Inteligência do art. 58, § 3°, da Constituição Federal – Direito das Minorias – Vereadores Municipais – Soberania – Comissão Especial de Inquérito – Estudo de caso
Resumo
O presente trabalho busca analisar,do ponto de vista constitucional e administrativo, decisão em mandado de segurança que concedeu a um grupo de vereadores da cidade de Guarulhos, SP,o direito de instaurar uma Comissão Especial de Inquérito[2] para “averiguar denúncias relatadas pelo Secretário de Educação durante Audiência Pública de Orçamento” realizada no âmbito da Câmara Municipal, mesmo ante a desistência expressa de parte dos signatários ao requerimento inicial, sob o entendimento de que a não realização acarretaria lesão ao direito das minorias.
A análise ao caso concreto tem por base a norma, a doutrina e a jurisprudência, aplicados os métodos de interpretação e hermenêutica balizados na visão de Celso Ribeiro Bastos, para quem se deve em primeiro lugar compreender o sentido da norma, para a seguir aplicá-la ao caso concreto[3], sendo esse um dos elementos essenciais requeridos pela situação posta.
- O Requerimento
É cediço, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, que as Comissões Parlamentares de Inquérito constituem importante instrumento constitucional de proteção das minorias, que por meio delas terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das Casas Legislativas, ordenamento de aplicabilidade interna corporis que rege os trabalhos dos parlamentares no trato do exame político de matérias legislativas em apreciação, ou ainda sua conduta do ponto de vista ético e político. As CPIs são criadas mediante requerimentode um terço dos membros das Casas Legislativas, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores (CF, art. 58, § 3°).
- O Exercício da Soberania da Constituição
Ao proteger e reafirmar os valores políticos dos cidadãos do Estado Brasileiro, incluídos aí por correção os seus representantes políticos,a Constituição Federal de 1988 visa a cravar a igualdade de manifestação popular de forma clara e cristalina, como base de sustento da própria democracia.Por isso, fortaleceu a ideia de um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, tais a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade justa, fraterna, pluralista e sem preconceitos.
O conceito de Estado Democrático de Direito é fundamentado na noção de cidadania, na dignidade da pessoa humana e no pluralismo político, tendo como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e a promoção de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação e essa concepção se consagra no momento em que ocorre
o Estado limitado pelo direito e o poder político estatal legitimado pelo povo. O direito é o direito interno do Estado; o poder democrático é o poder do povo que reside no território do Estado ou pertence ao Estado.[4]
Os valores acima enunciados recebem, todavia reforços dos princípios constitucionais da prevalência dos direitos humanos e repúdio ao racismo e às questões de gênero, os quais são formulados no contexto da Carta de Direitos Constitucionais, sob o título “Direitos e Garantias”, para todos os cidadãos de forma igualitária. Dentro desse conceito, o pluralismo é valor básico que fundamenta a democracia moderna. Há muito está superada a concepção política de que a maioria é o único parâmetro de condução do poder. Há que respeitar e compatibilizar ao máximo os interesses de todos os grupos que compõem o corpo social, inclusive dos núcleos minoritários. Em verdade, os anseios da minoria cederão parcialmente (excepcionalmente deforma total) apenas quando os seus interesses são colidentes com os da maioria. Em razão disso, construíram-se diversos instrumentos modernos de proteção das minorias (tais como as Ações Afirmativas) e de todos os grupamentos (como é o caso das novas audiências públicas desenvolvidas no âmbito do Poder Legislativo).
- A legitimação das minorias
A decisão judicial de primeiro grau sub comendum versa justamente sobre o direito das minorias, e é acertado do ponto de vista formal o posicionamento do MM Juiz prolator, mas algo equivocada, permissa venia, do ponto de vista do exame das circunstâncias em que se deram os fatos: tanto a fase inicial (requerimento), quanto as fases seguintes (retirada das assinaturas e encerramento) e sobre tais fatos permitimo-nos ora comentar os limites da garantia constitucional concedida às minorias parlamentares de ver instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito, os quais se assentam em requisitos básicos postos pela própria Constituição.
Essa legitimação de atuação deve ser observada à luz do direito constitucional e das limitações impostas pela Constituição às ações do Estado, tendo em vista que a representatividade política ou judicial deve sempre levar em consideração a vontade do povo. Uma coisa é a posição dos grupos, outra coisa é a mudança de direção dessa posição, que pode desagradar parte do grupo, mas tornar-se legítima, uma vez que foi tomada justamente por integrantes direitos desse grupo, ainda que minoritário.
Por limitar o exercício de um direito, a lei pode distinguir entre classes de pessoas as suas respectivas condutas sociais e nem por isso a lei deve ser considerada constitucional, mas quando se trata de regulação estatal do exercício de um direito fundamental que implique sua limitação prática, a presunção deve militar em favor do cidadão e não do governo. No Brasil, parte-se de uma concepção de claro viés dualista, que considera que as decisões tomadas pelos constituintes (aí os parlamentares de forma geral) devem ser protegidas, visto que envolvem um verdadeiro momento constitucional, muito embora a atividade política do dia-a-dia não receba a mesma proteção judicial.[5]
3.1. Do requerimento para instauração da CEI, no âmbito da Câmara Municipal de Guarulhos
É o teor do requerimento de n° 1.058/2011, apresentado em 08 de novembro de 2011 e firmado por 13 parlamentares:
REQUEIRO, à Douta Mesa, a constituição de uma Comissão Especial de Inquérito, nos termos dos arts. 90[6] e 102[7] do Regimento Interno, para averiguar as denúncias relatadas pelo Secretário de Educação durante Audiência Pública de Orçamento, no dia 03 de novembro de 2011, referente a convênios realizados com Entidades junto à Secretaria de Educação. (seguem-se 13 assinaturas)
O artigo 58, §3º, da Constituição Federal de 1988, estabelece que as “Comissões Parlamentares de Inquérito (…) serão criadas (…) mediante requerimento de um terço de seus membros (…)”. Assim, uma vez apresentado requerimento de instauração que atenda aos requisitos constitucionais, a Mesa da Casa tem o dever de prolatar o ato criador. Argumentando, o requisito constitucional atrela-se ao requerimento, não podendo o mesmo ser revisto em Plenário. A teor disto, na ADI 055.218.0/02,o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo declarou a inconstitucionalidade da expressão “aprovados por maioria absoluta”, constante do art. 33 da Lei Orgânica do Município de São Paulo:
“As Comissões Parlamentares de Inquérito (…) serão criadas pela Câmara, mediante requerimento de 1/3 (um terço) de seus membros, aprovados por maioria absoluta (…)”.
Depreende-se que basta, portanto, o requerimento de 1/3 (um terço) dos membros da Câmara Legislativa para a instalação do procedimento investigativo. Respeita-se: assim observa-se o direito das minorias. Nesse sentido e tendo em vista a relevância do assunto, o Supremo Tribunal Federal julgou no ano de 2007 o Mandado de Segurança de n° 26441, impetrado contra ato da Mesa e do presidente da Câmara dos Deputados que – após a aprovação e a criação do inquérito parlamentar para investigar as causas, consequências e responsáveis pela crise ocorrida no setor aéreo brasileiro, a CPI do “apagão aéreo” – deferiu recurso contra a sua instalação.
No conhecido caso do “apagão aéreo”, a base jurídica em que se assentou a decisão foi a votação em Plenário pela instalação da CPI e, nesse pleito, não lograram os parlamentares atingir o mínimo de 1/3 (um terço) exigido (a pressão da maioria certamente deve ter constrangido a minoria que a tinha solicitado). Destarte, de reafirmar que levar ao plenário a apreciação desse tipo de requerimento não encontra fundamento na Constituição.Não houve ratificação, em plenário, pela minoria, das 211 assinaturas do requerimento de criação da CPI, uma vez que somente141parlamentares manifestaram-se favoráveis à mesma, quando,para a Mesa, no mínimo seriam necessários 170 votos (1/3 da Casa).
A Relatoria da ação coube ao Ministro Celso de Mello, em cujo relatório constou que a Constituição exige, como requisito, o requerimento da instalação e não a atos posteriores. Celso de Mello afirmou que a exigência está na gênese do requerimento. Ele mesmo indaga se pode ou não a maioria,sustentando-se no§ 3º, do artigo 58da Constituição, levantar questão de ordem e, por recurso, obstar a criação da CPI. Celso mesmo responde negativamente à indagação, desta forma:
“a prerrogativa de investigar da minoria, já deferida, não poderia ser comprometida pelo bloco majoritário. Não se pode deslocar para o Plenário a decisão final da instalação da CPI, já que é poder constitucional das minorias o de fiscalizar, investigar e responsabilizar, a quem quer que seja, por atos administrativos”.
3.2. Do procedimento para instauração da CEI, de acordo com o Regimento Interno da Câmara Municipal de Guarulhos
Observado o direito das minorias, o que há de diferente no caso em testilha é que na realidade o pedido de instalação da CEI por meio do Requerimento de n° 1.058/2012 foi rejeitado pela própria minoria que requereu a sua instalação, no momento em que quatro parlamentares retiraram suas assinaturas do requerimento inicial antes mesmo do início dos trabalhos e,segundo a previsão estatuída no Regimento Interno da Câmara Municipal de Guarulhos, no art. 178, § 1º: “Apresentada à consideração da Câmara, uma proposição poderá ser retirada pelo seu autor a qualquer momento, independendo de aprovação plenária.” (Não há destaques no original)
E assim foi feito. O requerimento de retirada, da autoria de quatro vereadores,está fundamentado corretamente no dispositivo acima e deriva de sua soberania no Parlamento, ao refletir a falta de interesse na instalação do procedimento pelos próprios vereadores que assinaram a proposição, que não hão de ser considerados maioria, eis que integraram o núcleo minoritário que apresentou o requerimento. Não há que falar, portanto, em ofensa ao direito da minoria. Esses parlamentares são efetivamente os que requereram a instauração da CEI, motivo pelo qual nada mais justo que o ato de revogação tenha partido deles, autoridades que a cometeram, o que encontra assento na mais pura e básica teoria do direito constitucional e administrativo. Não houve, nem sequer foi cogitada nos procedimentos pós-protocolares, a manifestação do Plenário da Casa para intervir na vontade dos parlamentares que ensejaram a criação da CEI, o que aí, sim ofenderia, contrario sensu do que dispõe o art. 27 da Lei Orgânica deste Munícipio, o ditame da Constituição Federal insculpido em seu art. 58, § 3º.
Como a Comissão não chegou a surtir seus efeitos, ainda que nas preliminares, não havia se consubstanciado o ato jurídico perfeito, mesmo porque as próprias autoridades requerentes do ato, sem qualquer interveniência por mais simples que fosse de terceiros, declinaram da necessidade de instalação do procedimento, usando de sua soberania não como intervenientes, mas como titulares do próprio direito de minoria que os levou à busca dessa forma de exercício da representação pública. Segundo o magistrado prolator da decisão no Mandado de Segurança n° 224.01.2011.077842-8, impetrado contra decisão do I. Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos que determinou o arquivamento do pleito de instalação da CEI em questão, a retirada das assinaturas e o consequente encerramento do procedimento ofenderam o ato jurídico perfeito, tese da qual ousamos discordar, tendo em vista que o ato não havia alcançado ainda a sua plenitude e foi revogado pelas próprias autoridades que o cometerem, fazendo legítima tal atitude. Não há que falar em ato jurídico perfeito sem analisar as suas condições de existência.
Ademais disto, os vereadores que requereram a retirada de suas assinaturas do requerimento da CEI manifestaram, além de seu exercício de soberania, a vontade parlamentar, eis que o já citado Regimento Interno da Câmara Municipal de Guarulhos, que foi aprovado justamente para conduzir todos os procedimentos internos em que haja atuação parlamentar especialmente, em seu art. 178, § 1º, dispõe, verbis:
“Art. 178. Todas as proposições serão autuadas e processadas em separado, iniciando-se a numeração pela capa sobreposta à peça principal, à exceção dos substitutivos, emendas, sub-emendas, documentos e informações sobre a proposta, que serão juntados ao processo principal.
- 1º – Apresentada à consideração da Câmara, uma proposição poderá ser retirada pelo seu autor a qualquer momento, independendo de aprovação plenária.” (grifamos)
In casu, ou seja, ao retirar suas assinaturas, os vereadores seguiram orientação de seu próprio Regimento Interno e, repita-se, exercendo a sua soberania, retiraram suas assinaturas do requerimento da CEI, por motivos que lhes vieram às consciências e nelas repousam, agindo estritamente em cumprimento às regras impostas ao seu comportamento mandamental. Ao protocolar o requerimento, o ato inicial ficou meramente acabado, mas não juridicamente perfeito. Rasgue-se o Regimento, caso não tenha aplicabilidade ou efetividade. O intérprete da lei há que compreender a extensão da regra, para após aplicá-la ao caso concreto, nos bons caminhos que se deve trilhar na busca da aplicação do processo hermenêutico-interpretativo.
- O ato jurídico perfeito
A figura do ato jurídico perfeito não pode, nem deve ser confundida com a do ato acabado meramente. Celso Ribeiro Bastos afirmou que o ato consumado significa que o direito já foi gerado e exercido e que não há mais direito a ser feito valer no futuro, eis que do ato já se havia extraído tudo o que poderia ele dar em termos de efeitos jurídicos. Para Celso Bastos:
“O ato jurídico perfeito é aquele que, se bem que acabado quanto aos elementos de sua formação, aguarda um instante ainda, ao menos virtual ou potencial, de vir a produzir efeitos no futuro.”[8]
Nesse sentido, André Ramos Tavares afirma que o ato jurídico perfeito é aquela relação reconhecida pelo Direito que já se completou em sua inteireza.[9]
- Da apuração de fato determinado
As CEIs, no âmbito da Câmara Municipal de Guarulhos, que se encarregarão de apurar fatos tidos como irregulares na esfera municipal deverão ser requeridas ante o protocolo de requerimento subscrito por pelo menos 1/3 dos membros da Casa e conter a especificação dos fatos a serem apurados[10]. Tais comissões terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos no regimento para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso,encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
Importante frisar, que a simples menção a fatos que em tese teriam ocorrido e relatados por quem quer que seja não motiva a criação do procedimento investigativo, eis que para sua instauração é necessário o cumprimento de um fundamental requisito:
- a) que o fato seja determinado (CF, art. 58, § 3°).
A simples menção a “denúncia (…) referente a convênios realizados com entidades junto à Secretaria de Educação” não enseja a instauração de um procedimento tão importante quanto a CEI, eis que faltam alguns elementos de especificidade, a saber:
- a) a) Que tipo de irregularidade?
- b) b) Quais as entidades a serem investigadas?
- c) c) Quais as naturezas dos convênios (repasse de fundos do FUNDEB; repasse de alimentos; transporte escolar; cooperação técnica; cooperação científica; etc)
O termo empregado pela Constituição Federal “fato determinado” justamente barra as arapongagens aleatórias, segundo as quais a Administração Pública deveria parar tudo o que tem de fazer e disponibilizar todas as suas centenas de convênios, contratos e documentos para disponibilizá-los às oposições de plantão, sem que haja claro motivo do por que ou sobre o quê, quando e onde. Fato determinado é o acontecimento segundo o qual há clara definição sobre o seu acontecimento. Não basta elucubrar, há que demonstrar a existência do fato que se pretende investigar, pena de cair no vazio e despender recursos públicos, além de tempo,com meras conjecturas políticas.
Aduza-se, que a finalidade da investigação deve sempre ser a apuração de fato determinado, e que o tempo de duração da sindicância também deve ser específico, ante a natureza temporária das comissões de inquérito. É cediço que não se apresentam limitações da matéria a ser alvo das investigações no âmbito das CPIs, salvo o de investigar crime de responsabilidade do Presidente da República, pois há previsão constitucional de processo especial para tanto – o processo de impeachment (CF, arts. 85 e 86). Boa parte da doutrina, no entanto, reconhece que a investigação parlamentar pode atingir qualquer fato que tenha repercussão no interesse público. No entanto, parece-nos lógico que os fatos investigáveis devem guardar relação com a sua especificidade.
Há necessidade de que os fatos sejam delimitados, eis que sem essa condição o exercício do direito de defesa poderá ser restringido e por isso os fatos concretos devem ser o amparo fundamental da instauração, para que os investigados possam elaborar e apresentar suas defesas, exercendo sem restrições o seu direito ao contraditório, entendimento esse que é desposado pelo Supremo Tribunal Federal, como no julgamento colacionado abaixo, verbis:
“Cumpre salientar quea Constituição, ao determinar que a CPI tenha por objeto fato determinado, tem por escopo garantir a eficiência dos trabalhos da própria comissão e a preservação dos direitos fundamentais. Ficam impedidas, dessa forma, devassas generalizadas. Se fossem admitidas investigações livres e indefinidas, haveria o risco de se produzir um quadro de insegurança e de perigo para as liberdades fundamentais. Somente a delimitação do objeto a ser investigado pode garantir o exercício, pelo eventual investigado, do direito à ampla defesa e ao contraditório.
Acusações vagas e imprecisas, que impossibilitam ou dificultam o exercício desses direitos, são proscritas pela ordem constitucional. No caso, a CPI foi instalada com a finalidade de apurar ‘os fatos relativos ao não-recolhimento ou ao recolhimento incorreto, pelas instituições bancárias, do Imposto sobre Serviços (ISS)’. Em juízo de mera delibação, próprio dos incidentes de contracautela, é razoável entender que o ato instituidor da mencionada CPI veicula apenas enunciados genéricos, não apontando sequer um fato concreto e individualizado que possa dar ensejo ao exercício, pelo Poder Legislativo municipal, de sua função fiscalizadora. Por fim, não é ocioso reafirmar a natureza excepcional das medidas de contracautela, cujo deferimento se condiciona à efetiva demonstração de ofensa à ordem, saúde, segurança e economia públicas. A aferição da ocorrência desses pressupostos não se faz, contudo, de forma totalmente apartada da análise das questões jurídicas suscitadas na ação principal, pois somente a partir dessa análise, ainda que superficial, pode-se, de fato, constatar a ocorrência de lesão a um dos interesses públicos protegidos. (SS3.591-AgR, Rel. Min. Presidente, decisão monocrática, julgamento em 14-8-08, DJE de 20-8-08) (Grifos nossos)
Ainda que haja crime a ser apurado, não há impeditivo em nosso sistema da concomitância de processo judicial ou investigação policial e a CEI, pois atingem finalidades investigativas diversas, consoante a melhor expressão de nosso Tribunal Constitucional:
“Autonomia da investigação parlamentar. O inquérito parlamentar, realizado por qualquer CPI, qualifica-se como procedimento jurídico-constitucional revestido de autonomia e dotado de finalidade própria, circunstância esta que permite à Comissão legislativa — sempre respeitados os limites inerentes à competência material do Poder Legislativo e observados os fatos determinados que ditaram a sua constituição — promover a pertinente investigação, ainda que os atos investigatórios possam incidir,eventualmente, sobre aspectos referentes a acontecimentos sujeitos a inquéritos policiais ou a processos judiciais que guardem conexão com o evento principal objeto da apuração congressual. (MS 23.652, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 16/02/01) (destacamos)
Mesmo que ambas desposem o intuito de apuração de responsabilidades, os trabalhos das comissões parlamentares não se devem confundir com aqueles realizados durante no âmbito policial ou judicial, pois seu fim é outro, político. O mister desenvolvido constitucionalmente pelo tribunais tem o condão de determinar a responsabilidade jurídica (civil, penal ou administrativa), sendo que às CPIs limitam-se a apurar a responsabilidade política, adotando ao final medidas que julgarem adequadas (legislativas, políticas, de fiscalização etc.), ou simplesmente realizar uma tarefa de informação para o parlamento[11].
Logicamente não poderão investigar se o seu propósito não for tão-somente o de averiguar se houve ou não irregularidade. O Requerimento de n° 1.058/2011, além de não especificar com clareza o(s) objeto(s)da investigação pretendida, sequer trouxe o documento no qual afirmam os seus autores que em tese haveria relatos do então Secretário de Educação sobre convênios realizados com entidades junto à Secretaria de Educação. Pelo requerimento apresentado, não se consegue definir o que pretenderia a CEI: a) quais os convênios; b) a sua natureza; c) a quantidade; d) os números dos procedimentos administrativos; e) os fatos ensejadores; f) os períodos de incidência; e g) as entidades beneficiadas.
A falta de determinação ou de definição do objeto da pretendida CEI torna incipientes os motivos que, em tese, teriam motivado os nobres vereadores a apresentar o requerimento em apreço, em acintosa ofensa ao que está disposto no § 3°, do art. 58, da Constituição da República, motivo pelo qual inócua seria sua instituição, bem como todos os atos dela derivados. Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendeset alli:
“Como imperativo de eficiência e a bem da preservação de direitos fundamentais, a Constituição determina que a CPI tenha por objeto um fato determinado. Ficam impedidas devassas generalizadas. Se fossem admissíveis investigações livres e indefinidas haveria o risco de se produzir um quadro de insegurança e de perigo para as liberdades fundamentais.”[12]
- Prazo Certo
As CEIs, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos no regimento da Casa Legislativa Guarulhense, serão criadas por iniciativa de determinado número de vereadores, consoante já consignado, mais precisamente mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso,encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
Mais peculiar é o procedimento, quando os fatos se dão em um ano eleitoral e vale menção a fato que merece apreço. Há um limite intransponível para a realização de procedimento investigativo no âmbito do Legislativo, qual seja, além de não poder ter seus trabalhos desenvolvidos indefinidamente, não pode ele ultrapassar a legislatura, o que também tem sido alvo de preocupação do Supremo Tribunal Federal, que já decidiu:
“A duração do inquérito parlamentar -com o poder coercitivo sobre particulares, inerentes à sua atividade instrutória e a exposição da honra e da imagem das pessoas a desconfianças e conjecturas injuriosas – é um dos pontos de tensão dialética entre a CPI e os direitos individuais, cuja solução,pela limitação temporal do funcionamento do órgão, antes se deve entender matéria apropriada à lei do que aos regimentos: donde, a recepção do art. 5º, § 2º, da Lei 1.579/52, que situa, no termo final de legislatura em que constituída, o limite intransponível de duração, ao qual,com ou sem prorrogação do prazo inicialmente fixado, se há de restringir a atividade de qualquer comissão parlamentar de inquérito.” (HC 71193/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 23-03-2001)
A indicação de prazo certo e o respeito ao mesmo é o que se almeja constitucionalmente, eis que no procedimento das comissões de inquérito, que tem viés investigativo, haverá vezes em que poderão ocorrer restrições a direitos fundamentais, por isso a exigência de prazo certo é medida constitucional de ponderação que tem por escopo a proteção desses direitos. Tal pode significar que se pode admitir eventual limitação a direito fundamental, mas de forma claramente provisória, sendo esse o desejo da nossa Carta Política. Há que haver data para começar e para acabar. O regime desposado pelo Supremo Tribunal Federal é de que o limite máximo seja o final da legislatura, o que nos damos a discordar, com a devida venia. É o posicionamento do STF:
“O Supremo Tribunal Federal, julgando o HC nº71.193-SP,decidiu que a locução “prazo certo”, inscrita no § 3º do artigo 58 da Constituição, não impede prorrogações sucessivas dentro da legislatura, nos termos da Lei 1.579/52.” (HC 71231/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 31-10-1996).
O importante é que, no momento em que esteja devidamente instaurada, a CEI tenha definidos os seus prazos de abertura e encerramento, pena de ocorrência de investigações além daqueles que foram inicialmente elencados como fatos determinados, para que se cumpra na íntegra a vontade constitucional insculpida no § 3º, do art. 58, da Carta Brasileira.
- CONCLUSÕES
Ao observara natureza de qualquer decisão judicial, há que ver que a interpretação judicial deve ser considerada uma forma de expressão do juiz e que tal expressão retrata não de uma simples descrição do fenômeno jurídico, a partir de uma análise sensorial das normas, mas antes uma reação emocional a partir de sua experiência e tradição e que o expressionismo judicial se constitui em uma das formas mais sinceras de relacionamento humano, porque transfere ao interlocutor o resultado de um processo de livre associação feita pelo juiz[13].
Ainda assim e, em que pese a larga argumentação posta pelo MM Juiz prolator da sentença de mérito no Mandado de Segurança que se discutiu em tela,permissa máxima claro está que deixou ele de observar importantes elementos intrínsecos do processo de formação da Comissão Especial de Inquérito, quais sejam: a) o direito das minorias em momento algum deixou de ser observado, consoante narrado pelo MM Magistrado em sua decisão, eis que não houve, ou sequer foi encaminhado o requerimento a exame do Plenário da Egrégia Casa Legislativa, muito pelo contrário, a retirada de assinaturas se deu pelos mesmos agentes políticos minoritários que cometeram o ato administrativo, portanto, legitimados a fazê-lo; b) esses mesmos agentes políticos seguiram, em sua atitude de retirada das assinaturas, estritamente a legalidade, eis que agiram em consonância com o que prevê o Regimento Interno da Casa Legislativa em seu art. 178, § 1°; c) o Presidente da Casa agiu dentro da esfera da pura legalidade stricto sensu, ao obedecer ao fundamento antecedentemente mencionado, eis que ao agente público somente é dado a fazer o que a lei determina;d) quanto ao fato determinado este não ocorreu, ou seja, a simples menção a suposta ocorrência de prováveis irregularidades que porventura tenham sido abordadas no pronunciamento do então Secretário de Educação deste Município sem que houvesse especificação dos elementos essenciais que as tornassem fato determinado não autoriza a instauração do procedimento; e) fatos narrados pela autoridade genericamente sobre problemas de ordem administrativa em sua prestação de contas à sociedade não são elementos que autorizem a investigação, justamente por sua generalidade e não ensejam a abertura de processo investigativo, justamente porque em sua fala a autoridade também já apontava todos os procedimentos realizados pela Secretaria de Educação para orientar ou punir os faltosos, não consistindo por isto motivo à abertura de investigação. Tudo o que foi apontado na fala do Secretário são meros e corriqueiros fatos do dia-a-dia da Administração e todos os procedimentos estão à disposição do público, ademais de encaminhados os relatórios ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, que detém o poder de verificar e julgar as contas do Executivo; f) por fim, a questão do prazo não foi abordada em conclusões, tendo em vista que o procedimento sequer iniciou os seus trabalhos. Embora haja a necessidade legal de sua fixação, tal poderia ter sido sanado tão logo se iniciassem os trabalhos, o que jamais ocorreu, sendo, portanto inaplicável manifestação nesse sentido.
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NOTAS
[1] Estudo de caso, por Enos Florentino Santos, advogado, Mestre em Direito, professor universitário. Junho de 2014.
[2] Neste artigo serão usadas as seguintes abreviaturas: CEI – Comissão Especial de Investigação; CPI – Comissão Parlamentar de Investigação.
[3] BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 3ª Ed. Revista e ampliada. Celso Bastos Editores. São Paulo, 2002, pág. 30
[4] CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Almedina. Portugal. 2002. Pág. 231
[5] ACKERMAN, Bruce, apud APPIO, Eduardo.In, Direito das Minorias. RT, São Paulo, 2008, pág.180
[6] Art.90. Aconstituição de comissão temporária, salvo exceção prevista em lei ou neste regimento,
poderá ser requerida por qualquer Vereador, que deverá especificar com clareza qual comissão deseja a instituição e seu objetivo.
[7] Art. 102. As Comissões Especiais de Inquérito encarregar-se-ão da apuração de fatos tidos comoirregulares na esfera municipal, devidamente exposto através de requerimento.
- 1º – O requerimento deconstituiçãoque independe de deliberação plenária, deverá ser subscrito por 1/3 (um terço) dos membros da Casa e conter a especificação dos fatos a serem apurados.
[8]BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. Celso Bastos Editores. São Paulo. 2002, págs.377/378
[9]TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 3ª Ed. Saraiva. São Paulo. 2006. Pág. 654
[10] Regimento Interno, art. 102 e § 1°
[11]PERALES, A.Elvira. Comisionesde Investigaciónenel “Bundestag”. UnEstudio de Jurisprudencia. Revista Española de Derecho Constitucional, Ano 7, nº 19 (1987), p. 267.
[12]MENDES; BRANCO. Gilmar Ferreira; Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. Saraiva, São Paulo, 2013, pág.
[13]APPIO, Eduardo. Direito das Minorias. RT, São Paulo, 2008. Pág. 342
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- Referências Bibliográficas
APPIO, Eduardo. Direito das Minorias. RT, São Paulo, 2008
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. Celso Bastos Editores. São Paulo. 2002
……………………………Hermenêutica e Interpretação Constitucional, 3ª ed. Celso Bastos Editores, 2002
CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Almedina. Portugal.
MENDES; BRANCO. Gilmar Ferreira; Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. Saraiva, São Paulo, 2013
PERALES, A. Elvira. Comisionesde Investigaciónenel “Bundestag”. UnEstudio de Jurisprudencia. Revista Española de Derecho Constitucional, Ano 7, nº 19 (1987)
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 3ª Ed. Saraiva. São Paulo. 2006
Regimento Interno da Câmara Municipal de Guarulhos
Site do Supremo Tribunal Federal (www.stf.jus.br)
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REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
ENOS FLORENTINO SANTOS: advogado, Mestre em Direito, professor universitário. Junho de 2014.