*Sergio Resende de Barros
Muito se tem falado de gerações de direitos. Na realidade histórica, em vez de gerações estanques, há uma geração contínua, uma constante ampliação, subjetiva e objetiva, dos direitos humanos oponíveis ao poder político, passando por saltos qualitativos, que desencadeiam fases, que podem ser ditas gerações. Nesse crescimento e ampliação, na medida em que se torna necessário avançar objetiva e subjetivamente para proteger o ser humano contra as agressões antijurídicas, os direitos vão compreendendo cada vez mais objetos e estendendo-se a cada vez mais sujeitos.
Inicialmente, no processo histórico das revoluções liberais, sobretudo na Revolução Francesa de 1789, foram os direitos humanos (Droits de l’Homme et du Citoyen) concebidos como direitos Individuais. Naquele momento revolucionário, a necessidade histórica era a de extremar o indivíduo (individualismo) para contrapor sua liberdade a outro extremo: o poder político do rei (Absolutismo). No entanto, já alguns desses direitos – como o de trabalhar e o de ter a assistência da sociedade no caso de desemprego, que constam da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793 – revelam um evidente sentido econômico e social, ainda que não tenham sido declarados, naquele momento histórico, com o fim de demandar a intervenção do Estado na ordem econômica e social.
A liberdade, nascida da transformação do Estado absoluto em Estado de direito pela revolução liberal, favoreceu o desenvolvimento da economia no curso da transformação do mercantilismo em capitalismo pela Revolução Industrial. Dessa evolução, no mesmo passo em que progrediu o capitalismo industrial, as massas operárias surgiram. Não livres. Mas sem meios concretos e materiais (econômicos e sociais) de gozar da liberdade. Essa foi assim reduzida a uma liberdade abstrata e formal (jurídica e política), acessível somente à elite social, cujo núcleo eram os senhores dos capitais e das terras. O desregramento das relações de emprego e o aviltamento do salário e das condições de trabalho chegaram a tal extremo, que sobreveio a instabilidade social, chegando até à desordem pública quebra-quebras, revoltas, rebeliões, revoluções. A exploração dos operários pelo capitalismo selvagem gerou o que o Papa Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum (Das coisas novas), chamou a questão social.
Para resolver a questão social, duas linhas de pensamento evoluíram no mundo ocidental no século XIX: a linha moderada, visando a disciplinar o capitalismo e diminuir a injustiça social, sem abolir a ordem econômica capitalista, e a linha radical, propondo superar o capitalismo por uma nova ordem econômica, considerada socialmente mais justa, o socialismo, com variantes de radicalismo, entre as quais o comunismo e o anarquismo.
Na mesma oportunidade histórica (o final da I Guerra Mundial) e portanto, na mesma época (o fim da segunda década do século XX), essas linhas de pensamento foram postas em prática na Rússia e na Alemanha, dando início a superação, ou radical, ou moderada, do capitalismo desregrado.
Na Rússia, com a Revolução Bolchevique de 1917, adveio a total conversão do capitalismo a uma ordem econômica e social provisoriamente socialista, tida como preparatória de um socialismo integral e definitivo, o comunismo. O Estado liberal de direito foi substituído por um Estado – o soviético – que logo resvalou para o totalitarismo, sobretudo após a morte de seu fundador, Lênin.
Na Europa ocidental, a Alemanha, arrasada pela II Guerra, precisava reconstruir rapidamente e retomar em plenitude sua vida econômica e social, bem como reconstruir-se juridicamente: elaborar uma nova Constituição. Porém, não mais segundo o princípio de deixar fazer, deixar passar (laisser-faire, laisser-passer), mas sim de ensejar ao Estado intervir na ordem econômica e social, para reconstruir o que a Guerra destruíra.
Com esse ânimo inovador, reuniu-se a assembléia constituinte na histórica cidade de Weimar, onde vivera e morrera o maior dos poetas alemães, Johann Wofgang Von Goethe. Apesar de pequena, a cidade de Weimar se tornara um excelente centro cultural, desde o fim do século XVIII, na esteira do governo de um duque jovem e empreendedor, Karl August, que para ela atraiu diversos intelectuais e artistas. Tornou-se cidade famosa. Tanto que, em diferentes épocas, lá viveram Wieland, Goethe, Herder, Schiller e por lá passaram outros poetas, literatos, filósofos, etc. Goethe residiu e exerceu cargos administrativos em Weimar, nos dez últimos anos de sua vida. Por tudo isso, foi Weimar – em atenção à sua história e às suas raízes, fimes no mais puro germanismo – escolhida para sede da assembléia constituinte pós-guerra, da qual se esperava que fosse inovadora, mas também que reconstruísse a Alemanha com as suas próprias cinzas, de tal modo que – por haver perdido uma guerra internacional – não perdessem os alemães a sua autenticidade nacional.
Em 11 de agosto de 1919 foi promulgada a Constituição (ou Lei Fundamental, como dizem os alemães) de Weimar, que logo se tornou célebre, por ser a primeira Constituição escrita no mundo ocidental que, além da ordem política, cuidou da ordem econômica e social. Isso, a fim de interpor a ação do Estado para conter os excessos do capitalismo e promover a justiça social por uma efetiva igualdade social, concreta e material, buscando para todos igual oportunidade de gozar da liberdade e demais direitos humanos.
O anterior Estado liberal de direito se fazia reger rigorosamente pelo princípio da isonomia, igualdade meramente formal: todos são iguais perante a lei, assim como alei é igual para todos. A lei trata os indivíduos da mesma forma, sem levar em conta suas condições pessoais ou sociais. No Estado social de direito, posto pela Constituição de Weimar, a idéia de igualdade formal (de direito) foi completada pela noção de igualdade material (de fato), tendo-se compreendido que realizar a verdadeira igualdade não é tratar igualmente os desiguais, mas tratá-los desigualmente na proporção em que se desigualam, apoiando aquelas categorias ou partes da sociedade que, por sua condição social ou física, são mais fracas e precisam de uma especial atenção do Estado, a fim de que se possam equiparar às categorias mais fortes com que se relacionam e, enfim, igualar-se no possível com o restante da sociedade.
Esse princípio, bem formulado entre nós por Rui Barbosa, orientou os direitos econômicos sociais e culturais que – ditos abreviadamente direitos sociais – cresceram no século XX para proteger cada vez mais tais categorias sociais mais fracas, por isso ditas hipossuficientes. No curso desse desenvolvimento, tendo começado com o Direito do trabalho, protegendo a categoria dos empregados, uma vez que a questão social nascera da opressão do trabalho pelo capital, os direitos sociais alcançaram cada vez mais objetos e sujeitos. Assim, evoluíram de direitos categoriais – que protegem especificamente certas categorias sociais, como o empregado, o menor, a mulher, o idoso, o deficiente físico etc. – para direitos difusos – que protegem genericamente a sociedade em si mesma, difusamente, como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à paz, o direito à saúde, o direito à educação etc.
É exatamente no cume dessa transição de direitos sociais categoriais para direitos sociais difusos que se situa o direito do consumidor ou, pelo prisma subjetivo, os direitos do consumidor. É direito categorial, sem dúvida. Protege uma categoria social, o consumidor, que é parte mais fraca na relação que tratava com categorias economicamente mais fortes: o fornecedor, o produtor, o comerciante. Mas, também, é direito difuso, porque protege uma categoria social tão ampla, que na prática alcança toda a sociedade humana, na qual ninguém há que não seja consumidor.
Os direitos do consumidor compõem um direito social que é ao mesmo tempo categorial e difuso. Óbvio que o direito do consumidor resguarda uma categoria social. Mas, por amparar uma categoria social que é praticamente irrestrita, ainda que teoricamente seja restrita à relação de consumo, ele é uma passagem – um momento de transição – dos direitos sociais categoriais aos direitos sociais difusos. Vale dizer: subjetiva e objetivamente, o direito do consumidor é um instante de evolução na qualidade – salto qualitativo – da segunda para a terceira geração de direitos.
Daí resulta uma peculiaridade importante, que marca esse recente ramo do Direito: protegendo especialmente a categoria dos consumidores, protege difusamente toda a sociedade. Essa bivalência – típica dos momentos de transição, em que se dá o salto qualitativo – explica porque a doutrina tem enquadrado os direitos (subjetivos) do consumidor como interesses difusos de toda a sociedade, no mesmo passo em que considera o direito (objetivo) do consumidor como direito social, integrado entre as categorias de direitos econômicos, sociais e culturais típicos da segunda geração de direitos. Na verdade, melhor é dizer que o direito do consumidor é ao mesmo tempo categorial (segunda geração) e difuso (terceira geração), por ser um tempo de transição da segunda para a terceira geração de direitos humanos fundamentais.
Essa peculiaridade aumenta a importância do direito do consumidor para as sociedades industrializadas, nas quais, entre a produção e o consumo, se inserem complexos meios de comércio e distribuição, assim como múltiplos intermediários de crédito e financiamento. Mas também – e igualmente – é importante o direito do consumidor para a s sociedades em industrialização. Aqui, as relações entre fornecedores e consumidores, por serem mais diretas e imediatas, refletem de perto a s contradições sociais do próprio país.
Nos países em industrialização, freqüentemente, em certos aspectos, as contradições atingem níveis críticos, instaurando gravíssimas crises econômicas e sociais que afetam a sociedade no seu todo; tal como vem ocorrendo com a crise econômico-financeira que aflige a Argentina e com a crise de energia elétrica, o apagão, que sobressalta o Brasil. Nesses momentos críticos, as relações gerais de consumo (como na Argentina) ou uma relação especial de consumo (como a de eletricidade no Brasil) assumem particular importância e, por via de conseqüência, também o direito do consumidor. Na Argentina trata-se de diminuir o déficit fiscal e, sobretudo, estimular o consumo geral que está retraído em face da incerteza da economia. No brasil, a preocupação é diminuir um consumo em especial: o de energia elétrica. Mesmo sendo assim solicitado em sentidos contrários por situações contraditórias, o direito de consumidor sempre comparece, servindo à causa do consumidor, para protegê-lo, tanto no aumento quanto na diminuição do consumo.
No Brasil, particularmente, hoje se vive o fim do ciclo de transição de economia agrária para a industrial. Ao longo do século XX, o êxodo rural levou a maioria da população do campo para as cidades. A concentração desordenada das metrópoles, ampliando a base social de menor poder aquisitivo, gerou condições especiais de consumo. Ora da euforia, ora de apatia da massa de consumidores, resultam problemas diários para o direito do consumidor: publicidade enganosa, preços abusivos, juros extorsivos, crédito ardiloso, qualidade inferior, entrega irregular, garantia sonegada e outros. Da parte dos próprios consumidores, surgem problemas como a superestimação do fator preço, a inadimplência do pagamento, a minimização ou a exacerbação do consumo, a busca do comércio informal, o descuido com a qualidade etc. Sem contar crises de serviços públicos, como greves nos transportes e restrições como o apagão, que repercutem imediatamente sobre a produção e o consumo, tumultuando as relações jurídicas entre produtores, comerciantes, financiadores, distribuidores, transportes, consumidores, etc.
Tais crises – que muitas vezes se somam às que são freqüentes na economia monetária, como as crises de câmbio ou de inflação – acarretam a edição de normas jurídicas – ora apressadas, ora inconseqüentes – que violentam os direitos do consumidor e do fornecedor, tolhendo a segurança jurídica, sem a qual a produção, o consumo e os setores intermediários entram em desordem ou em recessão.
Nessas horas críticas, seja no caso de expansão, seja no de retração do consumo, o direito do consumidor entra em cena – e atuando até contra o Poder Público – para garantir ou restabelecer os padrões de justiça nas relações jurídicas de consumo, que são fundamentais para toda a sociedade.
Nos momentos de crise cresce a desigualdade entre os que têm poder e os cidadãos comuns. Estes, sem poder político ou econômico, de nada mais de pode socorrer senão do Poder Judiciário, a partir dos Juízes de primeiro grau. Nesse sentido, o Judiciário brasileiro tem sido o pronto-socorro da cidadania. Previne ou cura lesões causadas pelo desatino do poder político ou do econômico. Há nesse pronto-socorro remédios processuais, como o mandado de segurança e a ação civil pública. Mas, também. há remédios substanciais. Destes, um dos mais vigorosos é o direito do consumidor. Seu vigor ficou evidente há pouco tempo, quando serviu de fundamento para refrear – e até prevenir – as pretensões excessivas do governo, na recente decretação do apagão.
Nada mais é preciso acrescentar para mostrar que a natureza bivalente do direito do consumidor – simultaneamente categorial e difuso – dá-lhe uma eficácia social redobrada, pois, ao mesmo tempo, lhe enseja proteger juridicamente uma categoria – o consumidor – , e também, por esse meio, defender a própria sociedade contra os riscos de abalo ou ruína que acompanham a deterioração das relações jurídicas de consumo, seja pelo crescimento, seja pelo definhamento desordenados.
Publicação: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 40, p. 278-282, out./dez. 2001.
Referências Bibliográficas
Sérgio Resende de Barros – Mestre, Doutor e Livre Docente pela Faculdade de Direiro da USP, Professor de Direito Constitucional, Teoria Geral do Estado e Ciência Política nos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da USP, UNIMEP em Piracicaba, UnG em Guarulhos, FAAP, Faculdade Módulo de Caraguatatuba e da Escola Superior de Direito Constitucional.