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Responsabilidade do sócio por dívida tributária

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* Marco Aurélio Bicalho de Abreu Chagas 

                     Os bens do sócio de uma pessoa jurídica comercial não respondem, em caráter solidário, pelas dívidas fiscais assumidas pela sociedade. 

                      Entretanto, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, através da de sua Primeira Seção, em decisão recente, entendeu que a responsabilidade pelas dívidas tributárias de uma empresa só pode ser imposta ao sócio-gerente, ao administrador, diretor ou equivalente, quando houver dissolução irregular da sociedade ou ficar comprovada infração à lei penal praticada pelo dirigente, ou este agir com excesso de poderes.   

                      O ministro José Delgado, definiu que – acompanhando o voto do relator do processo – de acordo com o nosso ordenamento jurídico-tributário, como está determinado no art. 135 do CTN, os sócios, ou seja, os diretores, gerentes ou representantes de pessoa jurídica são responsáveis, por substituição, pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias somente quando resultantes da prática de ato ou fato eivado de excesso de poderes ou com infração de lei, contrato social ou dos estatutos. Para José Delgado, o simples inadimplemento não caracteriza infração legal, mesmo porque, como já decidiu o próprio STJ, quem está obrigado a recolher os tributos devidos pela empresa é a própria pessoa jurídica, e sempre que deixe de recolher o tributo na data do respectivo vencimento, a impontualidade ou a inadimplência é da pessoa jurídica, não do sócio-gerente ou do diretor.
                      Logo, a solidariedade do sócio pela dívida da sociedade só se manifesta quando comprovado que, no exercício de sua administração, praticou os atos eivados das irregularidades enumeradas no caput do art. 135, do CTN. Até porque aqueles que representam a sociedade e agem de má-fé merecem, por inteiro, o peso da responsabilidade tributária decorrente de atos praticados sob essas circunstâncias, e a pessoa jurídica, com responsabilidade própria, não pode ser confundida com a pessoa de seus sócios.
                      Considera-se que essa decisão da Primeira Seção do STJ, na prática, uniformiza o entendimento das Primeira e Segunda Turmas do Tribunal, às quais incumbe o julgamento dos processos que versem sobre matéria tributária. 

                      Concluindo, essa decisão reforça a distinção que deve existir entre as duas pessoas, a jurídica e a dos sócios, que não se confundem, pois a pessoa jurídica tem vida própria, acompanhada de suas responsabilidades, sendo uma delas, in casu, a de recolher os tributos devidos nas datas aprazadas. 

                      Por conseguinte, no campo do direito tributário, no entender do professor IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, somente diretores, gerentes ou procuradores que tenham praticado atos lesivos ao Erário, por excesso de poderes ou infringência à lei, contrato social ou estatutos, podem ser responsabilizados tributariamente. (in Questões Atuais de Direito Tributário, Editora Del Rey, 1999, do autor citado, p.153).

 


Referência  Biográfica

Marco Aurélio Bicalho de Abreu Chagas  –  Advogado com especialidade nas áreas comercial e tributária.

marcoaureliochagas@hotmail.com

A reforma tributária para um novo século

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* Leon Frejda Szklarowsky 

          Há dois milênios, o economista hindu, Ratuya, já ensinava que a base de todo empreendimento são as finanças, ligando-se indelevelmente ao destino do Estado a despesa e a receita. (1)

          Sem embargo de o Estado Moderno abeberar-se noutras receitas, não menos relevantes para os países em desenvolvimento, como os empréstimos externos e outras receitas, indubitavelmente os créditos tributários constituem fonte de suma importância, para a satisfação das necessidades públicas, sujeitos, contudo, à rigidez do primado da legalidade que, desde o Rei João Sem Terra, alicerça-se no princípio básico: "no taxation without representation", do qual o Estado Moderno não deve absolutamente afastar-se.

            Ives Gandra da Silva Martins cataloga-o como o terceiro elemento do tributo. (2)

            Na Roma antiga, acha-se incrustada a experiência multissecular de um sistema tributário, que ofertou inúmeros tributos, ainda hoje destacados por muitos países. (3)

            O sistema fiscal é, na lúcida observação de L. Reboud, a. projeção da estrutura econômica e social, (4) pressupondo um sistema impositivo ideal uma combinação de impostos que assegure a satisfação das necessidades, tendo em vista os princípios fiscais fundamentais, na ensinança de Ricardo Calle Sáiz e Adolfo Wagner. (5)

            Günter Schmolders concebe um sistema fiscal preciso, matemático, calçado na inter-relação e interdependência entre os diversos impostos, isto é, na coordenação dos diferentes impostos com o sistema, econômico dominante e com os fins fiscais e extrafiscais do tributo. (6)

            Pierre Beltrame assevera que a tipologia dos sistemas fiscais pode assentar-se ou sobre critérios aparentes ou externos (v.g., carga fiscal, natureza dos impostos cobrados), ou sobre critérios internos (v.g., fundamentos sócio-políticos ou sócio-econômicos destes sistemas) (7), de sorte que o legislador deve ser extremamente cuidadoso, porque o imposto é, para G. Ardant, o índice e o guardião da liberdade. (8)

SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

            O atual Sistema Tributário Nacional nasceu com a Emenda Constitucional n. 18, de 1º de dezembro de 1965, porquanto o sistema anterior pecava pela ausência de harmonia entre as diversas tendências, aspirações e necessidades dos vários entes político-constitucionais (9), tendo a Constituição de 1967, no dizer de Bernardo Ribeiro de Moraes, estruturado o poder fiscal com a discriminação das rendas tributárias; demarcado, com muita precisão, a limitação desse poder fiscal outorgado às entidades impositivas, e, finalmente, encravado as garantias individuais que servem de suporte a esse mesmo poder fiscal (10).

            A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, abrigou os princípios fundamentais da Emenda n. 18, de 1965, consolidando os impostos de idêntica natureza, em figuras unitárias, definidas por via de referência às suas bases econômicas, antes que a uma das modalidades jurídicas que pudessem revestir, e concebendo um sistema tributário como integrante do plano econômico e jurídico. (11) A discriminação de rendas é inflexível e exaustiva, conquanto não seja incomunicável.

            O Código Tributário Nacional, editado em 1966, como lei ordinária, mas erigida posteriormente em lei complementar, por força da Constituição de 1967 e da Emenda n. 1/69, e ainda do Ato Complementar n. 36, de 13 de março de 1967, passou a ser o elemento consolidador do ideário de um sistema definido, iniciado em 1965, com a Emenda nº 18. (12)

            A Carta Política, de 1988 (13), dedica ao sistema tributário o Capítulo I do Título VI e desenha, na Seção I, os princípios gerais, atribuindo à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o poder de instituir os impostos, as taxas e as contribuições de melhoria; entretanto, só à União compete a instituição de contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de atuação nas respectivas áreas

            Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios somente poderão criar contribuições, cobradas de seus servidores, para o custeio, em seu benefício, de sistemas previdenciários e de assistência social.

            O artigo 149 é bastante incisivo e foi modificado pela Emenda Constitucional 33, de 2001, que transformou o parágrafo único em § 1º e acrescentou-lhe três parágrafos.

            A União, mediante lei complementar, pode instituir, empréstimos compulsórios para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou de sua iminência, bem como no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional. Neste último caso, deverá obediência ao princípio inserto no inciso III, b, do artigo 150, ou seja, fica vedada a cobrança de tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou.

            A permissão para instituir os tributos e as contribuições está jungida aos princípios e às limitações impostas nesse Título e a outras garantias asseguradas, implícita ou explicitamente, ao contribuinte.

            O princípio fundamental da legalidade tributária, que é estrita no Direito Tributário, vem hospedado, solenemente, pelo inciso I do art. 150, verbi gratia:

            "Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

            I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça."

            O artigo 150 sofreu alterações impostas pela Emenda Constitucional, nº 3, de 1993.

            A Constituição vigente é mais rigorosa que a anterior, porque exige lei complementar para estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente, sobre a definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados na Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes, e sobre obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários, (14) tratando de forma enérgica e induvidosa a matéria. (15)

            Estanca, de vez, possíveis indagações quanto à área de sua incidência, sem, entretanto, fechar as comportas para outras hipóteses, vez que o advérbio especialmente foi editado pela Subcomissão da Constituinte para não tornar exaustivo o elenco proposto no inciso III do art. 146.

            É a consagração plena e solidificada do princípio da legalidade, que ficou sumamente fortalecido (artigos 150, I; 49, V; 68, § 1º; etc.). (16)

            A lei complementar prevista, na Lei Máxima anterior (17), era por demais genérica, quando mandava estabelecer normas gerais de direito tributário, dispor sobre os conflitos de competência nessa matéria entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e regular as limitações constitucionais do poder de tributar. (18)

            O Texto atual introduziu sérias e profundas alterações no sistema até então vigente e contribuiu, com perdas notáveis na receita da União, em favor dos Estados e dos Municípios, com o que, efetivamente, deverá ocorrer, no mais breve tempo, a transferência de encargos e compactação da estrutura federal, sob pena de se inviabilizar essa reformulação produzida pela Constituição. (19)

            O sistema tributário brasileiro atual é uma colcha de retalho, quase um farrapo do que era, e que a poucos é dado compreender, dada a diversidade e extrema dificuldade de sua aplicação, bastante onerosa e burocratizada, provocando brutal injustiça tributária e, por via de conseqüência, a sonegação e a corrupção desenfreada que devem ser combatidas a todo custo. Não existem milagres. É preciso, todavia, a vontade política para iniciar, de vez, essa reforma.

            A verdadeira reforma tributária ainda está por vir (20), para marcar, definitivamente, os pontos cardeais do sistema tributário. Oxalá, ela se realize, brevemente, ultrapassando os entraves burocráticos e políticos em que se esbarra.

            A Constituição vigente foi alterada 44 vezes, por 38 emendas comuns e 6 de revisão, tendo sido remexida, na parte que diz respeito ao sistema tributário, 10 vezes, projetando, sem dúvida, a fragilidade de nossa Carta, que se pensava duradoira, sem retoques.

            Dez Emendas à Constituição, desde a promulgação da Carta de 88, alteraram o sistema tributário desenhado, de sorte que este, na verdade, não passa atualmente de arremedo do que foi ou pretendera ser. (21)

            O que se fez, por meio dessas mudanças, nada mais foi do que onerar cada vez mais o contribuinte e vergar a espinha dorsal do Sistema que, por si só, já não era o ideal.

            A Emenda de Revisão nº 1/94 instituiu o Fundo Social de Emergência, visando sanear financeiramente a Fazenda Pública e a estabilização econômica. Permaneceu por dois exercícios. A EC 3/93 alterou os artigos 155 e 156 da CF. A EC 12/96 criou a célebre CPMF, que poderia ter sido o início de uma verdadeira reforma tributária, mas não o foi. Constitui-se, isto sim, em mais um tributo. A EC 17/97 reinstituiu, para os exercícios de 96, 97 a 99, o Fundo Social de Emergência. EC 21/99 prorroga a CPMF e altera a alíquota desse tributo. A EC 31/2000 cria o Fundo de Erradicação de Combate e Erradicação à Pobreza.

            Enquanto isto, vaga no Congresso Nacional a PEC 175, de 1995 (Mensagem 888/95), que altera o capítulo do sistema tributário, sem qualquer perspectiva de aprovação visando o aprimoramento da instituição e a cobrança de tributos, além da Proposta de Emenda à Constituição do Deputado Marcos Cintra e outros, instituindo o Imposto sobre Movimentação Financeira, para substituir os demais tributos de natureza predominantemente arrecadatória e ampliar a proteção do contribuinte contra inovações tributárias e tem em vista aperfeiçoar o sistema tributário nacional e estabelecer normas de transição. (22)

            Por outro lado, atentando-se para o Plano do novo Governo, ao tratar da reforma tributária, este acena com perspectiva otimista e efetivamente razoável, ao declarar que a primeira das reformas que se fará, ainda no primeiro ano de mandato, é a tributária e tem como meta o aumento da eficiência econômica e a redução das desigualdades sociais através de distorções na área tributária, (23), o que não deve significar taxar uns em detrimento de outros, sob a falsa medida de igualar os desiguais, prosseguindo, assim, na linha da injustiça fiscal.

            Pois bem, pretende a simplificação do sistema tributário nacional, pondo fim à cumulatividade das contribuições e a redução da carga tributária incidente sobre a produção dos assalariados de baixa e média renda, além da modernização e profissionalização da Receita Federal e a simplificação da legislação infra-constitucional, para combater a sonegação e a elisão fiscal.

            Esta é a grande oportunidade para por fim à injustiça fiscal e, por via de conseqüência, barrar de vez a sonegação e a corrupção.

            Todos os projetos apresentados esbarram na mesma tecla. Ao invés de simplificar e desonerar o contribuinte, cada vez, mais se torna ele prisioneiro do emaranhado de complexas normas tributárias e encargos ascendentes e multiplicadores, produzindo a mais nefasta e absurda colisão de interesses da sociedade.

            O plano do Governo que se está instalando, no que diz respeito à reforma tributária, apresenta, como filosofia, um progresso, sem dúvida, muito grande, em relação ao que até agora foi proposto e dorme nos corredores do mais elevado Poder Legislativo da República.

            Não obstante, é preciso aparar as arestas, fruto, naturalmente, de preconceitos que, atualmente, não têm mais sentido, num universo que está a desafiar o estadista, em busca de novas fórmulas que se adaptem à sociedade em constante e veloz transformação.

            O que prestava, há menos de uma década, já hoje se mostra completamente inadequado, ultrapassado e fossilizado. O mundo atual é bem diverso daquele em vivêramos. Estados que se mostravam sólidos desmoronaram, por completo, sem uma gota de sangue e as ideologias que, no século passado, incendiavam o cérebro e as mentes de milhões não têm mais nenhum significado, a não ser como reminiscência histórica.

            A Medida Provisória 66, de 29 de agosto de 2002 (PLCv 31/2002), em vigor desde sua edição, até que o PLCv se converta em lei, ex vi, do § 12 do artigo 62 da Constituição, em nada minora a situação do contribuinte. Muito ao contrário.

REFORMA TRIBUTÁRIA ATRAVÉS DO IMPOSTO ÚNICO

            A idéia de se implantar o imposto único encontra cada vez mais adeptos em vista da simplicidade e facilidade de sua implantação e arrecadação, evitando-se desta feita as conseqüências nefastas de um sistema carregado e oneroso. Que não seja, porém, mais um imposto, entre tantos, que existem e sobrecarregam o súdito, como o é a CPMF.

            A carga tributária no Brasil é brutal: uma das mais elevadas dentre todos os países. O rol de impostos, contribuições e taxas é assustador, na órbita federal. Os custos e a burocratização na arrecadação constituem o problema quase insolúvel.

            Como afirmava Roberto Campos, os projetos apresentados conseguem apenas aprimorar o obsoleto e Ives Gandra da Silva Martins lamenta que, em quarenta anos de atividade, deparou-se com o que há de pior. (24)

            Marcos Cintra, no voto em separado, à PEC 175-B, DE 1995, sustenta que a sociedade não tolera mais a deterioração, a irracionalidade e a ineficiência a que chegou o sistema tributário, sem falar na iniqüidade e sobrecarga a que estão sujeitos os contribuintes. (25)

            Contudo, a idéia do imposto único não estará completa se não atingir as esferas estaduais, do Distrito Federal e dos Municípios, sem embargo da dificuldade de sua imposição, devido ao sistema federativo brasileiro. Cabe, pois, ao legislador engendrar uma fórmula capaz de, sem quebrar a espinha dorsal do molde institucional da Federação, realizar, por fim, a redenção do sacrificado contribuinte brasileiro.

            Não é crível se resolvam os problemas no âmbito federal, mas se deixe a brecha nas outras esferas. É como dar com uma mão e tirar com a outra. (26)

            Vivemos o momento exato, para operar-se essa reforma. Não há como procrastinar, sob pena de, mais uma vez, o País se debruçar em berço esplendido e sofrer profunda frustração e nada mais!

            A citada PEC, sem embargo dos bons propósitos do Deputado Marcos Cintra, digna de todos os encômios, merece uma reformulação total.

            Vale dizer, a reforma do sistema deve abranger todo o Capítulo I do Título VI da Constituição e não apenas parte dele, para dar-lhe perfeita unidade e harmonia e cerrar as comportas autorizadoras de novos impostos ou contribuições que se pretende extirpar de vez, sob pena de não ser atingido o alvo pretendido.

            É preciso, pois, aproveitar o afã do novo Governo que pretende simplificar o perverso sistema tributário vigente e considerar propostas revolucionárias, como a do imposto único, devidamente aperfeiçoada.

            As reformas devem acontecer, sem dúvida, preservando-se os direitos e garantias fundamentais, conquistados a duras penas, em séculos de civilização, tendo os governantes a obrigação de zelar por eles e não destruí-los. Nada justifica seu esmagamento em nome da boa causa ou por razões de Estado, tão comum nos Estados totalitários, de saudosa memória.

            A verdadeira justiça tributária consiste em cobrar tributos de todos, não apenas de alguns, sempre com moderação e respeito às citadas diretrizes.

            Um sistema que se preze deve fundar-se na simplicidade. Este é um princípio de fundamental significação, com a redução do ônus administrativo do governo e do custo administrativo do contribuinte. (27)

Notas

            01. Cf, Goffredo da Silva Telles Jr., "Discriminação constitucional de fontes da receita", RDP 4/125; cf., também, Leon Frejda Szklarowsky, in Curso de Direito Tributário, p. 15.

            02. Cf. Comentários ao Código Tributário Nacional, v. 3, p. 256. Sobre o "princípio da legalidade", consultem-se, ainda, os trabalhos de Ayres F. Barreto, Anna Emilia Cordelli Alves, Antônio José da Costa, Aurélio P. Seixas, Carlos Celso da Costa, Cecília Maria Marcondes, Célio Batalha, Dejalma de Campos, Dirceu Pastorello, Edda Maffei, Fábio de S. Coutinho, Ulhôa Canto, Hugo Machado, Ives Gandra Martins, José E. Soares de Melo, Ricardo M. de Oliveira, Vittorio Cassone, Wagner Balera, Ylves J. Guimarães, Yonne D. de Oliveira e Yoshiaky Ichihara, nos Cadernos de Pesquisas Tributárias, n. 6, coordenado pelo Prof. Ives Gandra da Silva Martins. Ainda, de Alberto Xavier, Os princípios da legalidade e da tipicidade tributária; e, de Víctor Uckmar, Princípios comuns de Direito constitucional tributário cit.

            03. Cf. Sílvio Meira, Direito Tributário Romano, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1978.

            04. Cf. Système fiscaux et marché commun. Cf., ainda, H. Brochière P. Tabatoni, Economie financière.

            05. Cf. Sistemas fiscales contemporaneos.

            06. Cf: Teoria general de impuesto, p. 221, e En torno a un sistema fiscal nacional, Finanzarchiv, trad. espan., Tomo 2, 3º. cuaderno, 1949. Consultem-se, entre outros, Política Fiscal em América Latina, compilado por Arturo C. Porzecanski, e textos de Carlos A. Aguirre, Hessel J. Boas, Richard M. Bird, Milka Casanegra, Raja J. Chelliah, Cyril Enweze, Michel Guerard, Albert G. Hart, Teruo Hirao, Margaret R. Kelly, George E. Lent, Richard A. Musgrave, Vito Tanzi e Luc De Wulf; de René David, Los grandes sistemas jurídicos contemporáneos; Théorie économique de finances publiques, 1946, de Maison; Manual de ciência das finanças, de A!berto Deodato, 12ª. ed.

            07. Cf. Os sistemas fiscais, traduzido por J. L. da Cruz Villaça, com o apêndice "Perfil do sistema constitucional tributário brasileiro" elaborado por Marco Aurélio Greco, pp. 14 e ss.

            08. Cf. Théorie sociologique de l´impôt. Consultem-se, também, os Cahiers de droit fiscal international, relatórios anuais dos Congressos da IFA.

            09. Cf. Bernardo Ribeiro de Moraes, in "Sistema Tributário Constitucional de 1969", Curso de Direito Tributário, v. I; Ives Gandra da Silva Martins, in Comentários à Constituição do Brasil, cit., v. 6, t. 1, pp. 16 e ss.; Leon Frejda Szklarowsky, in Curso cit., p. 20. Historicamente, o Ato Adicional de 1834 foi a fonte primária das diretrizes fundamentais da discriminação de rendas ao ofertar às Assembléias Legislativas Provinciais o poder de decretar impostos. Vide, também, Waldemar M. Ferreira, História do Direito e Martins Júnior, História do Direito Nacional, 2ª. Ed.

            10. Cf. RDP 2/80 e ss. Consultem-se: "O Relatório e a Anteprojeto da Comissão de Reforma da Discriminação Constitucional de Rendas Tributárias", publ. da Fundação Getúlio Vargas, in Reforma da Discriminação Constitucional de Rendas, lª. ed., v. 6; de Geraldo Ataliba, Sistema constitucional brasileiro, 1ª ed.; de Rubens Gomes de Sousa, "O sistema tributário federal", RDA 72/122; de Yonne Dolácio de Oliveira, o ´Sistema constitucional tributário", in Curso de Direito Tributário, cit., pp. I e ss.; de Aliomar Baleeiro, Curso de Direito Tributário brasileiro, l0ª ed., atualizada por Flávio Bauer Novelli; Aliomar Baleeiro, Limitações constitucionais ao poder de tributar, 2.a ed., 1960; de Amílcar de Araújo Falcão, Sistema tributário brasileiro, 1ª. ed.; de Ruy Barbosa Nogueira, Curso de Direito Tributário,5ª ed.; de Clóvis de Andrade Veiga, Sistema tributário na Constituição de 1967; de J. Motta Maia, Novo Sistema tributário nacional, 2ª ed.; de Dejalma de Campos e Vittorio Cassone, "Limitações ao poder de tributar", em obra publicada pela Academia Brasileira de Direito Tributário, em co-edição com a Ed. Resenha Tributária, 1968, contendo teses apresentadas no I Congresso Nacional de Estudos Tributários, pp. 85 e ss.; Anais do Simp6sio sobre o Sistema Tributário Nacional, realizado pela Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados, 1981, Brasília.

            11. Cf. Ruy Barbosa Nogueira, in ob. cit.; Fábio Fanucchi, in Curso de Direito Tributário Brasileiro, 4º ed., v. 1, p. 44.

            12. Cf. Hamilton Dias de Souza, in Direito Tributário, coordenado pelo autor, Henry Tilbery, e Ives Gandra da Silva Martins, v. 3.

            13. Cf. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, 19ºª edição, com as alterações adotadas pelas emendas constitucionais de nº 1, de 1992, a 38, de 2002, e pelas Emendas de Revisão de nºs 1 a 6, de 1994, Centro de Documentação e Informação – Coordenação de Publicações – Brasília – 2002 – Câmara dos Deputados.

            14. Cf. art. 146. III, a e b.

            15. Ives Gandra da Silva Martins confessa seu desalento pela atual redação, porquanto, aduz, o texto anterior "não estabelecia qual seria o campo pertinente As normas gerais, estalajando o princípio de que as normas gerais são – não por força de sua essência, mais do que por força de sua exteriorização" in Comentários cit., v. VI, p. 84.

            16. Neste sentido, Hugo de Brito Machado, in Os princípios jurídicos dá tributação na Constituição de 1988, p. 19.

            17. Cf. artigo 18, § 1°, da CF de 1967, alterada pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969.

            18. A lei complementar é lei nacional, produzida pelo Congresso Nacional, não como poder federal (local), mas de toda a Nação. Neste sentido, a doutrina pátria. Sobre o sistema tributário nacional, na atual Constituição, examinem-se, por oportuno, de Ives Gandra da Silva Martins, o Sistema tributário nacional, 2.ª ed.; de Vittorio Cassone, o Sistema tributário nacional na nova Constituição; de Roberto Piscitelli, Mário Tinoco da Silva, Francisco Giffoni e José Rui Gonçalves Rosa, O sistema tributário na nova Constituição; de Sacha Calmon Navarro Coelho, Comentários à Constituição de 1988. Sistema Tributário, 2ª. ed.

            19. Cf. os trabalhos de Mário Tinoco da Silva e Roberto Piscitelli, in Sistema cit.

            20. Cf., entre outros, nosso trabalho na Revista dos Procuradores da Fazenda Nacional, 2/98, Editora Forense, p. 78; e no Correio Brazilienze, Suplemento Direito & Justiça, de 4.8.97 e no Suplemento Tributário LTR 75/97.

            21. Cf. ECs 3/93, 12/96, 17/97, 21/99, 27/2000, 29/2000. 31/2000, 33/2001 e 37/2002.

            22. Cf. PEC 474/2001. Na Comissão Especial, foi, até o momento (10de dezembro de 2002), aprovado o parecer do relator pela admissibilidade das emendas 1, 2 e 3/02; no mérito, pela aprovação da PEC 474-A, de 2001, e, pela rejeição das emendas 1,2 e 3/002, e da Proposta de Emenda à Constituição 183-A, de 1999. Fonte: site da Câmara dos Deputados – http://www.camara.gov.br/.

            23. Cf. Plano de Governo Lula, no site http://www.pt.org.br/. e http://www.estadao.com.br/

            24. Apud A Reforma Tributária como farsa, de Marcos Cintra, in Folha de São Paulo, de 6 de junho de 2000.

            25. Cf. volume VI, publicação, em separado, da Secretaria Especial de Editoração e Publicação do Senado Federal.

            26. Cf. nosso Imposto Único, in Revista Jurídica Consulex nº 120, de 15 de janeiro de 2002.

            27. Cf. nossa Reforma Tributária, na Revista Jurídica Consulex n° 142, de 15 de dezembro de 2002. 

  


Referência  Biográfica

Leon Frejda Szklarowsky  –  é mestre e especialista em Direito do Estado, juiz arbitral da American Association’s Commercial Pannel, de Nova York; membro da membro do IBAD, IAB, IASP e IADF, da Academia Brasileira de Direito Tributário, do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, da International Fiscal Association, da Associação Brasileira de Direito Financeiro e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Integra o Conselho Editorial dos Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, da Editora Revista dos Tribunais, e o Conselho de Orientação das Publicações dos Boletins de Licitações e Contratos, de Direito Administrativo e Direito Municipal, da Editora NDJ Ltda. É co-autor do anteprojeto da Lei de Execução Fiscal, que se transformou na Lei 6830/80 (secretário e relator); dos anteprojetos de lei de falências e concordatas (no Congresso Nacional) e autor do anteprojeto sobre a penhora administrativa (Projeto de Lei do Senado 174/96). Dentre suas obras, destacam-se: Execução Fiscal, Responsabilidade Tributária e Medidas Provisórias, ensaios, artigos, pareceres e estudos sobre contratos e licitações, temas de direito administrativo, constitucional, tributário, civil, comercial e econômico.

leonfs@solar.com.br

Cláusulas que autoriza desconto em conta-corrente para pagamento de empréstimo: sua abusividade quando ilimitada

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* Demócrito Reinaldo Filho

Tem se tornado comum o ajuizamento de ações (cautelares ou ações ordinárias com pedido de tutela antecipada), perante as varas cíveis da Justiça dos Estados, para impedir o desconto em conta-salarial relativo a empréstimo tomado por servidor público. Os autores dessas ações (consumidores de serviços bancários) argumentam que a cláusula contratual que permite o desconto (como pagamento das parcelas de empréstimo) em conta-corrente é flagrantemente abusiva, além de que viola o art. 649, IV, do CPC, que proíbe a penhora de vencimentos de servidor público, uma vez que possuem conteúdo alimentar. Com fundamento nessa argumentação, em geral requerem liminar para impedir que o banco por onde recebem sua remuneração (através da conta-salarial) proceda aos descontos relativos a empréstimo antes contraído. Por seu turno, as instituições bancárias redargúem com a alegação de que essa forma de pagamento (quando prevista em cláusula contratual) não apresenta nenhuma abusividade, na medida em que traz vantagens ao consumidor (contratante), já que se beneficia de taxas de juros bem inferiores àquelas que são usualmente praticadas no mercado financeiro, taxas essas que somente são possíveis face à garantia ofertada ao banco quanto aos pagamentos a serem realizados, ou seja, através de desconto em conta-corrente.

O que temos verificado é que ainda não há uma orientação firme sobre essa questão, existindo uma acentuada divergência jurisprudencial sobre a natureza da cláusula que permite o pagamento das parcelas de empréstimo bancário mediante o desconto direto (automático) em conta-corrente. Essa situação de indefinição de rumo jurisprudencial é que me anima a tecer algumas considerações sobre o problema, na esperança de poder contribuir para a dissipação do impasse.

Antes, todavia, de passar aos meus próprios argumentos, permito-me fazer o cotejo de alguns arestos – e não são muitos – já publicados sobre o tema. Limito-me a citar acórdãos do STJ, já que ele é que tem a missão institucional de uniformizar a jurisprudência nacional em matéria legal, não tendo sentido prático analisar o dissenso jurisprudencial em cortes inferiores quando esse já se instalou na corte superior. 

Na posição de defesa da legalidade da cláusula autorizadora do desconto, encontramos registro de apenas um acórdão, da relatoria do Min. Sálvio de Figuerêdo Teixeira, assim ementado: 

“DIREITO DO CONSUMIDOR. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PRECEDENTES. CLÁUSULA ABUSIVA. ART. 51, IV, CDC. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. RECURSO DESACOLHIDO.

I – Na linha da jurisprudência desta Corte, aplicam-se às instituições financeiras as disposições do Código de Defesa do Consumidor.

II – Não é abusiva a cláusula inserida no contrato de empréstimo bancário que versa autorização para o banco debitar da conta-corrente ou resgatar de aplicação em nome do contratante ou coobrigado valor suficiente para quitar o saldo devedor, seja por não ofender o princípio da autonomia da vontade, que norteia a liberdade de contratar, seja por não atingir o equilíbrio contratual ou a boa-fé, uma vez que a cláusula se traduz em mero expediente para facilitar a satisfação do crédito, seja, ainda, por não revelar ônus para o consumidor.

III – Segundo o magistério de Caio Mário, "dizem-se […] potestativas, quando a eventualidade decorre da vontade humana, que tem a faculdade de orientar-se em um ou outro sentido; a maior ou menor participação da vontade obriga distinguir a condição simplesmente potestativa daquela outra que se diz potestativa pura, que põe inteiramente ao arbítrio de uma das partes o próprio negócio jurídico". [….] "É preciso não confundir: a ‘potestativa pura’ anula o ato, porque o deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes. O mesmo não ocorre com a condição ‘simplesmente potestativa’". (STJ, Recurso Especial nº 258103, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 23/03/2003, DJ 07/04/2003 .

Em sentido contrário a esse posicionamento, pode ser citado acórdão da relatoria do Min. Ruy Rosado de Aguiar, em cuja ementa se assentou:

“CONTA CORRENTE. APROPRIAÇÃO DO SALDO PELO BANCO CREDOR. NUMERÁRIO DESTINADO AO PAGAMENTO DE SALÁRIOS. ABUSO DE DIREITO. BOA-FÉ.

Age com abuso de direito e viola a boa-fé o banco que, invocando clásula contratual constante do contrato de financiamento, cobra-se lançando mão do numerário depositado pelo correntista em conta destinada ao pagamento dos salários de seus empregados, cujo numerário teria sido obtido junto ao BNDES.

A cláusula que permite esse procedimento é mais abusiva do que a cláusula mandato, pois, enquanto esta autoriza apenas a constituição do título, aquela permite a cobrança pelos próprios meios do credor, nos valores e no momento por ele escolhidos” (STJ-4a. Turma, REsp 250523-SP, rel. Ruy Rosado de Aguiar, j. 19.10.00, DJ 18.12.00).

No mesmo sentido:

“BANCO. COBRANÇA. APROPRIAÇÃO DE DEPÓSITOS DO DEVEDOR.  O banco não pode apropriar-se da integralidade dos depósitos feitos a título de salários, na conta do seu cliente, para cobrar-se de débito decorrente de contrato bancário, ainda que para isso haja cláusula permissiva no contrato de adesão” (REsp 492777-RS, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 05.06.03, DJ 01.09.03)

Também no mesmo sentido, da relatoria do Min. Aldir Passarinho: 

“CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. APROPRIAÇÃO, PELO BANCO DEPOSITÁRIO, DE SALÁRIO DO CORRENTISTA, A TÍTULO DE COMPENSAÇÃO DE DÍVIDA. IMPOSSIBILIDADE. CPC, ART. 649, IV. RECURSO ESPECIAL. MATÉRIA DE FATO E INTERPRETAÇÃO DE CONTRATO DE EMPRÉSTIMO. SÚMULAS n. 05 e 07 – STJ.

(…)

Não pode o banco se valer da apropriação do salário do cliente depositado em sua conta corrente, como forma de compensar-se da dívida deste em face de contrato de empréstimo inadimplido, eis que a remuneração, por ter caráter alimentar, é imune a constrições dessa espécie, ao teor do disposto no art. 649, IV, da lei adjetiva civil, por analogia corretamente aplicado à espécie pelo Tribunal a quo” (STJ-4a. Turma, AGA 353291-RS, rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, j. 28.06.01, DJ 19.11.01).

Como se observa, há um verdadeiro dissenso no seio do próprio STJ quanto à questão em causa, ou seja, se a cláusula que admite o desconto em conta-corrente é abusiva ou não. Isso pode ser explicado pela circunstância de que o conceito de abusividade extrai-se de norma do tipo aberta, onde o legislador apenas enuncia elementos que auxiliam o seu aplicador na tarefa de, diante de um caso concreto, diagnosticar a natureza da cláusula contratual. Com efeito, o legislador consumerista, ao estabelecer a lista de cláusulas abusivas do art. 51, enumerou os tipos de maneira apenas indicativa ou exemplificativa, estabelecendo uma disposição geral (inc. IV do art. 51 c/c o parágrafo 1o. do mesmo artigo) que serve na definição das hipóteses não previstas expressamente. A técnica utilizada foi a de criar uma lista composta de tipos perfeitamente explicitados e de um tipo geral, que serve de parâmetro ao juiz na apreciação do caráter abusivo das condições gerais. Localiza-se no inciso IV do art. 51 e no seu parágrafo 1o., estando assim redigida:

“IV- (são nulas de pleno direito as cláusulas que) estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé e a eqüidade.

(…)

Parágrafo 1o. Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:

I-   ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;

II- restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual;

III- se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso” (grifos nossos).

 Pois bem, não se subsumindo uma determinada cláusula àquelas outras hipóteses expressamente identificadas como abusivas, o Juiz tem que se valer do inc. IV do art. 51, que, como se disse, constituiu uma tipicidade aberta.

Foi valendo-se dessa norma aberta que o Min. Sálvio de Figueiredo, chegou à conclusão de que a cláusula que permite o desconto em conta corrente não é abusiva. Ele não considerou presentes os elementos do par. 1o. do art. 51, que delineiam o que vem a ser “vantagem exagerada”. Disse o Ministro: “Primeiro, autorizar o débito em conta corrente não ofende o princípio da autonomia da vontade, que norteia a liberdade de contratar. Segundo, a cláusula não atinge o equilíbrio contratual ou a boa-fé do consumidor, uma vez que se traduz em mero expediente para facilitar a satisfação da dívida perante o credor. Terceiro, a autorização constante do contrato, por si só, não revela ônus para o consumidor, muito menos ônus excessivo”.

Já os Ministros Ruy Rosado de Aguiar e Aldir Passarinho Júnior, realizando a mesma operação, adotaram conclusão diferente – de que a dita cláusula é realmente abusiva. O Min. Aldir Passarinho, como visto na ementa do acórdão por ele relatado, ainda acrescenta o argumento de que “o banco não pode se valer da apropriação do salário do cliente depositado em sua conta corrente, como forma de compensar-se da dívida deste em face de contrato de empréstimo inadimplido, eis que a remuneração, por ter caráter alimentar, é imune a constrições dessa espécie, ao teor do disposto no art. 649, IV, da lei adjetiva civil”.

Pessoalmente, adoto uma posição intermediária, no sentido de que a autorização de desconto em conta-corrente dada contratualmente não é em si abusiva; a abusividade reside na falta de limites para o desconto, quando absorve toda ou parte substancial da verba salarial do correntista (consumidor). Explico:

Não me parece consistente o argumento de que a preexistência da regra do art. 649, IV, do CPC, impede esse tipo de pacto. Ela não obsta que o contraente (devedor), por ato voluntário, aceite em facilitar a forma de pagamento do empréstimo contraído. Quando o legislador tornou impenhorável a verba salarial, que tem caráter alimentar, o fez no intuito de proteger a sobrevivência material da pessoa, impedindo que o pagamento das dívidas recaia sobre essa parcela de seu patrimônio, destinada (em teoria) à sua alimentação e sobrevivência. Isso não quer dizer, no entanto, que o titular da conta salarial não possa, por ato voluntário, dispor de parte dela, como expediente para facilitar a satisfação de uma dívida, desde que isso importe em vantagem para ele próprio.

É o caso justamente do contrato de crédito em conta-corrente, que tem taxas de juros abaixo das que são cobradas usualmente no mercado financeiro. Para obter taxas mais vantajosas, o consumidor (correntista) permite que o credor possa satisfazer eventual saldo devedor mediante simples desconto na conta-corrente (salarial). Esse tipo de garantia concedida ao fornecedor (instituição financeira) funciona diminuindo o custo do crédito. Como se sabe, são oferecidas várias taxas de juros no mercado financeiro, que refletem a multiplicidade de fatores de risco. Cada uma delas está associada a mecanismos específicos de recuperação dos recursos emprestados, caso os tomadores de crédito se tornem inadimplentes. Em regra, quanto melhor o tipo de garantia oferecida, maior a possibilidade de ser menor a taxa de juros. Se ao oferecer a garantia de desconto automático em conta-corrente, o consumidor recebe por outro lado o benefício de uma taxa de juros menos elevada, não se pode afirmar que cláusula dessa natureza o coloque em situação de “desvantagem exagerada”. Impor que a recuperação dos recursos emprestados pelo financiador só se faça pelos meios executivos tradicionais, perante o Poder Judiciário, pode resultar, aí sim, em desvantagem para o próprio tomador do crédito (consumidor).   

De certa forma, a permissão para o comprometimento, por ato voluntário, de parte (não substancial) da verba salarial já está prevista em lei. Em relação aos empregados do setor privado (regidos pela CLT), a Lei n. 10.820, de 17 de dezembro de 2003, dispôs sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento. Estabelece esta Lei que os empregados podem autorizar o desconto em folha de pagamento dos valores referentes a empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil (art. 1o.). O desconto pode, inclusive, incidir sobre verbas rescisórias, desde que limitado a 30% (par. 1o. do mesmo artigo). Os inativos (aposentados e pensionistas) que recebem benefícios pelo INSS também estão autorizados pela Lei a contratar empréstimos mediante desconto em folha (art. 6o.). Já em relação aos servidores públicos civis (da União), o Decreto n. 4.961, de 20 de janeiro de 2004, que regulamenta o art. 45 da Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, também permite que eles autorizem consignações em suas folhas de pagamento, para cobertura de certos tipos de empréstimo (a exemplo de financiamentos para aquisição de imóveis residenciais e empréstimo concedido por entidade de previdência privada) – art. 4o., incs. VI e VII.

Essas situações (legais), embora não idênticas ao caso de desconto direto em conta-corrente, guardam uma certa relação com ele, podendo ser tomadas por analogia. Elas evidenciam que é possível, sim, que o titular das verbas salariais, seja ele empregado da iniciativa privada ou servidor público, comprometa parte delas com o pagamento de empréstimos, autorizando a imediata apreensão e repasse dos valores ao credor, sem que este seja obrigado a cobrá-los junto ao Poder Judiciário, em meio a um processo de execução. As verbas salariais, embora tendo o caráter da impenhorabilidade, podem ser disponibilizadas livremente pelos titulares, até um determinado limite, sem que isso configure violação ao art. art. 649, IV, do CPC.

Cláusula contratual que autoriza o desconto em conta-corrente, por analogia às situações de consignações em folha de pagamento, não padece de uma abusividade inerente. O débito automático de parcelas de financiamento em conta-corrente pode atender interesses de ambos os contratantes e, por essa razão, não desequilibra a equação contratual. Não ofende princípios fundamentais do sistema jurídico e nem restringe direitos do consumidor, não podendo ser considerada como excessivamente onerosa para ele. Não me parece suficiente forte de modo a caracterizar a abusividade a alegação de que “a autorização para desconto dá margem a abusos, pois facilita que o financiador (credor) inclua encargos abusivos e taxas que somente instituições bancárias sabem manipular”. Isso se resolve pela obrigação (que já consta da Lei, art. 52 do CDC) de o financiador ter de informar, prévia e adequadamente (por ocasião da assinatura do contrato), sobre taxa de juros, acréscimos legais, número e periodicidade das prestações e soma total a pagar. Já durante a fase de execução do contrato, tem ele que informar, no demonstrativo de movimentação da conta-corrente, de forma discriminada, o valor do desconto mensal decorrente da operação de empréstimo, bem como os custos operacionais e quaisquer encargos incidentes. Plenamente informado dos valores descontados, e não concordando com eles, o consumidor terá sempre a via do Judiciário para questionar eventuais abusos (art. 5o., XXXV, da CF).

A abusividade nasce quando se permite que o desconto se faça de forma ilimitada, sem atender à preservação de um mínimo suficiente ao sustento do contraente (consumidor). Se a cláusula permite ou traduz uma apropriação de todo o salário do contratante (ou de parte considerável) aí, sim, ela é dotada ou adquire abusividade, porque passa a infringir princípios fundamentais do sistema jurídico brasileiro, que busca preservar o salário da pessoa (empregado ou servidor público) para o seu sustento e de sua família.     

Por isso, na ausência de uma limitação ao desconto, o Judiciário pode (e deve) intervir na relação contratual, de modo a restabelecer o equilíbrio entre as partes, modificando a cláusula contratual que estabelecera a prestação desproporcional (art. 6o, V, do CDC). Por analogia às Leis que regulamentam as consignações em folha de pagamento, a autorização para desconto em conta-corrente não deve comprometer mais que 30% do salário creditado mensalmente – o inc. I, do par. 2o. do art. 2o., da Lei n. 10.820, estabelece que a soma dos descontos em folha do empregado não pode exceder a 30% da remuneração disponível; o art. 11 do Dec. 4.961/04 também limita a soma mensal das consignações facultativas do servidor a 30% dos seus vencimentos.

Diga-se, aliás, que é exatamente isso o que já vem fazendo certos tribunais e juízos inferiores, limitando o percentual do desconto ao patamar de 30% sobre os créditos em conta-salário do devedor (consumidor). Por oportuno, reproduzo acórdãos que expressam essa tendência jurisprudencial:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. MÚTUO BANCÁRIO. DESCONTO EM CONTA CORRENTE. 30% DO VENCIMENTO LÍQUIDO.

Não há nulidade na cláusula que permite o desconto em conta corrente para adimplemento de mútuo bancário. Se a conta corrente foi aberta somente para recebimento dos vencimentos, é de se limitar os descontos a 30% do vencimento líquido mensalmente depositado” (TJDF-4a. Turma Cível, AGI 2003002009363-9, rel. Dês. Silvânio Barbosa dos Santos, j. 04.12.03)

 Ainda:

 “EMBARGOS INFRINGENTES – AÇÃO ORDINÁRIA – EMPRÉSTIMO BANCÁRIO – PAGAMENTO EM PARCELAS MENSAIS E SUCESSIVAS – DÉBITO EM CONTA CORRENTE – LEGALIDADE

Não se vislumbra qualquer ilegalidade no pacto que autoriza o desconto do empréstimo bancário contraído, mediante desconto mensal das prestações na conta corrente do devedor.

Isso só não seria possível se a quantia fosse equivalente ao total dos vencimentos do devedor, de forma a impedir o sustento do devedor e de sua família” (TJDF, 2a. Câm. Cív., EIC n. 1998011060170-0, rel. designado Des. Haydevalda Sampaio).

A solução justa e que atende à eqüidade contratual e os princípios fundamentais do sistema jurídico brasileiro está em limitar o comprometimento da verba salarial a patamar razoável. O Juiz deve intervir no contrato de consumo para garantir a razoabilidade da cláusula, preservando o pacto e afastando prejuízo (alimentar) para a parte devedora (consumidor).

 


Referência  Biográfica

Demócrito Reinaldo Filho  –  Juiz de Direito

demo@infojus.com.br

Microempresa e os Juizados Especiais Cíveis

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* Maurício Cozer Dias 

     Numa rápida pesquisa pelos Juizados Especiais de nossa comarca e de comarcas próximas, constata-se a pouquíssima propositura pelas microempresas de ações perante os Juizados Especiais, não sendo utilizado esse tão importante mecanismo de tutela jurisdicional.

    A Lei nº 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, adotou como regra a admissão apenas de pessoas físicas como partes legítimas ativas, por força de seu artigo 8º, §1º. Tal regra justifica-se uma vez que os Juizados Especiais Cíveis foram criados para agilizar a prestação jurisdicional aos cidadãos, dando solução ágil a demandas de menor complexidade.

    Essa foi a regra que se generalizou entre os operadores de Direito, da admissão apenas de pessoas físicas como partes legítimas nos Juizados Especiais. Porém, posteriormente, a Lei nº 9.099/95, o legislador houve por bem estender o benefício do acesso aos Juizados Especiais às microempresas, em razão de sua grande importância na economia de qualquer país.

    Assim, o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, dispôs sobre o tratamento diferenciado, simplificado e favorecido, conforme mandamento constitucional previsto nos artigos 170 e 179 da Constituição Federal.

    O Estatuto, Lei nº 9.841/99, possibilitou em seu artigo 38, que tão somente as microempresas gozem do benefício de acesso aos Juizados Especiais, conforme abaixo transcrito:

“Art. 38. Aplica-se às microempresas o disposto no §1º do art. 8º da Lei nº 9.099/95, de 26 de setembro de 1995, passando essas empresas, assim como as pessoas físicas capazes, a ser admitidas a propor ação perante o Juizado Especial, excluídos os cessionários de direito de pessoas jurídicas.”

    Para que as microempresas possam se utilizar do permissivo legal, basta que demonstrem seu enquadramento juntando documentação expedida pela Junta Comercial do respectivo Estado, passando a ter todos os direitos atribuídos ao cidadão pela lei dos Juizados Especiais, tais como: pedido contraposto, representação por preposto, falcutatividade de assistência por advogado nas causas até 20 (vinte) salários mínimos.

    Caso ocorra posteriormente ao ajuizamento de ação perante o Juizado Especial, desenquadramento da pessoa jurídica como microempresa, o feito deverá ser extinto sem julgamento do mérito, em face da perda superveniente de capacidade de ser parte no Juizado Especial.

    Infelizmente, essa facilitação jurídica vem sendo muito pouco utilizada como já constatado por estatísticas oficiais do Poder Judiciário carioca, bem como, por uma rápida pesquisa em nossa comarca e comarca vizinhas.

    Essa permissão legal deve ser mais explorada pelas microempresas, que são as grandes responsáveis pela maior parcela de geração de empregos e riquezas em nosso país. Cumpre porém advertir, que os Juizados Especiais não podem ser transformados em balcões de cobrança dos microempresários, prejudicando o cidadão comum que também faz jus a uma Justiça célere para suas pequenas demandas.

    Com certeza, esse permissivo legal veio para possibilitar um acesso ao Judiciário maior aos microempresários. Soluções mais ágeis e menos custosas facilitarão a atividade empresarial que é fundamental para o bem estar de uma sociedade. Deve ser frisado ainda, que diante da nova lei de custas a utilização dessa via ficou muito mais atraente.

    Estimular a iniciativa privada, o empreendedorismo, a geração de empresários responsáveis e conscientes de sua importante missão na sociedade moderna é um dever de todos. O Estado, através das normas supra comentadas proporcionou aos microempresários uma importante ferramenta que não vem sendo utilizada como poderia.

    Assim, diante da permissão legal e da observação prática, necessária se faz a informação dos microempresários desse importante recurso legal colocado à disposição pela Lei nº 9.841/99, possibilitando um novo horizonte para soluções ágeis e menos custosas de demandas de menor complexidade no âmbito das microempresas, preservando empregos, geração de impostos, geração de riqueza e preservando o crédito.

    Com o advento do novo Código Civil, uma nova gama de normas relativas ao direito de empresa foram colocadas em uso, a Teoria da Empresa como atividade econômica organizada foi acolhida. Os empresários diante desse novo contexto legal, devem se organizar e se informar sobre todas as alterações legais, novas possibilidades, implicações das alterações em suas sociedades empresariais, agindo de forma preventiva de demandas, buscando o incremento de suas empresas.

 


Referência  Biográfica

Maurício Cozer Dias  –  Advogado; Professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito de Itapetininga e do Curso Preparatório Anglo Triumphus; Mestrando em Propriedade Intelectual na UNIMEP ; Autor das Obras: Utilização Musical e Direito Autoral; Direito Autoral: Jurisprudência e Prática Forense; Direito Autoral de Música (no prelo). – 2004

“Os Dois “C” das PPPs”

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* José Emilio Nunes Pinto

Muito embora o título deste Artigo possa parecer, à primeira vista, uma daquelas “sopas de letrinhas”, daquelas que, na infância, junto a irmãos e primos nos faziam saborear, buscando-se sempre encontrar as mais exóticas, como o “k”, o “w” e o “y”, trata-se, na realidade, de questão central na discussão das parcerias público-privadas, já conhecidas entre nós, a exemplo do que ocorre em outros países, como as PPPs.

E os dois “C” das PPPs, a que se referem eles?  Falamos de dois elementos essenciais para a implementação bem sucedida das PPPs.  “C” de Cultura e “C”  de Criatividade.  A consolidação de cada um desses “C” irá nortear o caminho de sucesso das PPPs.

Ao longo da História, várias têm sido as posturas do agente privado e do cidadão nas suas relações com o Estado e, no dia a dia, com a Administração Pública.

Do “pai patrão”, temido e respeitado, ao “pai protetor”, assumindo o lugar do privado no processo de tomada de decisões, o Estado vem incorporando uma nova face, reservando para si atitudes que visam ao interesse público, retirando-se de cena e cessando a interferência nas decisões de caráter individual.

A relação entre o Estado e o cidadão beneficia-se do processo de maturidade mútua.  O Estado dota a Sociedade dos meios legais destinados à preservação de direitos, criando um sistema jurídico-legal bastante complexo, sancionando, inclusive, os desvios de comportamento que afrontam padrões éticos e morais.

O Direito não se destina a criar, nem cria, na realidade, fatos sociais.  Se assim pensarmos, estaremos invertendo o que ocorre no mundo real.  Na verdade, da observação meticulosa dos fatos sociais, cuja ocorrência constante demonstre tendência comportamental de grupos sociais, surge um complexo jurídico-legal para regulá-los.

Assim ocorre o mesmo com as PPPs.  A normatização de operações complexas dessa natureza responde a uma tendência verificada nas sociedades modernas.  Trata-se de fenômeno que podemos chamar de compartilhamento de responsabilidades entre o estado e o particular.

O Estado e a Administração Pública têm demonstrado falta de fôlego para cumprir, a contento, sua função de investimento.  As despesas correntes da Administração Pública, oneradas pela necessidade de manutenção de uma máquina pesada, de custo muito elevado e, nem sempre com padrão adequado de eficiência, tragam com voracidade as receitas arrecadadas.

Ao administrador público impõe-se o dever de satisfazer, em primeiro lugar, as necessidades de caráter social, sobrando-lhe muito pouco para investir.  Ocorre, no entanto, que, muitas vezes, esse investimento se destinaria a projetos estruturantes, capazes de contribuir para a satisfação das necessidades de caráter social.

Essa realidade encontra eco no mundo jurídico, refletindo uma nova ordem vigente na Sociedade.

O privado começa a reconhecer que não só o Estado, mas ele também, tem responsabilidade; responsabilidade que passa a compartilhar com o Estado e que se reflete nas suas relações com o ambiente em que atua, em seu relacionamento com comunidades onde esteja presente, com vistas a incluí-los no processo de desenvolvimento em curso, garantindo os direitos fundamentais da cidadania.  Em suma, estamos hoje diante dessa realidade que se baseia e se fundamenta na denominada Responsabilidade Social.

Fatos como esse não passam ao largo do mundo jurídico e dos sistemas legais.

No Brasil, foi a Constituição de 1988 a precursora de princípios fundamentais da responsabilidade social.  A legislação que se seguiu, em nível infra-constitucional, consolidou essa nova situação e essa nova realidade.  Exemplo inequívoco disso é o Código Civil de 2002, que passou a conter as denominadas cláusulas abertas, onde os direitos individuais somente poderão ser legitimamente exercidos se estiverem matizados pelo interesse público.  A “santidade” dos contratos continua preservada em nossa lei civil; não se revogou (e nem seria cabível assim proceder) o princípio latino da “pacta sunt servanda”, que permanece inalterado, consagrado, na sistemática do Código, como a liberdade de contratar e ver preservados os ajustes aceitos pelas partes.  No entanto, essa “santidade”, expressão adotada para refletir a segurança e primazia do que as partes deliberaram quando da celebração do contrato, somente será assegurada se a vontade das partes se pautou pelos limites impostos pela vontade coletiva, expressa nos direitos reconhecidos à coletividade, sintetizada no interesse público.

Daí se poder afirmar que, no mundo das leis, a divisão tradicional entre direito público e direito privado é bem menos radical ou melhor dizendo mais tênue do que costumava ser.

Fala-se muito na constitucionalização do direito civil, já que a Constituição de 1988 contém princípios fundamentais e normas de aplicação geral em matéria de direitos individuais.  Pode-se falar, e não sem razão, na privatização do direito público, visto que determinadas entidades, criadas e mantidas, em sua existência, pelo Poder Público, pautam suas atividades fundamentalmente por normas de direito privado.

Testemunhamos, dessa forma, a convergência de ramos tradicionais do direito, da mesma maneira que convergem as ações da Administração Pública e dos agentes privados, e, quanto a estes, no exercício, inclusive, de ações de Responsabilidade Social.

As PPPs podem ser, portanto, encaradas como manifestação dessa convergência de ações.  O que pretende o estado com as PPPs nada mais é do que assegurar a implementação de projetos cujo efeito estruturante há de ter um impacto positivo na satisfação das necessidades dos cidadãos.  Projetos de PPPs serão aqueles que o Estado, por suas restrições orçamentárias e esgotamento de sua capacidade de endividamento, não será capaz de implementar.  Projetos de PPPs serão aqueles que o particular, dado o grau do risco a eles inerente, não está disposto a implementar sem que possa contar com garantias adequadas.  Para casos como esses, desenvolveu-se, no Reino Unido, espalhando-se daí para outras partes do mundo as parcerias público-privadas.

O surgimento, no Brasil, das PPPs somente foi possível graças à mudança de postura nas relações entre o particular com o Estado e a Administração Pública, assumindo aquele o papel que lhe cabe no contexto da Responsabilidade Social.

Essa mudança de postura representa uma manifestação inequívoca de surgimento de uma nova Cultura nas relações entre o setor público e o setor privado, justificando a importância do “C” que quer exprimir Cultura.  Mas a pergunta que resta é saber se essa mudança cultural é suficiente para assegurar a trilha de sucesso das PPPs no Brasil.  Parece-nos que ainda falta a ambas as partes dar passos adicionais, mais concretos, no processo de desenvolvimento e consolidação de uma nova Cultura negocial.

Desde sempre a Administração Pública e o particular negociaram.  Grandes obras de infra-estrutura são realizadas pelos particulares contratados pela Administração.  Licitações são realizadas para a escolha da proposta mais atrativa para a Administração e os termos desses negócios estão refletidos em contratos administrativos, cujas características diferem substancialmente dos contratos em geral entre partes privadas, já que naqueles reconhecem-se ao Estado direitos que, se inseridos em contratos entre particulares, tangenciariam a ilegalidade.  Esses direitos estão presentes nas denominadas cláusulas exorbitantes dos contratos administrativos e refletidos em disposições contidas na Lei de Licitações.

No entanto, a relação entre a Administração e o particular, no âmbito da contratação pura e simples, padece de um traço de desconfiança.  Desconfiança de que a Administração não honre seus compromissos, na forma e época devidas, já que esta é vista como uma má pagadora.  Desconfiança de que o privado não cumpra as suas obrigações contratuais, deixando de entregar o objeto da contratação, na época devida, ainda que a custos superiores que embutem um risco inerente à contratação com a Administração.

Vale lembrar que essa circunstância não é um traço desse tipo de contratação no Brasil.  O surgimento e estabelecimento, na França, pelo Conselho de Estado da teoria do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo foram influenciados pelo traço de ser a contratação com a Administração ser percebida como de risco.  Ao se garantir a manutenção da equação inicial de equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo assegurou-se que os preços ofertados pelo particular deixassem de embutir uma remuneração pelo risco, risco esse que poderia, inclusive, não se materializar, mas cuja taxa cobrada seria paga inexoravelmente.

As PPPs exigem uma postura negocial de confiança mútua, de parceria e de envolvimento contratual de longo prazo, desde a negociação dos termos contratuais até o cumprimento integral de todas as obrigações ao final do termo do contrato.  Ser parceiro significa compartilhar os resultados do investimento, buscar soluções negociadas, fundadas num comportamento pautado pela boa fé.

A magnitude dos investimentos e o longo prazo de sua maturação exigem, mais do que a segurança contratual, a convicção de que os interesses entre a Administração e o particular são convergentes.  O balanço equilibrado entre os direitos individuais e a supremacia do interesse público é um grande desafio na busca do sucesso nas PPPs.

A Cultura contém em si mesma um outro “C” que é a ela inerente.  Referimo-nos à Confiança.  A relação contratual deve ser baseada na confiança que uma das partes deposita na outra, confiança essa que está vinculada à boa fé e expressa no dever lateral de cooperação.  A boa fé deve estar presente em todas as fases do contrato, de sua negociação ao período de desempenho das funções atribuídas a cada uma das partes e, até mesmo, no período pós-contratual.  Essa confiança recomenda que as partes estejam imbuídas de boa fé (boa fé subjetiva) e a materializem durante todo o período contratual (boa fé objetiva), inclusive para resolver controvérsias que venham a surgir entre elas.  É nesse momento que a arbitragem, prevista nos textos legais relativos às PPPs, assume grande importância.  Mesmo com as limitações decorrentes da presença do Estado, a arbitragem se revela legal e de grande valia para as partes, já que permite solucionar as controvérsias de forma célere, segura, ética e por árbitros que sejam conhecedores das características específicas de cada projeto conjunto.

Por tudo isso e por tudo aquilo que se pudesse listar e dizer, o “C” é peça fundamental.  Se os parceiros, envolvendo nisso a Administração e o particular, não forem capazes de criar uma nova Cultura de relacionamento, os resultados pretendidos com as PPPs estarão ameaçados.  Essa nova Cultura, no entanto, não basta ser explicitada.  Há de ser praticada e o tempo é fator fundamental para que ela se desenvolva e se consolide definitivamente.  Mais do que atender aos interesses individuais das partes em parceria, essa nova Cultura é fundamental para que se atenda ao interesse público, interesse da coletividade, função do Estado e expressão eloqüente da Responsabilidade Social, essa função do particular.

Entretanto, uma nova Cultura não será, por si só, suficiente para assegurar a trilha de sucesso das PPPs.  Daí insistirmos que esse sucesso depende de dois “C”, e o segundo “C”, não menos importante que o primeiro, se refere à Criatividade.

Quando examinamos o trajeto das PPPs no mundo, dissemos que estas surgiram no Reino Unido e daí se espalharam para outros países, principalmente os do leste da Europa.  No Brasil, muito se tem ouvido falar das experiências inglesas, tendo estas tido uma influência capital na elaboração das chamadas leis das PPPs, seja a federal, seja a nível dos Estados.  Desde já, ressaltamos que a existência de experiências similares em outros países há de ser uma fonte importante de informação.  Casos vividos, lições aprendidas, erros minimizados.  Esse trinômio nos ajuda a evitar que nos lancemos à tarefa inglória de tentarmos “reinventar a roda”.

No entanto, muito embora saibamos que a “roda há de assumir a forma do círculo”, teremos que analisar os caminhos e estradas por onde essa roda irá passar.  Portanto, seja quanto à escolha do material para sua fabricação, seja quanto ao aro mais adequado, seja, enfim, quanto a materiais acessórios – tudo isso resta a ser definido.  E essa definição há de se basear em decisões criativas.

Nas PPPs, a história não se passa de forma distinta.  Sabemos que as PPPs são estruturas operacionais destinadas a assegurar a implantação de um projeto, seja construção ou mera remodelação, mas que se faz acompanhar da prestação de um serviço, manifestada essa na gestão do empreendimento.  Essa é nossa roda em forma de círculo, complementada pelas lições aprendidas por todos os que a puseram para rodar antes de nós.

As experiências anteriores de que se tem notícia, não necessariamente atendem integralmente a nossas necessidades.  As características de nossa economia, o perfil de nossas necessidades e os reclamos da Sociedade podem fazer com que venhamos a proceder a ajustes na modelagem das operações de PPPs.

Por essa razão, defendemos que o segundo “C” – o da Criatividade – há de ser amplamente exercido por todos os participantes dessas operações.  Mantidas as características fundamentais dessa modalidade, devemos deixar que a Criatividade nos guie na modelagem de cada caso.  Portanto, nada mais sábio do que resistir à tentação de definir por lei modelos operacionais ou traços operacionais, deixando que cada uma das leis das PPPs se limite a cuidar de questões e aspectos estruturais, deixando às partes a escolha da melhor forma de implementação, sabendo-se, de antemão, que os parâmetros internacionais existem, mas que devemos “tropicalizá-los”.

A tropicalização é função do exercício da Criatividade e será capaz de assegurar os melhores resultados pretendidos, posto que adequada à nossa realidade.

Se às PPPs, portanto, agregarmos e exercitarmos os dois “C”, teremos andado boa parte da trilha que nos levará à bem sucedida implementação de operações solidamente estruturadas, ficando o saldo à conta da boa fé, que deverá estar presente em toda a fase de cumprimento das obrigações contratuais até a extinção do prazo ajustado.           

  


Referência  Biográfica

José Emilio Nunes Pinto:   Sócio de Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados.

Novos tempos, novos termos

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* Maria Berenice Dias

     Raras vezes uma constituição consegue produzir tão significativas transformações na sociedade e na própria vida das pessoas como o fez a Constituição Brasileira de 1988. Certamente não se consegue elencar a série de modificações produzidas, mas algumas por terem realce maior despontam com exuberância. A supremacia da dignidade da pessoa humana, lastreada no princípio da igualdade e da liberdade, é o grande artífice do novo Estado Democrático de Direito, que foi implantado no país. Houve o resgate do ser humano como sujeito de direito e se lhe assegurou de forma ampliada a consciência da cidadania.

    A constitucionalização das relações familiares – outro vértice da nova ordem jurídica – também acabou ocasionando mudanças na própria estrutura da sociedade. Mudou significativamente o conceito de família, afastando injustificáveis diferenciações e discriminações, que não mais se justificavam em uma sociedade que se quer democrática, moderna e livre. O alargamento conceitual das relações interpessoais acabou deitando reflexos na própria conformação da família, palavra que não mais pode ser utilizada no singular. A mudança da sociedade e a evolução dos costumes levaram a uma a verdadeira reconfiguração, quer da conjugalidade, quer da parentalidade. Assim, expressões, como “ilegítima”, “espúria”, “adulterina”, “informal”, “impura”, estão banidas do vocabulário jurídico. Não podem ser utilizadas na esfera da juridicidade, tanto com referência às relações afetivas, como no tocante aos vínculos de parentesco. Quer o conceito de família, quer o reconhecimento dos filhos, não mais admitem qualquer adjetivação.

    Do conceito unívoco de família do início do século passado, que a identificava exclusivamente pela existência do casamento, chegou-se às mais diversas estruturas relacionais, o que levou ao surgimento de novas expressões, como “entidade familiar”, “união estável”, “família monoparental”, “desbioligização”, “reprodução assistida”, “concepção homóloga”, “heteróloga”, “homoafetividade”, “filiação socioafetiva”, etc. Tais vocábulos buscam adequar a linguagem às mudanças nas conformações sociais, que decorreram da evolução da sociedade e da redefinição do conceito de moralidade, bem como dos avanços da engenharia genética. Essas alterações acabaram por redefinir a família, que passou a ter um espectro multifacetário.

    Agora o que identifica a família não é nem a celebração do casamento, nem a diferença de sexo do par ou o envolvimento de caráter sexual. O elemento distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a identificação de um vínculo afetivo, a unir as pessoas, gerando comprometimento mútuo, solidariedade, identidade de projetos de vida e  propósitos comuns.

    Enfim, a busca da felicidade, a supremacia do amor, a vitória da solidariedade ensejaram o reconhecimento do afeto como único modo eficaz de definição da família e de preservação da vida. Este certamente é, dos novos vértices sociais, o mais inovador dentre quantos a Constituição Federal abrigou.           

 


Referência  Biográfica

Maria  Berenice Dias  –  Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, onde é  Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetiva do Órgão Especial do TJ; Professora da Escola Superior da Magistratura e Vice-Presidente Nacional do IBDFam.  

www.mariaberenice.com.br

A Justiça morosa, o advogado e a cidadania

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* Clovis Brasil Pereira

             A Constituição Federal vigente assevera em seu artigo 133, que “o advogado é indispensável à administração da justiça”.

             Por sua vez, é  senso comum em nosso país, que a justiça pátria é por demais morosa, criando um clima de desencanto generalizado aos cidadãos jurisdicionados, notadamente os que figuram nas demandas judicias na qualidade de autores.

             Vimos com grande preocupação, cotidianamente, algumas análises afoitas, e sem nenhuma base técnica ou científica, espalhadas pela mídia em geral, notadamente rádio e televisão, que a culpa por tal morosidade é dos advogados, que utilizam recursos e mais recursos, com o fim específico de procrastinar a finalização dos processos.

             Como num passo de mágica, aos invés de tais críticos procurarem as verdadeiras causas que demandaram no emperramento da máquina burocrática do Poder Judiciário, passando pela falta de estrutura física dos Fóruns, na falta de equipamentos básicos e mesmo material de expediente, notadamente de papel sulfite (parece incrível, não é mesmo?),   falta de funcionários, incluindo Juízes e Promotores, dentre outras, elegeram como  alvo fácil, os advogados do Brasil, como os grandes e únicos vilões da justiça lerda, morosa, que lembra quase os passos de uma tartaruga.

             Esqueceram, quiçá por falta de pesquisa, ou quem sabe de forma intencional, de incutar ao próprio Estado, grande parcela no entrave do Poder Judiciário.  Primeiro, porque é ele, Estado, sem dúvida o seu “o maior cliente”, quer como autor, quer como réu; segundo, porque é ele beneficiário, de forma obrigatória,  do chamado “duplo grau de jurisdição”, conforme autorização expressa no artigo 475, do Código de Processo Civil, exigido para todos os julgados em que estiverem envolvidos interesses da União, Estado, Distrito Federal e Municípios, e agora também, as respectivas autarquias e fundações de direito público, conforme normatização recente trazida pela Lei 10.352/01, excluindo-se apenas as sentenças ou o valor controvertido não excedente a 60 salários mínimos; terceiro, porque é do conhecimento público, que o Estado tem tradição de “mau pagador contumaz”, retardando ao máximo o cumprimento dos julgados em que é perdedor.

             O fato é que o discurso fácil e emocional de alguns formadores de opinião, acabou por criar um clima favorável para alteração da legislação processual pátria, fragilizando a disposição constitucional  contida no aludido artigo 133, excluindo a obrigatoriedade dos advogados em determinadas situações, destacando-se nesse ponto as Leis 9.099/95, 10.259/01 e 9.958/00, que criaram respectivamente, as duas primeiras, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da  Justiça Estadual e Justiça Federal, e a última, as Comissões de Conciliação Prévia, no da  Justiça do Trabalho.

             Mas na verdade, de prático e útil, o que ocorreu em  razão de tais mudanças?  Simplesmente os cidadãos mais pobres, cujos direitos já haviam sido torpedeados extrajudicialmente, ficaram ainda mais vulneráveis, sem a tutela do advogado, o único profissional verdadeiramente habilitado para o exercício do jus postulandi.     

             A justiça por acaso melhorou seu desempenho? É evidente que não, e isso se mostra cristalino   aos olhos de qualquer um, que não se omite ao analisar a realidade.

             Não  se pode  deixar pois de concluir, que o afastamento do advogado  das causas consideradas de “menor complexidade” assim consideradas, dentro dos limites de até 20 ou 60 salários mínimos, conforme a lei própria, veio apenas em prejuízo dos mais pobres, dos mais vulneráveis  economicamente.

             Os  mais afortunados, estes sem dúvida podem contar com a assistência de quantos advogados desejarem para tutelarem seus interesses, e tirar proveito na sua plenitude da proteção legal.

             Certamente essas disposições legais que afastam a obrigatoriedade da assistência do advogado às partes  litigantes, além de ferirem a Constituição Federal, como já se analisou, colocam em xeque outro princípio inserido na Carta Magna,  tão decantado e enaltecido pela  mídia em geral, qual seja, o de que “todos são iguais perante a lei”.

             Obviamente que disposições legais como as já apontadas, em nada contribuem para o pleno exercício da cidadania, e devem ser torpedeadas permanentemente, buscando  que venham a ser alteradas, possibilitando a plenitude do exercício dos direitos a todos os cidadãos, indistintamente.

             Acreditamos que essa não é uma missão somente dos advogados, e não tem alicerce em pretensão meramente corporativa, como costumam  vaticinar  os mesmos críticos, já em autodefesa de suas malfadadas  teses.

             Ela é também missão de todos os brasileiros, operadores do direito ou não, independentemente da função ou papel social que desempenhem no contexto social. Basta que efetivamente se mostrem comprometidos com a justa composição dos litígios, meio idôneo e eficaz para a busca da verdadeira paz social.

             No mais, urge que se busquem as verdadeiras causas da morosidade da justiça, e se encontrem meios prontos e efetivos para a pronta prestação jurisdicional, respeitando-se de forma intransigente, o devido processo legal, o direito de petição e o respeito ao contraditório, buscando no advogado, um aliado, e não um inimigo, como se tem apregoado.

             Parece-nos que somente medidas como essas, revitalizarão o respeito ao Poder Judiciário, e restabelecerão o pleno exercício da cidadania.

 


Referência  Biográfica

Clovis Brasil Pereira  –  Advogado, Especialista em Processo Civil; Mestre em Direito, Professor Universitário. É coordenador e editor do site www.prolegis.com.br  – 2004  

Contato: prof.clovis@54.70.182.189

Obtenção de foro especial e improbidade administrativa

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* Vladimir Aras

             Mesmo depois do cancelamento da Súmula 394, do Supremo Tribunal Federal, que garantia o foro especial por prerrogativa de função a ex-detentores de mandatos ou cargos públicos, por crimes cometidos durante o exercício funcional, o tema continua provocando controvérsias jurídicas e até políticas entre nós.

            Tradicionalmente reservado aos agentes públicos de alta hierarquia que cometam infrações penais, tem-se discutido hoje, inclusive no Congresso Nacional, a extensão do privilégio de foro para essas mesmas autoridades, em causas cíveis de improbidade administrativa. Embora indesejável tal inovação, não é este, porém, o tema de nossa análise.

            Propondo uma situação hipotética, pretendemos averiguar a legalidade da nomeação de um servidor para um cargo público protegido pelo foro especial, com a só finalidade de livrá-lo de "dificuldades" na primeira instância do Judiciário. Alerto, todavia, que qualquer semelhança com acontecimentos reais recentes da história nacional é mera coincidência…

            A situação é a seguinte: "Tício", casado com "Lívia", exerceria um alto cargo na Administração Pública, o que lhe conferiria o foro especial por prerrogativa de função. Teria, portanto, o direito de ser questionado somente perante órgãos jurisdicionais superiores. Investigado pelo Ministério Público, flagrado em situação de improbidade e tido como suspeito da autoria de crime, "Tício" acabaria renunciando ao seu posto e perdendo o chamado foro privilegiado, em decorrência do cancelamento da já citada Súmula 394 do STF.

            Como as investigações em torno do fato continuariam sendo realizadas por membros do Ministério Público de primeiro grau perante juízes de instância inicial, realizar-se-ia uma movimentação política para facilitar a vida de "Tício" e "Lívia". Eis que o valoroso "Tício", que teria acabado de renunciar à sua função original, viria a ser nomeado para cargo semelhante na mesma Administração, adquirindo novamente o direito ao foro especial.

            Questiona-se: o ato do governador ou do presidente da República, assim motivado, seria legítimo? Em outros termos: a autoridade pública que nomeasse um servidor para o cargo de ministro da República ou de secretário de Estado com o único e explícito propósito de conferir ao nomeado o foro especial cometeria ato de improbidade?

            Cremos que não, o ato não seria legítimo, e que sim, haveria improbidade administrativa do nomeante. E as respostas às questões acima apontadas deitam raízes na teoria dos motivos determinantes do ato administrativo e dizem de perto com o desvio de poder ou de finalidade.

            Sabe-se que todo ato administrativo deve ser motivado para que se possibilite o seu controle. Sabe-se também que a Administração Pública, nas três esferas governamentais, deve reger-se pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Por fim, tem-se como certo que a validade dos atos administrativos vincula-se aos motivos indicados pelo administrador como seu fundamento. Em conseqüência, se inexistentes ou falsos os motivos, o ato é nulo.

            No caso proposto para exame, estaria evidenciado que o ato desatenderia ao critério de impessoalidade, pois o que teria motivado a nomeação para o cargo dotado de prerrogativa de foro seria justamente a pessoa de "Tício", sua individualidade "especial", sua condição política e, digamos assim, o seu estado civil. É lógico que a Administração não pode atuar para prejudicar certos indivíduos nem para beneficiar determinadas pessoas. A motivação política espúria, centrada no atendimento ao interesse particular ou paroquial, violaria o interesse público e, por conseguinte, feriria mortalmente o ato administrativo. Este, gravemente viciado, não teria como subsistir, podendo ser invalidado na via judicial, sem prejuízo da propositura de ação civil de improbidade contra o seu autor e também contra o beneficiário, na forma do artigo 3º da Lei n. 8.429/92.

            Tratar-se-ia, então, de uma modalidade de ato de improbidade que atenta contra os princípios da Administração Pública, à luz do artigo 11, inciso I, da lei regente. Nela incide quem "pratica ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência".

            Ou seja, com a prática de ato da espécie analisada (nomear um amigo para dar-lhe certo sossego na Justiça), ferir-se-ia tanto o princípio da impessoalidade quanto os princípios da moralidade, da motivação e da supremacia do interesse público (ou da finalidade pública). Segundo Maria Sylvia Zanella de Pietro esse ato "pode não resultar em qualquer prejuízo para o patrimônio público, mas ainda assim constituir ato de improbidade, porque fere o patrimônio moral da instituição, que abrange as idéias de honestidade, boa-fé, lealdade, imparcialidade".

            A nomeação de "Tício" para o novo cargo faria com que o interesse privado do nomeado e de seu grupo partidário prevalecesse sobre o interesse público. O objetivo do ato não seria outro senão conceder-se a um correligionário político o "benefício" de responder a processo judicial perante órgãos de instância superior do Poder Judiciário, usualmente mais lentos — pelo reduzido número de membros e pelo acúmulo de competências — do que os juízos de primeiro grau. Se ao usar os poderes de que dispõe "a autoridade administrativa objetiva prejudicar um inimigo político, beneficiar um amigo, conseguir vantagens pessoais para si ou para terceiros, estará fazendo prevalecer o interesse individual sobre o interesse público e, em conseqüência, estará se desviando da finalidade pública prevista na lei". E com isto a prática de desvio de finalidade ou desvio de poder tornar-se-ia irrefutável, viciando o ato que veiculasse tal agir administrativo.

            Como o desvio de poder ofende o princípio da legalidade, o ato assim praticado estaria sujeito a controle pelo Poder Judiciário, mediante provocação de qualquer eleitor, em ação popular, ou do Ministério Público, na ação de improbidade. "O desvio de poder ocorre quando a autoridade usa do poder discricionário para atingir fim diferente daquele que a lei fixou. Quando isso ocorre, fica o Poder Judiciário autorizado a decretar a nulidade do ato, já que a Administração fez uso indevido da discricionariedade, ao desviar-se dos fins de interesse público definidos na lei". E não se diga que a discricionariedade impediria o exame judiciário do agir da Administração. Esta impossibilidade cinge-se tão-somente ao mérito administrativo (conveniência e oportunidade), mas não elimina o princípio da inafastabilidade do controle judicial, que atribui ao Judiciário a função de velar pelo respeito à legalidade, à finalidade, ao motivo e à motivação do ato administrativo e aos demais critérios reitores da Administração (CF, art. 37 e art. 11 da Lei n. 8.429/92).

            Seria inviável, ilegal e imoral nomear "Tício" somente para dar-lhe foro privilegiado. Cuidar-se-ia de ilegalidade quanto aos fins do ato e quanto à intenção de quem o pratica. A propósito, o artigo 2º, parágrafo único, alínea ‘e’, da Lei n. 4.717/65 (Lei de Ação Popular) define o desvio de poder como espécie de ato ilegal, que se caracteriza quando o agente pratica o ato "visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência". Como se vê, esta redação reproduz quase que identicamente a regra do artigo 11, inciso I, da Lei de Improbidade Administrativa. A indicação de "Tício" para o cargo superior não se teria dado (só) porque se cuidava de um técnico experimentado, desacreditado porém. Em verdade, teria ocorrido também (ou precipuamente) por causa de suas ligações pessoais ou domésticas com o poder político nomeante e em razão das conseqüências negativas de sua sujeição a processo e julgamento perante o foro comum.

            A conduta do agente público que nomeasse "Tício" malferiria ainda o princípio da moralidade, porquanto não poderia, como não pode, a Administração valer-se de meios lícitos (ou aparentemente lícitos) para alcançar objetivos ilegítimos. Basta que se recorde o velho aforisma latino: non omne quod licet honestum est. A moral institucional condiciona a prática dos atos pela Administração, estando intimamente ligada à noção de legalidade administrativa. O eventual conluio entre o administrador e o particular, para o benefício deste ou daquele, seria sem dúvida uma das mais graves formas de violação do princípio da probidade administrativa. E esta modalidade de ação também estaria sujeita a invalidação pelo Poder Judiciário, com fundamento no artigo 5º, LXXIII, da Constituição de 1988, em sede de ação popular, sem prejuízo da punição do agente por crime de responsabilidade (CF, art. 85, inciso V, c/c o artigo 4º, inciso V, e com o artigo 9º, n. 5, da Lei n. 1.079/50).

            Com efeito, comete crime de responsabilidade contra a probidade na administração o Presidente da República que "infringir, no provimento dos cargos públicos, as normas legais". Esta regra também se aplica aos governadores de Estado "quando por eles praticados os atos definidos como crime nesta Lei" (artigo 74 da Lei n. 1.079/50). A propósito, no Estado da Bahia, a Constituição de 1989, no artigo 106, inciso IV, também considera crime de responsabilidade (rectius: infração político-administrativa) os atos do Governador que atentem contra a Constituição Federal ou a Carta Estadual e, especialmente, contra "a probidade administrativa". Tais atos, diferentemente das infrações penais comuns (crimes e contravenções), ficam sujeitos a processo e julgamento pelo Poder Legislativo respectivo (Assembléias Legislativas e Congresso Nacional), com penas de perda do cargo e de inabilitação para a função pública por prazo determinado.

            Ainda que a nomeação de "Tício" para o cargo dotado de foro privilegiado não pudesse ser tida como absolutamente ilegal (porque, de resto, permitida em lei a nomeação de qualquer cidadão para cargo em comissão), poderia ser ao menos acoimada de imoral, por ofensa ao princípio da probidade dos atos da Administração. Todavia, considerando o que foi dito antes, a designação seria também ilegal, tendo em conta a falsa motivação e o desvio de poder ou de finalidade na gênese e na execução do ato administrativo.

            Portanto, não haveria como negar, numa situação concreta, a ocorrência concomitante de vícios relativos ao objeto do ato, ao seu motivo e à sua finalidade, o que nesta hipótese corresponderia a desvio de poder ou desvio de finalidade, pois os móveis da autoridade estariam em divergência com aqueles que a lei indica como substanciais. Como o referido desvio seria de difícil prova, José Cretella Júnior esclarece que a sua demonstração faz-se usualmente por meio de indícios, a saber: motivação insuficiente; motivação contraditória; irracionalidade do procedimento; contradição do ato com as resultantes dos atos; camuflagem dos fatos; inadequação entre os motivos e os efeitos; ou excesso de motivação.

            No caso sub analise, os sintomas da patologia administrativa seriam bem claros, principalmente tendo em consideração que o servidor nomeado teria acabado de renunciar a cargo semelhante, acuado por denúncias de corrupção. Obviamente, nem toda designação de pessoa suspeita de irregularidades importará desvio de poder. As circunstâncias específicas de cada caso, a motivação revelada ou oculta e a intenção do administrador é que podem indicar a prática de ato de improbidade e a violência contra os princípios constitucionais da Administração.

            Concluindo, poderíamos afirmar que a nomeação de "Tício" para cargo dotado de foro especial por prerrogativa de função, com o só fim de atender ao seu interesse particular ou politico, e não ao interesse público, poderia ser invalidada na via judicial. Isto por por meio de ação popular (Lei n. 4.771/65 e artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição), ou mediante ação civil de improbidade administrativa (Lei n. 8.429/92 e artigo 37, §4º, da Constituição), ao fundamento de que houve ofensa aos princípios da moralidade, da legalidade, da impessoalidade, da motivação, da finalidade pública e à teoria dos motivos determinantes, tudo sem prejuízo do uso da via político-administrativa especial, para punição da autoridade pública, também com fundamento na Lei n. 1.079/50, que cuida dos impropriamente chamados crimes de responsabilidade.

 


Referência  Biográfica

Vladimir Aras:   Promotor de Justiça na Bahia

vladimiraras@terra.com.br

A teoria da empresa: o novo Direito

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* Marlon Tomazette 

1. Histórico do direito comercial

            Intuitivamente poder-se-ia afirmar que o direito comercial é o direito do comércio, entendido como o conjunto de atos exercidos habitualmente no sentido da intermediação dentro da cadeia produtiva, com intuito lucrativo, vale dizer, o complexo de atos praticados habitualmente para levar produtos da sua fonte ao consumidor. Todavia, modernamente tal concepção não corresponde à realidade, pois o direito comercial abrange muito mais que simplesmente o comércio.

            O comércio remonta à Antiguidade, havendo notícia do exercício de tal atividade por vários povos, destacando-se os fenícios. Contudo, em tal período ainda não se podia cogitar da existência de um direito comercial, apesar de já existir alguma regulamentação.

            Na Antiguidade surgiram as primeiras normas regulamentando a atividade comercial (2.083 a. C), as quais remontam ao Código de Manu na Índia e ao Código de Hammurabi da Babilônia, mas sem configurar um sistema de normas que se pudesse chamar de direito comercial. Os gregos também possuíam algumas normas, sem, contudo corporificar um sistema orgânico. No direito romano também havia várias normas disciplinando o comércio (que se encontravam dentro do chamado ius civile, sem autonomia) que, todavia, em virtude da base rural da economia romana, também não corporificaram algo que pudesse ser chamado de direito comercial (1).

            O direito comercial, enquanto sistema orgânico de normas, só surgiu na idade média diante de uma necessidade de regulamentar as relações entre os novos personagens que se apresentaram ao mundo, os comerciantes. A atividade mercantil ganhou impulso em tal período, mostrando-se insuficiente a regulamentação do direito romano.

            A princípio, começa a se desenvolver um direito comercial, essencialmente baseado em costumes, com a formação das corporações de mercadores (Gênova, Florença, Veneza), surgidas em virtude das condições avessas ao desenvolvimento do comércio. Era preciso que os comerciantes se unissem para ter "alguma força" (o poder econômico e militar de tais corporações foi tão grande que foi capaz de operar a transição do regime feudal para o regime das monarquias absolutas). "O direito comercial surgiu, conforme se vê, não como obra legislativa nem criação de jurisconsultos, porém como trabalho dos próprios comerciantes, que o construíram com os seus usos e com as leis que, reunidos em classe, elaboraram" (2).

            Nessa fase, os comerciantes estavam sujeitos a uma jurisdição especial (cônsul), distinta da jurisdição comum, o direito comercial só se aplicava aos comerciantes. Havia o chamado critério corporativo (sistema subjetivo), pelo qual se o sujeito fosse membro de determinada corporação de ofício o direito a ser aplicado seria o da corporação. Posteriormente o direito seria aplicado pelo próprio Estado com a ascensão da burguesia ao poder, mantendo-se a disciplina autônoma. Desse modo, pode-se afirmar que numa primeira fase o direito comercial era o direito dos comerciantes.

            Com o passar do tempo os comerciantes passaram a praticar atos acessórios, que surgiram ligados a atividade comercial, mas logo se tornaram autônomos (títulos cambiários), sendo utilizados inclusive por quem não era comerciante. Já não era suficiente a concepção de direito comercial como direito dos comerciantes, era necessário estender seu âmbito de aplicação para disciplinar relação que não envolviam comerciantes. Desenvolve-se a partir desse momento o sistema objetivista, o qual desloca o centro do direito comercial para os chamados atos de comércio. Tal sistema foi adotado pelo de Código Comercial napoleônico, o qual influenciou diretamente a elaboração do nosso Código Comercial de 1850, posteriormente complementado pelo Regulamento 737 de 1850.

            Modernamente surge uma nova concepção que qualifica o direito comercial como o direito das empresas, orientação maciçamente adotada na doutrina pátria (3), apesar de alguma ainda existir alguma resistência (4). Nesta fase histórica, o direito comercial reencontra sua justificação não na tutela do comerciante, mas na tutela do crédito e da circulação de bens ou serviços (5).

            Além da aceitação doutrinária, tal concepção influenciou os trabalhos de atualização do direito comercial positivo brasileiro, sobretudo na elaboração do novo Código Civil, que unifica a disciplina das matérias mercantis e civis, similarmente ao ocorrido na Itália no Código de 1942. Por isso, é salutar conhecermos os delineamentos da chamada teoria da empresa, que mesmo antes de ser acolhida pelo direito positivo já ajudou a solucionar questões extremamente complexas do direito comercial (6).

2. Conceito econômico de empresa

            A noção inicial de empresa advém da economia, ligada à idéia central da organização dos fatores da produção (capital, trabalho, natureza), para a realização de uma atividade econômica.

            Fábio Nusdeo afirma que a "empresa é a unidade produtora cuja tarefa é combinar fatores de produção com o fim de oferecer ao mercado bens ou serviços, não importa qual o estágio da produção". (7) Joaquín Garrigues não entende de modo diverso, asseverando que "economicamente a empresa é a organização dos fatores da produção (capital, trabalho) com o fim de obter ganhos ilimitados". (8)

            A partir de tal acepção econômica é que se desenvolve o conceito jurídico de empresa, o qual não nos é dado explicitamente pelo direito positivo, nem mesmo nos países onde a teoria da empresa foi positivada (9) inicialmente.

            Por tratar-se de um conceito originalmente econômico, alguns autores pretendiam negar importância a tal conceito, outros pretendiam criar um conceito jurídico completamente diverso. Todavia, os resultados de tais tentativas se mostraram insatisfatórios, tendo prevalecido a idéia de que o conceito jurídico de empresa se assenta nesse conceito econômico, pois o fenômeno é o mesmo econômico, sociológico, religioso ou político, apenas formulado de acordo com a visão e a linguagem da ciência jurídica (10).

3. Conceito jurídico de empresa: A teoria dos perfis de Alberto Asquini

            Na Itália, o Código civil de 1942 adota a teoria da empresa, sem, contudo ter formulado um conceito jurídico do que seja empresa, o que deu margem a inúmeros esforços no sentido da formulação de um conceito jurídico. Nessa seara, destaca-se por sua originalidade e por aspectos didáticos a teoria dos perfis da empresa elaborada por Alberto Asquini.

            Defrontando-se como o novo Código Civil, Asquini defrontou-se com a inexistência de um conceito de empresa, e analisando o diploma legal chegou a conclusão que haveria uma diversidade de perfis no conceito, para ele " o conceito de empresa é o conceito de um fenômeno jurídico poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que ali concorrem" (11)

            Tal concepção já se encontra hoje em dia superada, mas teve o mérito de trazer à tona vários conceitos intimamente relacionados ao conceito de empresa, os quais traduziriam o fenômeno da empresarialidade, na feliz expressão de Waldirio Bulgarelli (12).

            O primeiro perfil da empresa identificado por Asquini foi o perfil subjetivo pelo qual a empresa se identificaria com o empresário (13), cujo conceito é dado pelo artigo 2.084 do Código Civil Italiano como sendo "quem exercita profissionalmente atividade econômica organizada com o fim da produção e da troca de bens ou serviços". Neste aspecto, a empresa seria uma pessoa.

            Asquini também identifica na empresa também um perfil funcional, identificando-a com a atividade empresarial, a empresa seria aquela "particular força em movimento que é a atividade empresarial dirigida a um determinado escopo produtivo" (14). Neste particular, a empresa representaria um conjunto de atos tendentes a organizar os fatores da produção para a distribuição ou produção de certos bens ou serviços.

            Haveria ainda o perfil objetivo ou patrimonial que identificaria a empresa com o conjunto de bens destinado ao exercício da atividade empresarial, distinto do patrimônio remanescente nas mãos da empresa, vale dizer, a empresa seria um patrimônio afetado a uma finalidade específica (15).

            Por derradeiro, haveria o perfil corporativo, pelo qual a empresa seria a instituição que reúne o empresário e seus colaboradores, seria "aquela especial organização de pessoas que é formada pelo empresário e por seus prestadores de serviço, seus colaboradores (…) um núcleo social organizado em função de um fim econômico comum" (16). Este perfil na verdade não encontra fundamento em dados, mas apenas em ideologias populistas, demonstrando a influência da concepção fascista na elaboração do Código italiano (17).

            Esse modo de entender a empresa já está superado, porquanto não representa o estudo teórico da empresa em si, mas apenas demonstra a imprecisão terminológica do Código italiano, que confunde a noção de empresa com outras noções. Todavia, com exceção do perfil corporativo que reflete a influência de uma ideologia política, os demais perfis demonstram três realidades intimamente ligadas, e muito importantes na teoria da empresa, a saber, a empresa, o empresário e o estabelecimento.

4. O que é a empresa?

            Superada qualquer imprecisão terminológica do ordenamento jurídico, há que se esclarecer de imediato o que vem a ser juridicamente a empresa, vale dizer, a empresa é a "atividade econômica organizada de produção ou circulação de bens ou serviços" (18), ou seja, equivale ao perfil funcional da teoria de Alberto Asquini.

            Trata-se de atividade, isto é, do conjunto de atos destinados a uma finalidade comum (19), que organiza os fatores da produção, para produzir ou fazer circular bens ou serviços. Não basta um ato isolado, é necessária uma seqüência de atos dirigidos a uma mesma finalidade, para configurar a empresa.

            E não se trata de qualquer seqüência de atos. A economicidade da atividade exige que a mesma seja capaz criar novas utilidades, novas riquezas (20), afastando-se as atividades de mero gozo. Nessa criação de novas riquezas, pode-se transformar matéria prima (indústria), como também pode haver a interposição na circulação de bens (comércio em sentido estrito), aumentando o valor dos mesmos (21).

            Ademais, tal atividade deve ser dirigida ao mercado, isto é, deve ser destinada à satisfação de necessidades alheias, sob pena de não configurar empresa. Assim, não é empresa a atividade daquele que cultiva ou fabrica para o próprio consumo, vale dizer, "o titular da atividade deve ser diverso do destinatário último do produto" (22).

            Também, é traço característico da empresa a organização dos fatores da produção, pois o fim produtivo da empresa pressupõe atos coordenados e programados para se atingir tal fim. Tal organização pode assumir as formas mais variadas de acordo com as necessidades da atividade, abrangendo "seja a atividade que se exercita organizando o trabalho alheio, seja aquela que se exercita organizando um complexo de bens ou mais genericamente de capitais, ou como para o mais advém, aquela que se atua coordenando uns e outros" (23).

            Diante da necessidade dessa organização, deve ser ressaltado ainda que as atividades relativas a profissões intelectuais, científicas, artísticas e literárias não são exercidas por empresários, a menos que constituam elemento de empresa (art. 966, parágrafo único do novo Código Civil). Tal constatação se deve ao fato de que em tais atividades prevalece a natureza individual e intelectual sobre a organização, a qual é reduzida a um nível inferior (24). Portanto, é a relevância dessa organização que diferencia a atividade empresarial de outras atividades econômicas.

            A empresa deve abranger a produção ou circulação de bens ou serviços para o mercado. Na produção temos a transformação de matéria prima, na circulação temos a intermediação na negociação de bens. No que tange aos serviços devemos abarcar toda "atividade em favor de terceiros apta a satisfazer uma necessidade qualquer, desde que não consistente na simples troca de bens" (25), eles não podem ser objeto de detenção, mas de fruição.

            4.1 – Natureza jurídica da empresa

            A empresa entendida como a atividade econômica organizada, não se confunde nem com o sujeito exercente da atividade, nem com o complexo de bens por meio dos quais se exerce a atividade, que representam outras realidades distintas. Atento à distinção entre essas três realidades, Waldirio Bulgarelli nos fornece um conceito analítico descritivo de empresa, nos seguintes termos: "Atividade econômica organizada de produção e circulação de bens e serviços para o mercado, exercida pelo empresário, em caráter profissional, através de um complexo de bens" (26). Tal conceito tem o grande mérito de unir três idéias essenciais sem confundi-las, quais sejam, a empresa, o empresário e o estabelecimento.

            A empresa não possui personalidade jurídica, e nem pode possuí-la e conseqüentemente não pode ser entendida como sujeito de direito, pois ela é a atividade econômica que se contrapõe ao titular dela, isto é, ao exercente daquela atividade (27). O titular da empresa é o que denominaremos de empresário.

            Afastando-se corretamente da noção de sujeito de direito, mas não chegando à melhor interpretação, Rubens Requião, Marcelo Bertoldi e José Edwaldo Tavares Borba qualificam a empresa como objeto de direito (28). Ora, não se pode conceber uma atividade como objeto de direito, não se pode vislumbrar a empresa como matéria dos direitos subjetivos, principalmente dos direitos reais, vale dizer, a atividade de per si não pode ser transferida (29). Como alguém poderia ter uma atividade em seu patrimônio? Como poderia aliená-la?

            Assim, a empresa deve ser enquadrada como um terceiro gênero, uma nova categoria jurídica, pois não se trata nem de sujeito nem de objeto de direito (30), enquadrando-se perfeitamente na noção de fato jurídico em sentido amplo. Tal noção se mostra mais adequada que a de ato jurídico, pois falamos da atividade, do conjunto de atos, e não de cada ato isolado, que poderia ser enquadrado na condição de ato jurídico.

5. O empresário

            A empresa é uma atividade, e como tal deve ter um sujeito que a exerça, o titular da atividade que é o empresário. Este é quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços (conceito do novo Código Civil, artigo 966 – no mesmo sentido do artigo 2082 – Código civil italiano). O empresário é o sujeito de direito, ele possui personalidade, pode ele tanto ser uma pessoa física na condição de empresário individual quanto uma pessoa jurídica na condição de sociedade empresária, de modo que as sociedades comerciais não são empresas, como afirmado na linguagem corrente, mas empresários.

            A configuração do sujeito exercente da empresa pressupõe uma série de requisitos cumulativos. Asquini além da condição de sujeito de direito destaca a atividade econômica organizada, a finalidade de produção para o comércio de bens e serviços e a profissionalidade (31). Giampaolo dalle Vedove, Francesco Ferrara Junior e Francesco Galgano não destoam da orientação de Asquini destacando a organização, a economicidade da atividade, e a profissionalidade (32).

            A organização e a economicidade já foram esclarecidas quando da formulação do conceito da empresa. Desse modo, resta destacar a profissionalidade, pois só é empresário quem exerce a empresa de modo profissional. Tal expressão não deve ser entendida com os contornos que assume na linguagem corrente, porquanto não se refere a uma condição pessoal, mas a estabilidade e habitualidade da atividade exercida (33). Não se trata de uma qualidade do sujeito exercente, mas uma qualidade do modo como se exerce a atividade, ou seja, a profissionalidade não depende da intenção do empresário, bastando que no mundo exterior a atividade se apresente objetivamente com um caráter estável (34). Não se exige o caráter continuado, mas, apenas uma habitualidade, tanto que atividades de temporada também podem caracterizar uma empresa, mesmo em face das interrupções impostas pela natureza da atividade (35).

            Quem exerce profissionalmente uma empresa, é o empresário.

6. Estabelecimento

            A atividade (empresa) é exercida por um sujeito (o empresário), que geralmente viabiliza o exercício da atividade por meio de um complexo de bens, que denominaremos estabelecimento ou fundo de comércio (36). Assim, podemos conceituar estabelecimento como "o conjunto de bens que o empresário reúne para exploração de sua atividade econômica" (37). Este conceito guarda uma certa correspondência com o conceito do artigo 2555 do Código civil italiano, bem como com o conceito do artigo 1.142 do Novo Código Civil.

            Trata-se de um conjunto de bens ligados pela destinação comum de constituir o instrumento da atividade empresarial. Tal liame entre os bens que compõem o estabelecimento permite-nos trata-lo de forma unitária, distinguindo-o dos bens singulares que o compõem (38), classificando-o como uma coisa coletiva ou universalidade de fato. Tanto isto é verdade que o novo Código Civil permite expressamente que o estabelecimento seja como um todo objeto unitário de direitos e negócios jurídicos (art. 1.142), sem contudo, proibir a negociação isolada dos bens integrantes do estabelecimento (39).

            As universalidades de fato são "o conjunto de coisas singulares, simples ou compostas, agrupadas pela vontade da pessoa, tendo destinação comum" (40), identificando exatamente a noção de estabelecimento, pois se trata de conjunto de bens, ligados pela vontade do empresário a uma finalidade comum, o exercício da empresa.

            A natureza jurídica do estabelecimento não se confunde com a natureza da empresa, pois não se trata da atividade empresarial, nem com a natureza do empresário, pois não se trata de ente personalizado. O estabelecimento não é pessoa, nem atividade é empresarial, é uma universalidade de fato que integra o patrimônio do empresário (41).

            Como restou patenteado o estabelecimento é composto de um conjunto de bens, abrangendo tanto bens materiais quanto bens imateriais. Na primeira categoria encontramos mercadorias do estoque, mobiliário, equipamentos e maquinaria. Já na segunda categoria encontramos patentes de invenção, marca registrada, nome empresarial, título do estabelecimento, e o ponto comercial. Todos estes elementos formam o estabelecimento não havendo que se confundir o mesmo com o local do exercício da atividade, o estabelecimento é um conceito mais amplo que abrange todos esses bens, unidos pelo empresário para o exercício da empresa.

            Tal conjunto de bens, enquanto articulado para o exercício da atividade da empresa possui um sobrevalor em relação à soma dos valores individuais dos bens que o compõe, relacionado a uma expectativa de lucros futuros, a sua capacidade de trazer proveitos. Essa mais valia do conjunto é que se denomina aviamento (42).

            O aviamento pode ser subjetivo quando ligado às qualidades pessoais do empresário ou objetivo quando ligado aos bens componentes do estabelecimento na sua organização (43). Em qualquer acepção o aviamento deve ser entendido como "o sobrevalor em relação a simples soma dos valores dos bens singulares que integram o estabelecimento e resumem a capacidade do estabelecimento, por meio dos nexos organizativos entre os seus componentes singulares, de oferecer prestações de empresa e de atrair clientela" (44). Em outras palavras, o aviamento é a aptidão da empresa para produzir lucros, decorrente da qualidade e da melhor perfeição de sua organização (45).

            O aviamento não pode ser objeto de tratamento separado, não podendo ser considerado objeto de direito (46), porquanto não há como se conceber a transferência apenas do aviamento. Assim, não se pode conceber o aviamento como um bem no sentido jurídico, e conseqüentemente não se pode incluí-lo no estabelecimento, vale reforçar, o aviamento não integra o estabelecimento.

            Na maioria da doutrina, o aviamento não é considerado um bem de propriedade do empresário, mas apenas o valor econômico do conjunto, é antes uma qualidade que um elemento (47). "Não é um elemento isolado, mas um modo de ser resultante do estabelecimento enquanto organizado, que não tem existência independente e separada do estabelecimento". (48)

            Esta qualidade do estabelecimento é medida essencialmente pela clientela do empresário, vale dizer, quanto maior for o número de clientes maior é o aviamento. A clientela é "o conjunto de pessoas que, de fato, mantêm com a casa de comercio relações contínuas para aquisição de bens ou serviços" (49). Tal conjunto de pessoas como se pode intuir não é um bem, e conseqüentemente não pode ser objeto de um direito do empresário, não havendo que se falar em um direito à clientela (50).

            A clientela é uma situação de fato, fruto da melhor organização do estabelecimento (51), do melhor exercício da atividade. Diante disso, não pode restar dúvida de que também não se pode incluir a clientela como um elemento do estabelecimento.

            Não obstante seja incorreto falar-se em direito à clientela, é certo que há uma proteção jurídica à mesma, consistente nas ações contra a concorrência desleal. Todavia, tal proteção não torna a clientela objeto de direito do empresário, pois o que se protege na verdade são os elementos patrimoniais da empresa, aos quais está ligada a clientela, esta recebe uma proteção apenas indireta.

            Por derradeiro, há que se ressaltar que a proibição da alienação do nome empresarial sem a alienação do estabelecimento (art. 1164 do Novo Código Civil) não significa que o nome deixa de integrar o estabelecimento. Tal regra visa a compatibilizar os interesses do empresário numa eventual alienação do nome empresarial que pode assumir um valor econômico, com o interesse dos consumidores em não ser enganados a respeito da proveniência e qualidade de bens ou serviços negociados sob determinado nome empresarial (52).

7. Alienação do estabelecimento

            Com o advento do novo Código Civil, o estabelecimento passa a ser disciplinado pelo direito positivo brasileiro nos artigos 1142 a 1149, que trazem regras atinentes principalmente à alienação do estabelecimento.

            Tratando-se de uma universalidade de fato, é certo que o estabelecimento pode ser alienado como um todo, como uma coisa coletiva, é o que recebe na doutrina a denominação de trespasse (53). Nessa negociação, transfere-se o conjunto de bens e seus nexos organizativos, e, por conseguinte o aviamento. Ressalte-se desde já que se cogita da venda em conjunto dos bens necessários para o exercício da atividade e não das quotas ou ações de uma sociedade, que transferirão em última análise a direção da sociedade, e, por conseguinte da atividade, não alterando o titular do estabelecimento, que continuará a ser a mesma pessoa jurídica.

            Tal alienação poderá influenciar diretamente interesses de terceiros, sobretudo dos credores e devedores do empresário alienante. Por isso, o novo Código Civil exige para a validade perante terceiros, que o contrato de compra e venda do fundo de comércio seja averbado a margem do registro do empresário no órgão competente. A mesma exigência é formulada para os casos de arrendamento ou instituição de usufruto para o fundo de comércio (Art. 1144 do Novo Código Civil).

            Ademais, exige-se a publicação no órgão oficial da notícia de tal negociação, o que funcionará como uma espécie de uma primeira notificação aos credores para que tenham conhecimento da negociação, resguardem seus direitos, e saibam quem é o titular do fundo de comércio, a partir de então.

            Além dessa publicidade, o novo Código Civil (art. 1145), reforçando a proteção dos interesses dos credores e reiterando a orientação constante do artigo 52, VIII do Decreto-lei 7.661/45, inquina de ineficácia a alienação do estabelecimento sem o pagamento de todos os credores, ou sem o consentimento expresso ou tácito dos mesmos em 30 dias contados de sua notificação. Será, todavia, válida a alienação se o empresário mantiver bens suficientes para o pagamento dos credores. Trata-se de uma inovação salutar que permite de forma ágil o combate a fraudes no trespasse, na medida em que permite o reconhecimento da ineficácia da alienação, independentemente do processo de falência.

            Feito o trespasse, entendia-se que, antes do advento do novo Código Civil, a princípio, o passivo não fazia parte do estabelecimento. Se só o estabelecimento era negociado as dívidas não eram transferidas, salvo disposição em contrário das partes, obtida a anuência dos credores, ou da lei (art. 133 do CTN).

            Os débitos não são bens que integram o estabelecimento, são ônus que gravam o patrimônio do empresário (54). Assim, antes do novo Código Civil era necessária a inserção de uma cláusula no contrato do trespasse para que houvesse a sucessão. Com o advento do novo diploma normativo (art. 1146), o adquirente do estabelecimento sucede o alienante nas obrigações regularmente contabilizadas, como ocorre no direito italiano (55). Todavia, há que se ressaltar que o alienante continua solidariamente obrigado por um ano a contar da publicação do trespasse no caso de obrigações vencidas, ou a contar do vencimento no caso das dívidas vincendas.

            De outro lado, os créditos são transferidos ao adquirente, pois são integrantes do estabelecimento (56), produzindo efeitos perante os devedores a partir da publicação do trespasse no órgão oficial (Art. 1149 do Novo Código Civil). Todavia, nem sempre os devedores tomarão conhecimento efetivo do trespasse, podendo, eventualmente efetuar o pagamento ao antigo proprietário do fundo de comércio. Nesse caso, protege-se a boa fé, exonerando aquele que pagou de boa fé ao alienante, restando ao adquirente um acerto com o mesmo.

            Conquanto a princípio não integrem o estabelecimento, pois não são bens (57), o novo Código Civil (art. 1.148) estabelece que, salvo disposição em contrário, o adquirente se sub-roga nos contratos estipulados para exploração do estabelecimento, se não forem personalíssimos. Trata-se de medida extremamente justa e lógica, pois se protege a manutenção da unidade econômica do estabelecimento, sem, contudo afetar as relações personalíssimas, nas quais não haverá sucessão.

            Para Francesco Galgano e Francesco Ferrara Junior, nos contratos de caráter pessoal, protege-se o adquirente, pois o caráter pessoal aqui referido, diz respeito às qualidades do terceiro contratante (58), que não poderá ser imposto ao adquirente. Giampaolo Dalle Vedove sustenta que neste particular não se pode entender que a regra seja em benefício do adquirente, pois o mesmo poderia estipular pela não transferência do contrato ao firmar a alienação do estabelecimento, destarte, atuaria esse caráter pessoal em favor do terceiro contratante, que teria levado em conta as características pessoais do alienante (59).

            Apesar de concordarmos com a possibilidade da exclusão de imediato dos contratos que não interessarem ao adquirente, perfilhamos o entendimento de Francesco Galgano e Francesco Ferrara Junior, no sentido de que tal caráter pessoal deve ser relativos às qualidades do terceiro contratante, pois, caso contrário não haveria maior sentido na regra do artigo 1.148 do Novo Código.

            A regra supramencionada excepciona a regra geral dos contratos, pois a sub-rogação opera-se independentemente do consentimento do outro contratante. Todavia, este não será prejudicado, porquanto se admite a rescisão do contrato por justa causa nos 90 dias seguintes à publicação do trespasse, desde que haja justa causa para tal rescisão. Esta justa causa diz respeito às qualidades pessoais do adquirente do fundo de comércio, pois se as condições pessoais do alienante foram determinantes na formulação do negócio, não se pode exigir que o contratante prossiga com outra parte na avença (60), e também a questões de formulação objetiva como, por exemplo, a existência de uma ação judicial do terceiro contratante em desfavor do adquirente (61). Em tais caos, há um inadimplemento por parte do alienante do estabelecimento, que conseqüentemente deve ser responsabilizado.

            Regularizado o trespasse, discutia-se, no regime anterior, a validade da chamada cláusula de não restabelecimento, vale dizer, da imposição do alienante não fazer concorrência ao adquirente, diante do texto constitucional que estabelece a liberdade para o exercício da profissão. Com o novo Código Civil (Art. 1147), adota-se a orientação do direito italiano, estatuindo legalmente a proibição de concorrência pelo prazo de 5 anos, salvo disposição expressa em contrário.

            Trata-se de uma proteção do aviamento (62), que não viola qualquer liberdade constitucional, na medida em que limitada no tempo tal proibição. Caso se tratasse de uma proibição por prazo indeterminado, não haveria dúvida da inconstitucionalidade da mesma. Todavia, com a limitação de 5 anos, se restringe uma liberdade para tutelar outra, sem destruir nenhuma das duas.

            Ora, se ao alienar o fundo de comércio é recebido um valor maior decorrente do aviamento, que na maioria dos casos está ligado a condições pessoais do empresário, nada mais justo e lógico do que assegurar ao adquirente o gozo desse aviamento, proibindo o alienante de lhe fazer concorrência, lhe roubar a clientela, e conseqüentemente se enriquecer indevidamente (63).

8- Conclusão

            A teoria da empresa representa uma grande evolução nos estudos do direito comercial, na medida em que altera a figura central das preocupações, transportando-a para a atividade empresarial.

            À guisa de conclusão, devemos ter em mente que a teoria da empresa envolve três figuras que podem ser distinguidas pelos verbos aplicáveis a cada qual: empresário se é, empresa se exercita, e estabelecimento se tem.

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            VEDOVE, Giampaolo dalle. Nozioni di diritto d’impresa. Padova: CEDAM, 2000;

Notas

            1..CARVALHO DE MENDONÇA, J. X. Tratado de direito comercial brasileiro. Atualizado por Ricardo Negrão. Campinas: Bookseller, 2000, v. 1, p. 63

            2..CARVALHO DE MENDONÇA, J. X. Tratado de direito comercial brasileiro, v. 1, p. 69

            3..REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 1, p. 15; FRANCO, Vera Helena de Mello. Lições de direito comercial. 2. ed. São Paulo: Maltese, 1995, p. 51; COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, v. 1, p. 27; BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 14. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 17.

            4..MARTINS, Fran. Curso de direito comercial. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 29.

            5..AULETTA, Giuseppe. L’impresa dal Códice di Commercio del 1882 al Codice Civile del 1942. In: 1882-1982 Cento Anni dal Codice di Commercio. Milano: Giuffrè, 1984, p. 81.

            6..BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998, p. 27

            7..NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. São Paulo: RT, 1997, p. 285

            8..GARRIGUES, Joaquín. Curso de derecho mercantil. 7. ed. Bogotá: Temis, 1987, Tomo I, p. 162, tradução livre de "Económicamente, la empresa es organización de los fatores de la producción (capital, trabajo) con el fin de obtener una ganancia ilimitada"

            9..ASQUINI, Alberto. Profili dell’impresa. Rivista di diritto commerciale, Vol. XLI – Parte I, p. 1-20, 1943, p. 1.

            10..BULGARELLI, Waldirio. Tratado de direito empresarial. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1997, p. 127.

            11..ASQUINI, Alberto, op. Cit., p. 1, tradução livre de " Il concetto di impresa é il concetto di um fenomeno econômico poliédrico, il quale ha sotto l’aspetto giuridico non uno, ma diversi profili in relazione ai diversi elementi che vi concorrono".

            12..BULGARELLI, Waldirio, Tratado de direito empresarial, p. 99.

            13..ASQUINI, Alberto, op. Cit., p. 6.

            14..Idem, p. 9, tradução livre de "quella particolare forza in movimento che é l’attivitá imprenditrice diretta a un determinado scopo produtivo".

            15..Idem, p. 12.

            16..Idem, p. 16-17, tradução literal de "quella speciale organizzazione di persone che é formata dall’imprenditore e dai suoi prestatori d’opera, suoi collaboratori… un nucleo sociale organizzato, in funzione di um fine economico comune"

            17..COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de direito comercial, vol. 1, p. 19.

            18..Idem, p. 19.

            19..ASCARELLI, Tullio. Corso di diritto commerciale: introduzione e teoria dell’impresa. 3ª ed. Milano: Giuffrè, 1962, p. 146.

            20..VEDOVE, Giampaolo dalle. Nozioni di diritto d’impresa. Padova: CEDAM, 2000, p. 14; FERRARA JÚNIOR, Francesco; CORSI, Francesco. Gli imprenditori e le societá.11. ed. Milano: Giuffrè, 1999, p. 33.

            21..ASCARELLI, Tullio. Corso di diritto commerciale, p. 162.

            22..ASCARELLI, Tullio. Corso di diritto commerciale, p. 163, tradução livre de "Il titolare dell’attivitá deve essere diverso dal destinatario ultimo del prodotto".

            23..VEDOVE, Giampaolo dalle. Nozioni di diritto d’impresa, p. 39, tradução livre de "sia l’attivitá Che si esercita organizzando il lavoro altrui, sia quella Che si esercita organizzando um complesso di beni o piú genericamente dei capitali, o, come per lo piú avviene, quella Che si attua coordinando l’uno e gli altri".

            24..DE CUPIS, Adriano. Instituzioni di diritto privato. Milano: Giuffrè, 1978, v. 3, p. 134.

            25..VEDOVE, Giampaolo dalle, op. Cit., p. 13-14.

            26..Tratado de direito empresarial, p. 100.

            27..MESSINEO, Francesco. Manuale di diritto civile e commerciale. Milano: Giuffrè, 1957, v. 1, p. 337; SANTORO PASSARELLI, Francesco. Saggi di diritto civile. Napóli: Jovene, 1961, v. 2, p. 979; NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial. Campinas: Bookseller, 1999; GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Atualização e notas de Humberto Theodoro Junior. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 205.

            28..REQUIÃO, Rubens, Curso de direito comercial, vol. 1, p. 60; BERTOLDI, Marcelo M., Curso avançado de direito comercial. São Paulo: RT, 2001, p. 56; BORBA, José Edwaldo Tavares, Direito societário, p. 27.

            29..ASCARELLI, Tullio. Corso di diritto commerciale: introduzione e teoria dell’impresa, p. 156.

            30..BULGARELLI, Waldirio, op. Cit, p. 132; MESSINEO, Francesco, op. Cit., p.336, NEGRÃO, Ricardo, op. Cit., p. 76

            31..ASQUINI, Alberto, op. Cit., p. 7-9.

            32..VEDOVE, Giampaolo dalle, op. Cit, p. 16-18; FERRARA JUNIOR, Francesco e CORSI, Francesco, Gli imprenditori e le società, p. 32-40; GALGANO, Francesco. Diritto civile e commerciale. 3. ed. Padova: CEDAM, 1999, v. 3, tomo 1, p. 17-30.

            33..GALGANO, Francesco, op. Cit., p. 17.

            34..FERRARA JUNIOR, Francesco e CORSI, Francesco, op. Cit., p. 41.

            35..JAEGER, Pier Giusto; DENOZZA, Francesco. Appunti di diritto commerciale. 5. ed. Milano: Giuffrè, 2000, p. 17.

            36..MARTINS, Fran, Curso de direito comercial, p. 425; REQUIÃO, Rubens, Curso de direito comercial, Vol. 1, p. 244.

            37..COELHO, Fabio Ulhoa, Curso de direito comercial, vol. 1, p. 91.

38..VEDOVE, Giampolo dalle, op. Cit., p. 163

            39..ASCARELLI, Tullio. Corso di diritto commerciale, p. 319.

            40..GOMES, Orlando, op. Cit., p. 227.

            41..FRANCO, Vera Helena de Mello, op. Cit., p. 83; BULGARELLI, Waldirio, Tratado de direito empresarial, p. 240, REQUIÃO, Rubens, op. Cit., p. 245; MARTINS, Fran, op. Cit., p. 428. Não admitindo a condição de universalidade de fato JAEGER, Pier Giusto; DENOZZA, Francesco, op. Cit., p. 82.

            42…REQUIÃO, Rubens, op. Cit., p. 306.

            43…FERRARA JUNIOR, Francesco e CORSI, Francesco, op. Cit., p. 169; GALGANO, Francesco, op. Cit., p. 99.

            44…VEDOVE, Giampaolo dalle, op. Cit., p. 167, tradução livre de "il plusvalore rispetto alla semplice somma Del valore dei singoli beni aziendali e riassume la capacitá dell’azienda, attraverso i nessi organizzativi tra le sue singole componenti, di offrire prestazioni di impresa e di attrarre clientela"

            45…REQUIÃO, Rubens, op. Cit., p. 307.

            46..GARRIGUES, Joaquín, Derecho Mercantil, Vol. I, p. 189; ASCARELLI, Tullio, Corso di diritto commerciale, p. 339.

            47..REQUIÃO, Rubens, op. Cit., p. 309-310; NEGRÃO, Ricardo, op. Cit., p. 127, GARRIGUES, Joaquín, op. Cit., p. 190; FERRARA JUNIOR, Francesco e CORSI, Francesco, op. Cit., p. 169; COELHO, Fábio Ulhoa, op. Cit., p. 96; GALGANO, Francesco, op. Cit., p. 100.

            48..FRANCO, Vera Helena de Mello, op. Cit., p. 78.

            49..GARRIGUES, Joaquín, op. Cit., p. 188, tradução livre de "el conjunto de personas que, de hecho, mantienem con la casa de comercio relaciones continuas por demanda de bienes o de servicios".

            50…GARRIGUES, Joaquín, op. Cit., p. 188; COELHO, Fábio Ulhoa, op. Cit., p. 96; REQUIÃO, Rubens, op. Cit., p. 310.

            51…ASCARELLI, Tullio. Corso di diritto commerciale, p. 343.

            52…GALGANO, Francesco, Diritto Civile e Commerciale, v. 3, Tomo I, p. 182.

            53…COELHO, Fabio Ulhoa, op. Cit., p. 111; BERTOLDI, Marcelo M. Curso Avançado de direito comercial. São Paulo: RT, v. 1, p. 119.

            54…COELHO, Fabio Ulhoa, op. Cit., p. 96-97; REQUIÃO, Rubens, op. Cit., p. 259; FRANCO, Vera Helena de Mello, op. Cit., p. 77.

            55..FERRARA JÚNIOR, Francesco; e CORSI, Francesco, Gli imprenditori e le societá, p. 172

            56..REQUIÃO, Rubens, op. Cit., p. 258-259.

            57..REQUIÃO, Rubens, op. Cit., p. 258-259

            58..GALGANO, Francesco, op. Cit., p. 97; FERRARA JUNIOR, Francesco e CORSI, Francesco, Gli imprenditori e le societá, p. 170-171.

            59…VEDOVE, Giampaolo Dalle, Nozioni di diritto d’impresa, p. 183-184

            60..GALGANO, Francesco, op. Cit., p. 97

            61..FERRARA JUNIOR, Francesco e CORSI, Francesco, Gli imprenditori e le societá, p. 171.

            62..GALGANO, Francesco, op. Cit., p. 101.

    63..VEDOVE, Giampaolo dalle, Nozioni di diritto d’impresa, p. 167.

 


Referência  Biográfica

Marlon Tomazette  –  Procurador do Distrito Federal; Advogado em Brasília (DF); Professor de Direito do UniCEUB e da Escola Superior de Advocacia do Distrito Federal.

Preenchendo lacunas

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* Maria Berenice Dias

O advento da nova ordem constitucional veio a excluir do sistema jurídico toda a legislação infraconstitucional que não se coadunava com o novo perfil do Estado. A não-recepção de um imenso número de normas existentes fez surgir vácuos na estrutura legal. Como a plenitude do sistema estatal não convive com vazios, a colmatação das lacunas é atribuída ao Poder Judiciário, por determinação do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. Identificada a omissão da lei, mesmo assim não pode o juiz eximir-se do dever de julgar. A falta de lei não quer dizer inexistência do direito. Não cabe se escudar o juiz na ausência ou na não-vigência de norma legal como justificativa para afirmar a inexistência do direito a tutela e negar-se a dizer o direito, negar a jurisdição.

Ante determinada situação submetida a julgamento, o magistrado, ao esbarrar com dispositivos legais sem vigência, por afrontarem princípios constitucionais, há de reconhecer estar frente a um vazio legal. Como a ausência de lei não pode servir de justificativa para eximir-se de julgar, o jeito é manejar os instrumentos alcançados pela própria lei para colmatar as lacunas. A analogia, os princípios constitucionais e os costumes são as ferramentas a serem usadas na busca da solução que mais se amolda à justiça.

Revelar o direito para solucionar o caso concreto é, com certeza, a função mais significativa do Judiciário. No entanto, para a concreção do direito o juiz precisa ter os olhos voltados à realidade social. Mister deixem de fazer suas togas de escudos para não enxergar a realidade, pois os que buscam a Justiça merecem ser julgados, e não punidos.      

 


Referência  Biográfica

Maria  Berenice Dias  –  Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, onde é  Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetiva do Órgão Especial do TJ; Professora da Escola Superior da Magistratura e Vice-Presidente Nacional do IBDFam.