Cidadania e Meio Ambiente, à luz da Constituição Federal: uma reflexão necessária

Sumário: 1. Introdução  2. O conceito de cidadania e sua evolução no Brasil   3.  Os direitos fundamentais e o exercício da cidadania.   3.1 Direitos Civis 3.2 Direitos Sociais 3.3 Direitos Políticos

  1. Introdução

A proteção do meio ambiente, quer natural, quer artificial, é de fundamental importância  à sobrevivência da humanidade, e tem recebido atenção especial  nas legislações mais modernas, na maioria dos países do mundo.

No Brasil essa preocupação não é diferente e, a partir da Constituição Federal de 1988, o meio ambiente ganhou  notoriedade, ao ser guindado à condição de um direito assegurado na  própria carta magna.

Prevê a Constituição em seu artigo 225 que: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”.

Tal dispositivo constitucional atribui particularmente “à coletividade o direito de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Para o pleno exercício da proteção ambiental, o legislador  constituinte  criou um instrumento processual hábil para que os cidadãos brasileiros  possam  defender o meio ambiente de todas as  agressões que se repetem e se perpetuam em nosso país, deteriorando a fauna, a floresta, a água, o solo, o ar, dentre outros bens ambientais, inclusive  o meio ambiente artificial, essencial à vida humana,  notadamente nos grandes aglomerados urbanos.

Assim, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inc. LXXIII,  que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, criou a ação popular ambiental, ao prescrever in verbis que:

“Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.”

A partir de então, se tornou indispensável repensar o conceito de cidadania,  já que, pela Constituição então vigente,  cidadão era apenas aquele que estava habilitado para o exercício do voto, na época, o maior de 18 anos e alfabetizado.

Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, apenas  essas pessoas, qualificadas como cidadãos,  é que detinham a legitimidade ativa para proposição de  Ação Popular, disciplinada pela Lei nº 4.717/65.

O conceito de  cidadania no novo texto constitucional (art. 1º, inc. III), ganhou  uma nova dimensão,  mais elástico, mais abrangente, aparentemente  sem barreiras, notadamente  por ter sido colocado ao lado da dignidade da pessoa humana, e como  fundamentos   validados pelo Poder Constituinte, a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no País.

O novo cidadão idealizado  pelo Constituinte é muito diferente do conceito de cidadão trazido na Constituição de 1967, e na Emenda Constitucional nº 1, de 1969, promulgadas em pleno regime de exceção, onde  a tônica era o desrespeito aos mais comezinhos direitos civis e políticos.

Para o exame da legitimidade ativa, para a nova ação popular ambiental, e para a discussão do novo conceito de cidadão encampado pela Constituição vigente,  é importante um sumário retrospecto  do conceito de cidadania ao longo da História do Brasil, desde a Proclamação da Independência Política  do Brasil, até nossos dias,  notadamente, quanto  ao tratamento  que cada Constituição deu  para o desenvolvimento da cidadania, ora assegurando, ora negando,  o exercício dos diretos civis, direitos políticos e direitos sociais aos brasileiros.

É válido supor que  o texto constitucional de 1988 reproduziu o avanço da participação popular que,  por sua vez,  acabou redundando numa melhor organização da sociedade ou, pelo menos, criou as condições favoráveis para que tal organização possa ocorrer,  como resultado da maior  consciência da importância da participação política de cada brasileiro.

  1. O conceito de cidadania e sua evolução no Brasil

Para muita gente, ser cidadão confunde-se com o direito de votar. Esse conceito, entretanto, se mostra ultrapassado, pois apenas o ato de votar não é suficiente para garantir a cidadania. Segundo Maria de Lourdes Manzine Couvre, o direito de votar “(…) tem de vir acompanhado de determinadas condições de nível econômico, político, social e cultural”1 .

Ser cidadão significa, em tese, ter direitos e deveres, e poder exercitá-los em sua plenitude.

A cidadania, nada mais é, do que o próprio direito à vida, com dignidade plena, e precisa ser construída, individual e coletivamente, através do atendimento de suas necessidades mínimas, básicas, essenciais, com a garantia de acesso aos chamados direitos fundamentais, tais como direitos civis, direitos políticos e direitos sociais.

Para Maria de Lourdes Manzine Covre:

“(…) ser cidadão significa ter direitos e deveres, ser súdito e ser soberano. Tal situação está descrita na Carta de Direitos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, que tem suas primeiras matizes marcantes nas cartas de Direito dos Estados Unidos (1776) e na Revolução Francesa (1798). Sua proposta mais funda de cidadania é a de que todos os homens são iguais ainda que perante a lei, sem discriminação de raça, credo ou cor. E ainda: a todos cabem o domínio sobre seu corpo e sua vida, o acesso a um salário condizente para promover a própria vida, o direito à educação, à saúde, à habilitação, ao lazer. E mais: é direito de todos poder expressar-se livremente, militar em partidos políticos e sindicatos, fomentar movimentos sociais, lutar por seus valores. Enfim, o direito de ter uma vida digna de ser homem.”2

Esses direitos são analisados individualmente, para melhor compreensão da formação do conceito de cidadania, mas é importante destacar que todos estão interligados entre si, não existindo cidadania plena, e, conseqüentemente, não pode ser almejada a dignidade da pessoa humana, se esses direitos não interagirem entre si, pois parece impossível o exercício dos direitos civis e sociais, sem a garantia dos direitos políticos, em sua plenitude, para a consolidação de um Estado Democrático de Direito.

  1. Os direitos fundamentais e o exercício da cidadania

Historicamente, os direitos são classificados em direitos de primeira, de segunda e de terceira geração.

São considerados de primeira geração os direitos fundamentais, também chamados de liberdades públicas, direitos individuais ou direitos civis e políticos. Nesse rol estão incluídos o direito à igualdade, à intimidade, à honra, à vida, à propriedade, às liberdades de expressão, de imprensa, de associação e de participação política.

Os direitos de segunda geração vêm para complementar os individuais, pois estes, por si só, não são suficientes para a formação de uma cidadania ativa. Entre os direitos de segunda geração, estão os direitos sociais, econômicos e culturais, que buscam garantir condições sociais mínimas, razoáveis, para o homem poder exercer os direitos individuais, e que consistem na educação, no trabalho, na moradia, na segurança, na saúde, na seguridade social, no lazer, na assistência à infância, dentre outros.

Como direitos de terceira geração, estão os chamados direitos de solidariedade, que tiveram origem na Segunda Guerra Mundial, considerando-se para tal o direito à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente equilibrado, ao patrimônio comum da humanidade, e cuja titularidade é sempre coletiva, ao contrário dos dois primeiros, que sempre são assegurados no plano individual.

O conceito amplo de cidadania compreende uma perfeita fruição entre todos os direitos fundamentais, pois somente com a convivência harmoniosa entre os direitos individuais, civis e políticos, os direitos sociais e os direitos de  os próprios Direitos–solidariedade, todos condensados num direito maior   é que se criarão as condições objetivas, para a formação do alicerce–Humanos  basilar que propiciará o alcance da dignidade da pessoa humana.

Para J. J. Gomes Canotilho os direitos fundamentais

“(…) cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).”3

Quanto ao surgimento dos direitos fundamentais, escreve José Afonso da Silva:

“Pelo que se vê, não há propriamente uma inspiração das declarações de direito. Houve reivindicações e lutas para conquistar os direitos nelas consubstanciadas. E quando as condições materiais da sociedade propiciaram, elas surgiram, conjugando-se, pois, condições objetivas e subjetivas para sua formação.”4

Os direitos fundamentais surgiram a partir de condições históricas objetivas, que possibilitaram o reconhecimento destes direitos.

Na visão de Vladimir Brega Filho:

“(…) os excessos do absolutismo e as aspirações da burguesia podem ser considerados fatos históricos importantes para o reconhecimento dos direitos individuais na época da Revolução Francesa. A revolução industrial e, em conseqüência, o surgimento da classe operária, são fatos históricos decisivos para o surgimento dos direitos sociais. Por fim, os horrores da Segunda Guerra Mundial têm importância fundamental para o surgimento dos direitos de solidariedade.”5

3.1. Direitos Civis

Estão ligados diretamente aos direitos individuais, e se constituem nas liberdades públicas, tais como: de liberdade religiosa, de locomoção, de opinião, de igualdade, de propriedade, dentre outros.

Essa modalidade de direitos teve, ao longo de nossa história varias expressões para identificá-los, sendo conhecidos como direitos humanos, direitos e garantias fundamentais, direitos e deveres individuais e coletivos, direitos e liberdades fundamentais, direitos e garantias individuais, direitos fundamentais da pessoa humana, preceito fundamental e direitos individuais, entre outras.

Os direitos civis ou individuais, que contribuem para a formação do conceito de cidadania, foram previstos ao longo de todas as Constituições Brasileiras, do Império até a última, de 1988, de plena vigência. É importante, no entanto, ser ressaltado que sempre existiu um vácuo entre o que está previsto na legislação constitucional e a efetividade desses direitos, pois, em alguns períodos da história, não passaram de meros direitos formais, porém sem nenhuma eficiência, notadamente em alguns períodos de fragilidade democrática.

3.2. Direitos Sociais

Os direitos sociais são essenciais no atendimento das necessidades humanas básicas, mínimas para sua sobrevivência com dignidade.

São os direitos relacionados ao sustento do próprio corpo humano, tais como direito à alimentação, à habitação, à saúde, à educação, à previdência social, ao trabalho, ao lazer, dentre outros, e que vêm expressos na Constituição Federal, artigo 6º.

Tais direitos, embora considerados essenciais, sempre deixaram a desejar ao longo da história do Brasil independente e, mesmo agora, na vigência da Constituição de 1988, quando foram elevados à condição de direitos constitucionais, observa-se um grande fosso entre o previsto na lei maior e o que é efetivamente assegurado às populações menos favorecidas.

3.3. Direitos Políticos

Os direitos políticos estão compreendidos entre os que dizem respeito à deliberação do homem sobre sua própria vida, ao direito de ter livre expressão de pensamento, participação e atividade política, entendendo-se esta, não somente a participação em partidos políticos, mas a livre associação em sindicatos, entidades de classe em geral, o engajamento nos movimentos sociais, comunitários, organizações religiosas, etc.

Estes direitos políticos, tais como os civis e sociais, sempre foram objeto de preocupação nos textos constitucionais, sendo que em alguns períodos de conturbação política, notadamente no da Constituição de 1937, no período da chamada “Era Vargas”, e ainda no período da Constituição de 1967, quando os Militares assumiram o poder, permanecendo nele por mais de 20 anos, restaram postos apenas no campo formal, já que a liberdade para a atividade política, na prática, não existia, em razão da supressão da liberdade de expressão e de organização, instaurada no Brasil pelos regimes ditatoriais que dominaram nas épocas supra referidas.

Como forma de compensação, pela falta de liberdade de expressão política, os regimes ditatoriais optaram por dar ênfase aos chamados direitos sociais, que foram, de maneira geral, atribuídos ao povo, como dádiva, como favor, como ato de generosidade, mas que se constituíram numa forma de controle da ação e reação da população menos favorecida.

Para se alcançar a formação da cidadania plena, verifica-se indispensável a efetividade dos três conjuntos de direitos, que compõem os direitos humanos dos cidadãos. Numa relação recíproca, e interagindo de forma harmônica, num Estado Democrático de Direito, o exercício desses direitos pode oferecer as condições mínimas e essenciais para se atingir o fundamento maior, resguardado na Carta Magna vigente: a dignidade da pessoa humana.

Notas

  1. O que é Cidadania, Coleção Primeiros Passos, p. 9
  2. Op. cit., p. 9.
  3. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 373.
  4. Direito constitucional positivo, p. 180.
  5. Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, pp. 21-22.

 

Angélica GiorgiaCLOVIS BRASIL PEREIRA

Advogado; Mestre em Direito; Especialista em Processo Civil; Professor Universitário; Coordenador Pedagógico da Pós-Graduação em Direito Processual Civil da FIG–UNIMESP; Editor responsável do site jurídico www.prolegis.com.br e www.revistaprolegis.com.br; autor de diversos artigos jurídicos e do livro “O Cotidiano e o Direito”. Exerce o magistério desde 1971 e a advocacia desde 1981.

 

Clovis Brasil Pereira
Clovis Brasil Pereirahttp://54.70.182.189
Advogado; Mestre em Direito; Especialista em Processo Civil; Professor Universitário; Coordenador Pedagógico da Pós-Graduação em Direito Processual Civil da FIG – UNIMESP; Editor responsável do site jurídico www.prolegis.com.br; autor de diversos artigos jurídicos e do livro “O Cotidiano e o Direito”.

Fale Conosco!

spot_img

Artigos Relacionados

Posts Recentes