*Maria Berenice Dias e Ivone M. C. Coelho de Souza
Ao buscar-se dimensionar, no contexto social, o conceito de família, é mais ou menos intuitivo identificar família com a noção de casamento, conjunto de pessoas ligadas a um casal unido pelo vínculo do matrimônio. Também vem à mente a imagem da família patriarcal, sendo o pai a figura central, na companhia da esposa, e rodeados de filhos, genros, noras e netos.
Para o cristianismo, as únicas relações afetivas aceitáveis são as decorrentes do casamento entre um homem e uma mulher, configuração com nítido interesse na possibilidade de procriação. Essa conservadora cultura, de larga influência no Estado do início do século, acabou levando o legislador pátrio, ao redigir o Código Civil, em 1916, a reconhecer juridicidade apenas ao matrimônio, verdadeira instituição geradora de um vínculo indissolúvel. Identifica a lei o conceito de família como a relação decorrente do casamento.
A perda da plena capacidade da mulher e a indispensabilidade de ela adotar os apelidos do marido mostram o significado que tinha o casamento. Duas pessoas fundiam-se numa só, formando uma unidade patrimonial, tendo o homem como único elemento identificador do núcleo familiar.
A finalidade da família constituída centrava-se na transmissão de patrimônios de qualquer natureza, hoje delegada à divulgação da tecnologia de comunicação e à chamada globalização.1 Até então, a família tradicional, permanecendo a serviço da grande sociedade, funcionava como polícia, que, se falhava, o Estado empregava a sua, diz Michelle Perrot,2 quando tenta abranger a transmissão das tradições, pela imposição peculiar a tempos passados.
Hoje, a dinâmica das transformações impressas aos grupos familiares, especialmente na modernidade e na pós-modernidade, deve ser revisitada sob a ótica da transformação dos papéis da mulher, sem que se incorra em distorção: a mulher sempre simbolizou no imaginário universal a afetividade, a capacidade de procriar, de cuidar, enfim, conceber e zelar pela sua prole, fenômenos que no gênero humano estão impregnados de um sentimento capaz de, por si só, diferenciar a espécie. Aliás, os movimentos de mulheres, atualizados, postulam que nenhuma questão humana deve ser alheia ao feminismo. É fácil deduzir que a recíproca seja igualmente verdadeira.
Pontes de Miranda salienta que a Economia pode desencadear alguns fatos sociais que o Direito posteriormente referenda. Da mesma forma, a História e outras ciências sociais apontam os mais decisivos movimentos femininos em direção a mudanças, precipitados por fatores econômicos, dos quais o mais eloqüente foi a demanda de mão-de-obra feminina durante as duas Grandes Guerras.
Diante das famílias, até aqueles tempos, as funções da mulher reduziam-se ao interior, historicamente sem voz nas decisões de seus próprios grupos familiares e sem influência nas suas manifestações. Não lograva acesso à informação, equiparava-se em dependência aos filhos menores e sua figura era considerada, perante a lei, incapaz. Esse paradigma feminino por si representou a identificação polarizada da submissão na família, uma vez que lhe era absolutamente impossível prover seu sustento. Era nula como agente de produção econômica formal.
Qualquer ordem jurídica legítima cambia constantemente, uma vez que muda a sociedade. Essa afirmação de Pontes de Miranda prossegue com a idéia de que o fato jurídico é antes um fato social e este, amiúde, um fato econômico. Se em tal reflexão já está introduzida a função do Direito, à Psicologia cabe apreender dinamicamente o estabelecimento dessas verdades, tentando sondar o inconsciente do homem, em que jazem as verdadeiras origens de seus comportamentos, suas inclinações e a capacidade com que pode ou não mudá-los. São, efetivamente, formas de ser e agir influenciadas pela realidade externa, enquanto também a influenciam. Um jogo interativo no qual é sujeito e/ou objeto de constante ebulição.
Pouco antes, todavia, dos grandes conflitos armados na Europa, já era observável haver-se instalado um desgaste da repressão representada pela era vitoriana do século XIX, graças, entre outras, às contribuições da Psicanálise, que se firmara como ciência e se debruçava no esforço de captar o entendimento profundo da feminilidade, apesar da leitura inicial de Freud e de alguns de seus discípulos, que identificavam a figura feminina como naturalmente passiva.
Johann Bachofen,3 pensador e jurista suíço do século XIX, autor do primeiro trabalho científico sobre a família como instituição social, contesta a idéia de que a família monogâmica e patriarcal devesse ser um fato inquestionável e natural. Perrot refere-se a esse grupo como o nó e o ninho, ao mesmo tempo um refúgio caloroso, centro de intercâmbio afetivo e sexual, barreira contra a agressão exterior,… mas também secreto… palco de intrigas,4 tão identificável pelos psicólogos que se dedicam ao estudo e tratamento de famílias e tão impressionantemente imortalizado por Eça de Queiroz em A Ilustre Casa de Ramires.
As famílias modernas ou contemporâneas constituem-se em um núcleo evoluído a partir do desgastado modelo clássico, matrimonializado, patriarcal, hierarquizado, patrimonializado e heterossexual, centralizador de prole numerosa que conferia status ao casal. Neste seu remanescente, que opta por prole reduzida, os papéis se sobrepõem, se alternam, se confundem ou mesmo se invertem, com modelos também algo confusos, em que a autoridade parental se apresenta não raro diluída ou quase ausente. Com a constante dilatação das expectativas de vida, passa a ser multigeracional, fator que diversifica e dinamiza as relações entre os membros.
Há uma apreciação bipartida dessa família, que refere crise e decadência, ao lado de outra que prefere perceber evolução e conquista. Na verdade, a família de hoje, ao lado das aquisições que instalaram a modernidade, como a educação mais liberal, os papéis flexíveis, etc., não logrou isentar-se de profunda problemática, expressa, por exemplo, na ausência dos pais, na debilidade dos limites que se impõem aos filhos e nas dificuldades de reduzir os índices de conflitos por eles apresentados. É o mesmo para a confusão estabelecida nos papéis parentais, entre o autoritarismo ou simplesmente a tão necessária autoridade parental.
A pensadora e feminista francesa Flora Tristan5 diz que os avanços sociais se operam em razão do progresso das mulheres no rumo da liberdade. De fato, grande parte dos avanços tecnológicos e sociais estão diretamente vinculados às funções da mulher na família e referendam a evolução moderna, confirmando verdadeira revolução no social. São eles: descoberta de contraceptivos eficazes, com planejamento familiar efetivo – fertilização manipulada – liberação do aborto – dessacralização da maternidade como imprescindível – dessacralização do casamento, com novas formas de conjugalidade – dissociação de sexo-afeto – implantação da educação equalitária, com respeito às diferenças – crescimento e divulgação dos movimentos feministas, “a mais longa das revoluções”, com leis avançadas, imbuídas de proteção à mulher e que minaram a hierarquização entre os gêneros.
Instalam-se, assim, atualmente, importantes alterações nos papéis de gênero. No que diz respeito diretamente à mulher, transparecem pelas expressões atualizadas e liberadas da sexualidade, pelo desempenho na maternidade e pelas recentes relações sócio-laborais, diretamente associadas à Economia e ao plano público. A partir disso, alteram-se as relações intergenéricas, abalando a dissociação masculino-público e feminino-privado, que passa a ser alternada, repercutindo decisivamente sobre a nova família.
A legislação, além de omitir-se por longo tempo em regular relações informais, expungia, com veemência, a possibilidade de se extraírem conseqüências jurídicas de todo e qualquer vínculo afetivo outro. Proibiu doações, seguros, bem como a possibilidade de herdar, em face de ligações tidas por espúrias. Tal ojeriza, entretanto, não coibiu o surgimento de relacionamentos sem respaldo legal, levando seus partícipes, quando do rompimento da união, às portas do Judiciário. Viram-se os juízes forçados a criar alternativas para evitar flagrantes injustiças, tendo sido cunhada, via jurisprudencial, a expressão companheira, como forma de contornar as proibições para o reconhecimento dos direitos banidos pela lei.
Em um primeiro momento, aplicou-se por analogia o Direito Comercial, face à aparência de uma sociedade de fato entre os convivas. Quando ausente patrimônio a ser partilhado, passou-se a ver verdadeira relação laboral, dando ensejo ao pagamento de indenização por serviços prestados.
A Constituição Federal de 1988 alargou o conceito de família, passando a integrá-lo as relações monoparentais, de um pai com os seus filhos. Esse redimensionamento, calcado na realidade que se impôs, acabou afastando da idéia de família o pressuposto de casamento. Para sua configuração, deixou-se de exigir a necessidade de existência de um par, o que, conseqüentemente, subtraiu de sua finalidade a proliferação.
O claro declínio do modelo patriarcal rígido, no sentido de todo poder ao pai, com o encapsulamento da mãe, restrita a tarefas domésticas e à procriação, de tal forma desencadeou confusão e ambivalência no relacionamento interfamiliar, a ponto de alguns considerarem a hipótese de se estar a caminho de uma alternativa matriarcal para a família. Como Evelyne Sullerot,6 que diz temer a ausência da figura do pai, reduzida apenas ao sêmen, ou a uma célula, da qual a mãe poderia apropriar-se livremente. O papel fundamental, diante da Psicologia, a ser desempenhado pela figura paterna tende a esfacelar-se em alguns tipos de famílias monoparentais, assim instituídas já não tão raramente. O filho pode ser exposto a riscos de não lhe ser de todo facilitada a constituição do triângulo edípico, raiz do desenvolvimento psicológico da criança. Por outro lado, a premência econômica e a revisão nem sempre tranqüila das funções da mulher projetam-na para fora do âmbito doméstico, pressionando-a por vezes a subestimar a maternidade-maternagem. As repercussões sobre os filhos permanecem como incógnita. Além disso, as ansiedades advindas do trabalho externo e a sobrecarga com as tarefas domésticas, ainda precariamente divididas, produzem um desgaste físico-afetivo perturbador.
Também a Carta Constitucional reconheceu como família a união estável entre um homem e uma mulher, emprestando juridicidade ao relacionamento existente fora do casamento. Tal o conservadorismo, que difícil foi ampliar os direitos que já vinham sendo reconhecidos na Justiça, chegando a questionar-se inclusive acerca da auto-aplicabilidade do dispositivo.
Só em 29 de dezembro de 1994 é que surgiu a primeira lei, de n.º 8.971, regulando a previsão constitucional, mas que se revelou tímida. Reconheceu como estável só a união com vigência de 5 anos ou com filhos, permanecendo à margem de sua incidência as relações em que havia vedação de casar. Conferiu direito a alimentos, incluiu o companheiro na ordem de vocação hereditária, concedendo-lhe o usufruto da metade ou da quarta parte dos bens, a depender da existência de prole. Também deferiu direito à meação exclusivamente quando a herança resultou da colaboração do companheiro.
Em 10 de maio de 1996, surgiu a Lei n.º 9.278, com maior campo de abrangência, já que não quantificou prazo de convivência e albergou as relações entre pessoas somente separadas de fato, gerando a presunção de que os bens adquiridos são fruto do esforço comum. Define como união estável a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família. Mais uma vez o legislador se socorre da idéia de família como elemento configurador de um relacionamento suscetível de gerar efeitos jurídicos.
Assim, com a implantação do divórcio, surgiu a instabilidade das uniões tradicionais e conseqüente aceitação da união estável. Cada vez mais têm-se tornado comuns as famílias flutuantes,7 oriundas parcialmente de várias outras, cujos membros, não de todo definidos entre si, podem ser levados a um convívio descontínuo, superficial, competitivo, francamente hostil ou simplesmente, em muitos casos, confuso.
Esses novos modelos familiares, muitos formados com pessoas que saíram de outras relações, fizeram surgir novas estruturas de convívio, sem que seus componentes disponham de lugares definidos com uma terminologia adequada. Inexistem na Língua Portuguesa vocábulos que identifiquem os integrantes da nova família. Que nome tem a namorada do pai? O filho do primeiro casamento é o quê do filho da segunda união? "Madrasta", "meio-irmão" são palavras que vêm encharcadas de significados pejorativos, não servindo para identificar os figurantes desses relacionamentos que vão surgindo.
Cabe observar que, junto à família, a evolução da mulher evidentemente não se produziu isolada. Desencadearam-se sobre o homem uma série de transformações pressionadas por ela, pela família e pelo social, uma vez que as exigências atuais contrastam com o até então concebido como “privativo do masculino”. Há uma competição crescente entre o casal moderno, freqüentemente perturbadora da relação e da identidade de gênero a ser transmitida aos filhos.
Luiz Cuschnir, psiquiatra paulista, chama a atenção ao que denomina masculismo, que visa justamente a integrar as partes externas do homem, ainda ligadas ao poder e ao dinheiro, com a sua maior aceitação da própria afetividade e dependência. Observa curiosamente que o plano da paternidade foi no que o homem melhor se desincumbiu.
Dentre tantas inconclusões, comuns à Psicologia, enquanto ciência do dinâmico e do profundo para o homem, é bom assinalar que a família ideal, definida por alguns estudiosos, é apenas uma tentativa de indicar e redefinir relações. As pressões econômicas, como considerava Pontes de Miranda, provocam mudanças cada vez mais bruscas, seguidas pelo Direito, que o faz lentamente. Os conflitos invariáveis na associação de quaisquer indivíduos para quaisquer fins, define a Psicologia, resistem, reestruturam-se, atualizam-se. O antigo paradigma familiar permanece como um resíduo rançoso, não obstante todas as conquistas obtidas. No imaginário coletivo, o dinheiro-poder ainda se identifica como masculino, mesmo com a ascensão da mulher ao mercado de trabalho, no qual ainda não logrou equiparar-se em status econômico e em liderança. E um homem premido por exigências crescentes num mundo também voraz deixa-se oprimir por realidades que já não pode controlar. A temível violência doméstica, a intolerância e o preconceito, nas mais variadas formas, apresentam-se como metáfora a ser administrada.
A Lei Maior, rastreando os fatos da vida, viu a necessidade de reconhecer a existência de entidades familiares fora do casamento, mas, buscando exercitar um controle social, se restringiu a emprestar juridicidade às relações heterossexuais. Por absoluto preconceito de caráter ético, deixou de regular certas espécies de relacionamento que não têm como pressuposto a diversidade de sexos.
Necessário é encarar essa realidade sem preconceitos, pois a homossexualidade é considerada um distúrbio de identidade e, sendo um determinismo psicológico inconsciente, não é uma doença nem uma opção livre. Assim, descabe estigmatizar quem exerce orientação sexual diferente, já que, negando-se a realidade, não se irá solucionar as questões que emergem quando do rompimento de tais relações. Não se pode negar a ocorrência de enriquecimento injustificado em proveito dos familiares – que normalmente hostilizam tal opção sexual -, em detrimento de quem dedicou a vida a um companheiro, ajudou a amealhar um patrimônio e se vê sozinho, abandonado e sem nada.
Essa outra modalidade de família está a exigir da Psicologia e das demais ciências do comportamento uma particular atenção. Não apenas para o surgimento da união homossexual, mas em especial às suas reivindicações de filiação, de forma que seu entendimento minimize o preconceito e tente indicar a saída mais saudável possível. Trata-se de uma realidade premente, que já não é dado negar, porque, desencadeada por afeto antes de tudo, diz respeito também à família. Ao contrário do percebido por Oscar Wilde, ao seu tempo vitoriano, esse tipo de amor, agora, ousa dizer seu nome.
Muito raras têm sido as decisões judiciais que acabam por extrair conseqüências jurídicas dessas relações, mostrando-se ainda um tema permeado de preconceitos. Mas é preciso que se reconheça que em nada se diferencia a convivência homossexual da união estável. Ainda que haja restrição em nível constitucional, imperioso que, por meio de uma interpretação analógica, se passe a aplicar o mesmo regramento legal, pois inquestionável que se trata de um relacionamento, que resta por se constituir como uma unidade familiar.
A nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir o status de família, merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição Federal, no inc. III do art. 1º, consagra, em norma pétrea, o respeito à dignidade da pessoa humana.
A compreensão e o enfrentamento desses quadros anacrônicos demandam muito mais que um enfoque singular. Certamente exigem uma integração multidisciplinar. Leis que busquem a proteção da mulher, do menor, da família, das minorias, que coíbam a discriminação e o abuso, tanto mais fáceis serão de implantar, quanto fundamentadas em contribuições que visem a um entendimento das causas originárias dos comportamentos repetitivos, uma vez que, sabemos, residem no plano psíquico mais velado.
REFERÊNCIAS BIOGRÁFICAS
MARIA BERENICE DIAS, Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam.
IVONE M. C. COELHO DE SOUZA (Coordenadora da Assessoria Psicológica do JUSMulher)