* Maria Berenice Dias
Vínculos afetivos não são uma prerrogativa da espécie humana, pois o acasalamento sempre existiu entre os seres vivos, seja em decorrência do instinto de perpetuação da espécie, seja pela verdadeira aversão à solidão, a ponto de se ter por natural a idéia de que a felicidade só pode ser encontrada a dois, como se existisse um setor da felicidade ao qual o sujeito sozinho não tem acesso. Alerta Giselda Maria Fernando Novaes Hironaka que não importa a posição que o indivíduo ocupe na família, ou qual a espécie de grupamento familiar a que ele pertence, o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores, e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade.
Mesmo sendo a vida aos pares um fato natural, em que os indivíduos se unem por uma relação biológica, trata-se a família muito mais de um grupo cultural, com uma estruturação psíquica em que cada um ocupa um lugar, uma função. Lugar do pai, lugar da mãe, lugar dos filhos, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente. E, segundo Rodrigo da Cunha Pereira, é essa estrutura familiar, que existe antes e acima do Direito, que interessa investigar e trazer para o Direito.
Tanto o Estado como a Igreja acabaram se apropriando desse fenômeno, visando, cada uma dessas duas instituições, a atender a seus próprios interesses. Enquanto a Igreja fez do casamento um sacramento, atribuindo-lhe, com a máxima crescei-vos e multiplicai-vos, a função reprodutiva, como forma de povoar o mundo de cristãos, o Estado viu a família como uma verdadeira instituição. Essa visão institucional acompanha a própria estruturação do Estado, uma vez que, tendo este o dever de promover o bem de todos, conforme proclama o inc. IV do art. 3º da Constituição Federal, acaba por pontificar em seu art. 226: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
A organização da sociedade dá-se em torno da estrutura familiar, e não em torno de grupos outros ou dos indivíduos em si mesmos. O Estado delega à família a formação dos cidadãos, tarefa que acaba quase sempre onerando exclusivamente a mulher, havendo um certo descomprometimento tanto do homem como das entidades públicas e entes governamentais em subsidiar os meios necessários para assegurar o futuro da sociedade assumindo o encargo de formar e educar crianças e jovens.
Ainda que não haja uma definição na lei do que seja casamento, sempre foi tido como fundamento da sociedade, base da moralidade pública e privada, conforme Laurent. O casamento gera o “estado matrimonial”, em que os nubentes ingressam pela vontade, mas sua forma nasce da lei, que estabelece suas normas e seus efeitos. Segundo Salvat, as pessoas têm a liberdade de realizá-lo, mas, uma vez que se decidem, a vontade delas se alheia e só a lei impera na regulamentação de suas relações.
Esse interesse estatal na manutenção do casamento é que, em um primeiro momento, levou à consagração de sua indissolubilidade, à sua obrigatória identificação pelo nome do varão, bem como ao estado universal de comunhão de bens e, por conseqüência, à relativização da capacidade da mulher. Reproduziu o legislador civil o perfil da família do início do século, que se caracterizava como heterossexual, matrimonializada, patriarcal, hierarquizada e patrimonializada. Mesmo após a aceitação da possibilidade de rompimento do vínculo matrimonial, com a Lei do Divórcio – que alterou o regime legal dos bens e tornou facultativa a adoção do nome do cônjuge -, permaneceram inalterados os direitos e deveres recíprocos, bem como os direitos e os deveres atribuídos distintamente a cada um dos consortes.
Apesar do extenso rol, a doutrina reconhece que a lei não cogita de todos os deveres inerentes a ambos os consortes, prevê os mais importantes, isto é, aqueles reclamados pela ordem pública e pelo interesse social, assertiva que, por si só, mostra que a tônica é o interesse de ordem pública, sem se dar a mínima atenção ao interesse dos seus próprios partícipes, que, ao certo, deveria ser prevalente.
Os mútuos direitos e deveres estão postos no art. 231 do Código Civil, sendo o primeiro deles o de fidelidade recíproca, que representa a natural expressão da monogamia, não constituindo tão somente um dever moral, mas é exigido pelo direito em nome dos superiores interesses da sociedade. Tão significativa é a imposição desse dever, que a própria lei penal consagra o adultério como delito (art. 240 do CP).
Porém, mesmo sendo indicada na lei como requisito obrigacional a mantença da fidelidade, trata-se de direito cujo adimplemento não pode ser exigido em juízo. Ou seja, desatendendo um do par o dever de fidelidade, não se tem notícia de ter sido proposta, na constância do casamento, demanda que busque o cumprimento de tal dever. Tratar-se-ia de execução de obrigação de não-fazer? E, em caso de procedência, de que forma poderia ser executada a sentença que impusesse a abstinência sexual extramatrimonial ao demandado?
Ademais, se eventualmente não cumprem um ou ambos os cônjuges dito dever, tal em nada afeta a existência, a validade ou a eficácia do vínculo matrimonial. Mas não é só. Cabe figurar a hipótese de não ser consagrado dito dever em norma legal. Seria de admitir-se que deixou de existir e de se poder exigir a fidelidade, quem sabe o mais sagrado compromisso entre os cônjuges? Deixaria de haver a possibilidade de se buscar a separação se não estabelecido em lei esse direito-dever ou dever-direito dos consortes?
A monogamia – que é só monogamia para a mulher, conforme alerta Engels – não foi de modo algum um fruto do amor sexual individual, mas uma mera convenção decorrente do triunfo da propriedade privada sobre o condomínio espontâneo primitivo. A constituição da família pelo casamento tem por finalidade a procriação de filhos, que têm de ser filhos do patriarca, pois estão destinados a se tornar os herdeiros da sua fortuna. Ainda assim, a monogamia foi um grande progresso histórico, pois é o único em que o amor sexual pode se desenvolver, continua Engels.
Pode-se assim dizer que a fidelidade, enquanto dever de um e direito do outro, vige durante o casamento, mas só serve de fundamento para justificar a busca do seu término. A imputação da culpa pelo descumprimento do dever de mútua fidelidade não permite buscar seu adimplemento durante a constância do vínculo matrimonial, concedendo tão-só um direito à separação.
Vincular a separação ao rígido pressuposto da identificação de um responsável justificava-se no sistema originário do Código Civil, que consagrava a insolubilidade do vínculo matrimonial, que sequer o desquite desfazia, e mesmo assim só era admitido ante a comprovação de causas taxativamente previstas na lei. Após a consagração do divórcio, é de se reconhecer a dispensabilidade da imputação de culpa pelo rompimento do vínculo afetivo. Mas cada vez mais vêm a doutrina e a jurisprudência – atentando na realidade social e muito à frente da estática legislação – desprezando a perquirição da culpa para chancelar o pedido de separação, como já tive a oportunidade de sustentar em sede doutrinária e em vários julgamentos, no sentido de que Basta um dos cônjuges ter por insuportável a vida em comum para dar ensejo ao rompimento do casamento, sendo despicienda a comprovação da culpa de qualquer deles pelo fim do vínculo afetivo. Essa postura acabou prevalecendo ao menos no Tribunal gaúcho, que abandonou a vã tentativa de punir alguém, passando a considerar dispensável a perquirição da culpa, sempre de difícil comprovação, uma vez que a separação de fato já revela a falência da arquitetura conjugal, não sendo preciso avançar em outra motivação, pois traduz a ruptura do afeto e do amor. Como assevera Luiz Edson Fachin, Não tem mais sentido averiguar a culpa como motivação de ordem íntima, psíquica. Objetivamente é possível inferir certas condutas, não raro atribuídas, de modo preconceituoso, mais à mulher que ao homem. A conduta, porém, pode ser apenas sintoma do fim.
Basta a simples manifestação de vontade de um para ensejar o término do casamento, sem a necessidade de imputar ao outro a responsabilidade pelo fim do amor, e nem mesmo para fins alimentares se mantém a necessidade de perquirição da culpa. Não é pressuposto para sua concessão a “inocência” do par, bastando comprovar a necessidade de um de perceber e a possibilidade do outro de alcançar-lhe alimentos, como forma de preservação da dignidade da pessoa humana, mesmo que esta pessoa não tenha sido digna na sua relação interpessoal…
Portanto, se a fidelidade não é um direito exeqüível e a infidelidade não mais serve como fundamento para a separação, nada justifica a permanência da previsão legislativa, como um dever legal, até porque ninguém é fiel porque assim determina a lei, ou deixará de sê-lo por falta de uma ordem legal.
Os outros recíprocos direitos e deveres igualmente não resistem a uma análise acerca de sua efetividade. Impõe o inc. II do art. 231 do CC a obrigação de vida em comum no domicílio conjugal. No entanto, ainda que tal seja previsto como dever mútuo, tem o varão o direito de fixar o domicílio da família (inc. III do art. 233 do CC), sendo que o domicílio da mulher casada é o do marido (parágrafo único do art. 36 do CC). Esse tratamento desigualitário, ao garantir como direito o domicílio comum, mas sujeitando um cônjuge à vontade do outro, ao certo é imposição que não foi recepcionada pelo atual sistema jurídico, que consagra a igualdade como princípio maior.
Cabe lembrar que na expressão “vida em comum”, constante desse mesmo dispositivo legal, não está inserido o nominado debito conjugale, infeliz locução que nada mais significa do que vida sexual ativa. Porém, não há como visualizar um verdadeiro desdobramento temporal à solenização do matrimônio para se reconhecer que o casamento se consuma quando do exercício da sexualidade, a ponto de a mantença do estado virginal ensejar a anulação do casamento, como admite o Direito Canônico. O casamento consuma-se e aperfeiçoa-se no ato de sua celebração, somente podendo ser desfeito se verificado algum dos vícios que ensejam a desconstituição dos atos jurídicos em geral ou se houver infringência aos incs. I a VIII do art. 207 do CC. A possibilidade procriativa não pode ser condição para a validade do casamento, e a falta de filhos não compromete a higidez do consórcio matrimonial. A se ter como exigência a fertilidade, o não-advento de prole deveria autorizar a anulação ou dissolução do casamento, o que obrigaria, inclusive, a desconhecer a possibilidade de ocorrência do casamento in extremis.
Ainda que imponha o inc. III do art. 231 do CC o dever de mútua assistência, e seu inc. IV o dever de sustento, guarda e educação dos filhos, compete ao marido prover a manutenção da família, encargo que lhe é imposto pelo inc. IV do art. 233 do CC. A mulher é mera colaboradora do marido nos encargos de família, competindo-lhe tão-só velar pela sua direção material (art. 240 do CC). Só dispõe ela da obrigação de contribuir para as despesas do casal se tiver rendimentos próprios (art. 277 do CC), devendo o varão reembolsar-lhe as despesas que efetivar se o casamento ocorreu sob o regime da separação de bens. Por conseqüência, só se pode considerar sujeito à prática do delito de abandono material (art. 244 do CP) o homem. Ora, o tratamento desigualitário por critério sexista impõe que se tenham por derrogados tais dispositivos, por afronta à norma constitucional que veda discriminação em razão do sexo.
Quanto aos direitos atribuíveis distintamente ao marido (arts. 233 a 239 do CC) e à mulher (arts. 240 a 255 do CC), cabe questionar se essa previsão diferenciada de encargos atentando no sexo do par permanece no sistema jurídico, ante o princípio da isonomia solenemente consagrado na Constituição Federal. A igualdade constitucional posta tanto no caput do art. 5º quanto em seu inc. I e, pleonasticamente, no § 5º do art. 226 não deixa dúvida de ser essa a idéia central consagradora da Carta Magna. Pensar diferente é agredir, a uma só vez, a letra da Lei Maior, seu espírito e a História. O absurdo dessa desequiparação vislumbra-se tanto na consagração do varão como chefe da sociedade conjugal e seu representante (art. 233 do CC) como na atribuição exclusivamente à mulher de velar pela direção moral da família (art. 240 do CC).
Assim, a par de se terem por não recepcionadas pelo atual sistema jurídico normas que concedem prerrogativas ou impõem tratamento diferenciado ao casal, tem-se de reconhecer a falta de vigência de todos os dispositivos infraconstitucionais que concedem direitos e impõem deveres diferenciados, sendo de todo despicienda sua mantença no bojo da legislação civil. Não é a imposição legal de normas de conduta que consolida ou estrutura o vínculo conjugal, mas simplesmente a sinceridade de sentimentos e a consciência dos papéis desempenhados pelos seus membros que garantem a sobrevivência do relacionamento, como sede de desenvolvimento e realização pessoal.
De qualquer sorte, no atual estágio das relações afetivas, inquestionável que o fundamental é a absoluta lealdade recíproca, viés que deve pautar todos os relacionamentos, principalmente quando existente um projeto de comunhão de vidas, uma identidade de propósitos, sendo a cumplicidade a razão mesma de seu surgimento e permanência.
Não há como deixar de ver que se esboçam novos modelos de família, mais igualitárias nas relações de sexo e idades, mais flexíveis em suas temporalidades e em seus componentes, menos sujeitas à regra e mais ao desejo. Talvez esteja na hora de se abandonar a expressão “cônjuge”, que tem origem na palavra jugum, nome dado pelos romanos à canga que prendia as bestas à carruagem, daí o verbo conjugere designar a união de duas pessoas sob o mesmo jugo, a mesma canga. Talvez seja o caso de se resgatar a palavra “amante”, que significa tanto a pessoa que ama como quem é o objeto do amor de alguém, expressão que melhor identifica a razão de as pessoas ficarem juntas, ou seja, porque se amam.
Quem sabe é de se apropriar do conceito de Savatier à “união livre”, pois somente a liberdade enseja a forma mais pura para a mantença de um relacionamento afetivo e no qual não há fidelidade, obediência, assistência obrigatória. Tudo isso, dado por amor, não deve durar senão enquanto puder durar esse amor. Os amantes nenhum compromisso assumem para o futuro; a independência de ambos é sagrada. Nas páginas de sua vida nada se escreve com tinta indelével.
Em lugar de direitos e deveres previstos inocuamente na lei, melhor se o casamento nada mais fosse do que um ninho, em que se estabelecem laços e nós de afeto, servindo de refúgio, proteção e abrigo, pois, como diz Michele Perrot, O que se gostaria de conservar da família, no terceiro milênio, são seus aspectos positivos: a solidariedade, a fraternidade, a ajuda mútua, os laços de afeto e de amor. Belo sonho.
REFERÊNCIA BIOGRÁFICA:
MARIA BERENICE DIAS, Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam.