Célula-tronco: o desafio da democracia

OPINIÃO –

 

*Samantha Buglione –

O debate sobre células-tronco no Brasil teve um marco histórico com a primeira audiência pública do Supremo Tribunal Federal (STF), dia 20, sexta-feira. O objetivo foi reunir informações científicas para julgar a ação direta de inconstitucionalidade (Adin) 3510, ajuizada pela Procuradoria Geral da República (PGR) contra dispositivos da Lei de Biossegurança (Lei nº. 11.105/05), que versa sobre a utilização de células-tronco de embriões humanos em pesquisas e terapias.

A tese da PGR é a da inconstitucionalidade do artigo 5º e parágrafos da lei, por entender que não há permissão legal para a utilização dessas células, consideradas inviáveis pela ciência, ou seja, sem possibilidade de implantação em útero humano. O pressuposto da tese é que a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação. Essa tese, porém, apesar de ser bastante popular, é contestada nos círculos científicos, por não haver acordo ou dado empírico sobre o que é vida e mesmo o que é vida humana.

O consenso é que essas células são um estágio do desenvolvimento celular. A Resolução da Diretoria Colegiada nº 33 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) define como pré-embrião produto da fusão de células germinativas até 14 dias após a fertilização, in vivo ou in vitro, quando do início da formação da estrutura que dará origem ao sistema nervoso. Dentro das condições técnicas disponíveis não há qualquer possibilidade de que um dos embriões inviáveis, tratados na Lei de Biossegurança, venha a se tornar um ser humano.

Outro ponto a ser observado é se a ‘potencialidade’ da vida merece tutela jurisdicional nos moldes dos direitos fundamentais de pessoas vivas. Uma pedra tem potencialidade de se tornar uma escultura, mas nem por isso se tornará. Um óvulo tem potencialidade de se tornar, ao ser fecundado por um espermatozóide, um embrião. Um embrião tem potencialidade de ser um ser humano, mas não o é. A única resposta aceitável para o início da vida humana é a que remete a todo o processo de vida no planeta, ou seja, a uma regressão lógica e infinita.

É arriscado assumirmos uma ou outra definição moral sem considerar as implicações dessa decisão em termos de respeito aos direitos de seres humanos vivos, como saúde e dignidade, e de garantia do próprio saber científico. É perigoso que em sociedades democráticas e laicas a justificação última para os limites de uma ação se sustente em princípios morais singulares. Isso violaria o próprio direito fundamental à liberdade de crença. A audiência promovida pelo STF foi uma forma de garantir que as tensões morais sobre esse tema sejam debatidas a partir das ‘regras do jogo’ vigentes na nossa ordem social, ou seja, a de um Estado laico e democrático. E é sobre esse prisma que se deve analisar os conflitos sobre fatos e valores que envolvem o tema das células-tronco.

A angústia das incertezas laicas não impede o STF de tutelar mais ou menos determinado estágio da biologia humana. Em outros termos, é isso que acabará ocorrendo. A questão, porém, é saber a razoabilidade de proteger essas células-embrionárias nos termos da proposta da PGR. 


* Samantha Buglione:  A autora é Professora de bioética no curso de Direito na Univali e diretora executiva do Instituto Antigona.

Fonte: Resenha da Assessoria de Imprensa do TJSC, do dia 25/04/2007

Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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