Crimes contra a ordem tributária

* Herman Lott  –

I – Evolução legislativa

                O Livro V das Ordenações Filipinas, legislação que não contemplava o princípio da reserva legal, tratava de forma assistematizada as condutas que podem ser consideradas análogas ao atual crime de contrabando ou descaminho, do art. 334, do CP.

            Estabelecia a Lei, e.g., que certas "cousas" não poderiam ser levadas para fora do Reino sem licença de "El-Rey".

            A pena para a infração era o perdimento dos bens, a metade para quem o denunciasse e a outra metade para o Reino, além do degredo  A licença do Rei custava o pagamento de duas dízimas (Quinto).

            Marquês de Pombal, 1º Ministro de D. José I (década de 1760), reformulou a legislação e introduziu a modalidade de tributo denominada "Avença", que consistia no pagamento, ao Reino, de uma parcela da produção industrial e agrícola. (Pierangeli, Códigos Penais do Brasil, pag. 172, 2ª ed., RT).

            O Sistema Tributária não reclamava, devido à sua simplicidade, disciplina legislativa criminal, mesmo porque, inexistindo o princípio da reserva legal, acabava por prevalecer a vontade do Rei.

            A primeira alteração considerável veio com o Código Criminal do Império que, em seu art. 1º, consagrava o princípio da legalidade em matéria penal e, por consequência, obrigou à perfeita descrição das condutas criminosas, inclusive aquela conduta considerada lesiva ao "Thesouro"

            art. 177 Importar ou exportar gêneros ou mercadorias prohibidas; ou não pagar os direitos dos que são permitidos, na sua importação ou exportação.

            O primeiro CP da República (1890), no seu Título VII (Dos Crimes Contra a Fazenda Pública), cujo único capítulo continha somente o art. 265, "qualifica" assim o crime de contrabando

            "Importar ou exportar, gêneros ou mercadorias prohibidas; evitar no todo ou em parte o pagamento dos direitos e impostos estabelecidos sobre a entrada, sahida e consumo de mercadorias, e por qualquer modo iludir ou defraudas esse pagamento".

            A Consolidação das Leis Penais Dec. 22213/32, tratou igualmente dos crimes contra a Fazenda Pública, definindo também apenas o crime de contrabando em seu artigo 265, porém, agregando outras condutas ao tipo, como importar e fabricar rótulos de bebidas e quaisquer outros produtos nacionais como se fossem estrangeiros, disciplinou a navegação de cabotagem dos navios estrangeiros, etc.

            A inclusão das "novas" condutas na realidade foi mera incorporação de tipos penais previstos em leis esparsas, como o do art. 4º da Lei 123/1892, do art. 1º do Decreto 1425-B/1905 e do art. 56 da Lei 4.440/1921.

            Obs. Tanto o Código Penal de 1890 quanto a Consolidação de 1932 consideravam inafiancável o crime de contrabando arts. 406 de ambos.

            O CP de 1940 tratou do "Contrabando ou Descaminho" no seu art. 334, inserindo-o no capítulo dos "Crimes Praticados por Particular Contra a Administração em Geral", enxugando o tipo penal para criminalizar as condutas de exportar ou importar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria. Manteve a penalização da navegação de cabotagem fora dos casos permitidos em lei e do fato assimilado, em lei especial, a contrabando ou descaminho.

            Devido à crescente complexidade da legislação e quantidade de dispositivos penais-tributários distribuídos em leis esparsas (ex. art. 11 da Lei 4.357/64 equiparou ao crime de apropriação indébita o não recolhimento de valores relativos ao IR, descontados pelas fontes pagadoras, ao Imposto de Consumo, indevidamente creditados na escrituração fiscal, e ao Imposto do Selo, recebidos de terceiros) e diante da progressiva complexidade das próprias relações e obrigações tributárias, tornou-se necessária a reunião dos tipos penais-tributários existentes e a tipificação de outras condutas.

            Foi promulgada, então, a Lei 4.729/65, diploma que, no dizer de Xavier de Albuquerque (ex-Presidente do STF), conferiu cidadania e positividade ao nosso Direito Penal Tributário, tipificando, em seu art. 1º, as diversas condutas consideradas crimes de sonegação fiscal e, em seu art. 2º, estabelecendo a extinção da punibilidade de tais crimes quando o tributo fosse recolhido antes do início, na esfera administrativa, da ação fiscal própria, determinando, em seu art. 7º, que a autoridade administrativa remeteria imediatamente os elementos de comprobatórios da infração penal-fiscal ao MP, e este, entendendo-os suficientes, ofereceria desde logo a denúncia.

            É de se notar, aliás unanimidade entre os autores, que a Lei 4.729/65, ao tipificar os delitos de sonegação fiscal, conferiu-lhes natureza de crimes formais, definindo a conduta e a intenção do agente como crime consumado, relegando a mero exaurimento a obtenção da vantagem pretendida.

            Neste sentido a lição de Dílio Procópio de Alvarenga, que afirmava a natureza formal do delito, prelecionando que o crime estaria consumado com a sonegação fiscal, prescindindo de real sonegação tributária. ("Sonegação Fiscal", Revista Jurídica da Procuradoria Geral da Fazenda Estadual de MG, n.1, pag. 31).

            No mesmo sentido a lição de Ângelo Rafael Rossi ao sustentar que o crime de sonegação fiscal é formal, pois se consuma ainda que a finalidade desejada pelo agente não tenha sido atingida, bastando a alteração definitiva do documento fiscal (Crime de Sonegação Fiscal, Ed. Jur. e Universitária Ltda, 1967, p. 36).

 

II – A derrogação da lei 4.729/65

            A história se repetiu e, no dizer de Rui Stoco, enquanto vigorava a LSF, tínhamos a previsão de crimes de sonegação fiscal nesta e nas demais leis ou regulamentos, de natureza tributária ou previdenciária, que dispunha sobre o IR, o IPI e a Previdência Social. Com o advento da Lei 8.137/90, concentraram-se todos os delitos contra a ordem tributária em um só estatuto. (ASFranco e outros, Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial, 6ª ed., pag. 2080, ed. RT).

            A derrogação (ficou mantido o art. 5º, que alterou o art. 334, do CP) decorre de que a Lei 8.137/90 reproduziu as figuras típicas da lei 4.729/65, incluindo, no caput do art. 1º, a exigência do resultado lesivo; criou outras figuras típicas, antes inexistentes, como a do art. 2º, V; por fim, regulamentou a aplicação da multa e a extinção da punibilidade, de modo a substituir, quase que integralmente, o antigo diploma legal.

            Injustificável, portanto, as insistentes referências do legislador à lei revogada, como na Lei 9.249/95, que em seu art. 34 repristinou os arts 2º e 14, das Lei 4.729/65 e 8.137/90, respectivamente (ASFranco e outros, ob. Cit., pag. 2080).

III – A extinção da punibilidade do crime tributário

            A principal alteração trazida pela Lei 8.137/90 se deu na natureza dos delitos tributários, transformados de crimes formais em materiais ou de resultado.

            A lei foi promulgada no auge do prestígio político do ex-Presidente Fernando Collor de Melo (27.12.1990), quando ainda era sua Ministra da Economia a Sra. Zélia Cardoso de Melo.

            Já nas proximidades de seu sepultamento político, exatamente um ano após, surgiu a Lei 8.383, de 30,12.91, revogando a causa de extinção da punibilidade prevista no art. 14 da Lei 8.137/90.

            Observa-se, pois, primeiramente a criação de dificuldades para a punição dos crimes tributários, transformados em crimes de resultado, e sujeitos a causa sui generis de extinção da punibilidade.

            Em um segundo momento político, mas quando ainda o ex-Presidente mantinha forças para influenciar o Congresso Nacional, observa-se o recrudescimento da legislação com o advento da Lei 8.383/91, a qual suprimiu a causa especial de extinção do jus puniendi.

            No primeiro governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, a Lei 9.249/95 repristinou o art. 14 da Lei 8.137/90 e, incorrendo em impropriedade, referiu-se também ao art. 2º da Lei 4.729/65.

            O fato é que hoje vigora a Lei 8.137/90, em seu texto original, com algumas alterações de natureza secundária, como a introduzida pelo art. 83, da Lei 9.430/96, que comentaremos mais adiante.

            Mas, sobre a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, é certo que mesmo antes da Lei 4.729/65 (o art. 11 da Lei 4.357/64, em seus §§ 1º e 2º, erigiram em causas de extinção da punibilidade da apropriação indébita pelo não recolhimento de tributos descontados pela fonte o recolhimento, antes da decisão administrativa de primeira instância no respectivo processo fiscal, dos débitos correspondentes) inseriu-se no Direito Penal a controvertida modalidade, surgindo posições divergentes na doutrina, defendendo-a grandes nomes como Ives Granda e Paulo José da Costa Júnior e detratando-a outros não menos festejados como Manoel Pedro Pimentel e Heleno Cláudio Fragoso.

            Rui Stoco se destaca entre os que, atualmente, a criticam e o faz frisando que a lei especial trouxe figura nova não prevista dentre as causas arroladas no art. 107, do CP, ou, em outras palavras, usurpando matéria até então reservada às normas gerais de Direito Penal.

            Mas o núcleo de seu ataque se dá quando cita André Nabarrete Neto, Juiz do TRF 3ª Região, transcrevendo artigo carregado de severa crítica, in verbis:

            "Há profunda antinomia entre o poder de punir e a possibilidade de afastá-lo mediante a reparação do dano concreto ou projetivo, decorrente de crime fiscal, através do pagamento do tributo ou contribuição social. O poder punitivo não é bem comerciável e torná-lo significa mercantilizar atividade essencial do Estado. Assim, no futuro, seria aconselhável que se retornasse à regra do art. 16 do CP…"(Revista Brasileira de Ciências Criminais, RT, São Paulo, ano 5, n.17).

            É o inconformismo daqueles que consideram a regra verdadeiro servilismo do D. Penal ao D. Tributário, vale dizer, o D. Penal como cobrador de tributos.

            A nosso sentir, a questão beira a discussão sobre ao menos relativa autonomia do Direito Penal Tributário e pode ser assim resumida.

            1 – Não ser reconhece autonomia nem mesmo relativa ao dito Direito Penal Tributário, submetendo-o a regras próprias do Direito Penal e procede-se a correção da lei com a supressão da anômala causa extintiva da punibilidade, ou

            2 – Reconhece-se a autonomia, ao menos relativa, do Direito Penal Tributário e se aceita de bom grado a adoção de princípios capazes de distingui-lo, sem ofensa, do Direito Penal. O princípio basilar desse "novo ramo do D. Penal" seria o de que ele existe em função do Direito Tributário e sua objetividade jurídica principal seria assegurar o poder coercitivo do fisco em obter o pagamento do tributo devido e, secundariamente, o de punir os renitentes com as penas próprias do D. Penal, conferindo-se caráter particular confiscatório à pena de multa, adotando-se, em sua dosimetria, critério de cálculo também particular.

IV – O art. 83 da lei 9.430/96 condição específica de procedibilidade

            "A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts 1º e 2º da Lei 8.137/90, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência do crédito tributário correspondente".

            A despeito das divergências, temos que o dispositivo se harmoniza com a nova natureza conferida pela lei 8.137/90 ao delito tributário. Com efeito, se o delito se consuma com o resultado; se o resultado consiste na supressão ou redução do tributo e tal efeito comporta discussão na esfera administrativa tendente a uma decisão sobre a própria exigência do crédito tributário, ou, em última análise, sobre a própria existência da obrigação tributária, principal ou acessória, cujo descumprimento importa na prática do delito, por óbvio que antes da decisão administrativa é grande o risco de, em caso de denúncia, estar se processando o cidadão por um fato inexistente, ou seja, por uma conduta, comissiva ou omissíva, da qual ele não estava obrigado a se abster, razão por que o legislador preferiu estabelecer uma condição específica de procedibilidade para a ação penal.

            Xavier de Albuquerque cita o seguinte exemplo, no qual transcreve parte das razões do contribuinte apresentadas perante a autoridade fazendária, verbis:

            "A Impugnante, não tendo encontrado elementos de prova suficiente, na forma usualmente exigida, face a possibilidade de redução da multa e considerando o enquadramento legal dado pelos auditores fiscais, deixa de impugnar este tópico para efetuar o recolhimento cabível dentro do prazo legal. Sob coação de sanções penais com que se vê ameaçado, a Impugnante prefere recolher os valores cabíveis, mesmo não reconhecendo a procedência das acusações e mesmo tendo prejuízos fiscais que poderiam absorver a exigência deste tópico".

            De fato, afigura-se-nos como verdadeira coação penal a impedir a utilização da via administrativa, o aceno da denúncia criminal (verdadeira espada da ação penal a pender sobre o contribuinte) e, com esta, a impossibilidade de valer-se do direito previsto no art. 34, da Lei 9.249/95.

            Assentada a pertinência lógica da exigência legal, cumpre salientar que, a nosso sentir, equivocam-se os autores sobre qual a verdadeira condição de procedibilidade criada pela lei. Parece-nos claro, entretanto, que o que de fato importa é a verificação final, na seara administrativa, da supressão ou redução do tributo e não propriamente o encaminhamento da representação, pela autoridade administrativa, ao Ministério Público.

            A reforçar o argumento, pensamos que à autoridade administrativa, e disto ninguém a de discordar, não é dado, após a decisão final sobre a exigência fiscal do crédito tributário, fazer juízo de oportunidade e/ou conveniência de encaminhamento da representação ao Ministério Público (vide Dec. 2.730/98).

            E, se assim o é, a denominada "representação" não passa de obrigatório encaminhamento de notitia criminis, posto que a representação penal tem por essência a disponibilidade do direito de representar, inclusive sujeito a decadência.

            Ora, se consiste em verdadeiro dever funcional o mencionado encaminhamento, a omissão, intencional ou não, da autoridade administrativa não impedirá a atuação do MP, que poderá requisitar (na presença da verdadeira condição de procedibilidade, qual seja, a verificação da exigência), os documentos referentes à conclusão do procedimento administrativo e, conforme o caso, promover a responsabilidade penal da autoridade fazendária por prevaricação.

            A condição específica de procedibilidade é, pois, a decisão final, na esfera administrativa, que conclui pela exigência fiscal do crédito tributário, e não a "representação" da autoridade administrativa. Evidente que em todo caso de preclusão da instância administrativa também estará satisfeita a condição de procedibilidade.

            Nem se diga que é de se estranhar a exigência de condição específica de procedibilidade consistente em decisão extrapenal, pois o mesmo ocorre quanto ao exercício da queixa-crime de que trata o art. 236, do CP.

V –  Delitos tributários tipos anormais

            Manoel Pedro Pimentel, em considerações sobre a Lei 4.729/65, salienta que "o legislador se utilizou, na descrição desses tipos, de expressões de uso comum no Direito Tributário, o que reforça a idéia de que esses tipos são anormais, porque além do elemento subjetivo do injusto exigido, há neles a integração de conceitos extrapenais, tais como agentes das pessoas jurídicas de direito público interno, tributos, taxas, adicionais, faturas, parcela dedutível ou deduzida do imposto e incentivo fiscal. Tais expressões devem ser interpretadas, no dispositivo penal, como o rigor técnico conceitual que as caracteriza no Direito Tributário, pois que o legislador penal não ressalvou qualquer modificação em suas acepções quando as integrou nos referidos tipos". (Crimes de Sonegação Fiscal, RT 455/283-291, 285).

            A "ingerência" do D. Tributário no D. Penal não diminuiu com a Lei 8.137/90, ao contrário, com as alterações referentes à extinção da punibilidade e a inserção da condição específica de procedibilidade do artigo 83, da Lei 9.430/96, não só os tipos podem ser tidos por anormais mas também as demais disposições que regulamentam a incidência da lei, interferindo a última delas no próprio iter do delito.

            De fato, se antes da verificação final do crédito tributário na esfera administrativa não se pode intentar ação penal, temos que ou o crime se consumou e foi verificada a supressão ou redução do tributo, ou foi reconhecida a licitude da conduta pela administração, visto que a ação ou omissão do contribuinte não tendia à supressão ou redução tributária, não se podendo falar nem mesmo em início de execução e, portanto, em tentativa.

            É, do que conhecemos, o primeiro caso de crime plurissubsistente de resultado que não admite a forma tentada.

            Um monstro ou a evolução do Direito?

            Em face de tanta singularidade, talvez estejamos mesmo diante do surgimento de um ramo (quase) autônomo da Ciência Penal, que reclama estudo por uma ótica e princípios distintos daqueles próprios do Direito Penal tradicional.

            Ao contrário dos que possa parecer àqueles desacostumados às lides penais, a adoção de princípios exclusivos, o que aliás é a nítida tendência legislativa, levaria a uma maior efetividade do Direito Penal Tributário, pois que preservaria os princípios basilares do Direito Penal via de regra desconhecidos daqueles que pregam, à custa de direitos fundamentais do réu, cadeia para os sonegadores, o que somente poderá sacrificar o contribuinte hipossuficiente.

 

 

Referências Bibliográficas

* HERMAN LOTT, promotor de justiça  em Minas Gerais, professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito de Ipatinga (MG).

hermanlott@uol.com.br


Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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