Código de Defesa do Consumidor

* Maria Berenice Dias

     Despiciendo, para o enfrentamento do tema, é desenvolver uma ampla explanação a respeito das formas intervencionais, por institutos já de todo conhecidos. Porém, mister se faz uma rápida visualização de ao menos duas das hipóteses de intervenção de terceiros – no plano do direito material – para melhor se detectar as alterações que foram introduzidas pelo CDC, dilatando a esfera da responsabilidade civil, principalmente com referência às sociedades seguradoras. 

    Como em todas as possibilidades de ampliação da demanda, pela via intervencional, o fenômeno se detecta no âmbito do direito material, onde se flagram os pressupostos de legitimação para sua ocorrência.

    1. Da denunciação da lide

    Em face de relações jurídicas entretidas por duas pessoas produzirem reflexos em distintas relações mantidas por uma delas com terceiros, pela existência de um nexo de causalidade e dependência, flagra-se o interesse jurídico de quem, mesmo alheio à relação originária, reste por ter direito próprio atingido.

    O típico exemplo que permite a visualização de tal fato é o contrato de seguro, que se torna exigível quando ocorre o sinistro. Em um acidente de trânsito entre dois veículos, encontrando-se um deles coberto por seguro, ao se estabelecer uma relação obrigacional entre os envolvidos (art. 159 do CC), neste momento nasce a obrigação da seguradora, perante seu segurado.

    Desencadeada uma ação entre os envolvidos no acidente, a decisão reconhecendo a possibilidade do segurado faz exsurgir a obrigação da seguradora de proceder ao pagamento da indenização ao seu cliente. Vê-se, pois, que, no suporte fático – na linguagem de Pontes de Miranda, que já se tornou usual – da obrigação secundária, se encontra outra relação jurídica, desencadeante de sua exigibilidade, de forma imediata e automática.

    Induvidável que a seguradora, por não integrar a relação obrigacional decorrente do evento danoso, não dispõe de legitimação para participar da demanda na qualidade de parte. Porém, seu interesse jurídico com relação à mesma decorre da possibilidade de emergir, do deslinde da controvérsia, uma obrigação para com uma das partes. Dito interesse, revestido de juridicidade, qualifica a seguradora, tanto para, de forma espontânea, participar da demanda como assistente simples – nos precisos termos do art. 50 do estatuto processual – como autoriza a parte, que entretém o contrato de seguro, a proceder à denunciação da lide, para, no mesmo processo, estabelecendo nova ação com a seguradora, obter pelo mandado sentencial o reconhecimento do direito ao recebimento da indenização. Como não há qualquer relação jurídica entre o autor e a seguradora denunciada, não pode ser imposta a esta diretamente a condenação ao pagamento ao autor.

    Tal explanação, por meio do referido exemplo, serve para evidenciar que a existência de relação jurídica conexa e dependente entretida por uma das partes com terceiro não integra este na relação condicionante e, por conseqüência, não lhe outorga a qualidade de parte. Para participar da demanda principal.

    Quanto a esta, detém a seguradora posição de mero assistente, sendo ré somente da lide incidental, que dispõe de distinto objeto, pedido e causa, qual seja o contrato de seguro.

    É a denunciação da lide uma ação incidental de garantia, ensejadora de ação de regresso, que passa a integrar o processo de conhecimento. Instituto que, ao permitir a introdução dos garantes na causa, atende ao princípio da economia processual, para evitar que nova ação se estabeleça, em momento posterior, para a perseguição do direito regressivo.

    Segundo Ovídio Baptista da Silva, “sempre que uma das partes possa agir, em demanda regressiva”, contra seu garante, para reaver os prejuízos decorrentes da eventual sucumbência na causa, estará autorizada a chamar para a ação esse terceiro a que a mesma se liga” (grifo do autor, Curso de Processo Civil, I/237, 1987).

    2. Do chamamento ao processo

    Esta diversa forma intervencional dispõe de distinto conteúdo legitimante.

    A introdução do chamamento ao processo, como lembra Pedro Soares Muñoz, ocasionou sensível alteração na doutrina da solidariedade passiva, que não admitia, na conformidade de nosso Direito Civil, que o devedor solidário, quando citado individualmente para a causa, pudesse exigir a presença dos demais co-obrigados no processo (Intervenção de Terceiros, In Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, 1974, p. 29).

    A faculdade de o credor buscar o adimplemento da obrigação de um só dos devedores solidários (art. 904 do CC), bem como somente do fiador (art. 1.491 do CC), não multiplica o único direito – o direito de crédito. Ao credor é facultado exercitá-lo contra cada um dos obrigados, ou seja, dispõe o autor de uma ação autônoma com relação a cada um dos devedores.

    Ao permitir o CPC a possibilidade de o devedor chamar ao processo os demais co-obrigados, e ao fiador de fazer integrar a ação os outros fiadores, bem como o devedor principal, praticamente subtraiu o direito de escolha do credor.

    Ocorrendo o chamamento, acaba o autor por dirigir a ação também contra os outros obrigados, que passam a integrar o pólo passivo, na qualidade de réus, formando-se um cúmulo de ações materiais dentro do processo, a configurar um litisconsórsio passivo, nominado como unitário.

    Cabe referir que tal classificação do litisconsórsio, segundo os efeitos sentenciais, resta por mascarar uma realidade: o indispensável é que sempre venha para o âmbito da demanda a relação jurídica em sua integralidade. Quando a lei outorga a mais de um a possibilidade de a processualizar, como no caso de co-legitimação – da qual a solidariedade é um típico exemplo – vem a mesma por inteiro a juízo, merecendo uma única solução. Dita unitariedade decisional não decorre, como diz o art. 47 do CPC, da natureza da relação jurídica a merecer decisão uniforme.

    Explicitados os fenômenos ocorrentes no campo do direito material, nas duas formas de intervenção, conclui-se que, na denunciação, inexistindo vínculo jurídico entre o autor e o denunciado, estabelecem-se duas lides dentro do processo, com vínculo de prejudicialidade. No caso de procedência da demanda principal, por refletir-se seu resultado na ralação incidente, é que esta será apreciada, mas somente entre denunciante e denunciado. Já no chamamento ao processo, vê-se um alargamento do pólo passivo da demanda, figurando os chamados como réus, por entreterem vínculo jurídico com o autor, estabelecendo a sentença a obrigação de todos, nos termos do art. 80 do CPC.

    Como assevera Sydney Sanches, o chamamento ao processo envolve também exercício de ação de conhecimento, de caráter incidental, com pretensão regressiva, sendo chamante e chamado co-réus; já entre denunciante e denunciado não pode haver vínculo de solidariedade (Denunciação da Lide, RT, 1984, p. 32).

    3. A posição do Instituto de Resseguros do Brasil

    Ainda antes de compulsar o estatuto objeto do tema, necessário lembrar que o art. 68 do Dec.-Lei 73/66, nas ações movidas contra sociedade seguradora, em havendo resseguro, criou a obrigatoriedade da citação do IRB, gerando um litisconsórcio necessário, por força de lei. Tal intervenção coacta, no entanto, não cria qualquer solidariedade ou obrigação deste perante o segurado.

    O decreto regulamentador, de nº 60.460/67, no § 3º do art. 71, explicita que “o IRB não responde diretamente perante os segurados pelas responsabilidades assumidas em resseguro”, a evidenciar que o contrato de seguro é, com relação ao mesmo, res inter alios acta.

    Nestes termos, cabe a conclusão de que, apesar de tratar-se de um litisconsórsio necessário, por imposição legal, nos termos da parte inicial do art. 47 do CPC, não participa o ressegurador da relação jurídica material, dispondo da possibilidade para atuar no processo na qualidade de mero assistente, por entreter com a seguradora vínculo jurídico condicionado.

    Em face dessa obrigação do IRB, possível é sua denunciação pela seguradora, para reaver dele o valor do contrato de resseguro, em caso de sucumbência na demanda.

    4. O Código de Defesa do Consumidor

    Avivados esses conceitos, possível agora passar-se ao exame do Código de Defesa do Consumidor, que, além de estabelecer a responsabilidade objetiva do fabricante, produtor, construtor e importador pelos defeitos dos produtos (art. 12), restou por gerar uma responsabilidade solidária, de caráter subsidiário, do comerciante, nas hipóteses elencadas no art. 13. O seu parágrafo único concede ação de regresso, ao que efetivar o pagamento, contra os demais, inclusive nos mesmos autos, mas vedando a denunciação da lide, pelo seu art. 88.

    Se hígido permaneceu o instituto da solidariedade plasmada no estatuto civil, na hipótese prevista, no entanto, acabou por subtrair a faculdade outorgada pela lei processual, de ocorrer o chamamento ao processo, assim como, de modo expresso, a denunciação da lide.

    Já a ação de responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços, prevista no art. 101 do novo estatuto, introduz alterações mais profundas.

    Ao deferir ao fornecedor, que dispõe de contrato de seguro, a possibilidade de proceder ao chamamento ao processo do segurador, fez surgir uma obrigação direta deste, perante o consumidor, mesmo não tendo com ele qualquer relação jurídica contratual. Acabou por gerar a lei uma solidariedade entre o fornecedor e o segurador, perante o consumidor. Expressa a remissão ao art. 80 do estatuto processual, a evidenciar a condição de réu do chamado, sendo-lhe somente deferido, se satisfizer a dívida, um título executivo contra o fornecedor.

    Facultou o mesmo dispositivo legal, o ajuizamento da demanda, diretamente contra o segurador, em caso de ter sido declarado falido o fornecedor. Apesar de o dispositivo, nesta passagem, utilizar a expressão réu, postura que se adquire somente na relação processual em provada a qualidade do falido, antes do ajuizamento da demanda, caberá a ação, já diretamente contra o segurador. De outro lado, se comprovada a quebra, no decorrer no processo, possível é a substituição da parte, pelo segurador, sem a necessidade de ingresso de nova demanda. Essa alteração subjetiva atende ao objetivo do legislador de definir instrumento ágil para defesa do direito tutelado.

    Finalmente, vê-se que restou dispensado o litisconsórsio obrigatório com o IRB e proibida a denunciação da lide do mesmo pelo segurador, de modo expresso. Como também o dispositivo, após tais limitações, explicitamente afirma estar vedada a integração do contraditório pelo Instituto de Resseguros do Brasil, acabou por impedir sua integração para atuar como assistente simples.

    5. Conclusões

    Dessas breves observações, possível é concluir-se que:

    – gerada a responsabilidade solidária, em caráter subsidiário, do comerciante, pode ser o mesmo acionado diretamente pelo consumidor, descabendo a denunciação do fabricante, produtor, construtor ou importador, para exercício do direito de regresso, bem como o chamamento ao processo;

    – ao facultar a lei o chamamento ao processo do segurador do fornecedor de produtos e serviços, restou por criar um vínculo obrigacional daquele com o consumidor;

    – possível é a ação direta contra a sociedade seguradora no caso de falência do fornecedor segurado;

    – dispensado o litisconsórcio obrigatório do IRB, vedada a denunciação da lide, assim também sua intervenção, mesmo na qualidade de mero assistente do segurador.


Referência Biográfica

MARIA BERENICE DIAS  –   Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam.

www.mariaberenice.com.br

Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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