dos aspectos da natureza humana, como a avaliação dos atos e intenções dos demais decorrente de nossa capacidade de elaborar uma “teoria da mente” para prever o comportamento de nossos congêneres (Rizzolatti et alii, 2001 e 2006; Ramanchandran, 2008). Em termos gerais vai aparecendo um panorama em que o córtex préfrontal joga um papel de primera ordem respeito do que são os processos cognitivos superiores, coisa que, por outra parte, havia sido já sugerida, ainda que fosse a título de hipóteses especulativa, pelos paleoantropólogos (Deacon, 1996 e 1997).

Por outro lado, a caracterização neurológica da moral começa a parecer compatível com uma psicologia evolucionista que entenda que uns mesmos processos cognitivos intervenham em diferentes tarefas ou para resolver diferentes problemas (Shapiro & Epstein, 1998). Particularmente com relação ao direito, os avanços neurocientíficos já começam a apontar em algumas direções igualmente dignas de menção: em primeiro lugar, em um sentido direto e explícito, algumas técnicas podem constituir-se em elementos de prova, enquanto outras técnicas ou neurofármacos podem vir a ser usadas como medidas associadas à pena ou para a reabilitação dos transgressores; em segundo lugar, e de um modo mais difuso, mas também mais profundo, os novos conhecimentos podem vir a influir nas intuições morais da sociedade assim como nas obrigações percebidas, estimulados pela utilização das técnicas modernas de imagem cerebral para investigar os correlatos neuronais de certos comportamentos, como, por exemplo, o livre-arbítrio, a responsabilidade pessoal, a tomada de decisões morais e jurídicas, etc. (Roskies, 2000; Moll et al., 2005; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, 2008; Goodenough e Prehn, 2005; Greene et. al. 2003, 2004, 2005).

E embora seja certo que ainda estamos longe de contar com um mapa preciso das ativações e correlatos neuronais relacionados com nossos comportamentos e/ou os processos cognitivos e emocionais que nos levam a atuar, não menos correta é a constatação de que vamos trilhando um bom caminho para começar a fazê-lo e a compreendê-lo. Mas desde logo sim que há algo de óbvio e de extremamente positivo que se pode inferir de todos esses progressos neurocientíficos: a constatação de que a mente é um estado funcional do cérebro, de que tudo o que passa na mente (atividade mental) se deve a (ou ao menos depende da) atividade do cérebro.

 Quando miramos dentro do cérebro vemos que nossas ações derivam de nossas percepções e nossas percepções (assim como nossa consciência) são um produto ou são construídas pela atividade do cérebro. Essa atividade, por sua vez, é ditada por uma estrutura neuronal formada pela interação de nossos genes com o entorno. Não há nenhum rastro de uma antena cartesiana que sintonize com outro mundo, não há nenhum fantasma em nosso solo, não há monstros nas profundidades, não há terras regidas por dragões, nem outros mundos, nem espíritos, nem estranhas forças ainda por desvelar, como a gravidade quântica (Penrose 1989 e 1994). O que os viajantes da mente estão descobrindo é um sistema biológico de assombrosa complexidade. Já não temos mais a necessidade de satisfazer nossa ânsia de assombro conjurando fantasmas: o mundo que há dentro de nossas cabeças é mais maravilhoso – e misterioso – que qualquer coisa que possamos inventar em sonhos (Carter, 2002). Pertencemos a dois mundos: o mundo do corpo/cérebro – dos quais emerge a mente – e o mundo das criações culturais (aqui incluído, por certo, o direito) fundadas na atividade neuronal (uma sincronia em rede), mas que a transcendem. Isso somos.

E se nos situamos no âmbito propriamente do jurídico, nada disso deveria surpreender, uma vez que são duas as capacidades humanas que funcionam como fatores particularmente determinantes na formação e interpretação das normas jurídicas: a primeira, provavelmente compartida com outros animais, é a busca incessante de causas e efeitos; a segunda, o raciocínio ou juízo social – insolitamente desenvolvida nos humanos -, que consiste na capacidade de pensar nas pessoas e nos motivos que lhes levam a atuar (o que os cientistas chamam “teoria da mente”).

A combinação dessas capacidades gerou certas características da função mental que formam parte da crença ético-jurídica: nossa capacidade para fazer conjecturas, abstrações e deduções causais e para inferir intenções não percebidas. Dessa forma, a aplicação do direito se torna possível quando o impulso de encontrar e inferir explicações causais se combina com a capacidade – e a propensão ou predisposição – de nossos cérebros para “prejulgar” e subministrar níveis avançados de cognição social. Juntas, estas duas capacidades nos permitem gerar complexas idéias jurídicas que vão desde punir um condutor por haver cruzado com o semáforo em vermelho até a elaboração de sofisticadas teorias acerca do direito justo, desde um jusnaturalismo de caráter teológico até um positivismo mais sossegado.

E porque estamos inseridos no mundo mental de outros, igual que o estamos no mundo físico e cultural, não somente a dinâmica e as estruturas neuronais que fazem possível a interpretação e aplicação das normas jurídicas estão condicionadas pelo entorno, senão também que nossa predisposição para fazer suposições e conjecturas sobre como são as pessoas e como funciona o mundo faz com que nossos prejuízos (conhecimentos prévios ou “pré-compreensão”, para usar a terminologia empregada por Esser) nos facilitem o acesso ao que há que compreender.

Por mais doloroso que nos resulte, o certo é que estamos prenhados de prejuízos. Estes (os prejuízos) são o fruto de uma conduta adaptativa desenhada ao longo de nossa história evolutiva: a seleção natural favoreceu o desenvolvimento de uma sofisticada maquinária cerebral para elaborar um juízo rápido, uma resposta mental automática que permite proteger-nos de possíveis perigos em nossas experiências de vida. Fazemos predições e formulamos prejuízos constantemente e respeito a tudo com que, direta ou indiretamente, nos encontramos implicados. E embora não nos demos conta disso, hoje sabemos que o cérebro funciona assim continuamente. 

Portanto, muito antes de que os neurocientistas dessem por assentada a crucial e iniludível presença do prejuízo para que nosso cérebro funcione, este já havia sido reabilitado por Gadamer em seu desenvolvimento da hermenêutica. Voltaremos a este tema mais adiante.  

2. Interpretação jurídica e subjetividade 

Dentro deste quadro que acabamos de desenhar, vejamos o que ocorre com a interpretação jurídica, isto é, quais as operações mentais efetivas levadas a cabo na tarefa de interpretar e aplicar o direito.

O Direito é, sob qualquer ponto de vista, um fenômeno essencialmente humano, cujo problema relativo à sua interpretação e aplicação levanta a iniludível questão da dimensão subjetivo-individual do jurista-intérprete. De fato, não resulta difícil inferir que a subjetividade do intérprete joga um papel de fundamental importância no processo de realização do direito, uma vez que se o fator último de individualização da resposta ou conclusão do raciocínio jurídico não procede exclusivamente do sistema jurídico (ainda que deva resultar compatível com ele), parece óbvio que deve proceder também das convicções pessoais do operador do direito.

E isso é assim pelo simples fato de que nem princípios nem regras regulam por si mesmos sua aplicação no âmbito do comportamento humano. Eles representam apenas os pilares passivos do sistema jurídico. Para obter um modelo completo é imprescindível agregar aos pilares passivos um ativo, quer dizer, um procedimento de interpretação, de justificação e de aplicação das regras e princípios jurídicos. Portanto, os níveis das regras, dos princípios e do comportamento humano têm que ser completados por um quarto: o de um processo de concreta realização do direito e a correspondente participação (pessoal, subjetiva, neuronal) do jurista-intérprete[1]. 

Daí que, neste particular, temos todas as razões para crer que o fenômeno da interpretação surge da atividade eletroquímica de redes-neuronais no cérebro. A experiência de escolher a solução satisfatória não é uma ficção, mas uma conseqüência causada pela atividade fisiológica de um cérebro moldado geneticamente ao longo da história evolutiva de nossa espécie e aparelhado para pensar de certa maneira. Trata-se de um processo neural, com a óbvia função de selecionar a “melhor solução” ( emtermos comparativos e não superlativo) segundo suas conseqüências previsíveis, a par de devidamente fundamentada. Isto implica dizer que, para poder ler e interpretar uma informação, o cérebro tem que chegar a uma coalizão de grandes conjuntos de neuronas cuja ativação e interação representam a melhor interpretação de um determinado fenômeno, com fequência em competição com outras interpretações possíveis, mas menos prováveis.

Por certo que a solução elegida pode não ser a melhor de todas as concebíveis, mas seguramente será potencialmente a melhor de todas as possíveis e disponíveis – é nesse sentido que a interpretação e aplicação do direito é, em última instância, um processo panglossiano. Depois, não parece definitivamente razoável supor que a tarefa interpretativa seja concebida como extracraneal, enquanto a cognição e a emoção (produtoras da subjetividade) não o são. São produtos de nossa maquinária cerebral, tanto como são produtos de nosso entorno cultural. Dito de modo mais simples: se interpreta com o cérebro.

Assim que as interpretações jurídicas, tal como as conhecemos, são produtos de cérebros humanos, de seres humanos com suas próprias necessidades, crenças, visões (prévias) do mundo, opiniões, amores, ódios, desejos, preferências, circunstâncias, problemas…, que, de uma forma ou outra, incidem e condicionam o resultado de suas interpretações, destinadas a transmitir suas mensagens a um público  específico em uma época e um lugar determinados. Cada um dos intérpretes do direito é um ser humano, cada um deles tem algo diferente a comunicar, cada um intenta transmitir a sua visão de mundo (que há herdado ou adquirido) em suas próprias palavras. Cada um deles, de certo modo, muda, altera ou tranforma os textos que interpreta.

Quem, por alguma razão, não entenda desse modo o processo de interpretação e aplicação do direito acaba por não permitir que cada intérprete diga o que quer dizer; quem faz isso não lê o que cada autor escreve com o propósito de entender sua mensagem. De fato, quem faz isso não somente se nega a admitir que cada um dos intérpretes é diferente senão que também se recusa  a entender que não é adequado pensar que todos pretendem dizer o mesmo. Pensar tal coisa é tão injusto como supor que o que  queremos dizer neste artigo sobre a interpretação jurídica há de ser o mesmo que diz qualquer outro autor que se ocupa deste tema, pois é muito provável que nossa intenção seja dizer coisas distintas.E isso pela simples razão de que ninguém pode viver sua realidade (nem, por certo, interpretá-la) sem o concurso irrenunciável de sua atividade mental: detrás de dois cérebros distintos podem esconder-se mundos e formas de conceber e de sentir a realidade completamente diferentes.  

3. Processadores de juízos  

Como o fazem? Uma forma de proceder a análise da subjetividade a partir de tais considerações é partindo da premissa estabelecida segundo a qual os operadores do direito vivem das representações e significados que se passam na mente, isto é, que são processados em suas estruturas cerebrais. Daí que o juízo ético-jurídico baseado não somente em raciocínios senão também em emoções e sentimentos morais produzidos pelo cérebro, não pode ser considerado como totalmente independente da constituição e do funcionamente desse órgão que, em uma primeira aproximação, parece não dispor de uma sede única e diferenciada relacionada com a cognição moral e o juízo normativo que dita o sentido do direito e da justiça.

O conceito de representação procede da teoria kantiana do conhecimento segundo o qual a realidade existe para cada um em particular somente em sua imaginação. Portanto, é somente sua representação. O mundo que vemos é um mundo concebido através da construção feita a partir de estímulos físicos por uma maquinária que é nosso cérebro: a realidade objetiva é “realidade” entanto que realidade humana percebida pelo cérebro humano. Dito de outro modo, esse contexto estabelece que os operadores do direito vivem das representações e significados que se passam na mente, isto é, que são processados em suas estruturas cerebrais.

Em neurociência se vem usando o termo representação de forma sistemática para aludir ao conjunto de correlatos neuronais que se dão em nosso cérebro do mundo exterior. Neste marco parece possível não somente aceitar a equivalência entre representação e padrão de atividade cerebral senão também, e muito particularmente, intentar avançar no significado do conceito de representação com base no paradigma admitido pela neurociência. Isto é importante porque nos conduz ao conceito de estabilidade na atividade cerebral como fator determinante da evolução dos padrões, por exemplo, no ato de compreensão, interpretação e aplicação do direito.

 Para seguir nesta direção é útil imaginar um simples experimento que poderíamos fazer com uns quantos operadores do direito, com semelhante preparo intelectual e formação profissional, interpretando uma lei. Suponhamos que lhes mostramos a todos um mesmo texto legal (que envolva um dilema moral ou ético-jurídico), lhes pedimos que tratem de interpretar e compreender seus matizes e que depois lhes pedimos que expressem com detalhes um determinado desenho acerca da posição pessoal de cada um sobre o referido enunciado normativo.

Se verdadeiramente estes operadores têm semelhante preparação intelectual e formação profissional nos poderão fazer desenhos praticamente iguais, a menos que o texto legal (ou dilema) contenha detalhes difíceis de interpretar. Portanto, estes operadores tiveram acesso a uma realidade tangível e objetiva do mundo exterior que se haverá armazenado como representação em seus cérebros em forma de padrões de atividade de distintas regiões cerebrais.  Não há, contudo, razões para pensar que as zonas cerebrais ativadas serão idênticas nos distintos intérpretes.

Com toda segurança haverá um alto grau de correspondência no trabalho realizado por regiões cerebrais. Por exemplo, com toda segurança se haverá ativado o córtex cerebral ocipital quando os sujeitos visualizavam o texto legal, assim como o córtex frontal e o sistema límbico para poder levar a cabo uma conduta relacionada com o processo de tomada de decisões. Mas se descendemos ao nível dos neurotransmissores e os potenciais sinápticos, que constituem a linguagem de comunicação dos neurônios (de modo que maiores quantidades de neurotransmissores liberados produzem maiores potenciais sinápticos), não há nenhuma razão para esperar que haja dois neurônios idênticos respondendo identicamente no momento da tarefa interpretativa. A demonstração mais simples disto é a redução ao absurdo baseada no fato de que não é previsível que haja dois cérebros, simplesmente, com o mesmo número de neurônios e conexões sinápticas que geram e determinam os processos cerebrais associados com a percepção, os padrões de pensamento e o sentido de ação (no caso, com o processo de observar, avaliar e decidir).

Um de nossos operadores pode ser jovem e outro mais velho, circunstância em que o processo de desaparição de neurônios já tenha iniciado. Cada um terá sua representação resultante de seu próprio padrão de atividade cerebral e das interações sinápticas produzidas pela experiência e pela história particular de cada cérebro (esta característica de câmbios se conhece com o nome genérico de plasticidade neuronal e pode estar na base da individualidade associada à experiência, dissociada do determinismo genético)[2]. Dito de modo mais simples (e jurídico): porque não há dois cérebros que sejam iguais (nem sequer os de gêmeos idênticos), porque cada cérebro contrói o mundo de maneira ligeiramente distinta dos demais cérebros, não há uma interpretação definitiva do que expressa a “norma”, senão simplesmente uma interpretação dentro de nossas cabeças (uma construção pessoal), interpretação que se desencadeia através dos elementos externos que melhor estamos preparados para registrar. 

Depois, o problema que tem que afrontar o cérebro aqui é que os sinais procedentes do mundo (em nosso caso, da norma) não costumam representar uma mensagem codificada, senão que são potencialmente ambiguos, são dependentes do contexto e não vêm necessariamente acompanhados de juízos pré-estabelecidos sobre seu significado (Edelman, 1987). Daí a razão pela qual que ler um texto necessariamente implica interpretá-lo. Sem embargo, supomos que muitos ainda fomentem uma concepção muito pouco elaborada acerca do processo de realização do direito, a saber, que o objetivo de interpretar um texto é, simplesmente, deixar que  este “fale por si mesmo” para descobrir o significado inerente a suas palavras. A verdade, contudo, é que o significado não é inerente e que os textos não falam por si mesmos. As normas jurídicas não possuem representação de valor. As normas possuem somente palavras. Quais os valores e significados que devem ser  ligados a estas palavras são problemas vinculados à tarefa dos intérpretes. E ele estabelecerá sempre aquilo em que ele mesmo crê ( Dieter Simon, 2006): nenhuma lei é fruto de uma verdade estabelecida, senão expressão da “vontade pública”, sempre sujeita à interpretação.

Os textos se interpretam e quem os interpretam (assim como quem os escrevem) são seres humanos de carne e osso, que somente podem compreendê-los à luz de seus prejuízos e outros conhecimentos, que é o que fazem ao intentar desentranhar seus significados colocando suas palavras “em outras palavras” – como recorda Rose (2006), nossas mentes  funcionam com (e reagem aos ) significados , e não somente com informações. O intérprete-leitor, injetando elementos de subjetividade, altera as palavras originais do texto, buscando, num continuum desse processo unitário, encontrar para o resultado de sua interpretaço uma  fundamentação/justificação racionalmente convincente.

Isto, diga-se de passo, não é algo opcional no processo de leitura/ interpretação; não é algo que possamos eleger não fazer quando examinamos séria e cuidadosamente um texto. O único modo de entender um texto é lendo-o, e o único modo de lê-lo é interpretando-o, a saber, pondo suas palavras em outras palavras, e o único modo em que é possível fazer tal coisa é tendo outras palavras que colocar em lugar da originais, e único modo de ter essas outras palavras é havendo vivido, quer dizer, tendo prejuízos, desejos, necessidades, aspirações, crenças, perspectivas, visões do mundo, opiniões, preferências, aversões e todos os demais traços que fazem humanos aos seres humanos. E temos, assim, que ler e interpretar um texto é, necessariamente, prejulgá-lo: sempre buscamos entender o que seus autores dizem ao mesmo tempo que nos esforçamos por conhecer o significado que esses textos tem para nós, como podem ajudar-nos a compreender nossa própria situação e dar sentido aos próprios ideais e valores que conformam nossas vidas.

O problema é que embora nossos prejuízos tenham um substrato material que são os correlatos cerebrais ou padrões de atividade neuronal que se estabelecem individualmente, ainda não há uma resposta clara acerca de como tem lugar este processo, uma vez que, para tanto, haveríamos de ser capazes de determinar, se é que é possível, o limite entre percepção, emoção, memória e cognição. Para tratar de aclarar a complexidade do problema podemos recorrer ao exemplo de nossos intérpretes.

Quando viram o texto legal se puseram em marcha seus circuitos visuais, o que significa que uma série de sinais navegaram desde seus olhos através das vias nervosas correspondentes até o córtex cerebral ativando, na mesma medida, o sistema límbico. Com toda segurança todos identificaram que se tratava de uma lei porque previamente haviam visto objetos parecidos. Portanto disponiam de interações sinápticas modificadas ao efeito. Quando trataram de compreender os detalhes dessa lei em concreto tiveram que produzir-se novas modificações sinápticas e, em qualquer dos casos, suas respectivas percepções da realidade e suas características desvelarão o traço ou pontos de vista de cada intérprete de igual forma que refletirão as coisas que representa. E parece ser este o momento em que a dimensão  humana do potencial de subjetividade impõe suas pautas.

Agora: Quando foi suficiente? Em que nível o processamento de informação se torna significado, conhecimento, consciência? Quanto tiveram que modificar as interações sinápticas para que se establecera a representação dessa lei? Como se decidiu que era suficiente? Será possível algum dia descrever esse processo ou processos (ou os componentes chave) em termos mais objetivos? Em que pontos se podem enlaçar de modo presumidamente tão decisivo para que a neurociência cognitiva ponha em questão os atuais modelos e resultados da compreensão e da realização jurídica? Em que medida é possível saber onde termina a cognição e começa a emoção no processo de realização do direito?

 Simplesmente não o sabemos. Parece não existir no cérebro nenhuma área específica (e se houver a neurociência ainda não conseguiu descobrí-la) em que a neurofisiologia misteriosamente se torna psicologia. O que há é um padrão de ativação cerebral que pode implicar um número considerável de estruturas cerebrais e que em algum momento é suficiente como para que o sujeito-intérprete possa compreender o objeto interpretado a partir de um “conhecimento prévio”: um trabalho que envolve múltiplas e distintas regiões do cérebro (não necessariamente conectadas por simples trajetos sinápticos ou sinapticamente distantes) contribuindo harmoniosamente para o todo – ou envolvidas em aspectos complementares da mesma tarefa: de cada região, de acordo com suas possibilidades, para cada uma, de acordo com suas necessidades (Rose, 2006).

Seja como for, conhecer como se realizam as conexões dos neurônios ao estabelecer as redes que levam aos juízos, quer sejam morais ou, como no caso de alguns experimentos estéticos já levados a cabo (Cela-Conde et al., 2004), é necessário para se ter uma idéia, ainda que limitada, acerca do processamento mental durante a tarefa interpretativa. O certo é que a partir das evidências até agora obtidas cabe ir muito mais longe.  E o que se espera é que um modelo neurocientífico do juízo normativo no direito e na justiça venha a oferecer razões poderosas que possam vir a dar conta da falsidade subjacente às concepções comuns da psicologia e da racionalidade humana e, a partir daí, determinar o alcance que essa perspectiva neurocientífica pode chegar a ter para o desenho de um renovado edifício teórico e metodológico da ciência jurídica e, conseqüentemente, para a tarefa do jurista-intérprete de dar  “vida hermenêutica” ao direito positivo. 

4. Hermenêutica jurídica e “prejuízo” 

Uma observação preliminar: porque não há uma instituição humana mais fundamental que a norma jurídica e, no campo do progresso científico, algo mais instigante que o estudo do cérebro, a união destes dois elementos (norma/cérebro) acaba por representar uma combinação naturalmente fascinante e estimulante, uma vez que a norma jurídica  e o  comportamento que procura regular são ambos produtos de processos mentais.  E é precisamente neste contexto que o processo de interpretação e aplicação do direito (convertido no ponto cardinal da evolução jurídica) aparece como o mecanismo apto e o único meio possível e com capacidade necessária e suficiente para por em evidência a natural combinação cérebro/norma.

Pois bem, não há dúvida de que o conjunto das teorias até então elaboradas sobre hermenêutica e interpretação jurídica é assombroso, fascinante e inteligente. O problema, contudo, é que se baseiam principalmente em suposições, como sabemos pela informação científica e histórica atual. De fato, a quase totalidade da construção hermenêutica e a própria unidade da realização do direito elaboradas pelas teorias contemporâneas estão baseadas, na atualidade, no modo de explicação dominante da teoria da eleição racional, construindo triviais pseudomodelos teóricos que não passam, com frequência, de grotescas paródias argumentativas sem qualquer escrutínio empírico minimamente sério, senão carentes da menor autoconsciência a respeito da realidade neuronal que nos constitui, dos problemas filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria da ação intencional humana, e em particular, de uma teoria da racionalidade reformada. A crua e dura realidade é que essas idéias férteis, metafóricas e atrativas são meros relatos, se bem alguns mais demonstráveis que outros. Vejamos o que ocorre com a hermenêutica.

A hermenêutica, que começou como a exegese do texto sagrado e constituiu o esforço por salvar sem negar a distância entre a palavra proferida e a escuta  da  criatura,  hoje, depois da morte de Deus, se oferece como um  recurso  contra as censuras do que há, contra o silêncio (o “sem sentido”) das coisas, contra a incompreensão dos discursos e contra a  ameaça da violência do outro: ela  nos ensina como  salvar-nos da violência do outro, como respeitar seu distanciamento, seu olhar, sua espontaneidade, sem dissolvê-lo em nosso próprio discurso,  sem submeter sua diferença à invasão de nossa identidade, enfim, a estarmos sintonizados empática e emocionalmente com o outro.

Nomeadamente no que se refere à hermenêutica jurídica, esta se apresenta como um dos caminhos mais eficazes para preencher o abismo da palavra e da mente do outro (finito, intencional e frágil como eu) e assim evitar cair na tentação de seu aniquilamento ou de sua exclusão como indivíduo. Pode-se afirmar, inclusive, que ela já vê como possível apresentar, com acentuado grau de precisão, um esquema de realização do direito que funcione como modelo de superação dos já esclerosados esquemas clássicos propostos pelas teorias tradicionais. A “alternativa” assenta em dois pontos fundamentais: a unidade (dialética) da realização do direito e a natureza constituinte-conformadora da decisão.

Particularmente focada é a unidade entre interpretação e aplicação; o caso passa a ser parte de um “todo vivo”, onde o interpretar é conhecer e decidir: a aplicação (a concretização) de comandos normativos é, assim, indissociável da compreensão da norma diante da situação atual e particular do intérprete. E uma vez que a compreensão é experiência e compreender é sempre também aplicar, isto implica dizer que: a) a tarefa da interpretação, como a forma explícita do compreender, consiste em concretizar a lei em cada caso, isto é, na sua aplicação a uma concreta realidade e na particular situação do intérprete; b) a aplicação não é um “ato” complementário ou uma etapa derradeira e eventual do fenômeno da compreensão, mas um elemento que a determina desde o princípio e no seu conjunto; e c) afinal, a interpretação (jurídica) de um texto e sua aplicação a um caso concreto não são dois atos separados e estanques, senão um processo unitário, um continuum, compondo uma indivisível e solidária unidade metodológica.

Na obra de Hans-Georg Gadamer[3] a experiência hermenêutica é assumida como um intento por remover o prejuízo iluminista segundo o qual a ciência pressupõe o “distanciamento” com o mundo, a anulação das premissas culturais, subjetivas, da compreensão: esta (compreensão) tem lugar desde determinadas premissas, desde prejuízos ou desde uma “pré-compreensão” que antecipam a realidade observada a partir de um ponto de vista particular, ou seja, de que não há compreensão que não esteja de algum modo orientada por uma compreensão prévia, por uma antecipação de sentido do que se compreende, uma expectativa de sentido determinada pela relação (circular) do intérprete com a coisa, no contexto de uma determinada situação.

A partir de uma aguda e provocativa fórmula, Gadamer afirma que não são tanto nossos juízos como nossos prejuízos os que constituem nosso ser. Os prejuízos não são necessariamente injustificados nem errados, antes ao contrário “são antecipações de nossa abertura ao mundo” e constituem a “orientação prévia” de toda nossa experiência; e não o são somente de nossa particular situação, senão também e sobretudo os da  tradição (ou comunidade)  a qual historicamente pertencemos – isto é, a qual historicamente  se  está[4].

Por conseguinte, a contaminação subjetiva do dado é um fato inevitável, ainda que positivo e oportuno: o saber, e (de maneira preliminar e vaga) o que quero saber, é a condição que me permite compreender a resposta; meus prejuízos são o a priori do qual me sirvo para ver a realidade e sem os quais a realidade mesma me pareceria privada de sentido. E o único modo de possuir uma compreensão o mais objetiva possível é ser consciente dos próprios prejuízos e refletir sobre os mesmos. A pretensão de neutralidade é o fator principal que “cega” a visão da realidade: o prejuízo mais cegante, diz Gadamer, é o prejuízo da ausência de prejuízos.

Ademais, que além do mundo em que nos situamos ser um mundo histórico, cambiante e “produtivo”, a compreensão tem uma estrutura circular. Com isso quer dizer que a compreensão é a interelação e a interpenetração entre a tradição e o intérprete. É o chamado “círculo” ou “espiral” hermenêutico: sem uma antecipação de sentido que a guie não há compreensão, antecipação que vem determinada desde a comunidade que os une à tradição; mas essa comunidade está por sua vez submetida a um processo de contínua formação e transformação que os sujeitos-intérpretes mesmos vão conformando. Também aquí, no círculo do compreender,  mostra-se a superação que a hermenêutica contemporânea faz da escisão entre sujeito e objeto do conhecimento: insurge-se contra o conceito objetivo de conhecimento, elimina e rompe o esquema  sujeito-objeto (o que conhece-reconhece o objeto em sua pura objetividade sem se mesclar elementos subjetivos, ou seja, conhecimento como  “reflexo” do objeto na consciência) para o fenômeno da compreensão – premissa que inclusive nas ciências naturais explicativas não rege hoje irrefutavelmente. Mais bem a compreensão é sempre ao mesmo tempo objetiva e subjetiva: o sujeito que compreende entra no “horizonte da compreensão” e não reproduz de maneira puramente passiva em sua consciência o compreendido, senão que o conforma.

Pelo que especificamente respeita ao problema da “aplicação” – o qual Gadamer remete para a noção aristotélica de “phrónesis” a comprovação da tese hermenêutica fundamental de que toda a compreensão (co-)envolve aplicação -,  anotaremos aquí apenas o seguinte: Gadamer acentua expressa e enfaticamente que a compreensão (tanto em geral, como a especialmente postulada por qualquer decisão juridicamente significativa) é mais do que uma mera interpretação  destinada a viabilizar a “subsunção” de uma determinada situação a “disposições legais”, pois exige, por um lado, uma contínua “adaptação à realidade” – traduzida em uma permanente, cuidadosa e estrita relação com a situação concretamente controvertida – e, por outro, uma “concretização prática da idéia de direito”, operada em termos dialógicos[5].

A compreensão nunca identifica uma simples, descomprometida e pragmática “aplicação artificial de um saber fazer”, pressupondo antes uma complexa, empenhada e eticamente responsabilizante participação do sujeito que nela se intromete: que, ao “alargar” e “aprofundar”, pela mediação do exercício dessa  sua tarefa, o modo como se “auto-compreende”, não deixa de  recriar e projetar nela, constituindo na “resposta” que se afoita a dar à “pergunta”  que o convocara (com os seus inelimináveis “pré-juízos”), dimensões originariamente radicadas na sua inapagável e irredutível “experiência” pessoal e comunitária. Esta, enquanto expressão direta da “finitude” e da “historicidade” de quem a realiza, modela decerto o entorno problemático em que se desenrola o processo de realização do direito.Dessa forma, a interpretação passa a ser um dos instrumentos mais relevantes tanto nas obras teóricas sobre o direito como em sua prática de todo tipo, começando pela jurisprudencial.

Caberia, pois, pensar que a contemporânea filosofia hermenêutica, com Gadamer em seu centro, acabou se incorporando ao elenco de categorias e concepções com o que o operador do direito teórico e prático pensa e explica seu labor. Mas não é assim, verdadeiramente; ou não o é na medida em que seria razoável esperar. Muito esquematicamente, se poderia indicar duas razões: por um lado, ao que à hermenêutica importa, a teoria e filosofia do direito têm suas próprias tradições explicativas e a filosofia hermenêutica vai pouco mais além das explicações existentes, ao menos no sentir comum do operador do direito; por outro,  e já  agora no que mais importa ao direito, que é o desenho de regras ou métodos do correto e racional decidir, a filosofia hermenêutica não proporciona soluções.

Dito de modo mais explicativo – e referindo-nos à primeira das assertivas antecedentes -, desde começos do século XX, pelo menos, se foi abrindo passo na teoria jurídica a idéia de que o direito não se esgota no texto, no puro enunciado normativo, de que a tarefa interpretativa é uma mediação irrenunciável para a concreção do enunciado legal, a fim de poder aplicá-lo aos casos que com ele hão de resolver-se, e de que essa interpretação, que tem um componente sempre criativo, contextual e pessoal, é constitutiva ou co-constitutiva (segundo o radicalismo da respectiva teoria) da norma jurídica mesma, do próprio objeto direito. No que ao operador do direito lhe interessa, a obra de Gadamer injeta possivelmente profundidade – e elegância – a essa perspectiva, mas pouca novidade.

Relativamente à afirmação de que a filosofia hermenêutica não aporta soluções que o operador do direito busca, quer-se dizer que a hermenêutica filosófica se detém precisamente ali onde mais interessa em direito a teoria da interpretação: à hora de proporcionar pautas do correto interpretar, isto é, critérios de racionalidade ou objetividade interpretativa. Não olvidemos que na práxis de aplicação do direito se pede aos juízes que atuem com imparcialidade e objetividade, evitando na medida do possível que sua decisão esteja condicionada por puros dados subjetivos, prejuízos, simpatias, etc.

E posto que há plena consciência de que essa práxis de aplicação da normas jurídicas é, em uma parte importantíssima, prática interpretativa de textos legais (de princípios, de valores e de fatos), o que se busca é uma metodologia jurídica normativa que marque os critérios da correta – no sentido de racional, objetiva, intersubjetivamente aceitável,  respeitosa com a separação de poderes e o valor das respectivas  vontades no entramado contexto do Estado de Direito – determinação de significado aos enunciados normativos. Tal coisa, é bem sabido, nem a dá e nem intenta dar a hermenêutica existencial ao estilo de Gadamer, uma vez que não se apresenta  diretamente como teoria da decisão valorativa racional senão  como indagação da dimensão ontológica do compreender, na qual a pré-compreensão “está aí” e fixa em cada caso as circunstâncias essenciais sobre a base de expectativas de resultados razoáveis – isto é, constitui um elemento ontologicamente  insuprimível e, por isso, é um elemento da estrutura mesma da compreensão que assim pode ser aproveitado como “uma possibilidade positiva e produtiva do compreender” (Gadamer, 1995).

Seja como for – e embora a hermenêutica filosófica proposta por Gadamer ostente “perturbadores” indícios de um indisfarçável neo-hegelianismo-, não se pode negar a enorme importância que representou para o direito as teorias por ele desenvolvidas. Pense-se, só para exemplificar, no modo como esclarece o conceito de “círculo hermenêutico” e de “prejuízo”, nas reflexões que dedica ao problema da “aplicação” e na articulação que estabelece entre o “compreender e a linguagem”.

Depois, a frenética busca de uma metodologia que marque os critérios de uma “correta” ou “óptima” determinação dos enunciados normativos parece constituir, em essência, uma pretensão incompatível com os conhecimentos que a neurociência já nos aporta: a de desenhar um modelo de extrema racionalidade de algo que se configura essencialmente como uma atividade com acentuados componentes irracionais, isto é, de construir uma imagem ou ilusão racional do que parece ser, em si mesmo, irracional.

E o inadequado dessa pretensão se põe de manifesto ao analisar como funciona o cérebro quando formulamos juízos morais acerca do justo ou injusto. A causa dos processos cerebrais associados é preciso aceitar a iniludível presença de elementos não-lógicos e, em geral, a intrusão do valorativo e emocional no raciocínio jurídico. A partir daí, já não resulta aceitável nem legítimo o seguir considerando a tarefa hermenêutica/interpretativa como uma operação ou conjunto de operações regidas exclusivamente pela silogística dedutiva ou cognoscitiva: a mente humana parece estar carregada de traços e defeitos de desenho que empanam o nosso legado biológico no que se refere à plena objetividade e racionalidade cognitiva[6] .

Por conseguinte, dar à hermenêutica o que é da hermenêutica significa reconhecer-lhe seu legítimo lugar entre as mais influentes explicações da constituição do indivíduo e do direito. Mas limitar-se, sem mais, em suas explicações, implicaria não somente em permanecer de costas aos espetaculares logros dos recentes estudos provenientes das neurociências e deixar sem resposta (ou sem sentido) perguntas determinantes que têm que ver, sempre, com a busca de padrões cognitivos e emocionais que funcionam como fatores determinantes da “racionalidade” humana.

Assim que todo intento de separar, nomeadamente nas ciências compreensivas, a racionalidade da personalidade que compreende está fatal e tragicamente condenada ao fracasso: a imagem do intérprete inteiramente neutral, imparcial, por completo objetivo, despersonalizado, passa por alto da realidade. Todas as interpretações e decisões sobre o direito se inspiram no ponto de vista de alguém, na perspectiva de um ser humano único cuja recompilação de experiências passadas lhe serve como contexto, lente e trajetória para valorar sua experiência presente e, dessa forma, alterar o texto interpretado. Pese a muito que se possa desejar, não existe um ponto de vista “neutral”, e a mera possibilidade de que se possa “recuperar” (ou “institucionalizar”) a neutralidade é tão remota que resulta deprimente e tremendamente contrária a nossa marcada disposição para projetar a própria subjetividade no mundo: somos, definitivamente, uma idiossincrasia com patas.

 Essa, em realidade, parece ser a razão pela qual Häberle (2003) afirma que não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada e que interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo e contextualizá-lo no espaço, enfim, de integrá-lo no mundo da vida vivida. De que concebido o direito como prática social de tipo interpretativo e argumentativo, é o operador jurídico que produz a realidade do direito e a edifica enunciando o que este mesmo é. Há direito onde sujeitos diferentes pré-compreendem, discutem, modificam e desenvolvem, submergindo-se na práxis, proposições e enunciados normativos pertencentes a essa prática interpretativa que, sobre a base de sua unidade de sentido, chamamos de fenômeno jurídico : o objetivo da boa interpretação não é conseguir que os intérpretes admirem e reproduzam uma legislação já feita, senão fazê-los capazes de valorá-la e de corrigí-la.

Depois, não somente a personalidade do intérprete está presente no decurso de toda interpretação como os intérpretes, no processo de realização do direito, não deixam de ser homens imbuídos de toda a preocupação ética, de prejuízos, de certos valores, preferências e intuições morais, o que faz com que não pareça legítimo nem razoável interpor, na aplicação do direito, uma barreira insuperável entre a desejada objetividade e a subjetividade do intérprete. O processo de realização do direito por parte do intérprete implica, em última intância, uma tarefa que pode considerar-se propriamente construtiva e emocional, pessoal e criativa  em certo sentido, embora não como absolutamente livre ou desprovida de vínculos para o operador do direito (portanto, tendencialmente racional).

E é essa constatação a que faz com que não somente a noção de racionalidade habitual em ciência jurídica esteja sendo objeto de revisões drásticas, senão também que a idéia mesma de que  a ciência jurídica está fundada na objetividade, neutralidade e racionalidade do operador do direito venha sendo assaltada e posta em dúvida nos últimos lustros desde as mais variadas direções. Desde logo, a partir de algumas tendências da filosofia e da filosofia do direito mesmo, mas também, e acaso mais incisiva e contundente, por parte dos cientistas cognitivos, dos filósofos da mente e dos avanços provenientes da  neurociência. E com o resultado de que, embora quando alguma noção de racionalidade no processo de realização do direito parece iniludível (tratar de prescindir da idéia de agentes intencionais é tarefa condenada de antemão ao fracasso), o processo de derivação de valores não é de natureza estritamente neutra, objetiva, racional e cujo significado é inerente às palavras do texto.

Se é certo que a interpretação jurídica não pode existir sem a razão (preferências individuais e razão instrumental), não menos certo é a “intuição” de que é a gama caracteristicamente humana de emoções que produz os propósitos, metas e objetivos buscados pelo intérprete. Formulamos juizos de valor sobre o justo e injusto não somente por sermos capazes de razão (como expressam a teoria dos jogos e a teoria da interpretação jurídica) mas, ademais,  por estarmos dotados de certas intuições morais  e  de determinados estímulos emocionais que caracterizam a sensibilidade humana e que  permitem que nos  conectemos potencialmente com todos os outros seres humanos.

Devemos compreender que o desejo de proporcionar uma justificação exaustivamente racional da maneira em que vamos conduzir nossas interpretações é descabelada. A fantasia hiper-racionalista de demonstrar que todas nossas ações (e interpretações) se baseiam em premissas exclusivamente racionais é incoerente e devemos abandoná-la (H. Frankfurt, 2004). Nossos desejos, nossos prejuízos e nossas emoções intervêm sempre em maior ou menor medida em todo o processo de interpretação e de tomada de decisão em concreto, ou, para ser mais preciso, a articulação co-constitutiva da afetividade e da razão intervêm em toda a interpretação (compreensão), justificação e aplicação de uma vontade alheia, sobretudo naqueles domínios em que o “caso concreto”, o “caso da vida real”, surge ao intérprete com uma variedade e uma multiplicidade desconcertantes.

Nesses domínios  em que o acento recai na peculiaridade, na especificidade do caso concreto, deve o operador do direito convencer-se de quanto seria nefasta a eventual pretensão do legislador de regular ele próprio tudo, prendendo o intérprete de pés e mãos, fazendo dele uma pura máquina subsuntiva ou “descobridor de significados inerentes”, ao cabo de cujo funcionamento se estaria em face de uma interpretação ou solução que a todas as luzes mal quadraria ao caso considerado –  isso apenas para dizer o mínimo. A assunção responsável de que o intérprete goza de de certa margem de autonomia é, pois, no nosso caso (no caso da interpretação/aplicação jurídica), uma atitude necessária e uma solução por demais fecunda. Em verdade, é no autônomo processo de interpretação dos códigos morais e jurídicos da sociedade que a conduta do intérprete, sempre pessoal, produtiva e constitutiva, garantirá a condição de cidadania plena, ou seja, a sua devida prioridade frente a qualquer outro fenômeno sócio-cultural e existencial.

Assim que  a interpretação não pode prescindir da insubstituível atividade e iniciativa do sujeito. A interpretaçao é, em efeito, um espaço de jogo entre vínculo e liberdade, entre rigidez e flexibilidade, entre lógica do provável e do razoável por um lado, e lógica do necessário e do constritivo por outro, quer dizer, um espaço dentro do qual é certamente possível uma pluralidade de soluções alternativas, ainda que isso não signifique em absoluto que todas as interpretações sejam igualmente legítimas: e dado que não existe certezas demonstrativas nem verdades empíricas, somente a argumentação, entre as distintas hipóteses interpretativas possíveis, pode orientar no sentido de uma interpretação satisfatória e razoável, no sentido de eleições prudentes e responsáveis, guiadas por  “boas razões”, que sirvam às nossas intuições e emoções morais e à justiça e não as traicionem.

O esquema teorético-cognoscitivo sujeito-objeto passou a fazer parte do passado, pois falha desde o ponto de partida: um intérprete que crê que recebe seus critérios de interpretação somente do texto, do significado inerente às palavras da norma, sucumbe a um equívoco fatal, pois (inconscientemente) permanece dependente de sua própria irracionalidade. Dito de outro modo, um intérprete que crê que a relação direito/norma é tudo esquece que a medida do direito, a própria idéia e essência do direito, é o humano, cuja natureza resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de prejuízos, experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural.

Aqui está sempre presente (embora não exclusivamente, é certo) um certo momento pessoal e criativo relacionado com a sempre problemática “racionalidade” humana, isto é, de que o “conhecimento” do direito importa sempre um pouco de “construção” humana do jurídico. Mais claramente: o direito na sua forma concreta de existência (nomeadamente, tal como é “proferido” pelos tribunais) surge sempre e somente no processo de realização do direito, com a participação integral da personalidade do sujeito que compreende (do intérprete). Da mesma forma que a  “beleza” não existe realmente senão quando se plasma em uma concreta obra de arte,  não parece prudente dispor acabadamente de meras “possibilidades” ou “potencialidades”,  à margem da mesma tarefa interpretativa em que afloram as normas do caso concreto.

Como se vê, a tarefa de realização do direito, para a gente que vive em uma comunidade prenhada de normas, é algo mais complicada.

5. O “prejuízo” como condição humana  

          No vasto e importante debate que nas últimas décadas se abriu em torno ao problema da interpretação jurídica, nenhuma teoria específica da interpretação logrou reivindicar para si um papel exclusivo. Sem embargo, não há dúvida de que no fascinante ciclo cultural que viu a interpretação, em poucos anos – desde a publicação, se desejamos indicar uma data, de Verdade e Método de Gadamer –  converter-se certamente em um dos temas objeto de maior interesse e de mais ampla confrontação teórica, jogou um papel de primeira importância a não comum capacidade atrativa e, ao mesmo tempo, a flexibilidade com que a hermenêutica filosófica funcionou, ora como polo atraente, ora como elemento de contraposição com posições filosóficas diferentes ou inclusive contrárias ao programa teórico que a mesma sustenta.

          Com sua tese da inseparabilidade do conhecer e o interpretar e do interpretar e o aplicar, e da incidência da interpretação na realidade mesma que haverá de interpretar-se, ou seja, da construtividade do interpretar, a hermenêutica acabou por abrir caminho a uma ampla gama de ricas e originais reconsiderações teóricas dos temas do compreender, do interpretar, do aplicar, do significado e da linguagem, aproximando âmbitos distintos do saber.

          Muitos e importantíssimos são os problemas levantados e discutidos no âmbito desta abertura de novos itinerários intelectuais propiciados pela centralidade do tema interpretação, no qual, por sua vez, a interpretação jurídica – inclusive graças a um novo despertar da consciência hermenêutica dos juristas, depois de que durante todo o século XIX e boa parte do XX o modelo do bom legislador havia prevalecido claramente sobre o modelo do bom intérprete – foi convertida no ponto central da filosofia e da ciência jurídica.

          De fato, não seria nenhum exagero afirmar que a teoria hermenêutica do direito deu passos de gigante no século XX, propiciando uma indubitável aproximação entre momento normativo e momento interpretativo-aplicativo. Mas se há um em particular, e que parece haver despertado maior interesse e cuidadosa atenção, certamente este está representado pela presença do prejuízo ou pré-compreensão na atividade interpretativa e nos processos de tomada de decisão.

O problema, portanto, está em saber como começamos a fazer suposições, a pré-compreender, a formular prejuízos ou ter conhecimento prévio. Fazer suposições ou conjecturas sobre como são as pessoas (ou fenômenos do mundo) antes de ter alguma informação sobre elas é prejulgá-las. E embora a palavra “prejuízo” por vezes pareça mal, o certo é que se trata de um elemento crucial para que nosso cérebro funcione. Os prejuízos nos permitem começar a conjecturar, sendo indiferente o atinada que possa ser a conjectura sempre e quando ajustemos a próxima em resposta ao erro. Por exemplo, quando percebemos objetos do mundo físico, o cérebro sempre espera que a luz venha desde cima. Trata-se de um prejuízo incorporado ao longo da evolução. Da mesma forma, quando o cérebro observa pessoas em movimento espera que estas alcancem seus objetivos com um mínimo de esforço (recordemos, por exemplo, os inúmeros estudos levados a cabo sobre a imitação). Isto também é um prejuízo inato (Frith, 2007). Estes prejuízos nos permitem iniciar o ciclo de hipóteses e predições em virtude do qual nosso modelo do mundo é cada vez mais preciso.

Estamos predispostos de maneira inata a prejulgar. Todas as nossas interações sociais e nossas relações com o mundo físico começam com prejuízos, cujo conteúdo nos permitem fazer conjecturas iniciais sobre as intenções de nossos congêneres assim como conjecturas, abstrações e deduções causais dos fenômenos que nos rodeiam. Isto também não é algo opcional, não é algo que possamos eleger não fazer quando atuamos no mundo físico e social em que plasmamos nossa vida. Necessitamos fazê-lo para poder atuar em consequência. Ademais, para ser completa, qualquer conhecimento prévio ou qualquer simulação interna deve conter não só modelos da mente de outras pessoas, senão também um modelo de si mesma, de seus próprios atributos estáveis, seus traços de personalidade e os limites de suas capacidades; o que pode fazer e o que não.

É da natureza do existir humano que quando observamos o comportamento de nossos congêneres, raras vezes, e é possível até que nunca, observamos um mero mosaico de atos incidentais. O que (pré-)vemos detrás  deles é uma estrutura causal mais profunda, a presença oculta de planos, intenções, emoções, recordações, etc., e partindo dessa base, podemos tratar de compreender o que fazem os demais. Estamos desenhados pela seleção natural para ter uma capacidade de prever ou de ter uma imagem prévia (um prejuízo), uma espécie de modelo conceitual da mente humana, sem o qual uma espécie essencialmente social como a nossa não haveria conseguido prosperar no entorno sócio-cultural em que  move sua existência. Não há um minuto em que não intentemos ler a mente, elaborar um conhecimento prévio ou imaginar as intenções dos demais.

De fato, um dos maiores incovenientes do ser humano é a dificuldade que supõe contemplar-nos uns aos outros sem prejuízos; somos, de fato, seres desenhados para (pré-)compreender  as pessoas e  os fenômenos que nos cercam. Daí que não nos resta outra opção – ademais de oportuna – que a de observar que a hermenêutica de Gadamer, particularmente no que se refere à compreensão prévia (ou prejuízos), captou adequadamente o núcleo de nossas intuições cognitivas – isto é, do que vem das intuições ínsitas em nossa arquitetura cognitiva e que nos proporciona ou determina o repertório de nossas primeiras conjeturas e hipóteses – sobre a inata capacidade para interpretar (pré-compreender) os outros, para ler suas mentes, para entendê-los e para entender a nós mesmos como seres intencionais, ou seja, para ler o que há sob a superfície, antecipar acontecimentos e dar sentido ao que vemos.

Nossos cérebros são basicamente máquinas de fabricar modelos da mente de outras pessoas, manipular os significados e formular conjecturas ou prejuízos acerca dos fenômenos físicos e sociais que conformam e condicionam nossa existência. O cérebro humano é uma “máquina de antecipação”, e “criar futuro” não somente é o mais importante que faz senão que parece ser o traço definitório de nossa humanidade (Roberts, 2002; Dennett, 1997): o ser humano é o único animal capaz de imaginar objetos, comportamentos e acontecimentos que não existem no reino da realidade, e esta habilidade é a que nos permite antecipar, prever, imaginar ou pensar no futuro; nosso cérebro está desenhado para antecipar (pré-compreender), e isso é o que faz (Gilbert, 2006).

E é precisamente o lobo frontal – a última parte do cérebro em evoluir, a que amadurece com mais lentidão e a primeira a deteriorar-se durante o envelhecimento – a peça fundamental da maquinária cerebral que permite aos adultos humanos normais e modernos a projetar-se a si mesmos no futuro, a abandonar o presente e experimentar o amanhã antes de que ocorra; sem ele, estamos atrapados no momento, incapazes de imaginar o que “virá depois”, a pensar na existência a longo prazo, encerrados no espaço e tempo imediato, enfim, ligados aos estímulos do presente ou destinados a viver em um presente permanente.

Este é o cometido (regular e espontâneo) de nosso lobo frontal e que ocupa até o último rincão de nossa existência mental: nenhum outro ser vivo tem um lobo frontal como o nosso, que é a razão pela qual somos o único animal que imagina, antecipa, elabora conhecimento prévio ou pensa no futuro tal como o fazemos (Gilbert, 2006). Resumindo, são as diversas regiões do córtex pré-frontal que produzem, operando em conjunto, todas aquelas qualidades que consideramos mais essencialmente humanas: a capacidade de fazer planos e antecipar, de prejulgar, de antecipar conhecimento, de sentir emoção, de controlar nossos impulsos, de eleger e de dotar de significado nosso mundo.

Em termos propriamente jurídicos, a “pré-compreensão” (como inafastável condição de possibilidade da compreensão) implica que o intérprete-aplicador, quando confeccione e manuseie os modelos de decisão, tenha já uma pré-visão do problema, uma antecipação do futuro, fruto da sua experiência, dos seus conhecimentos, das suas convicções e da própria linguagem. A “pré-compreensão” constitui, assim, um momento essencial do fenômeno hermenêutico e é impossível ao intérprete desprender-se da circularidade da compreensão: por meio da análise dos fatores pré-firmados da decisão, e assumindo-se, designadamente, a dimensão dialética e prático-normativa do direito, há de integrar, na medida do possível, o próprio pré-entendimento nos modelos de decisão, limando arestas e valorizando os fatores normativos, fáticos e sistemáticos que porventura venha a incluir.

E nomeadamente para o que aqui nos interessa, já agora podemos reafirmar, com Gadamer, que a pré-compreensão (posta pela tradição hermenêutica como ponto de partida do círculo ou “espiral” hermenêutico) é, de fato, algo inevitavelmente dado pela ontologia evolucionada do “ser no mundo”, e não uma plataforma de interpretação na qual deve situar-se o intérprete. Como dissemos antes, muito antes de que a neurociência começasse a dar a devida importância ao conhecimento prévio, o prejuízo já havia sido reabilitado por Gadamer em sua teoria hermenêutica: em vez de supor um obstáculo, nossos prejuízos nos facilitam o – constituem o primeiro meio ao – acesso ao que há que compreender.

Neste particular, e a título meramente exemplificativo, uma breve reflexão paralela acerca da questão da iniludibilidade da presença da pré-compreensão no processo de realização do direito pode ser ilustrada da seguinte maneira: como pode um juiz decidir, sem prejuízo, um caso completamente desconhecido para ele? Como pode fazê-lo? É possível que desconheça este caso concreto; mas se desconhece também tais casos, em que direção há de praticar provas e interpretar a lei, se ele não tem idéia alguma acerca do que este trata? Como haveria de emitir um juízo justo, se não pudesse comparar este caso com os outros muitos casos de que já tem notícia (princípio de igualdade)? Criar direito é um reconhecimento de algo em certa forma conhecido com antecipação; não significa, em absoluto, ingressar em terreno desconhecido (Kaufmann, 1999).

Em qualquer caso, sempre se produz um choque entre a norma interpretanda e as preferências pessoais do operador do direito, o que não é senão outro modo de dizer que todo juízo do sujeito-intérprete há de ir inevitavelmente precedido, o saiba e queira ou não, de um pré-juízo que contribui para colocá-lo em situação. O operador do direito que não é consciente de seu prejuízo é, em realidade, o mais dependente, acrático e imprudente. Tão somente o prejuízo, a pré-compreensão ou o conhecimento prévio mostra-lhe o que tem de interpretar na norma e o que há de qualificar normativamente no caso. Do contrário teria de proceder na incerteza, no desconhecido. Dois atos separados dessa maneira, um, a norma legal abstrata, o outro, o caso amorfo, não produzem direito algum, nem cada um por separado nem ambos ao mesmo tempo (Kaufmann, 1999).  

 Desde uma perspectiva prático-filosófica, a interposição de prejuízos identifica uma “condição necessária de todo o compreender” – que, por sua vez, condiciona todo o processo de realizar em termos metodologicamente adequado a sua relação com o fazer valer uma norma jurídica na prática – e, desde uma ótica especificamente prático-jurídica, a respectiva pré-compreensão (sempre provisória e, portanto, parcial),  se começa por demarcar um  conteúdo presumivelmente  ajustado  ao caso decidendo (impondo o  “ônus da contra-argumentação”  a quem dela pretenda se afastar), acaba por conformar, quando se revele pertinente, um autêntico  conteúdo de validade” vinculativo para o intérprete – ou seja, já não é de todo lícito e razoável pretender excluir o sentimento jurídico como a  arte de ter  pré-compreensões corretas.

E mais: dessa mesma capacidade humana de antecipar, de “criar futuro”, é que surge a preocupação de pensar em conseqüências que, como componente igualmente relevante da tarefa interpretativa, permite ao sujeito-intérprete o conhecimento, a ponderação e a responsabilidade pelos efeitos éticos e sociais de seus discursos ou decisões. Vale dizer, da consideração, pelo operador do direito, dos efeitos futuros da interpretação que adotará diante do caso concreto, da norma interpretada e dos princípios e valores correspondentes. É que as interpretações e decisões jurídicas, dependendo do grau que assumam no ordenamento jurídico, constituem inegável instrumento de estabilidade e alteração da realidade social, de modo que o intérprete tem indisfarçável responsabilidade social com a interpretação que adota e/ou à decisão jurídica que profere. Esta responsabilidade social nada mais é do que um componente da prudência que deve iluminar todo o processo interpretativo, a fim de serem afastadas as interpretações e decisões estapafúrdias, desconectadas do sistema jurídico e do contexto histórico-social em que são proferidas.

 

E o juiz, mais do que qualquer outro intérprete do direito, tem elevada à máxima potência essa exigência de prudência com o teor das suas decisões. O direito, como instância da realidade, tem inegável função de promover a estabilidade social:a antecipação das consequências não somente influi diretamente sobre os efeitos que a decisão jurídica provocará no futuro senão que também manifesta a virtuosa prudência no ato de julgar. A pré-compreensão, que engloba tanto o dado passado (crenças, desejos, emoções, sentimentos, etc.) como a antecipação de consequências (dado futuro), não somente constitui uma condição necessária da tarefa interpretativa senão que delimita os significados normativos que o intérprete atribui e constrói para solução da controvérsia circunstancialmente em causa. A “boa interpretação”, a interpretação “satisfatória”[7], entendida como a interpretação cujo componente de justiça não afeta a estabilidade social e a segurança jurídica, é aquela que considera de forma equilibrada estes dois aspectos no processo interpretativo: interpretar/aplicar o direito é acima de tudo uma virtuosa responsabilidade ética – ou seja, podemos admirar o estilo de um discurso jurídico ou a habilidade do sujeito-intérprete, mas ainda assim devemos julgar tanto a um como ao outro pelos resultados de sua atividade (e neste particular, o realmente revolucionário é o fato da neuropsicologia haver descoberto que, sem memória, tampouco há futuro: quando  imaginamos o futuro, curiosamente se ativam as mesmas partes do cérebro que quando recordamos o passado; e ambas incluem o hipocampo – Schacter, 2007). .

Os prejuízos são, assim, o humano na aplicação do direito e não há nenhuma técnica, por mais sofisticada que se apresente, que seja capaz de eliminá-los[8]. A assunção deste elemento natural da psicologia humana na realização do direito o torna transparente, em lugar de ocultar-se detrás dos “impessoais” fundamentos da decisão. Todo aquele que deseje compreender um sentido traz necessariamente sua pré-compreensão (condição de possibilidade da compreensão dos fenômenos do mundo e que deve ser revisada sempre mediante novos atos do conhecimento) e, por meio dela, introduz sua evidência no processo de compreensão; uma compreensão semelhante não é empiricamente objetivável, mas tampouco descaradamente subjetiva: é mais bem subjetiva-objetiva ao mesmo tempo.

Daí haver uma diferença significativa entre o que Haidt (2001) – a partir do “Social Intuitionist Model” que emarca suas investigações científicas acerca do julgamento moral – define como intuição moral e raciocínio ou justificação moral. O primeiro (o momento da intuição), trata-se da aparição repentina, rápida e intuitiva  de um juízo moral que inclui uma valoração afetiva (certo-errado, bom-mau ) sem nenhuma consciência de haver passado pelos estágios de busca, ponderação da evidência ou inferência de uma conclusão…um processo similar ao juízo estético (Cela Conde et. al., 2004): um indivíduo vê ou ouve acerca de um acontecimento social e instantâneamente sente aprovação ou desaprovação. O segundo, o da justificação, é uma construção ex post facto, uma construção ou composição de razões após o fato, com a qual pretendemos justificar ou dar razões para nossas intuições morais automáticas.

Transladada ao campo da argumentação jurídica (da justificação das decisões judiciais – Wassestrom, 1961; Golding, 1987; Wróblewski, 1974 e 1988; Nino, 1985; Atienza, 1993; Aarnio, 1991 e Alexy, 1997), esta distinção, que procede do âmbito da filosofia da ciência (nomeadamente da epistemologia neopositivista), tem sido utilizada para estabelecer que uma coisa é o procedimento por meio do qual se alcança determinada decisão e outra o procedimento mediante o qual se justifica dita decisão. Trata-se de uma distinção utilizada para opor-se a certos teóricos do direito que consideram que as decisões jurídicas – as decisões judiciais – não podem ser justificadas, uma vez que os juízes tomam essas decisões de forma irracional; a motivação das sentenças não seria mais que uma  “racionalização” de uma operação que não obedece em absoluto ao esquema da lógica, ao silogismo judicial. Quem sustenta este último aspecto, diz-se, estaria confundindo o contexto de descobrimento com o contexto de justificação[9].

Contudo, se tomamos em boa conta que o raciocínio moral e as emoções morais trabalham junto para produzir julgamentos ético-jurídicos, parece razoável supor que as apelações a uma multitude de motivos que interferem, condicionam e explicam a decisão judicial não configuram, em absoluto, nenhum argumento a favor de um presumível escepticismo jurídico-argumentativo. Neste particular sentido, não se nos afigura razoável desconsiderar de todo o denominado “irracionalismo” proposto por Alf Ross (1970), no sentido de que o aplicador do direito toma sua decisão em base a intuições emocionais e a considerações práticas; uma vez estabelecida a conclusão, o mesmo aplicador desenvolve uma argumentação jurídico-ideológica para justificar sua decisão: não se trata já de um ato puramente cognoscitivo que conduza a uma tomada de decisão ( a uma solução automática ou exclusivamente racional), senão que há uma decisão que posteriormente recorre a um procedimento argumentativo a efeitos de justificação.

Dito de outro modo, no conjunto deste cenário por meio do qual se revela a argumentação no jogo da cena jurídica (e, em particular, da jurisdicional), consideramos que se deve atribuir igual importância tanto a consideração do contexto de descobrimento, ou seja, do processo mental mediante o qual se chega a estabelecer determinada premissa ou conclusão, como a do contexto de  justificação, isto é, da necessidade de motivação da decisão, da questão de como os operadores do direito fundamentam suas decisões ou, o que é o mesmo, do procedimento consistente em justificar dita premissa ou conclusão. Afinal, a pré-compreensão não é um elemento acidental ou eventual da tarefa interpretativa,  mas um elemento que a determina desde o princípio e no seu conjunto : decobrimento a justificação, na prática, não são dois atos separados e estanques, senão que constituem um processo unitário, um continuum, compondo uma indivisível e solidária unidade metodológica.

E por mais insólito que isso possa parecer, já não mais deveria constituir nenhuma surpresa ou ameaça aos positivistas, hermeneutas ou analíticos de plantão. Se o poder da ciência (e particularmente da neurociência) consiste precisamente em sua capacidade de verificar objetivamente a consistência de muitas subjetividades individuais, decifrar ou entender o problema da intricada passagem da iniludível e provisória antecipação do resultado (da pré-compreensão) a sua definitiva motivação pode subministrar as evidências necessárias sobre a natureza das zonas cerebrais ativadas e dos estímulos cerebrais implicados no processo de interpretar e decidir, sobre o grau de envolvimento pessoal dos julgadores e os condicionantes culturais em cada caso concreto, assim como sobre os limites da racionalidade, da criatividade e o grau de influência das emoções e dos sentimentos humanos na formulação e concepção acerca  da “melhor decisão”.

6. O que podemos esperar 

Os ideais racionalistas e liberais sobre a racionalidade formal do direito legal e a metodologia jurídica já entraram em crise há alguns anos: à disputa clássica sobre o papel dos valores na decisão jurídica, sucedeu – quiçá porque são poucos os que ainda insistem em desconsiderar o papel dos “prejuízos” (da “pré-compreensão”, das emoções e dos juízos de valor) na tarefa interpretativa – o problema da “materialização” do direito que promove o desenvolvimento da individualidade (livre, separada e autônoma) do ser humano e a eficaz garantia dos direitos que habilitam publicamente a sua condição de cidadania plena.

          Já se construíram grandes edifícios de teoria e metodologia jurídica que foram criticados e defendidos, submetidos à revisão e ampliados pelos melhores métodos de investigação racional, e dentro desses artefatos do pensamento humano figuram algumas das criações mais extraordinárias da cultura humana e jurídica. Uma operação semelhante realizada com o ponto de vista posto na possível objetividade de alguns princípios ou postulados do direito poderia fazer frente talvez com garantias às desviações cientificistas da ciência jurídica. Mas em realidade nos enfrentamos com o caso contrário.

          No campo jurídico, por exemplo, poucas vezes se prestou a devida atenção à evolução da natureza humana, à estrutura e ao funcionamento material do cérebro humano como fonte das predisposições e dos prejuízos que permitem levar a cabo toda e qualquer tarefa interpretativa. Com efeito, as teorias jurídicas ainda seguem sem suscitar uma incondicionada concordância de idéias e opiniões de todos aqueles que já lhes estudaram cuidadosamente.

          Não há que estranhar-se, pois, que o processo de realização do direito seja uma das mais problemáticas e contestadas publicamente de todas as empresas jusfilosóficas. Não está informada por nada que seja reconhecível como autêntica teoria nas ciências naturais: o direito carece das bases de conhecimento verificável da mente, do cérebro e da natureza humana necessárias para obter e produzir predições de causa e efeito e juízos justos baseados nelas. É possível, por que não dizer, que a maior parte das propostas de fundamentação teórica e metodológica do direito que já se formularam ao longo da história pequem por sua inviabilidade em função dessa desatenção com relação à realidade biológica que nos constitui, ou seja, pela falta de precisão de sua adesão à natureza humana.

A neurociência parece ser claramente a matéria que, a longo prazo, nos permitirá encontrar vias altamente sofisticada para entender as aptidões psicológicas específicas do ser humano à hora de formular juízos de valor, interpretar, justificar e decidir. É definitivamente necessário dar-se conta de que em todos os casos a interpretação e a aplicação do direito está causada por eventos cerebrais. E é precisamente por essa simples razão que estamos firmemente convencidos de haver chegado o momento de começar a operar com o que já sabemos sobre o cérebro e como isso pode vir a influenciar o atual modelo teórico e metodológico da ciência do direito. Para dirigir-se a este, parece razoável admitir que devemos partir da premissa de que a capacidade moral e ético-jurídica é (ou deve ser) contemplada como um atributo do cérebro humano, circunstância esta diretamente relacionada com o problema da tomada de decisão humana em todas as suas dimensões. E a compreensão do comportamento humano oferecido até agora pela neurociência é perfeitamente compatível com esta perspectiva.

  Esta é apenas uma das muitas formas por meio das quais a neurociência, quanto às emoções imperfeitas e aos fatores de irracionalidade que condicionam  nossos prejuízos ou o que realmente sentimos e experimentamos na tarefa de interpretar,  pode trazer maior contribuição para o desenho e a elaboração de discursos jurídicos ou decisões mais justas do que a ilusão sobre a racionalidade ou emoções ideais que gostaríamos que motivassem o comportamento humano ou que os operadores jurídicos tivessem no processo de tomada de decisão: não há pior prejuízo que imaginar que poderíamos raciocinar sem prejuízos (Todorov, 2008).

 Por certo que no que diz respeito à neurociência, não nos encontramos no fim da nossa compreensão sobre o cérebro, senão que começamos agora a nossa viagem. Durante as últimas três décadas, aprendemos mais sobre o cérebro do que em toda a história registrada, mas ainda há muito mais para aprender. Troço a troço experimental a neurociência vai conformando nossa concepção do que somos; e aos poucos, o peso dessas evidências nos leva cada vez mais a aceitar que é o cérebro o que sente, pensa, valora, interpreta e decide.

Mas se os novos desenvolvimentos na área da neurociência são muito excitantes, o diálogo que começou entre neurocientistas, cientistas cognitivos, filósofos e juristas é ainda mais excitante. Pela primeira vez, ouvem-se diálogos consistentes entre aqueles que estão conduzindo a investigação e os filósofos e operadores do direito que estão procurando aplicar os resultados da investigação. A informação sobre o cérebro e sobre o modo como este funciona não é apenas meramente interessante, mas antes é e constitui um elemento essencial dos fundamentos sobre os quais deveríamos basear as nossas interpretações e decisões jurídicas,  morais e políticas. O cérebro tem importância porque a nossa existência tem importância.

Em resumo, nosso argumento é no sentido de que, diante do atual panorama metodológico acerca do reconhecimento, polêmico em relação com a metodologia tradicional, do fato de que os operadores do direito (especialmente os juízes), em muitos casos e até um certo grau, produzem direito, os novos avanços da neurociência permitirá  uma melhor compreensão da mente e do cérebro e trará consigo a promessa de cruciais aplicações práticas no âmbito da interpretação e aplicação jurídica: constituem uma oportunidade para refinar nossos juízos ético-jurídicos e estabelecer novos padrões e critérios metodológicos sobre cimentos mais firmes e consistentes.

Sem olvidarmos, claro está, de outros aspectos distintivos da natureza do comportamento humano à hora de interpretar e decidir sobre o sentido da justiça concreta e a existência de universais morais determinados pela natureza biológica de nossa arquitetura cognitiva (neuronal). Afinal, é o cérebro que nos permite dispor de um sentido moral, o que nos proporciona as habilidades necessárias para viver em sociedade, para interpretar, tomar decisões e solucionar determinados conflitos sociais, e o que serve de base para as discussões e reflexões filosóficas mais sofisticadas sobre direitos, deveres, justiça e moralidade. Como lembra Ramachandran (2008), nenhuma empresa humana é mais vital que esta (a neurociência) para o bem estar e a sobrevivência da raça humana. Recordemos que a política, a moral, a justiça e o direito também têm suas raízes no cérebro humano. 

 


NOTAS

 

 

[1] O que é o mesmo que dizer que, seja com Gadamer, Esser, Zaccaria ou Dworkin, porque direito é interpretação (e diante da inseparabilidade do conhecer e o interpretar e do interpretar e o aplicar), não há direito que não seja, dentro de um parâmetro de controle da correção da interpretação, direito aplicado para este novo despertar da consciência hermenêutica dos juristas. Trata-se da perspectiva que participa da orientação geral (tanto no âmbito do Common Law como no sistema do Civil Law), dirigida a ligar o conceito de positividade jurídica com o âmbito da realização concreta do direito no momento da decisão do juiz, quer dizer, de um ponto de partida hoje prevalecente na teoria contemporânea do direito: a tese de que o procedimento judicial forma o ponto central prospectivo desde o qual se deve analisar o sistema do direito (Habermas, 1996 e Dworkin,  1986).  

[2] Embora isso não signifique que a realidade não exista objetivamente e que somente exista em nossa imaginação, o problema filosófico segue vigente porque não se trata tanto de se existe uma realidade senão dos critérios de fundamentação dessa mesma realidade – uma vez que as percepções são o resultado de um processo psicológico que combina o que os olhos vêem com o que já pensamos, sentimos, sabemos, queremos e cremos, e ato contínuo utiliza essa combinação de informação sensorial e conhecimento já existente para construir nossa percepção da realidade.

[3] Observe-se que o contraste com Heidegger, ainda que pouco notado pelo próprio Gadamer (provavelmente o mais distinguido entre os discípulos de Heidegger), é suficientemente óbvio: para Heidegger a hermenêutica é o método da filosofia; para Gadamer é um fenômeno de importância filosófica. Ademais, há um contraste impressionante na maneira em que é posto o problema histórico: para Heidegger o objeto da hermenêutica é nossa própria compreensão e para clarificá-la há de seguir para atrás a pista de seus pressupostos históricos; para Gadamer, o objeto da hermenêutica é a  compreensão dos outros e para fazer com que esta empresa tenha sentido tem de estar conectada com nossa compreensão presente.

[4] Dito seja de passo que longe do estabelecimento moderno da subjetividade como princípio determinante de conhecimento e de valoração, a hermenêutica nos mostra que a subjetividade não é mais que uma chispa na corrente da vida histórica, que pertencemos à história e que é  no seio de uma tradição  ou comunidade como nos compreendemos. De fato, na categoria da pré-compreensão – e estamos no primeiro dos três elementos fundamentais do modelo hermenêutico obtidos da hermenêutica geral e adaptados à complexidade do procedimento interpretativo (Zaccaria, 1984 e 1998) – a hermenêutica jurídica individualiza a primeira condição hermenêutica do compreender jurídico. A pré-compreensão põe em movimento o processo interpretativo, proporcionando ao intérprete uma primeira orientação e abrindo sua consideração ao conteúdo linguístico dos textos e dos fatos. É uma potencialidade de conhecimento que desemboca em sujeitos bem determinados com uma hipótese de possível significado que, deixando-se continuamente corrigir por sucessivas hipóteses, que adequem, melhorem e substituam a originária, pode conduzir a modificar a expectativa de significado com que o intérprete se aproxima a um texto. Sem embargo, como lembram Viola e Zaccaria (1999), seria gravemente restringido conceber a pré-compreensão em um sentido exclusivamente empírico-psicológico, reduzindo-a as hipóteses de partida que em um caso concreto ou em uma série de casos concretos efetivamente pôs em movimento o procedimento da compreensão. Se bem ligada ao intérprete individual chamado a aplicar a disposição abstrata a um caso concreto, a pré-compreensão não configura – devido a seu caráter estrutural, irredutível a uma mera dimensão empírica – um ato da subjetividade, um ato individual; sendo pelo contrário determinada sobre a base da participação em um “sentido comum”, é também o resultado de uma socialização profissional e de uma formação jurídica, de uma cadeia de interpretações precedentes que entram a constituir uma tradição comum. O horizonte de quem aplica o direito não é nunca puramente pessoal, senão que se inserta e deve medir-se em um horizonte geral de expectativa, do qual não se pode sair. Assim entendida, a pré-compreensão hermenêutica é o nexo do intérprete com o transmitido, que longe de ser pessoal, se apresenta como comum à sociedade inteira (Viola e Zaccaria, 1999).

[5] Por certo que Gadamer reconhece que Aristóteles não se ocupa aí do problema hermenêutico, mas da avaliação do papel que a razão desempenha na ação moral. E em que pese ter esta coordenação na  Ética o ponto de vista de um “agir correto” – enquanto no discurso jurídico (pelo menos nos sistemas jurídicos modernos, dotados de forte grau de institucionalização)  o problema do “agir correto” transmuda-se, em elevado grau, em um “agir conforme” (aos dados do “sistema”) -, Gadamer, ao explorar a idéia de “phronesis”, coloca-se no terreno do neo-aristotelismo e compreende o juízo prático como um mero juízo de “contextualização”, de “assimilação” entre pauta geral e situação, quer dizer, como realizando uma applicatio – ou seja,  procedendo à clarificação e concretização de conteúdos normativos pré-dados.

[6] Dito de outro modo, a racionalidade humana é altamente dependente de emoções sofisticadas. Nosso raciocínio só funciona porque nosso cérebro emocional funciona tão bem. A imagem proposta por Platão do cocheiro que controla as bestas desenfreadas da paixão pode exagerar não apenas a sabedoria, mas também o poder do condutor. David Hume estava mais próximo da verdade e se encaixa melhor às descobertas neurocientíficas quando disse: “A razão é, e só deveria ser, escrava das paixões, não podendo jamais almejar outra coisa, exceto servi-las e obedecê-las”. Enfim, razão e emoção precisam trabalhar juntas  para criar o comportamento inteligente, mas a emoção é responsável pela maior parte do trabalho. De fato, os biólogos e os neurocientistas chegaram à conclusão de que não se pode tomar uma decisão sem emoção e de que todas as decisões supostamente lógicas e razoáveis estão contaminadas por uma emoção: ou existe emoção ou não existe decisão. (Haidt, 2006; Damasio, 1994; Gazzaniga, 2005; LeDoux, 1998; Perna, 2004).

[7] Introduzido em psicologia, “satisfazer” ou “ser suficiente” significa que se tomou a primeira eleição satisfatória encontrada de todas as que se percebem e são razoavelmente alcançáveis a curto prazo, em contraposição a imaginar por adiantado a eleição ótima e buscá-la até que se a encontre (Gigerenzer e Tood, 1999; Fernandez, 2006). Segundo o modelo satisfatório, é mais provável que um jovem que deseje casar-se proponha matrimônio à candidata mais atrativa entre as jovens casamenteiras conhecidas e que não busque durante muito tempo uma companheira ideal preconcebida. Em contraste com a otimização – obter o melhor resultado – trata-se de obter um resultado que seja bastante bom, quer dizer, que seja  satisfatório. Com efeito, as afirmações de “otimicidade” têm um modo de desvanecer-se: não é necessário nenhum descaro para admitir modestamente que, dadas nossas limitações e as características ubíquas da tomada de decisão em tempo real,  aquela que era considerada a melhor solução que  poderíamos encontrar é, por vezes, praticamente inalcançável. Da mesma forma, às vezes se comete o erro de supor que há, ou deve  haver, uma perspectiva única (melhor ou mais elevada) desde a qual avaliar a racionalidade ideal: a ser assim, sofreria interminantemente o “intérprete ideal” o problema demasiado humano de não ser capaz  de recordar e processar certas considerações cruciais quando estas seriam as mais reveladoras e efetivas para resolver um caso concreto de forma “ótima”. De certo modo, a assunção consciente dessa perspectiva evitaria, em muitos casos, a erupção de “dissonâncias cognitivas” na psique do sujeito-intérprete. Suponhamos que prefiro A a B sempre e em qualquer caso. Mas o  contexto no que me movo – meu conjunto exterior de oportunidades – é tal que A ( no caso, a “solução ótima”) é praticamente impossível, mas B, ao contrário, é de fácil acesso.A teoria da dissonância cognitiva (na qual as pessoas mudam qualquer opinião a fim de manter uma auto-imagem positiva), como um dos mecanismos psicológicos adaptativos, prediz, então (sob determinados supostos), que, a partir desse momento, se desencadear-se-ão processos em minha mente que acabarão por me fazer preferir B a A, sem que intervenha nele decisão consciente alguma de minha parte. A modificação de meu gosto se deve a mecanismos causais ocultos – ou quase ocultos – à minha consciência, e esse câmbio se produz no mesmo plano ou ordem de preferências: acabarei por me adaptar a meu contexto de um modo “espontâneo”, automático, sem que se possa dizer que o tenha feito autonomamente, senão heteronomamente, isto é, forçado pelas circunstâncias exteriores e sem me aperceber de que fui determinado por elas. Bem distinto é o caso em que o contexto no qual me desenvolvo frustra meus desejos (de primeira ordem) de A, mas tenho uma segunda ordem de preferências que me aconselha preferir (prioritariamente)  B a A quando A não é acessível, ou melhor ainda, que me aconselha conformar-me com o disponível em cada momento e suprimir ou extinguir os desejos impossíveis. As constrições exteriores não haveriam conseguido mudar – heteronomamente – meus gostos, mas eu me adaptaria igualmente bem a elas, e de um modo perfeitamente consciente do processo psíquico seguido. Ora, no caso da adaptação (ou busca de consistência) pela primeira via, se dariam provavelmente efeitos colaterais perniciosos para minha saúde mental (sentimentos mais ou menos difusos  de frustração, acaso pequenas – ou grandes, segundo a importância atribuída a A – atitudes neuróticas,etc.); é mais improvável que isso ocorrera no segundo caso e, se ocorresse, ao menos estaria consciente a respeito do acontecido. Tal é a diferença entre ter uma conduta aparentemente virtuosa e outra plena e conscientemente permeada pela virtude, ou seja, entre adaptar-se – buscando a coerência  de pensamento e comportamento – por dissonância cognitiva e remodelar o conjunto interior de oportunidade, entre abandonar à deriva nossas preferências e possuir umas metapreferências (que atendem a todas as razões) que governam serenamente nosso trato com o mundo exterior ( pondo sob controle as preferências de primeira ordem – que obedecem, certamente, a razões, mas não a  todas as razões ) . Quanto sofrimento humano deixa sua raiz mais profunda em um conflito entre nossas ordens de preferências.

[8] A este propósito, Arthur Kaufmann (1999) cita as seguintes palavras, demasiadas humanas, de Antoine de Saint-Exuperie (desafortunadamente sem referência de fonte): “Eu creio que virá o dia em que um homem enfermo se ponha em mãos do físico e do informático. Estes não lhe perguntarão nada, somente lhe tomarão sangue, deduzirão algumas constantes, multiplicarão umas com outras e depois de haver consultado sua calculadora, curarão o paciente com uma só  pílula. E sem embargo, quando eu enferme, me dirigirei ao meu médico rural. Ele me mirará com o canto do olho, comprovará  o pulso e estômago, me auscultará, se frotará a barba e me sorrirá, para mitigar a dor. Se compreende: me entusiasma a ciência, mas não me entusiasma menos a sabedoria”. Um computador não poderá jamais ser um juiz sábio, porquanto ele carece de sentimento do direito.

[9] A hermenêutica indaga o comprender jurídico no contexto de seu “descobrimento”, não no sentido da motivação: considera a jurisprudência, sobretudo no âmbito de sua atividade dedicada a encontrar as premissas para a decisão do caso concreto. Se fosse absolutizada, quer dizer, transformada em método total do pensamento jurídico, recairia na mesma automaticidade que justamente reprocha à metodologia silogística tradicional, acabando assim por cambiar a descrição em prescrição (Zaccaria, 1984; Viola e Zaccaria, 1999).


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

ATAHUALPA FERNANDEZ:  Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.;Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

MARLY FERNANDEZ:  Doutora em Filosofía Moral (Cognición y Evolución Humana)/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha; Investigadora  da Universitat de les Illes Balears/ UIB-Espanha (Etología, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana)

ÆPara a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2007; Atahualpa Fernandez, Argumentação jurídica e hermenêutica, Campinas: Ed. Impactus, 2006; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, 2008.

 

 

Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

Fale Conosco!

spot_img

Artigos Relacionados

Posts Recentes