Direito das Sucessões brasileiro: disposições gerais e sucessão legítima.

*Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka –

Sumário: 1. Considerações de preâmbulo relativamente à sucessão em geral, sob a análise de alguns dispositivos do novo Código Civil: arts. 1784, 1786, 1788, 1789, 1845. 2. Destaque para dois pontos de irrealização da experiência jurídica à face da previsão contida na regra estampada na nova Legislação Civil Pátria, o Código Civil de 2002: 2.1. A sucessão do convivente ou companheiro – arts. 1790 e 1834, 2.2. A sucessão do cônjuge – arts. 1829, I, 1832 e 1834.

 

1. Considerações de preâmbulo relativamente à sucessão em geral, sob a análise de alguns dispositivos do novo Código Civil: arts. 1784, 1786, 1788, 1789, 1845.

           A sucessão que vem disciplinada no Livro V do Código Civil pressupõe, intrínseca e invariavelmente, a morte da pessoa natural. Quer se trate de morte real ou de morte presumida, por conseqüência normal e como decorrência do princípio da saisine, o patrimônio deixado pelo morto seguirá o destino que se estampa nas regras sucessórias do direito civil positivado.

          Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.

          A sucessão considera-se aberta no instante mesmo ou no instante presumido da morte de alguém, fazendo nascer o direito hereditário e operando a substituição do falecido por seus sucessores a título universal nas relações jurídicas em que aquele figurava. Não se confundem, todavia. A morte é antecedente lógico, é pressuposto e causa. A transmissão é conseqüente, é efeito da morte. Por força de ficção legal, coincidem em termos cronológicos, (1) presumindo a lei que o próprio de cujus investiu seus herdeiros (2) no domínio e na posse indireta (3) de seu patrimônio, porque este não pode restar acéfalo. Esta é a fórmula do que se convenciona denominar droit de saisine.

          O Código Civil de 1916 foi instituído com a seguinte regra, esculpida no art. 1572: "Aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários". Já a nova codificação civil traz a seguinte redação para traduzir o mesmo princípio: Art. 1784 – "Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários".

          A expressão "aberta a sucessão", que vem repetida em ambas as codificações, faz referência ao momento em que surgem os direitos sucessórios, sem fazer referência, entretanto, aos titulares desses direitos. A atribuição desses mesmos direitos aos sucessores traduz-se pelos vocábulos devolução (4) ou delação, que nada mais representam do que o mesmo fenômeno visto pelo prisma da sucessibilidade. (5)

          Pelo princípio da saisine, a lei considera que no momento da morte, o autor da herança transmite seu patrimônio, de forma íntegra, a seus herdeiros. Ora, o direito atual suprimiu da regra a expressão "o domínio e a posse da herança", passando a prever a transferência pura e simples da herança. Mas é óbvio que tal supressão não vai representar diminuição do alcance objetivo do princípio. Vale dizer, o objeto da transmissão continua sendo a herança, que como já se disse, é o patrimônio do defunto, compreendendo todos os direitos que não se extinguem com a morte, sendo dela integrantes bens móveis e imóveis, débitos e créditos.

          Segundo a norma, enfim, a herança transmite-se aos herdeiros legítimos e testamentários, o que é dizer que ela se transmite por meio do condomínio a todos aqueles que foram contemplados com a atribuição de uma quota parte ideal instituída pelo autor da herança por meio de testamento (herdeiro testamentário), ou aqueles que receberão a quota parte ideal determinada por lei (herdeiro legítimo).

          Convém lembrar que o sucessor legítimo será, nessa condição, sempre herdeiro e nunca legatário. Esse princípio faz com que a ressalva final do atual art. 1784 inclua na transmissão decorrente do princípio da saisine aqueles indivíduos que, beneficiados por testamento, o foram com quota parte ideal e nunca por meio de um bem especificado ou passível de especificação, uma vez que esta forma de disposição testamentária constitui legado e a aquisição do bem sucessível vem disciplinada pelas regras da sucessão testamentária.

          Em suma: o herdeiro recebe, desde o momento da morte do autor da herança, o domínio e a posse dos bens, em condomínio com os demais; o legatário receberá o domínio desde logo e a posse quando da partilha, se beneficiado com coisa certa e receberá o domínio e a posse no momento da partilha, se beneficiado com coisa incerta. (6) Era assim no Código de 1916, prossegue assim no Código de 2002.

          Art. 1.786. A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade.

          Este artigo equivale ao anterior 1573 (Código de 1916), onde era possível ler que "a sucessão dá-se por disposição de última vontade, ou em virtude de lei".

          Os dispositivos, se não são idênticos, trazem as mesmas conseqüências práticas. A inversão das formas de sucessão no elenco legal não modifica os institutos nem traz prevalência diversa, relativamente à codificação anterior, de uma forma sucessória sobre a outra em virtude do quanto disposto no restante do Livro. Prevalece, por força do atual art. 1788, a sucessão testamentária sobre aquela que deriva de lei, até o montante que resguarde a parte indisponível – em certas circunstâncias – a fim de se dar, a esta parte, a destinação previamente determinada por lei.

          A legislação anterior, ao determinar que a sucessão se dava por disposição de última vontade, indicava já a prevalência da vontade do testador e, apenas subsidiariamente, na falta de disposição desse jaez, operava-se em virtude de lei. Mas esta última forma de suceder sempre foi a mais difundida no Brasil. "Na verdade, via de regra as pessoas passam pela vida, e dela se vão, intestadas; o reduzido número daquelas que testam, o faz porque não tiveram filhos, ou porque desejam beneficiar, quem sabe, o cônjuge, em desfavorecimento dos ascendentes, ou, ainda, porque desejam beneficiar certas pessoas, por meio de legados, ou, simplesmente, porque desejam reconhecer filhos havidos fora do casamento.

          "Poucos são os que, possuindo herdeiros necessários, testam relativamente à parte disponível, sem prejudicar, com isso, os descendentes ou os ascendentes.

          "Essa espécie de aversão à prática de testar, entre nós, é devida, certamente, a razões de ordem cultural ou costumeira, folclórica, algumas vezes, psicológica, outras tantas.

          "O brasileiro não gosta, em princípio, de falar a respeito da morte, e sua circunstância é ainda bastante mistificada e resguardada, como se isso servisse para ‘afastar maus fluídos e más agruras…’. Assim, por exemplo, não se encontra arraigado em nossos costumes o hábito de adquirir, por antecipação, o lugar destinado ao nosso túmulo ou sepultura, bem como não temos, de modo mais amplamente difundido, o hábito de contratar seguro de vida, assim como, ainda, não praticamos, em escala significativa, a doação de órgãos para serem utilizados após a morte. Parece que estas atitudes, no dito popular, ‘atraem o azar…’.

          "Mas, a par destas razões que igualmente poderiam estar a fundamentar a insignificante prática brasileira do costume de testar, talvez fosse útil relatar, como o faz Zeno Veloso, que há certamente outra razão a ser invocada para justificar a pouca freqüência de testamentos entre nós. Esta razão estaria diretamente direcionada à excelente qualidade de nosso texto legislativo que ainda vige – o Código Civil de 1916 – a respeito da sucessão legítima. Quer dizer, o legislador brasileiro, quando produziu as regras gerais relativas à sucessão ab intestato, o fez de maneira muito primorosa, chamando a suceder exatamente aquelas pessoas que o de cujus elencaria se, na ausência de regras, precisasse produzir testamento. Poder-se-ia dizer, como o fez antes, na França, Planiol, que a regulamentação brasileira a respeito da sucessão ab intestato opera assim como se fosse um ‘testamento tácito’ ou um ‘testamento presumido’, dispondo exatamente como o faria o de cujus, caso houvesse testado.

          "Se assim for, compreende-se, então, a escassez de testamentos no Brasil, pois estes só seriam mesmo utilizados quando a vontade do de cujus fosse distinta daquela naturalmente esculpida na diagramação legislativa". (7)

          Seja por qual motivo for, fato é que a sucessão opera-se, na prática, primordialmente em decorrência da lei. Talvez por isso a inversão operada pelo último legislador civil, arrolando a sucessão legítima antes da testamentária no artigo 1786.

          Para além disso, registre-se que o novo Código, se não alterou a ordem de vocação hereditária, fez o cônjuge supérstite passar à classe de herdeiro necessário (art. 1845, CC) e determinou que concorra com os herdeiros das classes descendente e ascendente (art. 1829, incs. I e II, CC). Assim faz parte da primeira classe de vocação em concorrência com os descendentes; da segunda, em concorrência com os ascendentes; e da terceira, com exclusividade, tendo, portanto, retirado o legislador pátrio uma das hipóteses que antes se formulava, a justificar a facção de um testamento, que era exatamente a intenção do testador de privilegiar o seu cônjuge, para depois de sua morte.

          Art. 1.788. Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo.

          Antes de analisarmos o dispositivo, cabe fazer menção ao fato de que o Projeto de Código Civil, quando aprovado pelo Senado Federal, trazia já a locução "transmite a herança", o que fez com que Antônio Cláudio da Costa Machado e Juarez de Oliveira chamassem a atenção em sua obra (8) para a necessidade de substituição por "transmite-se a herança", o que não ocorreu na Câmara dos Deputados. Assim sendo, a interpretação literal do dispositivo pode querer forçar o entendimento de que quem transmite a herança aos herdeiros legítimos é a pessoa que morreu sem testamento. A herança deixa de transmitir-se de forma reflexiva, como ocorria sob a vigência da Lei de 1916, para ser transmitida, passivamente, pelo autor da herança… Certamente não é essa a intenção do legislador de 2002. Portanto, urge a alteração já antes proposta, incluindo-se o pronome reflexivo "se".

          O artigo citado é resultado da união dos artigos 1574 e 1575 do Código de 1916, que tratavam, como trata o atual art. 1788, das hipóteses em que, não existindo testamento ou, existindo este, dever-se-ia operar a sucessão legítima, por se verificar a ausência de possibilidade de produção de efeitos do testamento.

          Art. 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança.

          A herança do de cujus, a que o artigo se refere, é composta pelos bens patrimoniais que a ele pertencem de forma exclusiva ou da quota parte que lhe couber, o que equivale a dizer que é composta por seus bens pessoais, bem assim pela parte que lhe cabia no patrimônio do casal, sendo ele casado, e admitindo seu regime de bens matrimonial tal situação, e, ainda, pela parte dos bens que possuísse em condomínio. Dessa forma, para que se verifique se as disposições testamentárias que o de cujus deixou consignadas, para valerem após sua morte, respeitaram o quanto disposto no art. 1789, há de se proceder à divisão decorrente do rompimento dos laços matrimoniais ocasionado por sua morte, bem assim, avaliar a quota parte dos bens condominiais. Somados os valores, chegar-se-á ao valor total do patrimônio transmissível pelo de cujus, reservando-se a metade desse valor aos herdeiros determinados pela lei, coibindo-se a liberdade do testador para dispor de seu patrimônio, sendo certo que, se inexistentes estes últimos, poderá a disposição recair sobre a totalidade da herança.

          Apenas cinqüenta por cento (9) do patrimônio total poderá ser entregue por disposição testamentária sempre que possuir, o testador, descendentes e ascendentes, além de – à luz do novo Código Civil – possuir, o testador, cônjuge sobrevivo e na constância, por óbvio, do casamento.

          O legislador nacional, portanto, sempre buscou preservar os herdeiros necessários que não podem ser afastados da sucessão, exceto se presente uma das causas que determine sua deserdação ou sua exclusão, por indignidade. Mas nem por isso retirou do testador a liberdade de dispor de seus bens, confeccionando testamento, salvo se lhe faltasse, de forma perene, capacidade para a facção da cédula respectiva.

          O novo Código Civil traz, no art. 1845, o elenco daquelas pessoas que o legislador selecionou para que ocupassem a categoria de herdeiros necessários. Diz o dispositivo:

          Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

          Entende-se por herdeiros necessários aqueles herdeiros que não podem ser afastados da sucessão pela simples vontade do sucedido. Quer isso significar que apenas quando fundamentado em fato caracterizador de ingratidão por parte de seu herdeiro necessário, poderá o autor da herança dela afastá-lo, e, ainda assim, apenas se tal fato estiver previsto em lei como autorizador de tão drástica conseqüência.

          A nova legislação não se refere ao fato de serem, tais herdeiros, sucessíveis efetivos, no que anda bem. Com efeito, tanto o excluído por indignidade quanto o deserdado são herdeiros sucessíveis que, tendo cometido ato atentatório previsto em lei, vêem-se, posteriormente, afastados da sucessão. Mas até que sejam afastados, são herdeiros sucessíveis e gozam da proteção legal da reserva dos bens que comporão a legítima. (10)

          Mas, nesta sede agora em exame, isto é, a categoria dos herdeiros necessários, certamente a modificação de maior monta que deve ser referida, e que já há muito tempo era reivindicada pela doutrina nacional (11) é, indubitavelmente, a inclusão do cônjuge na classe dos herdeiros obrigatórios. (12) E nem poderia ser diferente, diante da nova ordem de vocação hereditária instituída pelo legislador civil e que traz o cônjuge concorrendo tanto na primeira quanto na segunda classe dos chamados a suceder. Assim, conseqüência lógica de tal modificação era a proteção da legítima também em seu favor, impedindo que a simples feitura de um testamento que dispusesse sobre a totalidade do acervo viesse a prejudicá-lo.

          Apesar destas benéficas modificações, perdeu o legislador a oportunidade de prever, de forma expressa, tal proteção também para o convivente supérstite, já que garantira a este, por força do art. 1.790 do Código Civil atual, a concorrência com os filhos do de cujus; na falta destes, com os ascendentes do mesmo; e, por fim e na falta de ambos, o recolhimento do total da herança. Tal ordem de vocação, especial para as hipóteses de abertura da sucessão no decorrer de união estável, em muito se assemelha à ordem de vocação do cônjuge supérstite, não se vislumbrando motivo para que as condições do cônjuge e do convivente não se equiparassem também na proteção da legítima, como, aliás, seria de bom alvitre em face das disposições constitucionais a respeito da equivalência entre o casamento e a união estável.

2. Destaque para dois pontos de irrealização da experiência jurídica à face da previsão contida na regra estampada na nova Legislação Civil Pátria, o Código Civil de 2002: 2.1 A concorrência do convivente ou companheiro com descendentes comuns e com descendentes só do autor da herança – art. 1790, I e II e art. 1834; 2.2 A concorrência do cônjuge com descendentes – arts. 1829, I, 1832 e 1834.

        2.1. A concorrência do convivente ou companheiro com descendentes comuns e com descendentes só do autor da herança – art. 1790, I e II e art. 1834.

          Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

          I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

          II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

          III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

          IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

          Quando da aprovação do projeto pelo Senado Federal, foi acrescido ao Capítulo I do Título I do Livro V um artigo que não constava do Anteprojeto de 1975, por força da Emenda nº 358. Este artigo, ora sob comento, dispõe acerca da sucessão em caso de união estável, sendo certo que o projeto finalmente aprovado modificou a redação original e atribuiu ao artigo o nº 1790, que encerra o presente capítulo.

          Não obstante sua importância, parece, todavia, que a regra está topicamente mal colocada. Trata-se de verdadeira regra de vocação hereditária para as hipóteses de união estável, motivo pelo qual deveria estar situado no capítulo referente à ordem de vocação hereditária.

          Sem firmar atenção ao histórico por que passou a união estável ao longo das últimas décadas em busca de reconhecimento social, judicial e legal, de resto cabível em outra sede, qual seja, a relativa ao direito de família, parece ser mais condizente e necessária uma análise das relações sucessórias entre o companheiro falecido e o supérstite, sem, no entanto, deixar de fazer referências outras que se tornem necessárias à elucidação do tema.

          Assim é que, anteriormente a 1988, quando ainda se falava em concubinato e a reação social era no sentido, ainda que cada vez mais tímido, de se recriminar as uniões de fato entre homens e mulheres desimpedidos de contrair matrimônio, a jurisprudência foi, aos poucos e com base na lei 6858/80, garantindo à convivente supérstite direito sucessório (tratava-se, em verdade de reconhecer o estatuto de dependente) sobre os bens de origem previdenciária, bem como sobre os bens de pequeno valor.

          Quando a atual Constituição Federal entrou em vigor e garantiu, legitimando, uma verdadeira revolução de costumes em que as uniões de fato passaram a ser cada vez menos recriminadas, para serem, já hoje, uma constante, da qual muitas vezes, nem se pergunta a origem da relação entre os membros da família – tudo como parece ter querido o constituinte –, não era demasiado propugnar uma ampla e total igualdade de direitos e deveres entre os conviventes relativamente aos direitos e deveres exigidos dos membros de um casal unido pelo matrimônio.

          No campo do direito sucessório essa igualdade, se não se operou totalmente, chegou muito próximo disso em alguns pontos e avançou muito, inclusive, em outros. (13) Daí porque o convivente adquiriu não só direito à meação dos bens comuns para os quais tenha contribuído para a aquisição de forma direta ou indireta, ainda que em nome exclusivo do falecido (art. 3°), como também adquiriu direito a um usufruto em tudo muito semelhante ao usufruto vidual, isso sem se falar na sua colocação na terceira ordem de vocação hereditária logo após os descendentes e os ascendentes, tudo isto por força da lei 8.971, de 29.12.1994, que em seu art. 2°, assim estabeleceu:

          I – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujos, se houver filhos deste ou comuns;

          II – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujos, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;

          III – na falta de descendentes ou de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.

          Tendo se esquecido, o legislador infra-constitucional – sempre no que se refere ao direito sucessório – de garantir o direito real de habitação relativo ao imóvel que servia de residência para a família, sendo o único desta natureza, editou a lei 9278/96 que em seu art. 7°, parágrafo único, assim redigido, o previu: "dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família".

          Assim como a posição do cônjuge sobrevivo melhorou, naquilo que respeita aos problemas de ordem sucessória, nas previsões do novo Código Civil, ampliando-se os direitos que lhe assistem, era de se esperar que o convivente supérstite tivesse sua condição privilegiada, relativamente àquela condição anteriormente descrita, e tivesse garantido a igualdade de direitos relativamente ao cônjuge sobrevivente, fazendo-se, assim, valer o dizer constitucional em sua amplitude.

          Todavia, não foi isto o que aconteceu.

          O anteprojeto de Código Civil elaborado em 1972, bem assim o Projeto apresentado para discussão em 1975 e aprovado na Câmara dos Deputados em 1984, não previam qualquer regra relativamente à sucessão de pessoas ligadas entre si apenas pelos laços do afeto. Foi o Senador Nélson Carneiro, em sua incessante luta pela modernização das relações familiares brasileiras quem apresentou emenda no sentido de se garantir direitos sucessórios aos conviventes. Como lembra Zeno Veloso, (14) a emenda foi claramente inspirada no Projeto de Código Civil elaborado por Orlando Gomes nos idos da década de 60 do século XX, antes portanto da igualdade constitucionalmente garantida. Bem por isso, o artigo em que resultou, este de n° 1790, é de caris retrógrado referentemente à legislação anteriormente sumariada.

          Diferentemente do que ocorre com o cônjuge, que herda quota parte dos bens exclusivos do falecido quando concorre com os descendentes deste, percebendo, quanto aos bens comuns, apenas a meação do condomínio até então existente (e não mais do que isso), o convivente que sobreviver a seu par adquire não apenas a meação dos bens comuns (e aqui em igualdade relativamente ao cônjuge supérstite), como herda quota parte destes mesmos bens comuns adquiridos onerosamente pelo casal, nada recebendo, no entanto, relativamente aos bens exclusivos do hereditando, solução esta que, para adaptar uma expressão de Zeno Veloso a uma outra realidade, "não tem lógica alguma, e quebra todo o sistema". (15)

          Não estabelece o Código Civil atual o direito real de habitação previsto pela lei 9.278/96, devendo-se, por isso, e em analogia com a situação garantida ao cônjuge e autorizada pela Constituição Federal, ter o dispositivo do art. 7°, parágrafo único, desta lei como não revogado.

          Por fim, andou ainda mal o legislador ao aprovar o dispositivo, da forma como está, por recriar o privilégio dos colaterais até o quarto grau, que passam a concorrer com o convivente supérstite na 3ª classe da ordem de vocação hereditária. Assim, morto alguém que vivia em união estável, primeiros a herdar serão os descendentes em concorrência com o convivente supérstite. Na falta de descendentes, serão chamados os ascendentes em concorrência com o convivente sobrevivo. Na falta também destes e inexistindo, como é óbvio, cônjuge que amealhe todo o acervo, serão chamados os colaterais até o quarto grau ainda em concorrência com o convivente, uma vez que, afinal, são também os colaterais parentes sucessíveis. E só na falta destes será chamado o convivente remanescente para, aí sim, adquirir a totalidade do acervo. É flagrante a discrepância.

          Bem por isto pede-se autorização para reproduzir neste tópico um trecho de extrema lucidez, tão comum na obra de Zeno Veloso:

          "Na sociedade contemporânea, já estão muito esgarçadas, quando não extintas, as relações de afetividade entre parentes colaterais de 4° grau (primos, tios-avós, sobrinhos-netos). Em muitos casos, sobretudo nas grandes cidades, tais parentes mal se conhecem, raramente se encontram. E o novo Código Civil brasileiro, que vai começar a vigorar no 3° milênio, resolve que o companheiro sobrevivente, que formou uma família, manteve uma comunidade de vida com o falecido, só vai herdar, sozinho, se não existirem descendentes, ascendentes, nem colaterais até o 4° grau do de cujus. Temos de convir. Isto é demais! […]

          "Haverá alguma pessoa, neste país, jurista ou leigo, que assegure que tal solução é boa e justa? Por que privilegiar a este extremo vínculos biológicos, ainda que remotos, em prejuízo dos vínculos do amor, da afetividade? Por que os membros da família parental, em grau tão longínquo, devem ter preferência sobre a família afetiva (que em tudo é comparável à família conjugal) do hereditando?

          "Sem dúvida, neste ponto o C.C. não foi feliz. A lei não está imitando a vida, nem se apresenta em consonância com a realidade social, quando decide que uma pessoa que manteve a mais íntima e completa relação com o falecido fique atrás de parentes colaterais dele, na vocação hereditária. O próprio tempo se incumbe de destruir a obra legislativa que não seguiu os ditames do seu tempo, que não obedeceu as indicações da histórica e da civilização.

          "Aproveitando que o C.C. está na vacatio legis, urge que seja reformado na parte que foi objeto deste estudo.

          "Se a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado; se a união estável é reconhecida como entidade familiar; se estão praticamente equiparadas as famílias matrimonializadas e as famílias que se criaram informalmente, com a convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher, a discrepância entre a posição sucessória do cônjuge supérstite e a do companheiro sobrevivente, além de contrariar o sentimento e as aspirações sociais, fere e maltrata, na letra e no espírito, os fundamentos constitucionais." (16)

          No que diz respeito à sucessão do convivente, em concorrência com os herdeiros de primeira vocação, isto é, os descendentes, observa-se que o legislador civil atual pretendeu, efetivamente, dar distinto tratamento a essa sucessão concorrente, aplicando distintas imposições matemáticas se os descendentes fossem filhos do convivente supérstite e do convivente falecido, ou se, por outro lado, fossem descendentes exclusivos do autor da herança (incisos I e II do art. 1790 NCC, respectivamente), fazendo-o herdar a mesma porção deferida aos filhos comuns e metade da porção cabível aos descendentes exclusivos do de cujus.

          Deu, portanto, tratamento preferencial ao convivente sobrevivo, quando se trata de concorrência com filhos comuns a ele e ao morto. Esta foi a opção do legislador civil brasileiro e passa ela a valer como paradigma para a exegese do regramento, pelo futuro doutrinador, bem como pelo futuro aplicador do direito, tudo em prol de uma sadia consolidação jurisprudencial do porvir.

          A atividade do intérprete deve restar, desde já, entregue a uma consideração muito rígida, exatamente para que não reste da tentativa (ou tentativas) de concreção da nova ordem jurídica senão uma inacreditável fonte de desconsideração do espírito do legislador, da formulação axiológica de suas leis ou da principiologia que se pretende seja a paradigmática do novo Texto Civil Brasileiro (17).

         Tudo isso porque – infelizmente, e mais uma vez – não previu, o legislador, a tormentosa hipótese de serem herdeiros do falecido pessoas que guardem relação de parentesco (filiação) com o sobrevivo, em concorrência com outras que fossem parentes apenas dele, autor da herança.

          Vale dizer, o legislador se olvidou mais uma vez da comum hipótese que abarca aqueles que, tendo sido casados em primeiras núpcias, ou tendo mantido uma união estável precedente, tenham se separado, se divorciado ou assistido a morte do companheiro da primeira fase de suas vidas, resolvendo, assim reconstruir sua trajetória afetiva com terceiro, hipótese esta que se qualifica, ainda, pela especial condição de ter advindo prole de ambos os relacionamentos vividos.

          Não há, na nova Lei Civil, uma disposição que regulamente esta situação híbrida quanto à condição dos filhos do falecido (comuns e exclusivos), com os quais deva concorrer o convivente supérstite.

          Neste caso, restou inafastavelmente a dúvida: ou bem se fazia o convivente supérstite concorrer com os descendentes de ambas as condições (comuns e exclusivos) como se fossem todos descendentes comuns aos dois, herdando, portanto a mesma quota cabível a cada um dos filhos, ou bem se fazia o convivente supérstite concorrer com os mesmos herdeiros como se fossem todos descendentes exclusivos do autor da herança, percebendo, portanto, a metade dos bens que couber a cada qual.

          Não bastassem essas duas modalidades exegéticas para a apreciação da circunstância híbrida (existência de filhos comuns e de filhos exclusivos, em concorrência com o convivente sobrevivo), outras duas, aos menos, se apresentaram na consideração doutrinária inaugural: uma que buscou compor as disposições contidas nos incisos I e II do art. 1790, atribuindo uma quota e meia ao convivente sobrevivente – equivalente à soma das quotas que a ele seriam deferidas, na hipótese de concorrer com filhos comuns (uma) e com filhos exclusivos (meia) –, e outra que igualmente buscou compor as duas regras, dividindo proporcionalmente a herança em duas sub-heranças, atribuíveis a cada um dos grupos de filhos (comuns ou exclusivos) incorporando, em cada uma delas, a concorrência do convivente sobrevivo.

          Seja qual for a formulação ou critério que se escolha, contudo, a verdade é que parece torna-se impossível conciliar, do ponto de vista matemático, as disposições dos incisos I e II deste artigo 1.790.

          Parece mesmo não haver fórmula matemática capaz de harmonizar a proteção dispensada pelo legislador ao convivente sobrevivo (fazendo-o receber o mesmo quinhão dos filhos que tenha tido em comum com o autor da herança) e aos herdeiros exclusivos do falecido (fazendo-os herdar o dobro do quanto dispensado ao convivente que sobreviver).

          Dessa forma, na realidade, são quatro as propostas de tentativas de composição dos dispositivos do Códio Civil envolvidos no assunto relativo à sucessão de filhos (comuns ou exclusivos) em concorrência com o convivente sobrevivente.

          ► 1ª proposta: identificação dos descendentes como se todos fossem filhos comuns, aplicando-se exclusivamente o inciso I do art. 1.790 do Código Civil:

          Por esta via, a divisão patrimonial obedeceria à simples regra de igualar os filhos de ambos os grupos, tratando-os como se fossem filhos comuns a ambos os conviventes.

          Certamente não pode prosperar essa solução simplista, pois se, por um lado, trata de manter igualadas as quotas hereditárias atribuíveis aos filhos (de qualquer grupo), conforme determina o art. 1.834 do Código, por outro lado, fere na essência o espírito do legislador do Código Civil que quis dar tratamento diferenciado às hipóteses de concorrência do convivente sobrevivo com os descendentes do de cujus de um ou de outro grupo (comuns ou exclusivos).

          ► 2ª proposta: identificação dos descendentes como se todos fossem filhos exclusivos do autor da herança, aplicando-se, neste caso, apenas o inciso II do art. 1.790 do Código Civil:

          Da mesma forma com a qual se cuidou de refutar a proposta anterior, também aqui, por via desta divisão patrimonial, se chegaria à mesma conclusão, vale dizer, o espírito do legislador do Código Civil restaria magoado, tendo em vista a inobservância da diferença que quis dar às hipóteses de concorrência do convivente sobrevivo com os descendentes do de cujus de um ou de outro grupo (comuns ou exclusivos).

          Nessa hipótese por segundo considerada – e como é possível observar – privilegiar-se-iam os filhos em detrimento do convivente sobrevivo, que seria tido, sob todos os aspectos como não ascendente de nenhum dos herdeiros, recebendo, então, apenas a metade do que aqueles herdariam. Por outro lado, naquela primeira proposta formulada, o convivente sobrevivente acabaria por ser privilegiado, na medida em que participaria da herança recebendo quota absolutamente equivalente às quotas atribuíveis aos descendentes de qualquer grupo.

          ► 3ª proposta: composição dos incisos I e II pela atribuição de uma quota e meia ao convivente sobrevivente:

          Por esta via, a divisão patrimonial obedeceria a seguinte regra: somar-se-ia o número total de filhos comuns e de filhos exclusivos do autor da herança, acrescentar-se-ia mais um e meio (uma quota deferida ao convivente sobrevivente, no caso de concorrência com filhos comuns, e meia quota deferida ao mesmo sobrevivo, no caso de concorrência com filhos exclusivos do falecido), dividindo-se, depois, a herança por esse número obtido, entregando-se quotas de valores iguais aos filhos (comuns e exclusivos), o que atenderia ao comando de caráter constitucional do art. 1834 NCC (que determina que descendentes da mesma classe tenham os mesmos direitos relativamente à herança de seu ascendente), e uma quota e meia ao convivente sobrevivente, o que atenderia aos comandos dos incisos I e II do art. 1790.

           Pode parecer, à primeira vista, que esta solução resolveria – com exemplar facilidade – o problema da partilha, aparentemente atendendo a todas as regras do NCC de regência sobre o assunto.

          Contudo, a pergunta difícil de responder que fica é a seguinte: se esta for a solução buscada, onde residiria, dentro dela, aquele princípio que norteou o espírito do legislador, ao dar diferentes variáveis de concorrência do convivente sobrevivo com descendentes de um e de outro grupo (comuns ou exclusivos)? Porque, afinal, o que se vê das quotas hereditárias e partilháveis entre os filhos todos é que efetivamente elas são iguais, mas a quantia que se abateu da herança, para compor a quota do convivente concorrente, foi retirada do monte-mor a todos eles idealmente atribuível, sem atentar para a diferença entre os filhos (como pretendeu diferenciá-los, para esse efeito, o legislador de 2002, nos incisos I e II do art.1790), diminuindo, igualmente, o quinhão de cada um deles, afinal de contas, para compor a quota hereditária do convivente concorrente.

          O que restou a considerar, num caso como esse, e sob essa solução, é que o tratamento dado ao convivente sobrevivo foi muito mais privilegiado que em qualquer das duas hipóteses singulares (incisos I e II do art. 1790) previstas pelo legislador e vistas cada uma de per se. Confira-se: a) se concorresse apenas com filhos comuns, o convivente sobrevivo herdaria quota igual à que coubesse a cada um deles; b) se concorresse apenas com descendentes exclusivos do autor da herança, o convivente sobrevivo herdaria quota equivalente à metade da que coubesse a cada um deles; c) mas, nessa derradeira, problemática e não prevista hipótese de concorrência com filhos de ambos os grupos (comuns e exclusivos), o convivente se beneficiaria, por herança, com maior quinhão, qual seja o quinhão equivalente a uma quota e meia, enquanto que cada um dos filhos (comuns ou exclusivos) herdaria uma única quota, cada um deles.

          Não me parece que seja isto que tenha querido o legislador, uma vez que diferenciou as espécies de herdeiros descendentes, para efeito dessa concorrência e, em nenhuma das formulações legislativas, deferiu, ao convivente sobrevivo, uma quota hereditária maior do que a que coubesse a qualquer dos herdeiros com quem concorresse. Na melhor das hipóteses (inciso I), o legislador pensou em igualar o quinhão do convivente sobrevivo ao quinhão do herdeiro, desde que fosse filho seu e do autor da herança, mas nunca pensou em privilegiar o convivente com quota maior do que a deferida ao herdeiro.

          Assim – segundo quer me parecer – se aplicado esse critério aqui desenhado, o resultado obtido ao final de uma partilha seria um resultado absolutamente dissociado do espírito do legislador de 2002.

          Penso não ser possível produzi-lo assim simplesmente, tout court.

          ► 4ª proposta: composição dos incisos I e II pela sub-divisão proporcional da herança, segundo a quantidade de descendentes de cada grupo:

          Por esta via, a divisão patrimonial obedeceria a seguinte regra: primeiro se dividiria a herança a ser partilhada entre filhos comuns e filhos exclusivos em duas partes (sub-heranças) proporcionais, cada uma delas, ao número de filhos de um ou de outro grupo. A seguir se introduziria, em cada uma dessas sub-heranças, a concorrência do convivente, conforme a determinação do inciso I ou do inciso II do art. 1790, respectivamente. Depois disso, se somariam as quotas do convivente supérstite – obtidas em cada uma dessas sub-heranças – formando o quinhão a ele cabível. Aos filhos herdeiros caberia a quota que houvesse resultado da aplicação das regras legais em cada uma das sub-heranças, conforme proposto.

          É fácil verificar, se esse fosse o critério a ser utilizado, que os quinhões dos filhos de um grupo seriam proporcionalmente maiores que os quinhões dos filhos do outro grupo. Quinhões desigualados equivalem, entretanto, ao desatendimento do art. 1834 NCC, dispositivo de caráter constitucional.

          Assim – segundo quer me parecer, nesta nova proposta de partição da herança – se aplicado o critério matemático aqui desenhado, o resultado obtido ao final de uma partilha seria um resultado absolutamente dissociado, não apenas do espírito do legislador de 2002, mas também da principiologia constitucional de fundo (18).

        2.2 A concorrência do cônjuge com descendentes – arts. 1829, I, 1832 e 1834.

          Depois de tratar das regras gerais respeitantes à sucessão, no sentido de serem regras que se aplicam tanto à sucessão testamentária, quanto àquela que se processa tendo falecido o de cujus ab intestato, passa o legislador a editar regras especialmente desenhadas para aqueles casos em que a morte se dá com ausência de testamento ou de testamento válido, com testamento incompleto, enquanto um testamento que não abrange a totalidade do acervo hereditário disponível, ou mesmo com um testamento que, não obstante completo, encontra limitação na existência de herdeiros necessários, que são aqueles que necessariamente devem ser chamados a herdar ou, ao menos, deliberar a respeito da quota que lhes é deferida.

          Esta chamada se organiza, em níveis de preferência por certas classes de pessoas consoante a regra do art. 1829 do novo Código Civil:

          Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

          I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

          II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

          III – ao cônjuge sobrevivente;

          IV – aos colaterais.

          Impõe o legislador uma ordem de vocação hereditária, em que divide os chamados a herdar em classes, impondo entre eles uma "relação preferencial" (19) em que uns excluem os outros, segundo a ordem estabelecida no ordenamento.

          O novo Código Civil, apesar de manter a ordem de vocação hereditária tradicionalmente aceite pelo ordenamento jurídico brasileiro, (20) garante ao cônjuge supérstite uma dada posição de igualdade, e por vezes até de primazia, relativamente aos descendentes e ascendentes – que continuam a compor a primeira e a segunda classes de vocação hereditária – chamados a herdar.

          Outra conseqüência trazida pela nova legislação foi a revogação, por falta absoluta de previsão neste sentido, bem assim por perda de necessidade prática, da instituição em favor do cônjuge sobrevivo dos direitos reais de uso ou usufruto, uma vez que este passa a herdar sempre que não lhe faltar legitimidade para tanto. Assim, se herda, adquire o direito de propriedade sobre uma parte do acervo, direito real este de amplitude quase ilimitada, e isto torna desnecessária a herança de direitos reais limitados. Manteve-se, entretanto o direito real de habitação sobre a residência familiar, limitado ao fato de ser este o único bem com esta destinação.

          O cônjuge sobrevivo encontra-se, por força desta listagem preferencial de chamamento a herdar, em terceiro lugar, mas posiciona-se favorecido também nas duas primeiras e antecedentes classes, já que o novel legislador dispôs que ele concorre com aqueles primeiro chamados a herdar, isto é os descendentes e os ascendentes

          A imissão do cônjuge nas classes anteriores à terceira, se faz de forma gradativa e proporcional à importância que o legislador empresta aos descendentes e aos ascendentes em relação ao apreço e carinho que o morto presumidamente guardaria para cada qual. Por isso é que a quota do cônjuge vai aumentando dependendo da classe em que se encontre, como se verá.

          Por força do art. 1845 do novo Código Civil, o cônjuge sobrevivo – já se o mencionou, antes – passa à categoria de herdeiro necessário, tornando-se impossível ao cônjuge que primeiro falecer afastar o supérstite de sua sucessão, o que antes era possível pela simples facção de cédula testamentária que abrangesse todo o patrimônio do de cujus, inexistindo descendentes e ascendentes do testador. Tornar o sobrevivente herdeiro necessário da pessoa com quem conviveu e convivia até período próximo ao da morte deste é medida que se coaduna com a colocação daquele nas duas primeiras classes de vocação sucessória, em concorrência com descendentes e ascendentes. Com efeito, seria ilógico fazer do sobrevivente herdeiro preferencial, concorrente dos necessários e, ao mesmo tempo, negar-lhe tal condição. Daí a regra do art. 1845 referido.

          Todavia, a aquisição de fração da herança pelo cônjuge supérstite depende da verificação de certos pressupostos que garantam, do ponto de vista social, a harmonia e a continuidade da vida em comum, como que a legitimar a presunção de que o cônjuge participou da construção do patrimônio familiar, "seja pela cooperação direta de trabalho, seja pela participação direta de apoio, de economias, da harmonia, e até de sacrifícios" (21), apenas para ficarmos na enumeração expendida por Caio Mário da Silva Pereira, um dos maiores defensores do reconhecimento do cônjuge não só como herdeiro preferencial, mas também como herdeiro necessário.

          O primeiro destes pressupostos exigidos pela lei é o do regime matrimonial de bens. Bem por isso o inc. I do art. 1829, anteriormente reproduzido, faz depender a vocação do cônjuge supérstite do regime de bens escolhido pelo casal, quando de sua união, uma vez que o legislador enxerga nessa escolha uma demonstração prévia dos cônjuges no sentido de permitir ou não a confusão patrimonial e em que profundidade querem ver operada tal confusão.

          Assim, não será chamado a herdar o cônjuge sobrevivo se casado com o falecido pelo regime da comunhão universal de bens (arts. 1667 a 1671 do atual Código Civil), ou pelo regime da separação obrigatória de bens (arts. 1687 e 1688, combinado com o art. 1641).

          Por fim, aqueles casais que, tendo silenciado quando do momento da celebração do casamento, optaram de forma implícita pelo regime da comunhão parcial de bens, fazem jus à meação dos bens comuns da família, como se de comunhão universal se tratasse, mas passam agora a participar da sucessão do cônjuge falecido, na porção dos bens particulares deste.

          Pode-se concluir, então, no que respeita ao regime de bens reitor da vida patrimonial do casal, que o cônjuge supérstite participa por direito próprio dos bens comuns do casal, adquirindo a meação que já lhe cabia, mas que se encontrava em propriedade condominial dissolvida pela morte do outro componente do casal e herda, enquanto herdeiro preferencial, necessário, concorrente de primeira classe, uma quota parte dos bens exclusivos do cônjuge falecido, sempre que não for obrigatória a separação completa dos bens.

          De outra feita, se concorrer na segunda classe, tirante a meação que lhe couber, herda não apenas fração dos bens particulares do de cujus como também fração dos bens comuns ao casal, uma vez que o inciso II do art. 1829 não faz quaisquer das ressalvas feitas no inciso I do mesmo artigo em clara demonstração de que as exceções deste último inciso só servem para proteger os descendentes do falecido e não os ascendentes deste, sempre que em concorrência com o cônjuge supérstite.

          Outro pressuposto para a participação do cônjuge sobrevivo na herança do falecido é a constância jurídica e fática do casamento (art. 1830).

          Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.

          A primeira classe a ser chamada à sucessão será a dos descendentes do de cujus, em concorrência com o cônjuge supérstite que satisfaça às exigências relativas ao regime matrimonial de bens (quanto a este tema, veja-se, supra, os comentários ao art. 1830).

          A regra geral é a de que o cônjuge supérstite e os descendentes recebem a mesma quota hereditária. Todavia, esta regra encontra exceção na parte final do artigo reproduzido sempre que a concorrência se der entre o cônjuge supérstite e quatro ou mais dos descendentes que teve em comum com o de cujus.

          A sucessão que se resolva na vocação da primeira classe para receber a parte disponível, ou mesmo a totalidade da herança verá o acervo hereditário ser dividido em tantas partes quantos forem os filhos, netos, bisnetos ou demais descendentes do de cujus, sempre que todos sucedam por direito próprio, o que equivale a dizer que todos os descendentes devem guardar, relativamente ao morto, o mesmo grau de parentesco, e mais uma parte, esta destinada ao cônjuge supérstite.

          Todavia, se a quota parte cabível a este último for menor do que a quarta parte do monte-mor e se todos os chamados a suceder forem também seus herdeiros, então a lei reserva ao cônjuge supérstite este montante, que será então descontado do acervo hereditário, repartindo-se os outros setenta e cinco por cento entre os descendentes que com este concorrem à sucessão.

          Por outro lado, se à sucessão concorrerem descendentes apenas do de cujus, então a reserva da quarta parte ao sobrevivo não prevalecerá e a herança dividir-se-á em tantas partes quantos forem os descendentes, mais uma a ser entregue ao cônjuge.

          Questão mais tormentosa de se buscar solucionar, relativamente a essa concorrência prevista pelo dispositivo em comento, é aquela que vai desenhar uma hipótese em que são chamados a herdar os descendentes comuns (ao cônjuge falecido e ao cônjuge sobrevivo) e os descendentes exclusivos do autor da herança, todos em concorrência com o cônjuge sobrevivo. O legislador do Código Civil de 2002, embora inovador na construção legislativa de hipótese de concorrência do cônjuge com herdeiros de convocação anterior à sua própria, infelizmente não fez a previsão da hipótese agora em apreço, de chamada de descendentes dos dois grupos, quer dizer, os descendentes comuns e os descendentes exclusivos. E é bastante curioso, até, observar essa lacuna deixada pela nova Lei Civil, uma vez que em nosso país a situação descrita é comuníssima, envolvendo famílias constituídas por pessoas que já foram unidas a outras, anteriormente, por casamento ou não, resultando, dessas uniões, filhos (descendentes, enfim) de origens diversas.

          A dúvida que remanesce, à face da ausência de previsão legislativa para a hipótese, diz respeito, afinal, ao fato de se buscar saber se prevalece, ou não, a reserva da quarta parte dos bens a inventariar, a favor do cônjuge sobrevivo, em concorrência com os descendentes herdeiros.

          Ora, a maneira que escolheu o legislador para redigir o art. 1832 não deixa qualquer dúvida acerca da intenção de se dar tratamento preferencial ao cônjuge sobrevivo, quando se trata de concorrência com descendentes do de cujus que sejam também seus descendentes, exatamente reservando-lhe esta quarta parte da herança, como quinhão mínimo a herdar, por concorrência com aqueles. Observe-se que não fez idêntica referência, o legislador, para a hipótese distinta, vale dizer, de serem os herdeiros, com quem concorre o cônjuge sobrevivo, descendentes exclusivos do falecido. Logo, essa foi a opção do legislador civil brasileiro – a de privilegiar o cônjuge concorrente com a reserva da quarta parte da herança, apenas no caso de concorrência com herdeiros dos quais fosse ascendente – e, por essa razão, essa opção passa a valer como paradigma para a exegese do regramento, pelo futuro doutrinador, bem como pelo futuro aplicador do direito, tudo em prol de uma sadia consolidação jurisprudencial do porvir. (22)

          Se este foi o espírito que norteou a concreção legislativa no novo Código Civil – e trata-se de uma formulação bastante elogiável – entendo que ele deva ser preservado, ainda quando se instale, na vida real, a hipótese híbrida antes considerada, de chamamento de descendentes a herdar, de ambos os grupos, isto é, de descendentes que também o sejam do cônjuge concorrente, e de descendentes exclusivos do autor da herança. Qualquer solução que pretenda deitar por terra essa postura diferencial consagrada pelo legislador deveria estar consignada em lei, ela também, exatamente para evitar a variada gama de soluções que terão que ser, obrigatoriamente, organizadas pelo aplicador e pelo hermeneuta, formulando paradigmas jurisprudenciais que não guardem qualquer correlação com aquele espírito do legislador, claramente registrado no artigo em comento (1832).

          Mas porque não há, na nova Lei Civil, uma disposição específica para a hipótese híbrida (descendentes comuns e descendentes exclusivos), soluções alternativas poderão ser levantadas para os casos que se apresentarem nesse interregno de tempo que se estenderá entre a entrada em vigor do Código e a necessária alteração legislativa, no porvir.

          Se assim for, então, parecem ser três as mais prováveis propostas de solução para as ocorrências híbridas de sucessão de descendentes dos dois grupos (comuns e exclusivos) em concorrência com o cônjuge sobrevivente.

    ► 1ª proposta: identificação dos descendentes (comuns e exclusivos) como se todos fossem também descendentes do cônjuge sobrevivente.

          Por esta via, que considera todos os descendentes do de cujus como sendo descendentes também do cônjuge sobrevivo, a solução possível seria apenas aquela de reservar a quarta parte da herança para ser amealhada pelo cônjuge que sobreviveu.

          Solução desse jaez representaria, no entanto, um certo prejuízo aos descendentes exclusivos do falecido, os quais, por não serem descendentes do cônjuge com quem concorrem, restariam afastados de parte mais ou menos substanciosa do patrimônio exclusivo de seu ascendente morto.

          Não se satisfaz, portanto, o espírito do legislador no novo Código Civil, que pretendeu privilegiar o cônjuge supérstite – nestas condições de reserva de parte ideal – tão somente quando tal cônjuge fosse também ascendente dos herdeiros de primeira classe com quem concorresse. Por esse motivo tal proposta não deve prevalecer, não obstante garantir quinhões iguais aos filhos de ambos os grupos (comuns e exclusivos) e ao cônjuge sobrevivente.

          ► 2ª proposta: identificação dos descendentes (comuns e exclusivos) como se todos fossem descendentes exclusivos do cônjuge falecido.

          Da mesma forma com a qual se cuidou de refutar a proposta anterior, também aqui se pode chegar à mesma conclusão de inobservância do espírito do legislador do Código Civil. Mas, aqui, tal inobservância se verifica na exata medida em que o tratamento de todos os descendentes do de cujus como seus descendentes exclusivos, acabaria por afastar a reserva da quarta parte do monte partível garantida ao cônjuge sobrevivo, como forma de lhe garantir um maior amparo em sua viuvez.

          Trata-los, aos descendentes todos, como se fossem descendentes exclusivos do falecido representa solução que fecha os olhos a uma verdade natural (descendentes por laços biológicos) ou civil (descendentes em razão de uma adoção verificada) que é a única verdade que o legislador tomou como autorizadora de uma maior proteção dispensada ao cônjuge que sobreviver.

          ► 3ª proposta: composição pela solução híbrida, subdividindo-se proporcionalmente a herança, segundo a quantidade de descendentes de cada grupo.

          Por esta via de raciocínio (que bem poderia ser intentada pelo intérprete, à face da lacuna do legislador), a divisão patrimonial do acervo hereditário obedeceria às seguintes regras: primeiro se dividiria a herança em duas sub-heranças, proporcionalmente ao número de descendentes de cada um dos grupos (comuns e exclusivos). A sub-herança que fosse destinada a compor os quinhões hereditários dos descendentes exclusivos seria dividida em tantas quotas quantos fossem os herdeiros desta classe, mais uma (correspondente à quota do cônjuge concorrente, conforme determinação do art. 1832, 1ª parte), entregando-se a cada um dos herdeiros o seu correspondente quinhão hereditário. A seguir, dividir-se-ia, da mesma maneira, a sub-herança destinada a compor os quinhões hereditários dos descendentes comuns, pelo número deles, mais uma, destinada ao cônjuge que com eles concorre. Supondo que a somatória desta quota deferida ao cônjuge sobrevivente (em concorrência com descendentes comuns) e da quota igualmente deferida a ele (em concorrência com descendentes exclusivos) fosse menor que uma quarta parte da herança, então se reorganizaria a divisão, para que esse preceito do legislador ordinário pudesse ser observado. Para tanto, a sugestão seria a de se abater da sub-herança atribuível aos descendentes comuns o quanto fosse necessário para – somando-se ao quinhão do cônjuge obtido já da sub-herança deferida aos descendentes exclusivos – consolidar o equivalente a 25% do total da herança (atendendo, assim, ao que dispõe a segunda parte do mesmo dispositivo legal em comento, o art. 1832).

          Ora, é muito fácil observar que, senão em circunstância real excepcionalíssima, essa composição matemática não conseguiria atender aos preceitos legais envolvidos (art. 1829, I e 1832), e não garantiria a igualdade de quinhões atribuíveis a cada um dos descendentes da mesma classe, conforme determina o art. 1834, de caráter constitucional. Quer dizer, nem se conseguiria obter – por esta proposta imaginada conciliatória – iguais quinhões para os herdeiros da mesma classe (comuns ou exclusivos), nem seria razoável que a quarta parte garantida ao cônjuge fosse complementada por subtração levada a cabo tão-somente sobre a parte do acervo destinada aos descendentes comuns.

          De qualquer das formas, ao que parece, na ocorrência de uma hipótese real de sucessão de descendentes que pertencessem aos dois distintos grupos (comuns e exclusivos) em concorrência com o cônjuge sobrevivo, não haveria solução matemática que pudesse atender a todos os dispositivos do Código Civil novo, o que parece reforçar a idéia de que, para evitar uma profusão de inadequadas soluções jurisprudenciais futuras, o ideal mesmo seria que o legislador ordinário revisse a construção legal do novo Diploma Civil brasileiro, para estruturar um arcabouço de preceitos que cobrissem todas as hipótese, inclusive as hipóteses híbridas (como as tenho chamado) evitando o dissabor de soluções e/ou interpretações que corressem exclusivamente ao alvedrio do julgador ou do hermeneuta, mas desconsiderando tudo aquilo que, a princípio, norteou o ideal do legislador, formatando o espírito da norma. (23)

NOTAS

GOMES, Orlando. Sucessão, p. 11.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – 6º volume – Direito das Sucessões, p. 14.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Volume 7, p. 13.

CARVALHO SANTOS, J. M. Código Civil Interpretado. Direito das Sucessões. Volume XXII, p. 7.

GOMES, Orlando. Ob. cit., p. 11.

Walter Moraes deixa claro que: "Vale para os legados o princípio geral da aquisição imediata. A regra básica é a de que o legatário adquire a deixa desde a morte do testador. O que impede a instantaneidade da aquisição são as seguintes circunstâncias: 1) existência de condição suspensiva; 2) a indeterminação do objeto; 3) a inexistência do objeto no patrimônio deixado; 4) a inexistência da personalidade do legatário" (MORAES, Walter. Programa de Direito das Sucessões. Teoria Geral e Sucessão Legítima, p. 48). A primeira hipótese determina que se aguarde a verificação da condição que, em não ocorrendo, acarreta a devolução do bem aos herdeiros legítimos. A segunda obriga que se espere o final da partilha. A terceira possibilita a aquisição do bem quando da partilha com posterior entrega ao legatário, sempre que possível tal providência, sendo que, se impossível, dá-se por caduca a disposição. A quarta hipótese, por fim, refere-se à instituição de prole eventual de terceiro como legatário, determinando-se que se aguarde sua superveniência.

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso Avançado de Direito Civil – Volume 6, p. 277-278.

MACHADO, Antônio Cláudio da Costa; OLIVEIRA, Juarez de. Novo Código Civil, p. 363.

"Perante o nosso direito positivo, a porção disponível é fixa, invariável. Em qualquer hipótese, seja qual for a qualidade e o número dos herdeiros, compreenderá sempre a metade dos bens do testador. Assim não acontece, todavia, em outras legislações." (MONTEIRO, Washington de Barros. Ob. cit., p. 10) E elenca, o saudoso escritor, ali, uma série de hipóteses verificáveis na legislação comparada.

Na deserdação, o herdeiro é "privado de uma vocação legitimária, por meio da vontade imperial do testador", ao passo que a exclusão por indignidade resolve "uma vocação hereditária existente no momento da abertura da sucessão" (CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil, v. 6, p. 384).

Em especial por Caio Mário da Silva Pereira, como este relata à p. 17 de seu Instituições de direito civil, v. VI, em perspectiva histórica.

"Compreendido o fenômeno da sucessão como uma exigência social de busca do melhor continuador da personalidade patrimonial do de cuius, conforme a sua vontade, e baseado o critério dessa busca em presuntiva proximidade pessoal do sucessível com o sucedido, justifica-se e explica-se o iter ascendente da vocação do cônjuge, dada a natural intimidade que da união do casal se espera resultar. Tal visão e tal critério estão a sugerir, ao mesmo tempo, que a evolução da ordem de vocação ainda está a obrar à procura de uma situação definitiva para o cônjuge, que satisfaça socialmente, sob todos os aspectos" (MORAES, Walter. Ob. cit., p. 138).

O que foi motivo para acerbadas críticas por parte da doutrina. Veja-se, por último, VELOSO, Zeno. Direito sucessório dos companheiros, in Direito de Família e o novo Código Civil, p. 225-237.

Ob. cit., passim.

VELOSO, Zeno. Ob. cit., passim.

VELOSO, Zeno. Ob. cit., ps. 236-237.

A respeito, vale a pena recuperar a cuidadosa lição de Gustavo Tepedino na mais recente obra sob sua coordenação e intitulada A Parte Geral do novo Código Civil: Estudos na Perspectiva civil-constitucional (verificar "Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002", p.XXI): "Volta-se a ciência jurídica à busca de técnicas legislativas que possam assegurar uma maior efetividade aos critérios hermenêuticos. Nesta direção, parece indispensável, embora não suficiente, a definição de princípios de tutela da pessoa humana […], bem como sua transposição na legislação infraconstitucional. O legislador percebe a necessidade de definir modelos de conduta (standards) delineados à luz dos princípios que vinculam o intérprete, seja nas situações jurídicas típicas, seja nas situações não previstas pelo ordenamento. Daqui a necessidade de descrever nos textos normativos (e particularmente nos novos códigos) os cânones hermenêuticos e as prioridades axiológicas, os contornos da tutela da pessoa humana e os aspectos centrais da identidade cultural que se pretende proteger, ao lado de normas que permitem, do ponto de vista de sua estrutura e função, a necessária comunhão entre o preceito normativo e as circunstâncias do caso concreto".

O legislador brasileiro, de alguma forma, já se apercebeu da inviabilidade de conexão entre o enunciado genérico contido no art. 1790, I e II e a norma descritiva de valores que descreve o art. 1834, todos do novo Código Civil Brasileiro. O Projeto de Lei nº 6960/2002 (do Deputado Ricardo Fiúza) intenta uma nova redação para o art. 1790, deixando-o com a seguinte sugestão de redação: Art. 1.790. O companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte: I – em concorrência com descendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes, salvo se tiver havido comunhão de bens durante a união estável e o autor da herança não houver deixado bens particulares, ou se o casamento dos companheiros se tivesse ocorrido, observada a situação existente no começo da convivência, fosse pelo regime da separação obrigatória (art. 1.641); […] A alteração de fundo é significativa, pois todo o contorno e conteúdo do dispositivo é alterado. Mas não esteve preocupado o legislador do substitutivo em compor matematicamente a possibilidade de aplicação dos dispositivos do Código Civil tal como estão, hoje. Na substanciosa obra denominada Novo Código Civil Comentado, coordenada pelo próprio Deputado Ricardo Fiúza (Editora Saraiva, 2002, 1843 ps.), o jurista encarregado de comentar esse art. 1790 e de demonstrar a sugestão legislativa de alteração que o acompanha (Projeto de Lei 6960/2002) foi exatamente o insigne Zeno Veloso, que assim descreveu a razão da sugestão legislativa sob comento: "Consciente disso [referia-se aos inúmeros problemas originais do dispositivo], e considerando o posicionamento assumido no Congresso Nacional, em vez de oferecer ao Deputado Ricardo Fiúza minha própria proposta, vou apresentar – com algumas alterações, a meu ver necessárias – a que foi oferecida pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, colocando-a de acordo com as limitações à concorrência dos cônjuges com os descendentes (art. 1829) e com a emenda que estou propondo ao art. 1831, que regula o direito real de habitação. Transijo, enfim, para que o art. 1790 não fique como está."

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Direito das Sucessões, p. 61. Ou, ainda, como deixou consignado Itabaiana de Oliveira, tratar-se-ia de verdadeira "coordenação preferencial dos grupos sucessíveis" (ITABAIANA DE OLIVEIRA, Arthur Vasco. Tratado de Direito das Sucessões. Vol. I, p. 169).

É a seguinte a redação do art. 1603 do Código Civil de 1916: "A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes; II – aos ascendentes; III – ao cônjuge supérstite; IV – aos colaterais; V – aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União".

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Ob. cit., p. 76.

Essa mesma consideração, com a mesma natureza argumentativa, já foi levantada pela autora em comentários anteriores (art. 1790), relativamente à sucessão, por concorrência, do convivente sobrevivo.

A respeito, a autora solicita licença para repetir lição já anteriormente citada, de Gustavo Tepedino, também em nota de rodapé, nos comentários ao art. 1.790: "Volta-se a ciência jurídica à busca de técnicas legislativas que possam assegurar uma maior efetividade aos critérios hermenêuticos. Nesta direção, parece indispensável, embora não suficiente, a definição de princípios de tutela da pessoa humana […], bem como sua transposição na legislação infraconstitucional. O legislador percebe a necessidade de definir modelos de conduta (standards) delineados à luz dos princípios que vinculam o intérprete, seja nas situações jurídicas típicas, seja nas situações não previstas pelo ordenamento. Daqui a necessidade de descrever nos textos normativos (e particularmente nos novos códigos) os cânones hermenêuticos e as prioridades axiológicas, os contornos da tutela da pessoa humana e os aspectos centrais da identidade cultural que se pretende proteger, ao lado de normas que permitem, do ponto de vista de sua estrutura e função, a necessária comunhão entre o preceito normativo e as circunstâncias do caso concreto" ("Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002". A Parte Geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional, p. XXI).

 

Bibliografia Citada

 

          CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso Avançado de Direito Civil – Volume 6. São Paulo: Ed. RT, 2000.

          FIUZA, Ricardo. Novo Código Civil Comentado. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.

          GOMES, Orlando. Sucessão. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

          Itabaiana DE OLIVEIRA, Arthur Vasco. Tratado de direito das sucessões. São Paulo: Max Limonad, 1952. vol. I.

          HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; CAHALI, Francisco José. Curso Avançado de Direito Civil – Volume 6. São Paulo: Ed. RT, 2000.

          MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – 6º volume – Direito das Sucessões. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

          MORAES, Walter. Programa de Direito das Sucessões. Teoria Geral e Sucessão Legítima. São Paulo: Ed. RT.

          PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, 13. ed. Rio de Janeiro : Forense, 2001. vol. VI.

          RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 22. ed. São Paulo : Saraiva, 1998. 7 vol.

          TEPEDINO, Gustavo. A Parte Geral do novo Código Civil: Estudos na Perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

          VELOSO, Zeno. "Direito sucessório dos companheiros". Direito de Família e o novo Código Civil. Coordenadores: Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte: Del Rey e IBDFam, 1ª ed.: 2001; 2ª ed.: 2002.

  


Referência  Biográfica

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka  –  Procuradora Federal em São Paulo (SP); Doutora em Direito pela USP; Professora doutora de Direito Civil da USP e Diretora da Região Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam).

hironaka@uol.com.br

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