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Direito das Sucessões brasileiro: disposições gerais e sucessão legítima.

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*Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka –

Sumário: 1. Considerações de preâmbulo relativamente à sucessão em geral, sob a análise de alguns dispositivos do novo Código Civil: arts. 1784, 1786, 1788, 1789, 1845. 2. Destaque para dois pontos de irrealização da experiência jurídica à face da previsão contida na regra estampada na nova Legislação Civil Pátria, o Código Civil de 2002: 2.1. A sucessão do convivente ou companheiro – arts. 1790 e 1834, 2.2. A sucessão do cônjuge – arts. 1829, I, 1832 e 1834.

 

1. Considerações de preâmbulo relativamente à sucessão em geral, sob a análise de alguns dispositivos do novo Código Civil: arts. 1784, 1786, 1788, 1789, 1845.

           A sucessão que vem disciplinada no Livro V do Código Civil pressupõe, intrínseca e invariavelmente, a morte da pessoa natural. Quer se trate de morte real ou de morte presumida, por conseqüência normal e como decorrência do princípio da saisine, o patrimônio deixado pelo morto seguirá o destino que se estampa nas regras sucessórias do direito civil positivado.

          Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.

          A sucessão considera-se aberta no instante mesmo ou no instante presumido da morte de alguém, fazendo nascer o direito hereditário e operando a substituição do falecido por seus sucessores a título universal nas relações jurídicas em que aquele figurava. Não se confundem, todavia. A morte é antecedente lógico, é pressuposto e causa. A transmissão é conseqüente, é efeito da morte. Por força de ficção legal, coincidem em termos cronológicos, (1) presumindo a lei que o próprio de cujus investiu seus herdeiros (2) no domínio e na posse indireta (3) de seu patrimônio, porque este não pode restar acéfalo. Esta é a fórmula do que se convenciona denominar droit de saisine.

          O Código Civil de 1916 foi instituído com a seguinte regra, esculpida no art. 1572: "Aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários". Já a nova codificação civil traz a seguinte redação para traduzir o mesmo princípio: Art. 1784 – "Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários".

          A expressão "aberta a sucessão", que vem repetida em ambas as codificações, faz referência ao momento em que surgem os direitos sucessórios, sem fazer referência, entretanto, aos titulares desses direitos. A atribuição desses mesmos direitos aos sucessores traduz-se pelos vocábulos devolução (4) ou delação, que nada mais representam do que o mesmo fenômeno visto pelo prisma da sucessibilidade. (5)

          Pelo princípio da saisine, a lei considera que no momento da morte, o autor da herança transmite seu patrimônio, de forma íntegra, a seus herdeiros. Ora, o direito atual suprimiu da regra a expressão "o domínio e a posse da herança", passando a prever a transferência pura e simples da herança. Mas é óbvio que tal supressão não vai representar diminuição do alcance objetivo do princípio. Vale dizer, o objeto da transmissão continua sendo a herança, que como já se disse, é o patrimônio do defunto, compreendendo todos os direitos que não se extinguem com a morte, sendo dela integrantes bens móveis e imóveis, débitos e créditos.

          Segundo a norma, enfim, a herança transmite-se aos herdeiros legítimos e testamentários, o que é dizer que ela se transmite por meio do condomínio a todos aqueles que foram contemplados com a atribuição de uma quota parte ideal instituída pelo autor da herança por meio de testamento (herdeiro testamentário), ou aqueles que receberão a quota parte ideal determinada por lei (herdeiro legítimo).

          Convém lembrar que o sucessor legítimo será, nessa condição, sempre herdeiro e nunca legatário. Esse princípio faz com que a ressalva final do atual art. 1784 inclua na transmissão decorrente do princípio da saisine aqueles indivíduos que, beneficiados por testamento, o foram com quota parte ideal e nunca por meio de um bem especificado ou passível de especificação, uma vez que esta forma de disposição testamentária constitui legado e a aquisição do bem sucessível vem disciplinada pelas regras da sucessão testamentária.

          Em suma: o herdeiro recebe, desde o momento da morte do autor da herança, o domínio e a posse dos bens, em condomínio com os demais; o legatário receberá o domínio desde logo e a posse quando da partilha, se beneficiado com coisa certa e receberá o domínio e a posse no momento da partilha, se beneficiado com coisa incerta. (6) Era assim no Código de 1916, prossegue assim no Código de 2002.

          Art. 1.786. A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade.

          Este artigo equivale ao anterior 1573 (Código de 1916), onde era possível ler que "a sucessão dá-se por disposição de última vontade, ou em virtude de lei".

          Os dispositivos, se não são idênticos, trazem as mesmas conseqüências práticas. A inversão das formas de sucessão no elenco legal não modifica os institutos nem traz prevalência diversa, relativamente à codificação anterior, de uma forma sucessória sobre a outra em virtude do quanto disposto no restante do Livro. Prevalece, por força do atual art. 1788, a sucessão testamentária sobre aquela que deriva de lei, até o montante que resguarde a parte indisponível – em certas circunstâncias – a fim de se dar, a esta parte, a destinação previamente determinada por lei.

          A legislação anterior, ao determinar que a sucessão se dava por disposição de última vontade, indicava já a prevalência da vontade do testador e, apenas subsidiariamente, na falta de disposição desse jaez, operava-se em virtude de lei. Mas esta última forma de suceder sempre foi a mais difundida no Brasil. "Na verdade, via de regra as pessoas passam pela vida, e dela se vão, intestadas; o reduzido número daquelas que testam, o faz porque não tiveram filhos, ou porque desejam beneficiar, quem sabe, o cônjuge, em desfavorecimento dos ascendentes, ou, ainda, porque desejam beneficiar certas pessoas, por meio de legados, ou, simplesmente, porque desejam reconhecer filhos havidos fora do casamento.

          "Poucos são os que, possuindo herdeiros necessários, testam relativamente à parte disponível, sem prejudicar, com isso, os descendentes ou os ascendentes.

          "Essa espécie de aversão à prática de testar, entre nós, é devida, certamente, a razões de ordem cultural ou costumeira, folclórica, algumas vezes, psicológica, outras tantas.

          "O brasileiro não gosta, em princípio, de falar a respeito da morte, e sua circunstância é ainda bastante mistificada e resguardada, como se isso servisse para ‘afastar maus fluídos e más agruras…’. Assim, por exemplo, não se encontra arraigado em nossos costumes o hábito de adquirir, por antecipação, o lugar destinado ao nosso túmulo ou sepultura, bem como não temos, de modo mais amplamente difundido, o hábito de contratar seguro de vida, assim como, ainda, não praticamos, em escala significativa, a doação de órgãos para serem utilizados após a morte. Parece que estas atitudes, no dito popular, ‘atraem o azar…’.

          "Mas, a par destas razões que igualmente poderiam estar a fundamentar a insignificante prática brasileira do costume de testar, talvez fosse útil relatar, como o faz Zeno Veloso, que há certamente outra razão a ser invocada para justificar a pouca freqüência de testamentos entre nós. Esta razão estaria diretamente direcionada à excelente qualidade de nosso texto legislativo que ainda vige – o Código Civil de 1916 – a respeito da sucessão legítima. Quer dizer, o legislador brasileiro, quando produziu as regras gerais relativas à sucessão ab intestato, o fez de maneira muito primorosa, chamando a suceder exatamente aquelas pessoas que o de cujus elencaria se, na ausência de regras, precisasse produzir testamento. Poder-se-ia dizer, como o fez antes, na França, Planiol, que a regulamentação brasileira a respeito da sucessão ab intestato opera assim como se fosse um ‘testamento tácito’ ou um ‘testamento presumido’, dispondo exatamente como o faria o de cujus, caso houvesse testado.

          "Se assim for, compreende-se, então, a escassez de testamentos no Brasil, pois estes só seriam mesmo utilizados quando a vontade do de cujus fosse distinta daquela naturalmente esculpida na diagramação legislativa". (7)

          Seja por qual motivo for, fato é que a sucessão opera-se, na prática, primordialmente em decorrência da lei. Talvez por isso a inversão operada pelo último legislador civil, arrolando a sucessão legítima antes da testamentária no artigo 1786.

          Para além disso, registre-se que o novo Código, se não alterou a ordem de vocação hereditária, fez o cônjuge supérstite passar à classe de herdeiro necessário (art. 1845, CC) e determinou que concorra com os herdeiros das classes descendente e ascendente (art. 1829, incs. I e II, CC). Assim faz parte da primeira classe de vocação em concorrência com os descendentes; da segunda, em concorrência com os ascendentes; e da terceira, com exclusividade, tendo, portanto, retirado o legislador pátrio uma das hipóteses que antes se formulava, a justificar a facção de um testamento, que era exatamente a intenção do testador de privilegiar o seu cônjuge, para depois de sua morte.

          Art. 1.788. Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo.

          Antes de analisarmos o dispositivo, cabe fazer menção ao fato de que o Projeto de Código Civil, quando aprovado pelo Senado Federal, trazia já a locução "transmite a herança", o que fez com que Antônio Cláudio da Costa Machado e Juarez de Oliveira chamassem a atenção em sua obra (8) para a necessidade de substituição por "transmite-se a herança", o que não ocorreu na Câmara dos Deputados. Assim sendo, a interpretação literal do dispositivo pode querer forçar o entendimento de que quem transmite a herança aos herdeiros legítimos é a pessoa que morreu sem testamento. A herança deixa de transmitir-se de forma reflexiva, como ocorria sob a vigência da Lei de 1916, para ser transmitida, passivamente, pelo autor da herança… Certamente não é essa a intenção do legislador de 2002. Portanto, urge a alteração já antes proposta, incluindo-se o pronome reflexivo "se".

          O artigo citado é resultado da união dos artigos 1574 e 1575 do Código de 1916, que tratavam, como trata o atual art. 1788, das hipóteses em que, não existindo testamento ou, existindo este, dever-se-ia operar a sucessão legítima, por se verificar a ausência de possibilidade de produção de efeitos do testamento.

          Art. 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança.

          A herança do de cujus, a que o artigo se refere, é composta pelos bens patrimoniais que a ele pertencem de forma exclusiva ou da quota parte que lhe couber, o que equivale a dizer que é composta por seus bens pessoais, bem assim pela parte que lhe cabia no patrimônio do casal, sendo ele casado, e admitindo seu regime de bens matrimonial tal situação, e, ainda, pela parte dos bens que possuísse em condomínio. Dessa forma, para que se verifique se as disposições testamentárias que o de cujus deixou consignadas, para valerem após sua morte, respeitaram o quanto disposto no art. 1789, há de se proceder à divisão decorrente do rompimento dos laços matrimoniais ocasionado por sua morte, bem assim, avaliar a quota parte dos bens condominiais. Somados os valores, chegar-se-á ao valor total do patrimônio transmissível pelo de cujus, reservando-se a metade desse valor aos herdeiros determinados pela lei, coibindo-se a liberdade do testador para dispor de seu patrimônio, sendo certo que, se inexistentes estes últimos, poderá a disposição recair sobre a totalidade da herança.

          Apenas cinqüenta por cento (9) do patrimônio total poderá ser entregue por disposição testamentária sempre que possuir, o testador, descendentes e ascendentes, além de – à luz do novo Código Civil – possuir, o testador, cônjuge sobrevivo e na constância, por óbvio, do casamento.

          O legislador nacional, portanto, sempre buscou preservar os herdeiros necessários que não podem ser afastados da sucessão, exceto se presente uma das causas que determine sua deserdação ou sua exclusão, por indignidade. Mas nem por isso retirou do testador a liberdade de dispor de seus bens, confeccionando testamento, salvo se lhe faltasse, de forma perene, capacidade para a facção da cédula respectiva.

          O novo Código Civil traz, no art. 1845, o elenco daquelas pessoas que o legislador selecionou para que ocupassem a categoria de herdeiros necessários. Diz o dispositivo:

          Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

          Entende-se por herdeiros necessários aqueles herdeiros que não podem ser afastados da sucessão pela simples vontade do sucedido. Quer isso significar que apenas quando fundamentado em fato caracterizador de ingratidão por parte de seu herdeiro necessário, poderá o autor da herança dela afastá-lo, e, ainda assim, apenas se tal fato estiver previsto em lei como autorizador de tão drástica conseqüência.

          A nova legislação não se refere ao fato de serem, tais herdeiros, sucessíveis efetivos, no que anda bem. Com efeito, tanto o excluído por indignidade quanto o deserdado são herdeiros sucessíveis que, tendo cometido ato atentatório previsto em lei, vêem-se, posteriormente, afastados da sucessão. Mas até que sejam afastados, são herdeiros sucessíveis e gozam da proteção legal da reserva dos bens que comporão a legítima. (10)

          Mas, nesta sede agora em exame, isto é, a categoria dos herdeiros necessários, certamente a modificação de maior monta que deve ser referida, e que já há muito tempo era reivindicada pela doutrina nacional (11) é, indubitavelmente, a inclusão do cônjuge na classe dos herdeiros obrigatórios. (12) E nem poderia ser diferente, diante da nova ordem de vocação hereditária instituída pelo legislador civil e que traz o cônjuge concorrendo tanto na primeira quanto na segunda classe dos chamados a suceder. Assim, conseqüência lógica de tal modificação era a proteção da legítima também em seu favor, impedindo que a simples feitura de um testamento que dispusesse sobre a totalidade do acervo viesse a prejudicá-lo.

          Apesar destas benéficas modificações, perdeu o legislador a oportunidade de prever, de forma expressa, tal proteção também para o convivente supérstite, já que garantira a este, por força do art. 1.790 do Código Civil atual, a concorrência com os filhos do de cujus; na falta destes, com os ascendentes do mesmo; e, por fim e na falta de ambos, o recolhimento do total da herança. Tal ordem de vocação, especial para as hipóteses de abertura da sucessão no decorrer de união estável, em muito se assemelha à ordem de vocação do cônjuge supérstite, não se vislumbrando motivo para que as condições do cônjuge e do convivente não se equiparassem também na proteção da legítima, como, aliás, seria de bom alvitre em face das disposições constitucionais a respeito da equivalência entre o casamento e a união estável.

2. Destaque para dois pontos de irrealização da experiência jurídica à face da previsão contida na regra estampada na nova Legislação Civil Pátria, o Código Civil de 2002: 2.1 A concorrência do convivente ou companheiro com descendentes comuns e com descendentes só do autor da herança – art. 1790, I e II e art. 1834; 2.2 A concorrência do cônjuge com descendentes – arts. 1829, I, 1832 e 1834.

        2.1. A concorrência do convivente ou companheiro com descendentes comuns e com descendentes só do autor da herança – art. 1790, I e II e art. 1834.

          Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

          I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

          II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

          III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

          IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

          Quando da aprovação do projeto pelo Senado Federal, foi acrescido ao Capítulo I do Título I do Livro V um artigo que não constava do Anteprojeto de 1975, por força da Emenda nº 358. Este artigo, ora sob comento, dispõe acerca da sucessão em caso de união estável, sendo certo que o projeto finalmente aprovado modificou a redação original e atribuiu ao artigo o nº 1790, que encerra o presente capítulo.

          Não obstante sua importância, parece, todavia, que a regra está topicamente mal colocada. Trata-se de verdadeira regra de vocação hereditária para as hipóteses de união estável, motivo pelo qual deveria estar situado no capítulo referente à ordem de vocação hereditária.

          Sem firmar atenção ao histórico por que passou a união estável ao longo das últimas décadas em busca de reconhecimento social, judicial e legal, de resto cabível em outra sede, qual seja, a relativa ao direito de família, parece ser mais condizente e necessária uma análise das relações sucessórias entre o companheiro falecido e o supérstite, sem, no entanto, deixar de fazer referências outras que se tornem necessárias à elucidação do tema.

          Assim é que, anteriormente a 1988, quando ainda se falava em concubinato e a reação social era no sentido, ainda que cada vez mais tímido, de se recriminar as uniões de fato entre homens e mulheres desimpedidos de contrair matrimônio, a jurisprudência foi, aos poucos e com base na lei 6858/80, garantindo à convivente supérstite direito sucessório (tratava-se, em verdade de reconhecer o estatuto de dependente) sobre os bens de origem previdenciária, bem como sobre os bens de pequeno valor.

          Quando a atual Constituição Federal entrou em vigor e garantiu, legitimando, uma verdadeira revolução de costumes em que as uniões de fato passaram a ser cada vez menos recriminadas, para serem, já hoje, uma constante, da qual muitas vezes, nem se pergunta a origem da relação entre os membros da família – tudo como parece ter querido o constituinte –, não era demasiado propugnar uma ampla e total igualdade de direitos e deveres entre os conviventes relativamente aos direitos e deveres exigidos dos membros de um casal unido pelo matrimônio.

          No campo do direito sucessório essa igualdade, se não se operou totalmente, chegou muito próximo disso em alguns pontos e avançou muito, inclusive, em outros. (13) Daí porque o convivente adquiriu não só direito à meação dos bens comuns para os quais tenha contribuído para a aquisição de forma direta ou indireta, ainda que em nome exclusivo do falecido (art. 3°), como também adquiriu direito a um usufruto em tudo muito semelhante ao usufruto vidual, isso sem se falar na sua colocação na terceira ordem de vocação hereditária logo após os descendentes e os ascendentes, tudo isto por força da lei 8.971, de 29.12.1994, que em seu art. 2°, assim estabeleceu:

          I – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujos, se houver filhos deste ou comuns;

          II – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujos, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;

          III – na falta de descendentes ou de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.

          Tendo se esquecido, o legislador infra-constitucional – sempre no que se refere ao direito sucessório – de garantir o direito real de habitação relativo ao imóvel que servia de residência para a família, sendo o único desta natureza, editou a lei 9278/96 que em seu art. 7°, parágrafo único, assim redigido, o previu: "dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família".

          Assim como a posição do cônjuge sobrevivo melhorou, naquilo que respeita aos problemas de ordem sucessória, nas previsões do novo Código Civil, ampliando-se os direitos que lhe assistem, era de se esperar que o convivente supérstite tivesse sua condição privilegiada, relativamente àquela condição anteriormente descrita, e tivesse garantido a igualdade de direitos relativamente ao cônjuge sobrevivente, fazendo-se, assim, valer o dizer constitucional em sua amplitude.

          Todavia, não foi isto o que aconteceu.

          O anteprojeto de Código Civil elaborado em 1972, bem assim o Projeto apresentado para discussão em 1975 e aprovado na Câmara dos Deputados em 1984, não previam qualquer regra relativamente à sucessão de pessoas ligadas entre si apenas pelos laços do afeto. Foi o Senador Nélson Carneiro, em sua incessante luta pela modernização das relações familiares brasileiras quem apresentou emenda no sentido de se garantir direitos sucessórios aos conviventes. Como lembra Zeno Veloso, (14) a emenda foi claramente inspirada no Projeto de Código Civil elaborado por Orlando Gomes nos idos da década de 60 do século XX, antes portanto da igualdade constitucionalmente garantida. Bem por isso, o artigo em que resultou, este de n° 1790, é de caris retrógrado referentemente à legislação anteriormente sumariada.

          Diferentemente do que ocorre com o cônjuge, que herda quota parte dos bens exclusivos do falecido quando concorre com os descendentes deste, percebendo, quanto aos bens comuns, apenas a meação do condomínio até então existente (e não mais do que isso), o convivente que sobreviver a seu par adquire não apenas a meação dos bens comuns (e aqui em igualdade relativamente ao cônjuge supérstite), como herda quota parte destes mesmos bens comuns adquiridos onerosamente pelo casal, nada recebendo, no entanto, relativamente aos bens exclusivos do hereditando, solução esta que, para adaptar uma expressão de Zeno Veloso a uma outra realidade, "não tem lógica alguma, e quebra todo o sistema". (15)

          Não estabelece o Código Civil atual o direito real de habitação previsto pela lei 9.278/96, devendo-se, por isso, e em analogia com a situação garantida ao cônjuge e autorizada pela Constituição Federal, ter o dispositivo do art. 7°, parágrafo único, desta lei como não revogado.

          Por fim, andou ainda mal o legislador ao aprovar o dispositivo, da forma como está, por recriar o privilégio dos colaterais até o quarto grau, que passam a concorrer com o convivente supérstite na 3ª classe da ordem de vocação hereditária. Assim, morto alguém que vivia em união estável, primeiros a herdar serão os descendentes em concorrência com o convivente supérstite. Na falta de descendentes, serão chamados os ascendentes em concorrência com o convivente sobrevivo. Na falta também destes e inexistindo, como é óbvio, cônjuge que amealhe todo o acervo, serão chamados os colaterais até o quarto grau ainda em concorrência com o convivente, uma vez que, afinal, são também os colaterais parentes sucessíveis. E só na falta destes será chamado o convivente remanescente para, aí sim, adquirir a totalidade do acervo. É flagrante a discrepância.

          Bem por isto pede-se autorização para reproduzir neste tópico um trecho de extrema lucidez, tão comum na obra de Zeno Veloso:

          "Na sociedade contemporânea, já estão muito esgarçadas, quando não extintas, as relações de afetividade entre parentes colaterais de 4° grau (primos, tios-avós, sobrinhos-netos). Em muitos casos, sobretudo nas grandes cidades, tais parentes mal se conhecem, raramente se encontram. E o novo Código Civil brasileiro, que vai começar a vigorar no 3° milênio, resolve que o companheiro sobrevivente, que formou uma família, manteve uma comunidade de vida com o falecido, só vai herdar, sozinho, se não existirem descendentes, ascendentes, nem colaterais até o 4° grau do de cujus. Temos de convir. Isto é demais! […]

          "Haverá alguma pessoa, neste país, jurista ou leigo, que assegure que tal solução é boa e justa? Por que privilegiar a este extremo vínculos biológicos, ainda que remotos, em prejuízo dos vínculos do amor, da afetividade? Por que os membros da família parental, em grau tão longínquo, devem ter preferência sobre a família afetiva (que em tudo é comparável à família conjugal) do hereditando?

          "Sem dúvida, neste ponto o C.C. não foi feliz. A lei não está imitando a vida, nem se apresenta em consonância com a realidade social, quando decide que uma pessoa que manteve a mais íntima e completa relação com o falecido fique atrás de parentes colaterais dele, na vocação hereditária. O próprio tempo se incumbe de destruir a obra legislativa que não seguiu os ditames do seu tempo, que não obedeceu as indicações da histórica e da civilização.

          "Aproveitando que o C.C. está na vacatio legis, urge que seja reformado na parte que foi objeto deste estudo.

          "Se a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado; se a união estável é reconhecida como entidade familiar; se estão praticamente equiparadas as famílias matrimonializadas e as famílias que se criaram informalmente, com a convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher, a discrepância entre a posição sucessória do cônjuge supérstite e a do companheiro sobrevivente, além de contrariar o sentimento e as aspirações sociais, fere e maltrata, na letra e no espírito, os fundamentos constitucionais." (16)

          No que diz respeito à sucessão do convivente, em concorrência com os herdeiros de primeira vocação, isto é, os descendentes, observa-se que o legislador civil atual pretendeu, efetivamente, dar distinto tratamento a essa sucessão concorrente, aplicando distintas imposições matemáticas se os descendentes fossem filhos do convivente supérstite e do convivente falecido, ou se, por outro lado, fossem descendentes exclusivos do autor da herança (incisos I e II do art. 1790 NCC, respectivamente), fazendo-o herdar a mesma porção deferida aos filhos comuns e metade da porção cabível aos descendentes exclusivos do de cujus.

          Deu, portanto, tratamento preferencial ao convivente sobrevivo, quando se trata de concorrência com filhos comuns a ele e ao morto. Esta foi a opção do legislador civil brasileiro e passa ela a valer como paradigma para a exegese do regramento, pelo futuro doutrinador, bem como pelo futuro aplicador do direito, tudo em prol de uma sadia consolidação jurisprudencial do porvir.

          A atividade do intérprete deve restar, desde já, entregue a uma consideração muito rígida, exatamente para que não reste da tentativa (ou tentativas) de concreção da nova ordem jurídica senão uma inacreditável fonte de desconsideração do espírito do legislador, da formulação axiológica de suas leis ou da principiologia que se pretende seja a paradigmática do novo Texto Civil Brasileiro (17).

         Tudo isso porque – infelizmente, e mais uma vez – não previu, o legislador, a tormentosa hipótese de serem herdeiros do falecido pessoas que guardem relação de parentesco (filiação) com o sobrevivo, em concorrência com outras que fossem parentes apenas dele, autor da herança.

          Vale dizer, o legislador se olvidou mais uma vez da comum hipótese que abarca aqueles que, tendo sido casados em primeiras núpcias, ou tendo mantido uma união estável precedente, tenham se separado, se divorciado ou assistido a morte do companheiro da primeira fase de suas vidas, resolvendo, assim reconstruir sua trajetória afetiva com terceiro, hipótese esta que se qualifica, ainda, pela especial condição de ter advindo prole de ambos os relacionamentos vividos.

          Não há, na nova Lei Civil, uma disposição que regulamente esta situação híbrida quanto à condição dos filhos do falecido (comuns e exclusivos), com os quais deva concorrer o convivente supérstite.

          Neste caso, restou inafastavelmente a dúvida: ou bem se fazia o convivente supérstite concorrer com os descendentes de ambas as condições (comuns e exclusivos) como se fossem todos descendentes comuns aos dois, herdando, portanto a mesma quota cabível a cada um dos filhos, ou bem se fazia o convivente supérstite concorrer com os mesmos herdeiros como se fossem todos descendentes exclusivos do autor da herança, percebendo, portanto, a metade dos bens que couber a cada qual.

          Não bastassem essas duas modalidades exegéticas para a apreciação da circunstância híbrida (existência de filhos comuns e de filhos exclusivos, em concorrência com o convivente sobrevivo), outras duas, aos menos, se apresentaram na consideração doutrinária inaugural: uma que buscou compor as disposições contidas nos incisos I e II do art. 1790, atribuindo uma quota e meia ao convivente sobrevivente – equivalente à soma das quotas que a ele seriam deferidas, na hipótese de concorrer com filhos comuns (uma) e com filhos exclusivos (meia) –, e outra que igualmente buscou compor as duas regras, dividindo proporcionalmente a herança em duas sub-heranças, atribuíveis a cada um dos grupos de filhos (comuns ou exclusivos) incorporando, em cada uma delas, a concorrência do convivente sobrevivo.

          Seja qual for a formulação ou critério que se escolha, contudo, a verdade é que parece torna-se impossível conciliar, do ponto de vista matemático, as disposições dos incisos I e II deste artigo 1.790.

          Parece mesmo não haver fórmula matemática capaz de harmonizar a proteção dispensada pelo legislador ao convivente sobrevivo (fazendo-o receber o mesmo quinhão dos filhos que tenha tido em comum com o autor da herança) e aos herdeiros exclusivos do falecido (fazendo-os herdar o dobro do quanto dispensado ao convivente que sobreviver).

          Dessa forma, na realidade, são quatro as propostas de tentativas de composição dos dispositivos do Códio Civil envolvidos no assunto relativo à sucessão de filhos (comuns ou exclusivos) em concorrência com o convivente sobrevivente.

          ► 1ª proposta: identificação dos descendentes como se todos fossem filhos comuns, aplicando-se exclusivamente o inciso I do art. 1.790 do Código Civil:

          Por esta via, a divisão patrimonial obedeceria à simples regra de igualar os filhos de ambos os grupos, tratando-os como se fossem filhos comuns a ambos os conviventes.

          Certamente não pode prosperar essa solução simplista, pois se, por um lado, trata de manter igualadas as quotas hereditárias atribuíveis aos filhos (de qualquer grupo), conforme determina o art. 1.834 do Código, por outro lado, fere na essência o espírito do legislador do Código Civil que quis dar tratamento diferenciado às hipóteses de concorrência do convivente sobrevivo com os descendentes do de cujus de um ou de outro grupo (comuns ou exclusivos).

          ► 2ª proposta: identificação dos descendentes como se todos fossem filhos exclusivos do autor da herança, aplicando-se, neste caso, apenas o inciso II do art. 1.790 do Código Civil:

          Da mesma forma com a qual se cuidou de refutar a proposta anterior, também aqui, por via desta divisão patrimonial, se chegaria à mesma conclusão, vale dizer, o espírito do legislador do Código Civil restaria magoado, tendo em vista a inobservância da diferença que quis dar às hipóteses de concorrência do convivente sobrevivo com os descendentes do de cujus de um ou de outro grupo (comuns ou exclusivos).

          Nessa hipótese por segundo considerada – e como é possível observar – privilegiar-se-iam os filhos em detrimento do convivente sobrevivo, que seria tido, sob todos os aspectos como não ascendente de nenhum dos herdeiros, recebendo, então, apenas a metade do que aqueles herdariam. Por outro lado, naquela primeira proposta formulada, o convivente sobrevivente acabaria por ser privilegiado, na medida em que participaria da herança recebendo quota absolutamente equivalente às quotas atribuíveis aos descendentes de qualquer grupo.

          ► 3ª proposta: composição dos incisos I e II pela atribuição de uma quota e meia ao convivente sobrevivente:

          Por esta via, a divisão patrimonial obedeceria a seguinte regra: somar-se-ia o número total de filhos comuns e de filhos exclusivos do autor da herança, acrescentar-se-ia mais um e meio (uma quota deferida ao convivente sobrevivente, no caso de concorrência com filhos comuns, e meia quota deferida ao mesmo sobrevivo, no caso de concorrência com filhos exclusivos do falecido), dividindo-se, depois, a herança por esse número obtido, entregando-se quotas de valores iguais aos filhos (comuns e exclusivos), o que atenderia ao comando de caráter constitucional do art. 1834 NCC (que determina que descendentes da mesma classe tenham os mesmos direitos relativamente à herança de seu ascendente), e uma quota e meia ao convivente sobrevivente, o que atenderia aos comandos dos incisos I e II do art. 1790.

           Pode parecer, à primeira vista, que esta solução resolveria – com exemplar facilidade – o problema da partilha, aparentemente atendendo a todas as regras do NCC de regência sobre o assunto.

          Contudo, a pergunta difícil de responder que fica é a seguinte: se esta for a solução buscada, onde residiria, dentro dela, aquele princípio que norteou o espírito do legislador, ao dar diferentes variáveis de concorrência do convivente sobrevivo com descendentes de um e de outro grupo (comuns ou exclusivos)? Porque, afinal, o que se vê das quotas hereditárias e partilháveis entre os filhos todos é que efetivamente elas são iguais, mas a quantia que se abateu da herança, para compor a quota do convivente concorrente, foi retirada do monte-mor a todos eles idealmente atribuível, sem atentar para a diferença entre os filhos (como pretendeu diferenciá-los, para esse efeito, o legislador de 2002, nos incisos I e II do art.1790), diminuindo, igualmente, o quinhão de cada um deles, afinal de contas, para compor a quota hereditária do convivente concorrente.

          O que restou a considerar, num caso como esse, e sob essa solução, é que o tratamento dado ao convivente sobrevivo foi muito mais privilegiado que em qualquer das duas hipóteses singulares (incisos I e II do art. 1790) previstas pelo legislador e vistas cada uma de per se. Confira-se: a) se concorresse apenas com filhos comuns, o convivente sobrevivo herdaria quota igual à que coubesse a cada um deles; b) se concorresse apenas com descendentes exclusivos do autor da herança, o convivente sobrevivo herdaria quota equivalente à metade da que coubesse a cada um deles; c) mas, nessa derradeira, problemática e não prevista hipótese de concorrência com filhos de ambos os grupos (comuns e exclusivos), o convivente se beneficiaria, por herança, com maior quinhão, qual seja o quinhão equivalente a uma quota e meia, enquanto que cada um dos filhos (comuns ou exclusivos) herdaria uma única quota, cada um deles.

          Não me parece que seja isto que tenha querido o legislador, uma vez que diferenciou as espécies de herdeiros descendentes, para efeito dessa concorrência e, em nenhuma das formulações legislativas, deferiu, ao convivente sobrevivo, uma quota hereditária maior do que a que coubesse a qualquer dos herdeiros com quem concorresse. Na melhor das hipóteses (inciso I), o legislador pensou em igualar o quinhão do convivente sobrevivo ao quinhão do herdeiro, desde que fosse filho seu e do autor da herança, mas nunca pensou em privilegiar o convivente com quota maior do que a deferida ao herdeiro.

          Assim – segundo quer me parecer – se aplicado esse critério aqui desenhado, o resultado obtido ao final de uma partilha seria um resultado absolutamente dissociado do espírito do legislador de 2002.

          Penso não ser possível produzi-lo assim simplesmente, tout court.

          ► 4ª proposta: composição dos incisos I e II pela sub-divisão proporcional da herança, segundo a quantidade de descendentes de cada grupo:

          Por esta via, a divisão patrimonial obedeceria a seguinte regra: primeiro se dividiria a herança a ser partilhada entre filhos comuns e filhos exclusivos em duas partes (sub-heranças) proporcionais, cada uma delas, ao número de filhos de um ou de outro grupo. A seguir se introduziria, em cada uma dessas sub-heranças, a concorrência do convivente, conforme a determinação do inciso I ou do inciso II do art. 1790, respectivamente. Depois disso, se somariam as quotas do convivente supérstite – obtidas em cada uma dessas sub-heranças – formando o quinhão a ele cabível. Aos filhos herdeiros caberia a quota que houvesse resultado da aplicação das regras legais em cada uma das sub-heranças, conforme proposto.

          É fácil verificar, se esse fosse o critério a ser utilizado, que os quinhões dos filhos de um grupo seriam proporcionalmente maiores que os quinhões dos filhos do outro grupo. Quinhões desigualados equivalem, entretanto, ao desatendimento do art. 1834 NCC, dispositivo de caráter constitucional.

          Assim – segundo quer me parecer, nesta nova proposta de partição da herança – se aplicado o critério matemático aqui desenhado, o resultado obtido ao final de uma partilha seria um resultado absolutamente dissociado, não apenas do espírito do legislador de 2002, mas também da principiologia constitucional de fundo (18).

        2.2 A concorrência do cônjuge com descendentes – arts. 1829, I, 1832 e 1834.

          Depois de tratar das regras gerais respeitantes à sucessão, no sentido de serem regras que se aplicam tanto à sucessão testamentária, quanto àquela que se processa tendo falecido o de cujus ab intestato, passa o legislador a editar regras especialmente desenhadas para aqueles casos em que a morte se dá com ausência de testamento ou de testamento válido, com testamento incompleto, enquanto um testamento que não abrange a totalidade do acervo hereditário disponível, ou mesmo com um testamento que, não obstante completo, encontra limitação na existência de herdeiros necessários, que são aqueles que necessariamente devem ser chamados a herdar ou, ao menos, deliberar a respeito da quota que lhes é deferida.

          Esta chamada se organiza, em níveis de preferência por certas classes de pessoas consoante a regra do art. 1829 do novo Código Civil:

          Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

          I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

          II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

          III – ao cônjuge sobrevivente;

          IV – aos colaterais.

          Impõe o legislador uma ordem de vocação hereditária, em que divide os chamados a herdar em classes, impondo entre eles uma "relação preferencial" (19) em que uns excluem os outros, segundo a ordem estabelecida no ordenamento.

          O novo Código Civil, apesar de manter a ordem de vocação hereditária tradicionalmente aceite pelo ordenamento jurídico brasileiro, (20) garante ao cônjuge supérstite uma dada posição de igualdade, e por vezes até de primazia, relativamente aos descendentes e ascendentes – que continuam a compor a primeira e a segunda classes de vocação hereditária – chamados a herdar.

          Outra conseqüência trazida pela nova legislação foi a revogação, por falta absoluta de previsão neste sentido, bem assim por perda de necessidade prática, da instituição em favor do cônjuge sobrevivo dos direitos reais de uso ou usufruto, uma vez que este passa a herdar sempre que não lhe faltar legitimidade para tanto. Assim, se herda, adquire o direito de propriedade sobre uma parte do acervo, direito real este de amplitude quase ilimitada, e isto torna desnecessária a herança de direitos reais limitados. Manteve-se, entretanto o direito real de habitação sobre a residência familiar, limitado ao fato de ser este o único bem com esta destinação.

          O cônjuge sobrevivo encontra-se, por força desta listagem preferencial de chamamento a herdar, em terceiro lugar, mas posiciona-se favorecido também nas duas primeiras e antecedentes classes, já que o novel legislador dispôs que ele concorre com aqueles primeiro chamados a herdar, isto é os descendentes e os ascendentes

          A imissão do cônjuge nas classes anteriores à terceira, se faz de forma gradativa e proporcional à importância que o legislador empresta aos descendentes e aos ascendentes em relação ao apreço e carinho que o morto presumidamente guardaria para cada qual. Por isso é que a quota do cônjuge vai aumentando dependendo da classe em que se encontre, como se verá.

          Por força do art. 1845 do novo Código Civil, o cônjuge sobrevivo – já se o mencionou, antes – passa à categoria de herdeiro necessário, tornando-se impossível ao cônjuge que primeiro falecer afastar o supérstite de sua sucessão, o que antes era possível pela simples facção de cédula testamentária que abrangesse todo o patrimônio do de cujus, inexistindo descendentes e ascendentes do testador. Tornar o sobrevivente herdeiro necessário da pessoa com quem conviveu e convivia até período próximo ao da morte deste é medida que se coaduna com a colocação daquele nas duas primeiras classes de vocação sucessória, em concorrência com descendentes e ascendentes. Com efeito, seria ilógico fazer do sobrevivente herdeiro preferencial, concorrente dos necessários e, ao mesmo tempo, negar-lhe tal condição. Daí a regra do art. 1845 referido.

          Todavia, a aquisição de fração da herança pelo cônjuge supérstite depende da verificação de certos pressupostos que garantam, do ponto de vista social, a harmonia e a continuidade da vida em comum, como que a legitimar a presunção de que o cônjuge participou da construção do patrimônio familiar, "seja pela cooperação direta de trabalho, seja pela participação direta de apoio, de economias, da harmonia, e até de sacrifícios" (21), apenas para ficarmos na enumeração expendida por Caio Mário da Silva Pereira, um dos maiores defensores do reconhecimento do cônjuge não só como herdeiro preferencial, mas também como herdeiro necessário.

          O primeiro destes pressupostos exigidos pela lei é o do regime matrimonial de bens. Bem por isso o inc. I do art. 1829, anteriormente reproduzido, faz depender a vocação do cônjuge supérstite do regime de bens escolhido pelo casal, quando de sua união, uma vez que o legislador enxerga nessa escolha uma demonstração prévia dos cônjuges no sentido de permitir ou não a confusão patrimonial e em que profundidade querem ver operada tal confusão.

          Assim, não será chamado a herdar o cônjuge sobrevivo se casado com o falecido pelo regime da comunhão universal de bens (arts. 1667 a 1671 do atual Código Civil), ou pelo regime da separação obrigatória de bens (arts. 1687 e 1688, combinado com o art. 1641).

          Por fim, aqueles casais que, tendo silenciado quando do momento da celebração do casamento, optaram de forma implícita pelo regime da comunhão parcial de bens, fazem jus à meação dos bens comuns da família, como se de comunhão universal se tratasse, mas passam agora a participar da sucessão do cônjuge falecido, na porção dos bens particulares deste.

          Pode-se concluir, então, no que respeita ao regime de bens reitor da vida patrimonial do casal, que o cônjuge supérstite participa por direito próprio dos bens comuns do casal, adquirindo a meação que já lhe cabia, mas que se encontrava em propriedade condominial dissolvida pela morte do outro componente do casal e herda, enquanto herdeiro preferencial, necessário, concorrente de primeira classe, uma quota parte dos bens exclusivos do cônjuge falecido, sempre que não for obrigatória a separação completa dos bens.

          De outra feita, se concorrer na segunda classe, tirante a meação que lhe couber, herda não apenas fração dos bens particulares do de cujus como também fração dos bens comuns ao casal, uma vez que o inciso II do art. 1829 não faz quaisquer das ressalvas feitas no inciso I do mesmo artigo em clara demonstração de que as exceções deste último inciso só servem para proteger os descendentes do falecido e não os ascendentes deste, sempre que em concorrência com o cônjuge supérstite.

          Outro pressuposto para a participação do cônjuge sobrevivo na herança do falecido é a constância jurídica e fática do casamento (art. 1830).

          Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.

          A primeira classe a ser chamada à sucessão será a dos descendentes do de cujus, em concorrência com o cônjuge supérstite que satisfaça às exigências relativas ao regime matrimonial de bens (quanto a este tema, veja-se, supra, os comentários ao art. 1830).

          A regra geral é a de que o cônjuge supérstite e os descendentes recebem a mesma quota hereditária. Todavia, esta regra encontra exceção na parte final do artigo reproduzido sempre que a concorrência se der entre o cônjuge supérstite e quatro ou mais dos descendentes que teve em comum com o de cujus.

          A sucessão que se resolva na vocação da primeira classe para receber a parte disponível, ou mesmo a totalidade da herança verá o acervo hereditário ser dividido em tantas partes quantos forem os filhos, netos, bisnetos ou demais descendentes do de cujus, sempre que todos sucedam por direito próprio, o que equivale a dizer que todos os descendentes devem guardar, relativamente ao morto, o mesmo grau de parentesco, e mais uma parte, esta destinada ao cônjuge supérstite.

          Todavia, se a quota parte cabível a este último for menor do que a quarta parte do monte-mor e se todos os chamados a suceder forem também seus herdeiros, então a lei reserva ao cônjuge supérstite este montante, que será então descontado do acervo hereditário, repartindo-se os outros setenta e cinco por cento entre os descendentes que com este concorrem à sucessão.

          Por outro lado, se à sucessão concorrerem descendentes apenas do de cujus, então a reserva da quarta parte ao sobrevivo não prevalecerá e a herança dividir-se-á em tantas partes quantos forem os descendentes, mais uma a ser entregue ao cônjuge.

          Questão mais tormentosa de se buscar solucionar, relativamente a essa concorrência prevista pelo dispositivo em comento, é aquela que vai desenhar uma hipótese em que são chamados a herdar os descendentes comuns (ao cônjuge falecido e ao cônjuge sobrevivo) e os descendentes exclusivos do autor da herança, todos em concorrência com o cônjuge sobrevivo. O legislador do Código Civil de 2002, embora inovador na construção legislativa de hipótese de concorrência do cônjuge com herdeiros de convocação anterior à sua própria, infelizmente não fez a previsão da hipótese agora em apreço, de chamada de descendentes dos dois grupos, quer dizer, os descendentes comuns e os descendentes exclusivos. E é bastante curioso, até, observar essa lacuna deixada pela nova Lei Civil, uma vez que em nosso país a situação descrita é comuníssima, envolvendo famílias constituídas por pessoas que já foram unidas a outras, anteriormente, por casamento ou não, resultando, dessas uniões, filhos (descendentes, enfim) de origens diversas.

          A dúvida que remanesce, à face da ausência de previsão legislativa para a hipótese, diz respeito, afinal, ao fato de se buscar saber se prevalece, ou não, a reserva da quarta parte dos bens a inventariar, a favor do cônjuge sobrevivo, em concorrência com os descendentes herdeiros.

          Ora, a maneira que escolheu o legislador para redigir o art. 1832 não deixa qualquer dúvida acerca da intenção de se dar tratamento preferencial ao cônjuge sobrevivo, quando se trata de concorrência com descendentes do de cujus que sejam também seus descendentes, exatamente reservando-lhe esta quarta parte da herança, como quinhão mínimo a herdar, por concorrência com aqueles. Observe-se que não fez idêntica referência, o legislador, para a hipótese distinta, vale dizer, de serem os herdeiros, com quem concorre o cônjuge sobrevivo, descendentes exclusivos do falecido. Logo, essa foi a opção do legislador civil brasileiro – a de privilegiar o cônjuge concorrente com a reserva da quarta parte da herança, apenas no caso de concorrência com herdeiros dos quais fosse ascendente – e, por essa razão, essa opção passa a valer como paradigma para a exegese do regramento, pelo futuro doutrinador, bem como pelo futuro aplicador do direito, tudo em prol de uma sadia consolidação jurisprudencial do porvir. (22)

          Se este foi o espírito que norteou a concreção legislativa no novo Código Civil – e trata-se de uma formulação bastante elogiável – entendo que ele deva ser preservado, ainda quando se instale, na vida real, a hipótese híbrida antes considerada, de chamamento de descendentes a herdar, de ambos os grupos, isto é, de descendentes que também o sejam do cônjuge concorrente, e de descendentes exclusivos do autor da herança. Qualquer solução que pretenda deitar por terra essa postura diferencial consagrada pelo legislador deveria estar consignada em lei, ela também, exatamente para evitar a variada gama de soluções que terão que ser, obrigatoriamente, organizadas pelo aplicador e pelo hermeneuta, formulando paradigmas jurisprudenciais que não guardem qualquer correlação com aquele espírito do legislador, claramente registrado no artigo em comento (1832).

          Mas porque não há, na nova Lei Civil, uma disposição específica para a hipótese híbrida (descendentes comuns e descendentes exclusivos), soluções alternativas poderão ser levantadas para os casos que se apresentarem nesse interregno de tempo que se estenderá entre a entrada em vigor do Código e a necessária alteração legislativa, no porvir.

          Se assim for, então, parecem ser três as mais prováveis propostas de solução para as ocorrências híbridas de sucessão de descendentes dos dois grupos (comuns e exclusivos) em concorrência com o cônjuge sobrevivente.

    ► 1ª proposta: identificação dos descendentes (comuns e exclusivos) como se todos fossem também descendentes do cônjuge sobrevivente.

          Por esta via, que considera todos os descendentes do de cujus como sendo descendentes também do cônjuge sobrevivo, a solução possível seria apenas aquela de reservar a quarta parte da herança para ser amealhada pelo cônjuge que sobreviveu.

          Solução desse jaez representaria, no entanto, um certo prejuízo aos descendentes exclusivos do falecido, os quais, por não serem descendentes do cônjuge com quem concorrem, restariam afastados de parte mais ou menos substanciosa do patrimônio exclusivo de seu ascendente morto.

          Não se satisfaz, portanto, o espírito do legislador no novo Código Civil, que pretendeu privilegiar o cônjuge supérstite – nestas condições de reserva de parte ideal – tão somente quando tal cônjuge fosse também ascendente dos herdeiros de primeira classe com quem concorresse. Por esse motivo tal proposta não deve prevalecer, não obstante garantir quinhões iguais aos filhos de ambos os grupos (comuns e exclusivos) e ao cônjuge sobrevivente.

          ► 2ª proposta: identificação dos descendentes (comuns e exclusivos) como se todos fossem descendentes exclusivos do cônjuge falecido.

          Da mesma forma com a qual se cuidou de refutar a proposta anterior, também aqui se pode chegar à mesma conclusão de inobservância do espírito do legislador do Código Civil. Mas, aqui, tal inobservância se verifica na exata medida em que o tratamento de todos os descendentes do de cujus como seus descendentes exclusivos, acabaria por afastar a reserva da quarta parte do monte partível garantida ao cônjuge sobrevivo, como forma de lhe garantir um maior amparo em sua viuvez.

          Trata-los, aos descendentes todos, como se fossem descendentes exclusivos do falecido representa solução que fecha os olhos a uma verdade natural (descendentes por laços biológicos) ou civil (descendentes em razão de uma adoção verificada) que é a única verdade que o legislador tomou como autorizadora de uma maior proteção dispensada ao cônjuge que sobreviver.

          ► 3ª proposta: composição pela solução híbrida, subdividindo-se proporcionalmente a herança, segundo a quantidade de descendentes de cada grupo.

          Por esta via de raciocínio (que bem poderia ser intentada pelo intérprete, à face da lacuna do legislador), a divisão patrimonial do acervo hereditário obedeceria às seguintes regras: primeiro se dividiria a herança em duas sub-heranças, proporcionalmente ao número de descendentes de cada um dos grupos (comuns e exclusivos). A sub-herança que fosse destinada a compor os quinhões hereditários dos descendentes exclusivos seria dividida em tantas quotas quantos fossem os herdeiros desta classe, mais uma (correspondente à quota do cônjuge concorrente, conforme determinação do art. 1832, 1ª parte), entregando-se a cada um dos herdeiros o seu correspondente quinhão hereditário. A seguir, dividir-se-ia, da mesma maneira, a sub-herança destinada a compor os quinhões hereditários dos descendentes comuns, pelo número deles, mais uma, destinada ao cônjuge que com eles concorre. Supondo que a somatória desta quota deferida ao cônjuge sobrevivente (em concorrência com descendentes comuns) e da quota igualmente deferida a ele (em concorrência com descendentes exclusivos) fosse menor que uma quarta parte da herança, então se reorganizaria a divisão, para que esse preceito do legislador ordinário pudesse ser observado. Para tanto, a sugestão seria a de se abater da sub-herança atribuível aos descendentes comuns o quanto fosse necessário para – somando-se ao quinhão do cônjuge obtido já da sub-herança deferida aos descendentes exclusivos – consolidar o equivalente a 25% do total da herança (atendendo, assim, ao que dispõe a segunda parte do mesmo dispositivo legal em comento, o art. 1832).

          Ora, é muito fácil observar que, senão em circunstância real excepcionalíssima, essa composição matemática não conseguiria atender aos preceitos legais envolvidos (art. 1829, I e 1832), e não garantiria a igualdade de quinhões atribuíveis a cada um dos descendentes da mesma classe, conforme determina o art. 1834, de caráter constitucional. Quer dizer, nem se conseguiria obter – por esta proposta imaginada conciliatória – iguais quinhões para os herdeiros da mesma classe (comuns ou exclusivos), nem seria razoável que a quarta parte garantida ao cônjuge fosse complementada por subtração levada a cabo tão-somente sobre a parte do acervo destinada aos descendentes comuns.

          De qualquer das formas, ao que parece, na ocorrência de uma hipótese real de sucessão de descendentes que pertencessem aos dois distintos grupos (comuns e exclusivos) em concorrência com o cônjuge sobrevivo, não haveria solução matemática que pudesse atender a todos os dispositivos do Código Civil novo, o que parece reforçar a idéia de que, para evitar uma profusão de inadequadas soluções jurisprudenciais futuras, o ideal mesmo seria que o legislador ordinário revisse a construção legal do novo Diploma Civil brasileiro, para estruturar um arcabouço de preceitos que cobrissem todas as hipótese, inclusive as hipóteses híbridas (como as tenho chamado) evitando o dissabor de soluções e/ou interpretações que corressem exclusivamente ao alvedrio do julgador ou do hermeneuta, mas desconsiderando tudo aquilo que, a princípio, norteou o ideal do legislador, formatando o espírito da norma. (23)

NOTAS

GOMES, Orlando. Sucessão, p. 11.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – 6º volume – Direito das Sucessões, p. 14.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Volume 7, p. 13.

CARVALHO SANTOS, J. M. Código Civil Interpretado. Direito das Sucessões. Volume XXII, p. 7.

GOMES, Orlando. Ob. cit., p. 11.

Walter Moraes deixa claro que: "Vale para os legados o princípio geral da aquisição imediata. A regra básica é a de que o legatário adquire a deixa desde a morte do testador. O que impede a instantaneidade da aquisição são as seguintes circunstâncias: 1) existência de condição suspensiva; 2) a indeterminação do objeto; 3) a inexistência do objeto no patrimônio deixado; 4) a inexistência da personalidade do legatário" (MORAES, Walter. Programa de Direito das Sucessões. Teoria Geral e Sucessão Legítima, p. 48). A primeira hipótese determina que se aguarde a verificação da condição que, em não ocorrendo, acarreta a devolução do bem aos herdeiros legítimos. A segunda obriga que se espere o final da partilha. A terceira possibilita a aquisição do bem quando da partilha com posterior entrega ao legatário, sempre que possível tal providência, sendo que, se impossível, dá-se por caduca a disposição. A quarta hipótese, por fim, refere-se à instituição de prole eventual de terceiro como legatário, determinando-se que se aguarde sua superveniência.

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso Avançado de Direito Civil – Volume 6, p. 277-278.

MACHADO, Antônio Cláudio da Costa; OLIVEIRA, Juarez de. Novo Código Civil, p. 363.

"Perante o nosso direito positivo, a porção disponível é fixa, invariável. Em qualquer hipótese, seja qual for a qualidade e o número dos herdeiros, compreenderá sempre a metade dos bens do testador. Assim não acontece, todavia, em outras legislações." (MONTEIRO, Washington de Barros. Ob. cit., p. 10) E elenca, o saudoso escritor, ali, uma série de hipóteses verificáveis na legislação comparada.

Na deserdação, o herdeiro é "privado de uma vocação legitimária, por meio da vontade imperial do testador", ao passo que a exclusão por indignidade resolve "uma vocação hereditária existente no momento da abertura da sucessão" (CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil, v. 6, p. 384).

Em especial por Caio Mário da Silva Pereira, como este relata à p. 17 de seu Instituições de direito civil, v. VI, em perspectiva histórica.

"Compreendido o fenômeno da sucessão como uma exigência social de busca do melhor continuador da personalidade patrimonial do de cuius, conforme a sua vontade, e baseado o critério dessa busca em presuntiva proximidade pessoal do sucessível com o sucedido, justifica-se e explica-se o iter ascendente da vocação do cônjuge, dada a natural intimidade que da união do casal se espera resultar. Tal visão e tal critério estão a sugerir, ao mesmo tempo, que a evolução da ordem de vocação ainda está a obrar à procura de uma situação definitiva para o cônjuge, que satisfaça socialmente, sob todos os aspectos" (MORAES, Walter. Ob. cit., p. 138).

O que foi motivo para acerbadas críticas por parte da doutrina. Veja-se, por último, VELOSO, Zeno. Direito sucessório dos companheiros, in Direito de Família e o novo Código Civil, p. 225-237.

Ob. cit., passim.

VELOSO, Zeno. Ob. cit., passim.

VELOSO, Zeno. Ob. cit., ps. 236-237.

A respeito, vale a pena recuperar a cuidadosa lição de Gustavo Tepedino na mais recente obra sob sua coordenação e intitulada A Parte Geral do novo Código Civil: Estudos na Perspectiva civil-constitucional (verificar "Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002", p.XXI): "Volta-se a ciência jurídica à busca de técnicas legislativas que possam assegurar uma maior efetividade aos critérios hermenêuticos. Nesta direção, parece indispensável, embora não suficiente, a definição de princípios de tutela da pessoa humana […], bem como sua transposição na legislação infraconstitucional. O legislador percebe a necessidade de definir modelos de conduta (standards) delineados à luz dos princípios que vinculam o intérprete, seja nas situações jurídicas típicas, seja nas situações não previstas pelo ordenamento. Daqui a necessidade de descrever nos textos normativos (e particularmente nos novos códigos) os cânones hermenêuticos e as prioridades axiológicas, os contornos da tutela da pessoa humana e os aspectos centrais da identidade cultural que se pretende proteger, ao lado de normas que permitem, do ponto de vista de sua estrutura e função, a necessária comunhão entre o preceito normativo e as circunstâncias do caso concreto".

O legislador brasileiro, de alguma forma, já se apercebeu da inviabilidade de conexão entre o enunciado genérico contido no art. 1790, I e II e a norma descritiva de valores que descreve o art. 1834, todos do novo Código Civil Brasileiro. O Projeto de Lei nº 6960/2002 (do Deputado Ricardo Fiúza) intenta uma nova redação para o art. 1790, deixando-o com a seguinte sugestão de redação: Art. 1.790. O companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte: I – em concorrência com descendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes, salvo se tiver havido comunhão de bens durante a união estável e o autor da herança não houver deixado bens particulares, ou se o casamento dos companheiros se tivesse ocorrido, observada a situação existente no começo da convivência, fosse pelo regime da separação obrigatória (art. 1.641); […] A alteração de fundo é significativa, pois todo o contorno e conteúdo do dispositivo é alterado. Mas não esteve preocupado o legislador do substitutivo em compor matematicamente a possibilidade de aplicação dos dispositivos do Código Civil tal como estão, hoje. Na substanciosa obra denominada Novo Código Civil Comentado, coordenada pelo próprio Deputado Ricardo Fiúza (Editora Saraiva, 2002, 1843 ps.), o jurista encarregado de comentar esse art. 1790 e de demonstrar a sugestão legislativa de alteração que o acompanha (Projeto de Lei 6960/2002) foi exatamente o insigne Zeno Veloso, que assim descreveu a razão da sugestão legislativa sob comento: "Consciente disso [referia-se aos inúmeros problemas originais do dispositivo], e considerando o posicionamento assumido no Congresso Nacional, em vez de oferecer ao Deputado Ricardo Fiúza minha própria proposta, vou apresentar – com algumas alterações, a meu ver necessárias – a que foi oferecida pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, colocando-a de acordo com as limitações à concorrência dos cônjuges com os descendentes (art. 1829) e com a emenda que estou propondo ao art. 1831, que regula o direito real de habitação. Transijo, enfim, para que o art. 1790 não fique como está."

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Direito das Sucessões, p. 61. Ou, ainda, como deixou consignado Itabaiana de Oliveira, tratar-se-ia de verdadeira "coordenação preferencial dos grupos sucessíveis" (ITABAIANA DE OLIVEIRA, Arthur Vasco. Tratado de Direito das Sucessões. Vol. I, p. 169).

É a seguinte a redação do art. 1603 do Código Civil de 1916: "A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes; II – aos ascendentes; III – ao cônjuge supérstite; IV – aos colaterais; V – aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União".

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Ob. cit., p. 76.

Essa mesma consideração, com a mesma natureza argumentativa, já foi levantada pela autora em comentários anteriores (art. 1790), relativamente à sucessão, por concorrência, do convivente sobrevivo.

A respeito, a autora solicita licença para repetir lição já anteriormente citada, de Gustavo Tepedino, também em nota de rodapé, nos comentários ao art. 1.790: "Volta-se a ciência jurídica à busca de técnicas legislativas que possam assegurar uma maior efetividade aos critérios hermenêuticos. Nesta direção, parece indispensável, embora não suficiente, a definição de princípios de tutela da pessoa humana […], bem como sua transposição na legislação infraconstitucional. O legislador percebe a necessidade de definir modelos de conduta (standards) delineados à luz dos princípios que vinculam o intérprete, seja nas situações jurídicas típicas, seja nas situações não previstas pelo ordenamento. Daqui a necessidade de descrever nos textos normativos (e particularmente nos novos códigos) os cânones hermenêuticos e as prioridades axiológicas, os contornos da tutela da pessoa humana e os aspectos centrais da identidade cultural que se pretende proteger, ao lado de normas que permitem, do ponto de vista de sua estrutura e função, a necessária comunhão entre o preceito normativo e as circunstâncias do caso concreto" ("Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002". A Parte Geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional, p. XXI).

 

Bibliografia Citada

 

          CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso Avançado de Direito Civil – Volume 6. São Paulo: Ed. RT, 2000.

          FIUZA, Ricardo. Novo Código Civil Comentado. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.

          GOMES, Orlando. Sucessão. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

          Itabaiana DE OLIVEIRA, Arthur Vasco. Tratado de direito das sucessões. São Paulo: Max Limonad, 1952. vol. I.

          HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; CAHALI, Francisco José. Curso Avançado de Direito Civil – Volume 6. São Paulo: Ed. RT, 2000.

          MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – 6º volume – Direito das Sucessões. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

          MORAES, Walter. Programa de Direito das Sucessões. Teoria Geral e Sucessão Legítima. São Paulo: Ed. RT.

          PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, 13. ed. Rio de Janeiro : Forense, 2001. vol. VI.

          RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 22. ed. São Paulo : Saraiva, 1998. 7 vol.

          TEPEDINO, Gustavo. A Parte Geral do novo Código Civil: Estudos na Perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

          VELOSO, Zeno. "Direito sucessório dos companheiros". Direito de Família e o novo Código Civil. Coordenadores: Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte: Del Rey e IBDFam, 1ª ed.: 2001; 2ª ed.: 2002.

  


Referência  Biográfica

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka  –  Procuradora Federal em São Paulo (SP); Doutora em Direito pela USP; Professora doutora de Direito Civil da USP e Diretora da Região Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam).

hironaka@uol.com.br

Interrogatório: primeiras impressões sobre as novas regras ditadas pela Lei n.º 10.792, de 1º de dezembro de 2003

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* Renato Flavio Marcão 

Sumário:  1. Introdução; 2. Considerações sobre algumas das modificações; 2.1. sobre o novo artigo 185; 2.2. sobre o novo art. 186; 2.3. sobre o novo art. 187; 2.4. sobre o novo art. 188; 2.5. sobre o novo art. 189; 2.6. sobre o novo art. 190; 2.7. sobre o novo art. 191; 2.8. sobre os arts. 192, 193 e 195; 2.9. sobre o novo art. 196; 2.10. curador ao réu menor; 3. Incidência imediata; 4. Conclusão.

 


1.  Introdução

            Entrou em vigor no dia 02 de dezembro de 2003, por força do disposto no seu artigo 9º, a Lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003, alterando a Lei no 7.210, de 11 de junho de 1984 – Lei de Execução e o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal.

            No tocante a Lei de Execução Penal a Nova Lei determinou alterações em relação aos artigos 6º; 34 (§§ 1º e 2º); 52 (incisos I/IV, §§ 1º e 2º); 53 (inc. V); 54 (§§ 1º e 2º); 57 (caput e parágrafo único); 58; 60 (caput e parágrafo único); 70 (inc. I); 72 (inc. VI); 86 (§§ 1º e 3º); 87 (parágrafo único); 112 (§§ 1º e 2º).

            Além das modificações nos dispositivos acima indicados, também no que pertine a Execução Penal estabeleceu outras providências em seus artigos 3º/8º.

            No que tange ao Código de Processo Penal a Nova Lei determinou modificações sensíveis, relacionadas ao interrogatório (art. 185 e seguintes); resvalando na questão da defesa técnica (art. 261) e na citação do réu preso (art. 360), aqui, para determinar que “se o réu estiver preso, será pessoalmente citado,” afastando a antiga discussão sobre tal necessidade ou sobre a regularidade da simples requisição ao Diretor do estabelecimento penal.

2. Considerações sobre algumas das modificações

            2.1. Sobre o novo artigo 185

            Dispunha o artigo 185 do CPP: “O acusado, que for preso, ou comparecer, espontaneamente ou em virtude de intimação, perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado”.

            Dispõe o caput do novo artigo 185 do CPP: “O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado”.

            Como se vê, persistindo a necessidade de interrogatório do acusado sempre que possível sua realização, até o trânsito em julgado da sentença final,[1] a nova regra assegura maior amplitude de defesa na medida em que passa a exigir que o interrogatório se verifique na presença de defensor, constituído ou nomeado.

            Já não prevalece o posicionamento anteriormente calcificado, embora duramente combatido por vários doutrinadores, no sentido de que o interrogatório é ato exclusivo do juiz.[2]

            Anteriormente era tranqüilo o entendimento no sentido de que a presença do defensor não era exigida no ato do interrogatório, porquanto não prevista em lei,[3] o que agora restou contrariado por disposição expressa.

            Ao artigo 185 a Nova Lei acresceu um parágrafo único com a seguinte redação: “O interrogatório do acusado preso será feito no estabelecimento prisional em que se encontrar, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Inexistindo a segurança, o interrogatório será feito nos termos do Código de Processo Penal”.

            Assim, comparecendo em Juízo espontaneamente ou em razão de ter sido preso,[4] a necessidade do interrogatório é manifesta, até porque, agora, mais do que antes, está evidenciado na lei, embora não expresso, que tal ato constitui especial meio de defesa,[5] conforme analisaremos mais adiante.

            Outra inovação trazida com a nova redação do artigo 185 decorre do disposto em seu parágrafo segundo, que assim determina: “Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista reservada do acusado com seu defensor”.

            Salutar a previsão, que contém regra impositiva, a indicar uma obrigação e não mera faculdade conferida ao Magistrado.

             Salientada a nova orientação do interrogatório com maior amplitude na atuação defensória, era imprescindível assegurar o direito de entrevista reservada, ocasião em que o acusado poderá receber orientação técnica de seu defensor, nomeado ou constituído, a lhe propiciar maior segurança e meios de defesa.

            2.2. Sobre o novo art. 186

            A regra anterior continha a seguinte redação: “Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”.

            Segundo o regramento novo: “Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas”.

            Ao referido dispositivo foi acrescido um parágrafo único com a seguinte redação: “O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”.

            Nesse passo é importante destacar que desde 05 de outubro de 1988 o art. 5º, inc. LXIII, da Constituição Federal, passou a assegurar aos acusados o direito ao silêncio. Trata-se do que se convencionou chamar “silêncio constitucional”.

            Desde então já se tem por certo na doutrina e jurisprudência que a regra do art. 186 do CPP não prevalecia no ordenamento, no tocante à possibilidade do “silêncio ser interpretado em prejuízo da própria defesa”. Mesmo assim, na prática, muitas vezes não é isso o que se vê.

            Cuidou o legislador, agora, de deixar expresso o que já estava claro para aqueles que haviam deitado reflexões sobre o texto constitucional, que não é de data recente.

            2.3. Sobre o novo art. 187

            O art. 187 do CPP, que foi derrogado, tinha a seguinte redação: “O defensor do acusado não poderá intervir ou influir, de qualquer modo, nas perguntas e nas respostas”.

            A matéria que era tratada no art. 187 passou a ser tratada no atual art. 188, e a que estava no 188 passou a ser cuidada no atual art. 187, também com modificações.

            A nova redação do art. 187 vem nos seguintes termos: “Art. 187. O interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do acusado e sobre os fatos. § 1o Na primeira parte o interrogando será perguntado sobre a residência, meios de vida ou profissão, oportunidades sociais, lugar onde exerce a sua atividade, vida pregressa, notadamente se foi preso ou processado alguma vez e, em caso afirmativo, qual o juízo do processo, se houve suspensão condicional ou condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu e outros dados familiares e sociais. § 2o Na segunda parte será perguntado sobre: I – ser verdadeira a acusação que lhe é feita; II – não sendo verdadeira a acusação, se tem algum motivo particular a que atribuí-la, se conhece a pessoa ou pessoas a quem deva ser imputada a prática do crime, e quais sejam, e se com elas esteve antes da prática da infração ou depois dela; III – onde estava ao tempo em que foi cometida a infração e se teve notícia desta; IV – as provas já apuradas; V – se conhece as vítimas e testemunhas já inquiridas ou por inquirir, e desde quando, e se tem o que alegar contra elas; VI – se conhece o instrumento com que foi praticada a infração, ou qualquer objeto que com esta se relacione e tenha sido apreendido; VII – todos os demais fatos e pormenores que conduzam à elucidação dos antecedentes e circunstâncias da infração; VIII – se tem algo mais a alegar em sua defesa”.

            2.4. Sobre o novo art. 188

             Cuidava o antigo art. 187 de não permitir o contraditório no interrogatório, e tal impossibilidade fora reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal,[6] sendo que tal posicionamento agora deve ser revisto, porquanto mitigada a rigidez anteriormente expressa.

             Conforme asseverou Damásio E. de Jesus ao tempo da antiga redação, não era de se admitir a intervenção da defesa no interrogatório, tampouco do Ministério Público.[7] Mesmo assim diversos autores ousaram atacar com fortes e inteligentes argumentos a inflexibilidade da regra, existindo sobre o assunto excelentes trabalhos publicados, cumprindo destacar dentre eles substancioso artigo do advogado Renato de Oliveira Furtado.

            Outro excelente trabalho publicado sobre o tema segue assinado pelo então Promotor  de Justiça, o Jurista Dr. Fernando Yukio Fukassawa, intitulado: Interrogatório judicial e o contraditório.[8]

            A Nova lei diz que a redação do art. 188 do CPP passa a ser a seguinte: “Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante”.

            De logo se vê que agora o defensor e também o Ministério Público ou o querelante (“…o juiz indagará das partes…”), poderão influenciar, de algum modo, ao menos nas perguntas.

            É bem verdade que não se deve entender que a Lei autoriza às partes “intervir ou influir” diretamente nas perguntas feitas pelo juiz ou nas respostas apresentadas pelo acusado, de forma a procurar mudar uma ou outra.   Também não se autorizou a formulação de perguntas pelas partes ao acusado.

            O que está autorizada legalmente, no momento indicado e na forma evidente, é a indicação de fato a ser esclarecido, decorrendo de tal indicação a possibilidade de nova formulação de perguntas ao acusado, sempre pelo magistrado que presidir o ato.

            Seja como for, é inegável que agora a lei passou a admitir, de algum modo, que as partes influenciem nas perguntas…

            Muito embora caiba ao juiz apreciar a pertinência e relevância da(s) pergunta(s) formulada(s), para depois refazê-la(s) ou não ao acusado, é certo que uma vez indeferida(s) deverá cuidar-se para que conste(m) do termo exatamente como formulada(s) pela(s) parte(s) e as razões do indeferimento, como garantia da ampla defesa, visto abrir-se a possibilidade de discussão em eventual ataque recursal sobre tal particularidade.

             2.5. Sobre o novo art. 189

             Diz o novo artigo 189: “Se o interrogando negar a acusação, no todo ou em parte, poderá prestar esclarecimento e indicar provas”.

            Tal regra vinha disposta anteriormente no parágrafo único do art. 188 do CPP, e houve modificação não só na disposição topográfica, mas também na redação.

            A mudança torna a regra mais flexível e ajustada à nova conotação que se dá ao interrogatório dentro do processo. Antes, negando a imputação no todo ou em parte, o acusado deveria ser convidado a indicar as provas da verdade de suas declarações. Era como que se tivesse que provar que não havia praticado a conduta, total ou parcialmente, inobstante a presunção constitucional de inocência e o inegável ônus de provar a acusação que pertence ao Ministério Público, na ação pública, e ao querelante, na ação penal privada.

             Afastada qualquer discussão sobre as decorrências que a regra impunha, e seus efeitos, tem-se agora que não há para o acusado qualquer ônus de indicar provas “da verdade de suas declarações”. Poderá, entretanto, prestar esclarecimentos a tal respeito e indicar provas. Trata-se, agora, de uma mera faculdade, quando antes parecia um dever, disfarçado pela quase suavidade da palavra “convidado”.

              2.6. Sobre o novo art. 190

              A redação antiga era nos seguintes termos: “Se o réu confessar a autoria, será especialmente perguntado sobre os motivos e circunstâncias da ação e se outras pessoas concorreram para a infração e quais sejam”.

            Agora, diz o novo art. 190 do CPP: “Se confessar a autoria, será perguntado sobre os motivos e circunstâncias do fato e se outras pessoas concorreram para a infração, e quais sejam”.

            Antes, confessando a autoria, o réu era especialmente perguntado sobre os motivos e circunstâncias da ação. Agora, nas mesmas condições, será perguntado sobre os motivos e circunstâncias do fato.

             Retirou-se a palavra “especialmente”, extraindo-lhe a importância anteriormente dada em detrimento de outros questionamentos, e reconhecendo-se que uma infração penal pode ser praticada não só por “ação”, ajustou-se o  texto trocando a palavra ação pela palavra fato, que aqui tem a conotação de ação ou omissão.

            De relevante, ainda, cumpre destacar, por aqui, a delação não premiada, e é cediço que a delação de co-réu que, confessando a prática do delito indica seu comparsa, tem validade como prova em detrimento deste último.[9]

             2.7. Sobre o novo art. 191

            Dispõe o novo art. 191 do CPP que “havendo mais de um acusado, serão interrogados separadamente”.

            Tal regra vinha prevista no antigo art. 189, nos seguintes termos: “se houver co-réus, cada um deles será interrogado separadamente”.

            Aprimorada a redação, nada de substancioso se modificou em termos jurídicos. 

            2.8. Sobre os arts. 192, 193 e 195[10]

           O novo artigo 192 estabelece regras para o interrogatório do mudo, do surdo ou do surdo-mudo. A matéria era tratada por artigo de igual numeração.

            O art. 193 trata do interrogatório daquele que não fala a língua nacional, e enquanto pela redação antiga, ditada pelo artigo de igual numeração, o interrogatório era feito por intérprete, agora ele passa a ser feito por meio de intérprete. Assim, cumprirá ao juiz competente proceder ao interrogatório, por meio de intérprete.

             Acrescente-se que mesmo que o juiz tenha o domínio da língua estrangeira falada pelo réu, a presença de intérprete será imprescindível caso a defesa não disponha de igual conhecimento e formação, sob pena de violação do princípio constitucional da ampla defesa.

            Por fim, o art. 195 diz que “se o interrogado não souber escrever, não puder ou não quiser assinar, tal fato será consignado no termo”.

             2.9. Sobre o novo art. 196

             Dispõe o novo art. 196 que: “A todo tempo o juiz poderá proceder a novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes”.

            De extrema valia defensória a nova regra.

           Com efeito, antes não se facultava expressamente às partes a possibilidade de pedir a realização de um novo interrogatório. Restava ao juiz, apenas e tão-somente, agir de ofício, e é preciso reconhecer que, embora muitas vezes recomendado e necessário diante da prova colhida no curso da instrução processual, quase nunca se procede a um segundo e mais esclarecedor interrogatório, decorrendo de tal omissão, no mais das vezes, prejuízos irreparáveis.

            Agora a lei permite a postulação, que deverá ser feita de forma fundamentada, como fundamentada deverá ser a decisão que a apreciar, por imperativo constitucional, a teor do disposto no art. 93, inc. IX da CF, sob pena de nulidade.

            É bem verdade que a lei diz que o juiz poderá proceder a novo interrogatório, a revelar tratar-se de uma faculdade. De ver-se, entretanto, que se justificada a postulação, trata-se de um poder-dever, inclusive em homenagem ao princípio que determina a busca da verdade real.

            Feito o pedido, de forma fundamentada, e havendo indeferimento, entendemos deva a decisão ser atacada em sede de preliminar em apelação, por constituir matéria relacionada a cerceamento de defesa, se o pedido for defensório.

            Se o pedido negado tiver sido formulado pelo Ministério Público, também na mesma ocasião e pela mesma via poderá ser alegado eventual cerceamento de acusação.

             Entendemos que a questão não poderá ser apreciada em sede de habeas corpus, como por certo muitas vezes se pretenderá, por envolver valoração de prova, a escapar do âmbito estreito do remédio heróico. 

              2.10. Curador ao réu menor

              Dispunha o art. 194 do CPP que se o acusado fosse menor (maior de 18 e menor de 21 anos, obviamente), seu interrogatório deveria ser realizado na presença de curador.

            Com o advento do Novo Código Civil a maioridade civil que por idade era alcançada aos 21 (vinte e um) foi rebaixada para os 18 (dezoito) anos de idade.

            Desde então, notáveis juristas, dentre eles Luiz Flávio Gomes e Fernando da Costa Tourinho Filho, passaram a sustentar que a regra determinou efeitos na legislação penal e processual penal. Um deles seria exatamente a revogação do art. 194 do CPP, situação agora confirmada, expressamente, pelo art. 10 da Lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003, onde está expresso: “Revoga-se o art. 194 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941”.

             Superada a discussão, já não subsiste a necessidade de nomeação de curador ao réu menor de 21 (vinte um) anos.

3. Incidência imediata

            Conforme estabelece o art. 2º do CPP, “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.

            Na lição de Manzini, citado por Eduardo Espínola Filho,[11] “os problemas de direito transitório processual penal não se devem confundir com os de direito transitório penal substantivo (Trattato di diritto processuale penale italiano secondo il nuovo Códice, vol. 1º, 1931, página 162)”.

            O mesmo Espínola Filho acrescenta que “o princípio da aplicação imediata da lei processual penal, consagrado no Código, está na mais absoluta coerência das regras norteadoras do instituto do direito intertemporal, pelas quais não se sustenta a irretroatividade de leis processuais”.[12]

            O art. 9º da Lei 10.792/2003 dispõe que a mesma entra em vigor na data de sua publicação, tendo esta ocorrido em 02 de dezembro de 2003.[13]

            Pela regra geral estabelecida no art. 2º do CPP, aplicável à espécie, todos os atos processuais anteriormente praticados e que ela regula estão a salvo, não precisam ser renovados nos moldes da Lei Nova. Contudo, após a vigência do Novo Diploma, os atos praticados deverão observar a tipicidade, guardar conformidade com os modelos previstos, sob pena de nulidade.

4. Conclusão

          Embora passível de críticas em razão da não observância de uma melhor técnica de elaboração legislativa,[14] já que a Lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003, tratou de modificar textos da Lei de Execução Penal e também do Código de Processo Penal em seu corpo único, primeiro dispondo sobre modificações na Lei de Execução Penal, depois sobre modificações no Código de Processo Penal, para depois estabelecer outras regras que interessam à Execução Penal e já ao final, em seu art. 10, revogar dispositivo do Código de Processo Penal, é certo que se revela um valioso instrumento de defesa, na medida em que cuida de estabelecer, no que tange ao tema acima abordado, mecanismos que possibilitam efetivamente uma maior movimentação defensória, justamente em um dos primeiros e mais importantes momentos do processo penal: o interrogatório.

——————————————————————————–

[1] Sobre o tema, confira-se: STF, HC 51.913, DJU 2.9.74, p. 7012.

[2] STJ, RT 721/534.

[3] STJ, RT 683/359.

[4] Caso “o Juízo” não vá até sua presença, e na prática acreditamos que no mais das vezes tudo continuará como está, ou seja, os interrogatórios continuarão a ser feitos no Fórum, em Juízo, e não nos estabelecimentos, isso em face da inegável ausência de segurança. Aliás, no Estado de São Paulo o Poder Judiciário baixou regra desobrigando os Juízes de Execução Penal de comparecer mensalmente nos estabelecimentos penais, contrariando, inclusive, a Lei de Execução Penal (art.66, inc. VII).

[5] O que não afasta dizer que também é meio de prova, até porque a defesa se movimenta nos autos produzindo prova em benefício do acusado.

[6] RT 731/542.

[7] JESUS, Damásio E. de. Código de Processo Penal Anotado, 15ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 154.

[8] RT 676/403.

[9] RT 536/309.

[10] “Art. 194 – revogado”.

[11] ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, Rio de Janeiro: Borsoi, vol. I, 3ª ed., 1954, p. 163.

[12] Ob., cit., p. 165.

[13] D.O.U. de 02 de dezembro de 2003, p. 2.

[14] Não se observou, por exemplo, o disposto no art. 7º, inc. I, da Lei Complementar 95/98.

  


Referência  Biográfica

Renato Flávio Marcão  –  Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo; Mestre em Direito Penal, Político e Econômico; Especialista em Direito Constitucional; Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal (Graduação e Pós); Coordenador Cultural da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo; Sócio-fundador e Presidente da AREJ – Academia Rio-pretense de Estudos Jurídicos, e ex-Coordenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia; Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP); Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim); Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP); Membro do Instituto de Estudos de Direito Penal e Processual Penal; Membro da Comissão Regional de Bioética e Biodireito da OAB/São José do Rio Preto-SP e Autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001) e Tóxicos – Leis 6.368/76 e 10.409/02 anotadas e interpretadas (Saraiva, no prelo).

rmarcao@terra.com.br

O Direito, as funções do Estado e a importância do Poder Judiciário

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* Marco Aurélio Paganella          

            A despeito de evolução, Charles Darwin (1809-1882), naturalista e biólogo inglês, legou a huma-nidade a chamada teoria evolucionista ou seleção natural. Por analogia, FERREIRA (1999:606) explica que "Darwinismo social é a corrente teórica da segunda metade do séc. XIX e primeira metade do séc. XX, ou a doutrina por ela formulada, que aplica alguns princípios básicos da idéia darwinista de evolução (como as de seleção natural, luta pela existência e sobrevivência do mais apto) ao estudo e interpretação de vida humana em sociedade."

            Por falar em sociedade – sempre tendo em vista os aspectos evolutivos que permitiram o surgimen-to, a proliferação e a consolidação da posição do homo sapiens sapiens no planeta Terra perante todos os outros seres vivos –, BASTOS (1998:03) diz que "É um truísmo (é uma verdade) afirmar-se que o homem é um animal social. Com efeito, tem sido esta sua situação em todos os tempos, a de viver em sociedade."

            Destarte, decorrido o período marcado pelo nomadismo, os seres humanos passaram a viver em es-tado gregário e relativamente unidos pelo sentimento de consciência de grupo em certa faixa de tempo e de espaço. A partir de então, as relações interpessoais emergiram sobremaneira, vale dizer – sem entrar propriamente no mérito e, tampouco, objetivando-se esmiuçar o assunto –, viver em coletividade sig-nificava respeitar limites impostos por normas comuns a todos. BRUNO NETO (1999:402) ensina que "os elementos constitutivos ou essenciais da sociedade são: materiais = homem e base física. O homem é o elemento fundamental da sociedade. A base física é a sede, o lugar onde se desenvolvem as relações sociais; formais = normas jurídicas ou poder. Essas normas organizam as sociedades e disciplinam o comportamento de seus associados. O poder é natural a todas as formas de organização social, como imperativo de coordenação e de coesão. As normas seriam inócuas, se desprovidas de força capaz de executá-las. Sem o poder, a sociedade descambaria para o caos."

            A história, em numerosas passagens, mostra que o poder não foi exercido da melhor forma, ao contrário! Déspotas, tiranos, ditadores e outros cognomes pejorativos denotam o uso inadequado do poder, isto é, somente para a satisfação pessoal dos mesmos, entre outras ‘benesses’. Noutra parte, como salienta BASTOS (1998:03), "é inegável que, tornando-se os homens responsáveis não só pela sobrevivência pessoal, mas também pela resolução dos problemas que permitissem a manutenção e a sobrevivência do grupo social, deu-se lugar aí a uma função voltada aos interesses da coletividade, à resolução dos problemas que ultrapassam os indivíduos, os problemas transpessoais, os problemas coletivos enfim. Trata-se do aparecimento do político", este, ago-ra, nesta acepção, visto com bons olhos.

            No que concerne ao exercício do poder, o mesmo CELSO BASTOS (1998:04) assevera que "Com o surgimento do problema do poder emerge também o daqueles que vão desempenhar a função política. É certo que nessa época se poderia estar muito longe da institucionalização do poder tal como conhecido no mundo moderno; o processo do exercício do poder afigurava-se entremeado com outros aspectos da vida social, por exemplo, o aspecto guerreiro e o aspecto religioso. Não se havia ainda ganho a autonomia do político. Mas o fato de ele não ter nessa época se destacado plenamente de outras funções não quer dizer que já não existisse uma função política."

            Sobre poder, CRETELLA JR. (1992:55) completa, dizendo que "o vocábulo "poder" é vocábulo equívoco, significando "Poder" (com "P" maiúsculo) e "poder" (com "p" minúsculo), o primeiro equivalente ao "Pouvoir", francês, o segundo equivalente ao "puissance". "Poder", com "P" maiúsculo, é cada um dos três Poderes – o Poder (Legisla-tivo, Executivo, Judiciário) –, e "poder", com "p" minúsculo, é uma "força que irradia de determinada fonte."."

            Ubi societas, ibi jus. Ora, como bem diz o brocardo, onde há sociedade, aí há direito. É óbvio a-firmar, pois, que sociedade, poder e direito são conceitos inalienáveis à estruturação humana em forma de agrupamentos. Desta maneira, é de bom alvitre conceituar o direito – de modo sintético, evidentemente –, tal como se fizera logo atrás com ‘sociedade e poder’. SILVA (2002:268) é claro ao dizer que "em seu sen-tido objetivo, propriamente derivado do directum latino, o direito, a que se diz de norma agendi, apresenta-se como um complexo orgânico, cujo conteúdo é constituído pela soma de preceitos, regras e leis, com as respectivas sanções, que regem as relações do homem, vivendo em sociedade. A característica dominante do direito, no seu sentido objetivo, está, portanto na coação social, meio de que se utiliza a própria sociedade para fazer respeitar os deveres jurídicos que ela mesmo instituiu, a fim de manter a harmonia dos interesses gerais e implantar a ordem jurídica."

            Na esteira do estudo logo atrás delineado acerca da sociedade, do poder e do direito, exsurge a questão do denominado Estado. Segundo MALUF (1995:19), o "conceito de Estado vem evoluindo desde a antigüidade, a partir da Polis grega e da Civitas romana. A própria denominação de Estado, com a exata significação que lhe atribui o direito moderno, foi desconhecida até o limiar da Idade Média. Foi Maquiavel quem introduziu a expressão, definitivamente, na literatura científica." Após diversas e pertinentes observações, o mesmo autor (1995:21) acentua que "O Estado, democraticamente considerado, é uma instituição nacional, um meio destinado à realização dos fins da comunidade nacional. De acordo com estes princípios, considerando que só a nação é de direito natural, enquanto o Estado é criação da vontade humana, e levando em conta que o Estado não tem autoridade nem finalidade próprias, mas é uma síntese dos ideais da comunhão que ele representa, formulamos o seguinte conceito simples: O Estado é o órgão executor da soberania nacional."

            BASTOS (1998:05) assevera que "O Estado – entendido portanto como uma forma específica da sociedade política – é o resultado de uma longa evolução na maneira de organização do poder." O mesmo BASTOS (1995:10) complementa, descrevendo que "O Estado é a organização política sob a qual vive o homem moderno. Ela caracteriza-se por ser a resultante de um povo vivendo sobre um território delimitado e governado por leis que se fundam num poder não sobrepujado por nenhum outro externamente e supremo internamente."

            Prosseguindo-se na redução epistemológica a que se propôs, no sentido de ‘comentar a noção de Poder Judiciário…’, tem-se, com TAVARES (2002:727), que "O "poder" ou, mais rigorosamente, as funções podem estar divididas entre diversos entes políticos dentro de um mesmo Estado. Trata-se da repartição vertical do "poder", como comumente é chamada e pela qual é possível identificar um Estado federal. O Estado denominado federal apresenta-se como o conjunto de entidades autônomas que aderem a um vínculo indissolúvel, integrando-o. Dessa integração emerge uma entidade diversa das entidades componentes, e que incorpora a federação." O autor põe termo ao pensamento, declarando que "No federalismo, portanto, há uma descentralização do poder (aqui é possível vislumbrar claramente a presença do aspecto democrático peculiar à federação suscitado no bojo da questão em comento), que não fica represado na órbita federal, sendo compartilhado pelos diversos integrantes do Estado. Todos os componentes do Estado federal (sejam Estados, distritos, regiões, províncias, cantões ou Municípios) encontram-se no mesmo patamar hierárquico, ou seja, não há hierarquia entre essas diversas entidades, ainda que alguma seja federal e outras estaduais ou municipais."

            ARAÚJO (1999:178) explica que "Todas essas entidades são dotadas de autonomia (pautada na já reconhecida soberania no plano do Direito Internacional) e possuem o mesmo patamar hierárquico no bojo da Federação." O mesmo (1999:179/197) escreve que "a manutenção dessa autonomia como o exercício dela serão objeto do acordo federalista, que, ao menos, deve vir vazado nas cláusulas a seguir expostas: repartição constitucional de competências e rendas; possibilidade de auto-organização por uma Constituição própria; rigidez constitucional; indissolubilidade do vínculo/pacto federativo; participação da vontade das ordens parciais na elaboração da norma geral; representação pelo Senado Federal; intervenção federal nos Estados/nos Estados-membros; existência de um tribunal constitucional/o Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição."

            Não obstante todas estas entidades e subdivisões, ARAÚJO (1999:227) é enfático ao afirmar que "O Poder é uno e indivisível. Em outras palavras, o poder de determinar o comportamento de outras pessoas não pode ser fracionado. Assim, a edição de uma lei, de um ato administrativo ou de uma sentença, embora produto de distintas funções, emana de um único pólo irradiador do poder: o Estado". Com efeito, continua o autor, "a função legislativa pode ser definida como a de criação e inovação do ordenamento jurídico; a função executiva tem por objeto a administração da coisa pública; a função jurisdicional é a voltada para a aplicação da lei ao caso controvertido."

            A respeito da independência e da harmonia entre os poderes, depois de já estabelecer que o poder é uno e indivisível, mas ‘dividido’ em funções, ARAÚJO (1999:228) narra que "Essas funções do Estado, depois de identificadas enquanto tais por Aristóteles, foram ao encontro do pensamento de Montesquieu, em seu célebre trabalho O espírito das leis. A grande inovação na obra de Montesquieu consistiu exatamente em demarcar que tais funções deveriam ser exercidas por órgãos distintos, estabelecendo uma divisão orgânica do Estado. A idéia subjacente a essa divisão era criar um sistema de compensações, evitando que uma só pessoa, ou um único órgão, viesse a concentrar todo o poder do Estado…. , estaria criado, portanto, o sistema de "freios e contrapesos", pois, tais poderes – os órgãos do Estado – deveriam inter-relacionar-se de forma harmônica, mas cada qual mantendo o respectivo âmbito de independência e autonomia em relação aos demais." KARL LOEWESTEIN (In MARTINS:1992, 54) mostra que "La dicotomía fundamental aquí propuesta de distribuición y concentración en el ejercicio del poder político sugiere un examen crítico de uno de los dogmas políticos más famosos que constituye el fundamento del constitucionalismo moderno: la así llamada ‘separación de poderes’, esto es, de los ‘poderes’ legislativo, ejecutivo y judicial."

            No dizer de MORAES (2002:1276), "O Poder Judiciário é um dos três poderes clássicos previstos pela doutrina e consagrado como poder autônomo e independente de importância crescente no Estado de Direito, pois, como afirma Sanches Viemonte, sua função não consiste somente em administrar a Justiça, sendo mais, pois seu mister é ser o verdadeiro guardião da Constituição, com a finalidade de preservar basicamente os princípios da legalidade e da igualdade, sem os quais os demais se tornariam vazios. Não se consegue conceituar um verdadeiro Estado democrático de direito sem a existência de um Poder Judiciário autônomo e independente para que exerça sua função de guardião das leis, pois, a chave do poder do judiciário se acha no conceito de independência. Assim, é preciso um órgão independente e imparcial para velar pela observância da Constituição e garantidor da ordem na estrutura governamental, mantendo em seus papéis tanto o Poder Federal como as autoridades dos Estados Federados, além de consagrar a regra de que a Constituição limita os poderes dos órgãos da soberania." Esclarece que "A função típica do Poder Judiciário é a jurisdicional, i. é, julgar, aplicando a lei a um caso concreto, que lhe é posto, resultante de um conflito de interesses. Portanto, a função jurisdicional consiste na imposição da validade do ordenamento jurídico, de forma coativa, toda vez que houver necessidade." Este pensamento sintetiza com maestria a noção de Judiciário e, inegavelmente, é o parâmetro que contextualiza este Poder perante todos os outros aspectos trazidos à baila neste trabalho, desde o caráter evolutivo da sociedade humana, passando pelos conceitos de Direito, de Estado e de Poder, até chegar nas Funções, especialmente a do Poder Judiciário, na perspectiva de sua centralidade e no sentido de constituir o Brasil num Estado Democrático de Direito.

            Não resta a menor dúvida de que o Judiciário encerra em si um papel de vital importância na cons-trução supra delineada. Entretanto, ficou patente, também, que ele não é ‘o salvador da pátria’, vale dizer, sua relevância é proporcional aos outros elementos que compõem a Federação e a Democracia brasileiras. É um pilar, mas, não a base toda! Haja vista que andou muito bem na questão da ADI 1.439-DF, quando ‘omitiu-se’, por duas vezes, no que se refere à contenda do salário mínimo. Na primeira, por compreender que está equiparado ao Legislativo e este, como Poder Político do Estado, tem a sua própria autonomia, não sendo passível, pois, de sofrer este tipo de ingerência. Na segunda situação, porque respeitou o Poder Executivo quanto ao aspecto orçamentário, ou melhor, o aritmético. É sabido que o salário mínimo do/no Brasil é irrisório: para quem recebe! E para quem paga? Como ficariam as empresas e o próprio Estado, como empregadores, se o salário fosse o que todos desejam? Seria possível, ou estar-se-ia ‘legislando’ so-bre ‘coisas irreais’, do mesmo modo que no processo civil não são possíveis os ‘pedidos impossíveis’?

            É plausível que o Judiciário possa, um dia, determinar que o ganho mínimo de cada um seja tanto quanto for necessário, do modo como está determinado na CF/88. Mas, neste caso, é necessário ponderar, com bom senso, entre o ideal e o ‘real’. No caso em tela, infelizmente, esta realidade ainda prevalece em detrimento do que diz o inc. IV, do art. 7.º, da CF/88. Ademais, não é o ideal, mas é o real: os que conse-guem bom êxito em seus ganhos, os auferem em face a outros cálculos que não os vinculados ao salário mínimo, mas acima deste. É uma constatação e é um retrato cruel do que ocorre realmente: mas é fato.

            A jornalista MARIANA SGARBONI (Revista Superinteressante/Jun-03, p.30.) dá números à tese a-presentada ao descrever que "se tivéssemos uma distribuição de renda perfeita, é importante saber que ninguém seria rico (não seria necessário tanto, bastaria o suficiente a todos para uma existência digna). Pelo atual padrão de renda no país, se toda riqueza produzida em um mês fosse dividida pela população economicamente ativa, dariam 600 reais para cada trabalhador". Quem se habilita a ‘dividir’ a sua renda? Rememora-se, pois, aquela ‘velha história’ de que ‘falar é fácil, fazer é que é difícil’! E o Judiciário, certamente, não tem o condão de transformar o mundo e, tampouco, promover o bem social somente por via de sentenças: há que se respeitar os limites do bom senso, da aritmética, dos mecanismos da lógica racional e a inteligência de todos. Somente assim o Poder Judiciário atuará – não obstante, como disse o Ministro Moreira Alves (In II Fórum Jurídico: 1990, 194), a presença dos "demônios da Justiça: a demora e a carestia" – como verdadeiro instrumento no sentido da construção do Brasil como um Estado Democrático de Direito.

            É preciso, pois, ter uma visão de futuro como a que teve o Prof. Ives Gandra há mais de 10 anos (In II Fórum Jurídico: 1990, 01), isto é, "com integração cada vez maior do direito, da economia, da sociologia, da política, de todas as ciência sociais que compõem o chão, o patamar, onde afloram os princípios constitucionais nossos." É preciso prosperidade, produção, tributação condizente, investimento, honestidade, seriedade, trabalho, poupança, moral, segurança institucional, não submissão aos países mais bem aquinhoados,….

            Para que seja possível ao Judiciário dizer o direito em todos os sentidos (para que todos ganhem o suficiente, inclusive) é necessária uma mudança positiva de todas as instituições, não só a do Judiciário.

            Precisa-se manter o que está correto e mudar o sistema no que for necessário! Somente assim haverá evolução, fazendo-se jus, pois, aos conceitos pertinentes à teoria de Darwin!

            Destarte, ter-se-á o Brasil como um real e verdadeiro Estado Social Democrático de Direito.

 

BIBLIOGRAFIA

             A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988: INTERPRETAÇÕES. II Fórum Jurídico. Ives Gandra da Silva Martins – Coordenador. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária: Fundação Dom Cabral: Academia Internacional de Direito e Economia, 1990. 438p.

            ARAÚJO, Luiz Alberto David. NUNES JR., Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. 413p.

            BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995. 164p.

            BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. 506p.

            BRUNO NETO, Francisco. Primeira Cartilha Acadêmica de Direito Constitucional. 2.ª ed. São Paulo: Ed. de Direito, 1999. 435p.

            CRETELLA JR., José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Vol. I. Art. 1.º a 5.º, I a LXVII. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992. 588p.

            FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio. Novo Aurélio Século XXI. O Dicionário da Língua Portuguesa. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 2128p.

            MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 23.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995. 380p.

            MARTINS, Ives Gandra da Silva. Direito Constitucional Interpretado. São Paulo: RT, 1992. 242p.

            MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. 810p.

            _______, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. 2930p.

            REVISTA SUPERINTERESSANTE. Edição 189. São Paulo: Editora Abril, Junho de 2003. 92p.

            RODRIGUES, Dirceu A. Victor. Dicionário de Brocardos Jurídicos. 6.ª ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1970. 388p.

            SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 19.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. 882p.

            TAVARES, André Ramos. Tratado da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. São Paulo: Saraiva, 2001. 486p.

            ________, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002. 942p.

  


Referência  Biográfica

Marco Aurélio Paganella  –  Advogado, Membro do Escritório Tancredo Advogados Associados S/C, Assistente em Direito Constitucional na Universidade de Santo Amaro – UNISA, Pós-graduando em Direito Constitucional e Tributário no Centro de Extensão Universitária – CEU

marcopaganella@adv.oabsp.org.br

Fecundação “In Vitro” com transferência embrionária: principais aspectos éticos e legais

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* Juliana Frozel de Camargo

Resumo: Surgindo para auxiliar os problemas de esterilidade, as tecnologias reprodutivas, especialmente a técnica da fecundação “in vitro” com transferência embrionária, têm trazido desafios aos estudiosos dos mais diversos campos do conhecimento. No campo jurídico, os progressos não atingiram somente o casamento em si mesmo considerado, privilegiando a relação marido e mulher, mas afetaram a filiação que vincula uma criança a seu pai e a sua mãe. Até que ponto a biotecnologia “age” em benefício da humanidade? Quando parar? Surge a verdade afetiva no lugar da verdade biológica. No Brasil, percebe-se a lacuna jurídica nesta matéria, pois a única norma a respeito é a Resolução nº1.358/92 do Conselho Federal de Medicina. Há uma disparidade entre a Ciência e o Direito o que tem gerado insegurança no âmbito familiar já que não existe, até o momento, um critério que  estabeleça a maternidade e paternidade no caso de utilização desta técnica. Diversos questionamentos éticos têm sido levantados e a discussão e conscientização em matéria reprodutiva deve ser incentivada para que os recursos tecnológicos sejam postos realmente em favor de toda a humanidade.

Palavras-chave: reprodução humana, filiação, lacuna jurídica, dignidade humana.


A família , desde a Antigüidade, é matéria de muita discussão e o modelo herdado do século XIX de uma família nuclear, heterossexual, monógama e patriarcal vem sofrendo inúmeras transformações.

Um dos aspectos substanciais  da alteração do Instituto familiar se deu com a posição jurídica da mulher, que deixou de exercer a função de simples colaboradora do marido na direção da família , através do poder doméstico, para estar ao lado dele tomando em conjunto as decisões. Essa realidade foi confirmada pela Constituição Federal de 1988, que adotou o princípio da igualdade entre os cônjuges e não discriminação entre os filhos, alargando o conceito de família que ganhou destaque não só no casamento, mas também na união estável e ambientes monoparentais. Ressalte-se, também, o crescimento das relações homossexuais.

A esterilidade, reconhecida como uma doença que merece tratamento, sempre foi um grande problema na história da humanidade. Os casais que passam por este sofrimento psicológico e a angústia de não realizarem o sonho de ter um filho ainda enfrentam a discriminação da sociedade.

Com o surgimento das mais variadas técnicas da reprodução  humana assistida, esse problema tem sido contornado, mas outros surgiram e necessitam de rápida solução.

As transformações mais recentes sofridas no universo familiar, e que fizeram surgir a “Nova  Família”, são, sem sombra de dúvida, os avanços da biotecnologia, dando início à procriação  artificial,  tornando  realidade  o  sonho  de  milhões de pessoas estéreis – ter um filho. Embora a reprodução humana assistida tenha se iniciado há muito tempo com a prática da inseminação artificial, nos últimos anos conseguiu grande impulso a partir da prática, cada vez mais freqüente, da fecundação “in vitro” com transferência embrionária (FIVET).

Esta técnica supõe a união do óvulo e o espermatozóide em um laboratório; a fecundação se pratica em uma placa de cultivos sobre um óvulo previamente extraído, procedente da própria mulher ou de uma doadora e do sêmen que também pode ser procedente de um doador. Em seguida, transfere-se o embrião resultante ao útero materno através de um cateter.

Foi no ano de 1978 – mais precisamente em 25 de julho – fruto do trabalho da equipe inglesa, que nasceu na clínica Oldham de Londres, Louise Brown, o primeiro “bebê de proveta” do mundo. No Brasil, esse sucesso foi alcançado em 7 de outubro de 1984, com o nascimento de Ana Paula, no laboratório de Fecundação “in vitro” do Hospital Santa Catarina em São Paulo.

Importante ressaltar que somente oito anos depois deste nascimento é que foi instituída norma a respeito dessas técnicas, a Resolução nº1.358/92 do Conselho Federal de Medicina. Trata-se de uma norma ética-médica.

Apesar dos aspectos positivos desses avanços, como a felicidade do casal de ter filhos, percebe-se a transformação nos conceitos de maternidade e paternidade. Há crianças com três mães – uma genética (provedora do óvulo), uma de nascimento (que deu à luz) e outra chamada de social ou intencional (que efetivamente cria o bebê) – e dois pais – um genético (provedor de sêmen) e outro intencional. Casais estéreis podem trocar a paternidade biológica pela intencional e escolher as características dos pais genéticos e da mulher que vai gerar seu filho.

É neste ponto, dizem os especialistas em ética, que começam os problemas pois a prática está fazendo surgir, especialmente nos Estados Unidos, uma indústria da vida.

No Brasil, a obtenção de sêmen, óvulos e mães substitutivas ainda não virou indústria. Além disso, a Resolução do Conselho Federal de Medicina, que orienta os especialistas em reprodução, determina que a mãe substitutiva deve pertencer à família da doadora genética e proíbe também a venda de óvulos e sêmen.

Assim, os benefícios desses avanços têm trazido também problemas éticos e neste aspecto, entram as diversas indagações sobre o direito dos indivíduos sobre a vida, o direito de serem pais, a transformação do corpo em material de exploração e o ponto máximo em que se pode avançar nesta matéria.

O assunto leva a uma reflexão, sobre qual a prioridade que deve haver entre o biodireito e a bioética , deixando o próprio legislador perplexo diante das incertezas das decisões científicas. Percebe-se que os conceitos são transdisciplinares.

A questão é polêmica justamente porque diz respeito ao direito de reprodução. Diante deste contexto, a grande problemática é, sem dúvida, o descompasso entre o desenvolvimento das técnicas com as regras jurídicas, ou seja, quanto mais crescem as soluções para casos de esterilidade, maior se torna o problema jurídico.

Comprova-se a lacuna jurídica, a incompletude da ordem jurídica nesta matéria. Os adágios mater semper certa est e pater semper incertus est tornaram-se relativos conduzindo o jurista a se interrogar sobre a validade de certos princípios tidos como adquiridos e absolutos. Assim, o progresso científico também trouxe dúvidas sobre as regras de parentesco e sucessão.

O início da vida humana é um marco decisivo para a verificação da legitimidade ou ilegitimidade moral da manipulação de seres humanos, qualquer que seja seu estado de desenvolvimento. Acreditando que a vida humana tem início no próprio momento da concepção, ou seja, com o início da fertilização ou fecundação, começa, por sua vez, uma nova vida humana, única e irrepetível – as coisas então se complicam.

A difusão das novas tecnologias de intervenção sobre o processo da procriação humana nos faz pensar nos aspectos da filiação que agora se divide em filiação de fato e filiação de direito. Tudo isso gera problemas morais relativos ao respeito ao ser humano desde sua concepção: pode-se e deve-se desenvolver tudo que é científica e tecnicamente possível, em matéria de experiência sobre o homem e sua procriação? Como utilizar esses conhecimentos e técnicas em benefício da sociedade sem discriminações? Até onde podemos chegar? Dignidade humana?

Sem dúvida, é um desafio para a Justiça. Mais ainda, um desafio à ciência, a todo o passado e ao presente do gênero humano.

Percebe-se que a técnica em si já foi dominada no campo médico, e, ainda que haja pequenos problemas, esses com certeza serão superados pela ciência em pouco tempo. A grande polêmica está nos questionamentos ético-legais dela advindos. Será que também em pouco tempo esses problemas estarão resolvidos?

A saída para os problemas éticos é, sem sombra de dúvidas, a utilização desses conhecimentos de forma racional, respeitando-se os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, como a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, levando-se em conta todos os envolvidos e principalmente o novo ser que não pediu para nascer. Sem dúvidas, é preciso uma resposta comum para os problemas da biotecnologia que devem ser baseadas nas exigências de uma ética global.

Deve-se destacar que ao fazer referência à aplicação das técnicas de reprodução  assistida, sempre se fala do casal, nunca da vida humana futura, ignorando-se, com ou sem intenção, que todo ser humano tem direito a nascer dignamente.

É importante lembrar que os procedimentos para a técnica da fecundação "in vitro" com transferência embrionária possibilitaram outros benefícios, como por exemplo, a possibilidade de pessoas portadoras de HIV recorrerem a essas tecnologias tendo em vista o risco de contaminação através dos "meios naturais" de procriação, ou ainda, pessoas com doenças de natureza oncológica que deverão se submeter a tratamentos de quimioterapia e radioterapia, podendo perder a capacidade de fertilização, pudessem congelar seus gametas para uma futura utilização e realização de um sonho que poderia desaparecer não fossem os avanços da ciência reprodutiva. Daí a importância da divulgação e esclarecimento à população sobre as tecnologias reprodutivas e os benefícios que elas podem trazer à humanidade, se utilizadas de forma responsável e ética.

Embora existam algumas normas éticas, como a Resolução do Conselho Federal de Medicina, não há uma legislação específica para o assunto, deixando, muitas vezes, decisões muito sérias mercê dos médicos e leigos envolvidos. Ressalte-se, porém, a existência de diversos Projetos de Lei em andamento, mas que estão longe de manifestar uma posição pacífica e eficiente para a regulamentação das técnicas reprodutivas.

É claro que, paralelamente a uma legislação específica, deve existir um programa de divulgação e conscientização sobre as tecnologias reprodutivas para que fique esclarecido quando da indicação para seu uso, os benefícios que ocasionam e, principalmente, para que se evite o uso criminoso delas, já que toda pesquisa deve ter por objetivo não só uma relevância científica, mas, especialmente, relevância e contribuição social.

O Brasil carece de uma legislação apropriada para a questão da reprodução  assistida. A falta de disciplina nessa matéria põe em risco a saúde das mulheres e das futuras crianças, desorganiza parte substancial do Direito de Família e das Sucessões, bem como incentiva os pesquisadores às novas técnicas sem qualquer parâmetro de ética .

Diante de tantas transformações, o direito não pode “fechar os olhos” e manter a convenção tradicional de governo da família. É preciso que um novo direito surja e caminhe junto com essas mudanças, preocupado em criar as condições elementares à estabilidade dos grupos familiares, constituídos ou não, segundo o modelo oficial.

Os progressos científicos da prova da filiação paterna fizeram evoluir o critério da verdade afetiva, e o desenvolvimento genético nos afasta, paradoxalmente, da verdade biológica, tão somente considerada pelo mundo jurídico.

Outro ponto polêmico é saber se o embrião gerado “in vitro” pode ser equiparado e, portanto, ter os mesmos direitos que o embrião gerado “in vivo”, ou seja, no útero materno, já que o artigo 2º do Código Civil Brasileiro preceitua: “a personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro”.

Não é pacífica a questão da equivalência do embrião ao nascituro. O Projeto de lei do Senado nº 90/99, apresentado pelo Senador Lúcio Alcântara, bem como seu Substitutivo de 2001, apresentado pelo Senador Tião Viana, estabelecem que não se aplicam aos embriões originados “in vitro”, antes de sua introdução no aparelho reprodutor da mulher, os direitos assegurados ao nascituro.

Embora a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº1358/92 não admita a destruição dos embriões excedentes, eles devem ser criopreservados, mas até quando?

O assunto, que antes fazia parte da intimidade das famílias, tornou-se interesse público, não podendo mais ser ignorado.

 As regras devem surgir não para coibir e impedir o progresso da biotecnologia  mas, sim, evitar abusos, discriminações e atos que tragam conseqüências ainda mais sérias, já que a inexistência de disciplina legal dá margem para a atuação de profissionais e clínicas inidôneas, e mesmo de meros agenciadores de vida humana, pelo desvirtuamento das técnicas reprodutivas, cujo essencial objetivo é socorrer a infertilidade humana.

É necessário que se crie uma legislação devendo, especialmente, preservar os valores éticos socialmente aceitos. Porém, uma norma legal para a utilização dessas técnicas deve acompanhar a sua modernidade, não podendo ficar vinculada a dogmas jurídicos ultrapassados, sob pena de incentivar processos clandestinos.

Há necessidade de se estabelecer vinculação e controle estatal junto aos laboratórios de pesquisa médica na área de reprodução  humana assistida, como forma de inibir a comercialização da técnica, promoção médica, e restrição do acesso aos métodos disponíveis, bem como proibir a formação de banco de gametas e embriões  sem uma fiscalização do Ministério da Saúde.

Antes de iniciar o procedimento das técnicas reprodutivas é imprescindível uma declaração, através de documento público, dos doadores de gametas e embriões , bem como da doadora do útero para expressar a concordância com a doação irretratável, renunciando da mesma forma a qualquer direito sobre a criança que venha a nascer, evitando um futuro embate entre  pais genéticos ou intencionais.

Este é um tema extremamente complexo e que no Brasil ainda é tratado como um problema privado, e não de ordem pública, o que parece ser um grande erro, tendo em vista tratar-se de vida! Envolve questões etiológicas que merecem reflexão, sem falar nos problemas sociais envolvidos e interesses mundiais de controle da população.

A linha básica das razões morais e jurídicas atuais parte da idéia da proteção dos direitos da pessoa. Se for possível melhorar a condição humana, curar enfermidades e aliviar o sofrimento, não parece haver razão para não seguir tal linha de atualização e investigação desde que não sejam violados os direitos de terceiros.

Ademais, a idéia de família moderna  não se restringe ao ato da procriação  ou revelação dos laços de sangue; há necessidade de outro elemento, caracterizado pelos laços de afeto. A idéia de pai e mãe passa a ser não só ato físico, mas, principalmente, ato de opção.

Embora a legislação pátria não adote de forma explícita a "posse de estado de filho", muitos doutrinadores acreditam que este pode ser o caminho para concretizar os elementos essenciais da relação filial.

Através destes novos desafios trazidos pelos avanços da ciência, percebe-se um processo de descentralização do Código e uma importante função da jurisprudência nestes casos.

As novas técnicas de reprodução assistida são altamente custosas, o que significa que muitos países de escassos recursos econômicos não apresentam essas técnicas na ordem de prioridades da política de saúde do Estado, e, por outro lado, as pessoas de baixa renda também não têm acesso a referidos recursos.

Diante de tantas mudanças surgem mais dúvidas que soluções e repensar a família  e a filiação  é um desafio que sugere refletir sobre a própria razão de ser do Direito.

Ponto quase pacífico é a necessidade de uma orientação psicológica para todos os envolvidos, esclarecendo-se as intenções e expectativas de cada um, para o sucesso da técnica. Como exemplo, os CECOS (Centros de Estudos e Conservação de Óvulos e Espermas Humanos) na França, que têm uma Comissão Psicológica para saber se o casal está realmente preparado para assumir tamanha responsabilidade, e, posteriormente, analisando-se, também, o desenvolvimento físico, psíquico e intelectual da criança.

O desenvolvimento tecnológico nesta área, de fato revoluciona nossas coordenadas de tempo e espaço. Podem existir “gêmeos” com anos de diferença, pode-se gerar vida após a morte, mulheres destinadas a serem “avós”, podem ser mães.

São imensas modificações que podem causar sentimentos de felicidade, mas também de indignação e terror se tais tecnologias forem utilizadas de maneira egoísta e errônea. Afinal, constatar que a humanidade possui em suas mãos a possibilidade efetiva de criar e manipular a vida é algo realmente assustador.

No entanto, apesar da medicina estar evoluindo a passos largos, os Tribunais brasileiros praticamente ainda não se manifestaram sobre casos concretos envolvendo questões decorrentes dessas técnicas.

A jurisprudência, em nível mundial, é paupérrima e a doutrina começa, apenas, a engatinhar. Em particular, no caso brasileiro, o novo Código Civil (art. 1.597, III, IV e V), apesar de reconhecer a realidade das técnicas reprodutivas, não contempla de maneira satisfatória as regras sobre essa temática.

Mas se é verdade que essas técnicas não são mais novidade para a medicina atual, então é indispensável discuti-las, questioná-las, despertar a consciência de todos para a necessidade de discipliná-las sob o prisma da legalidade, moralidade e ética .

Neste momento, todos os caminhos parecem perigosos, pois poderão nos levar a uma série de manipulações com os mais diversos fins. É fundamental que se estabeleça uma discussão séria em torno do assunto para que não se obstaculize o progresso de uma ciência que realmente esteja vinculada a fins positivos.

De tudo o que foi dito, não se deve inferir, de maneira alguma, a existência de qualquer atitude negativa para com a ciência, ou seja, com uma regulamentação o que se pretende não é subverter a ciência e o desejo do casal estéril, mas, sim, uma atitude positiva, consciente e não discriminatória com vistas a algo muito mais importante: o HOMEM e sua DIGNIDADE.

 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Artigo baseado na obra: CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução Humana: Ética e Direito. Campinas: Edicamp, 2003.

  


Referência  Biográfica

Juliana Frozel de Camargo  –  Advogada; Mestre em Direito Civil; Professora de Direito Civil das Faculdades Integradas de Itapetininga; Membro da Comissão Organizadora e Revisora da Revista “Cadernos de Direito” – Mestrado em Direito – UNIMEP;  Membro do Núcleo de Estudos de Direito Ambiental, Empresarial e Propriedade Intelectual – UNIMEP.  2004

camafroju@hotmail.com

O Direito como meio de pacificação social: em busca do equilíbrio das relações sociais

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* Marcos André Couto Santos

Sumário: 1. Introdução – 2. O direito e a sociedade: suas inter-relações – 3. O Direito, as formas de resolução de conflitos e a produção normativa: busca de alternativas – 4. O Direito na busca da semelhança e paz nas relações sociais: conclusões – 5. Bibliografia Referencial.

 


1. INTRODUÇÃO

            O direito, dentro do contexto atual, é mais observado pela maioria como um instrumento para manutenção da ordem e segurança do que como um meio efetivo de implementação da paz, harmonia e igualdade dentro da sociedade.

            Note-se, assim, que em especial o direito legislado/legal visa a perpetuar um status quo vigente, dando apenas guarida e preservando uma elite político-econômica dominante.

            Por exemplo, a mera análise dos diversos diplomas legais sobre crimes contra o sistema financeiro, crimes contra a ordem econômica atesta a suavidade das penalidades aplicadas se comparados a um pequeno furto de um pão para alimentação de uma família carente. (1)

            Esta e tantas outras distorções (2), baseadas na vigência de um direito dogmático, arcaico e cientificamente não desenvolvido com base em dados empíricos, conduzem a um desvirtuamento do fenômeno jurídico que acaba por se concretizar como uma maneira de controlar as classes menos apaniguadas, servindo para aumentar a distância entre os diversos atores sociais.

            No presente trabalho, objetiva-se tecer considerações sobre uma nova forma de produzir, aplicar, pensar e entender o Direito, enquanto fenômeno social, atestando algumas modificações que já vem sofrendo os ordenamentos jurídicos centrais e periféricos.

            Procurar-se-á, enfim, através deste estudo, mostrar que a principal função do direito é reduzir desigualdades, solucionando conflitos com base em dados empíricos cientificamente comprovados, plasmando em toda a comunidade um sentimento de agradabilidade (3) para o desenvolvimento da humanidade, com a perpetuação de sentimentos que aproximem cada vez mais os indivíduos e atores sociais, garantindo a paz, equilíbrio, segurança e harmonia. (4)

 

2. O DIREITO E A SOCIEDADE: SUAS INTER-RELAÇÕES

            O direito é um dos meios de resolução de conflitos existentes no seio de um grupo, sociedade, Estado. A presença do direito dentro da sociedade é tão sentido que já vem desde a época dos romanos expressa no brocardo: "ubi societas, ibi jus." (5)

            Deve o direito refletir os valores e sentimentos básicos a serem preservados dentro da contextura social. Aqueles valores e sentimentos que não podem ser afrontados sob pena de perturbar o equilíbrio das relações sociais, deixando um sentimento de desagradabilidade entre os atores sociais.

            Em sua evolução histórica, como produto da cultura humana, o direito, no início das civilizações, era bastante confundido com a religião e moral, adquirindo feições até místicas a serem respeitadas, sob pena até de banimento ou morte do indivíduo que as descumprisse. (6)

            Com o passar do tempo, cada grupo construiu suas regras e padrões de comportamento desejados visando à manutenção especialmente da ordem e da segurança. Não se tinha muito a idéia de justiça. As normas estabelecidas muitas vezes pela tradição cultural secular eram um meio de manter o grupo coeso com finalidade de enfrentar as guerras e produzir o sustento econômico. (7)

            O direito, nestes períodos primordiais da sociedade humana, tinha um cunho bem individualista, procurando não interferir tanto nas relações humanas, só atuando em casos de conflitos latentes, em especial aqueles ofensivos aos antepassados e às figuras veneradas como deuses.

            Bom exemplo disto reside na civilização greco-romana, onde surgiu o velho adágio: " dar a cada um o que é seu". Não se pensava tanto em interesses coletivos que não tivessem um conteúdo bem amplo, tais como: guerras, jogos.

            Com a Idade Média, as normas jurídicas passaram a ser impostas pelo Senhor Feudal, dono das terras e dos meios de produção, que ditava as regras dentro dos limites de suas propriedades, havendo enormes levas de servos que se submetiam com o objetivo de receber proteção e segurança. (8)

            Aparecendo o Estado Moderno, deu-se a esta estrutura estatal, burocrática e centralizadora a função precípua de produzir as normas jurídicas que eram reduzidas a leis e códigos. Este Estado teria também o monopólio da jurisdição. (9)

            O direito, que se reduzia à lei, ganha neste momento a feição de dogma que não pode ser discutido, mas cumprido por todos. Este direito de início imposto pelo Rei (Monarca) passa depois a ser produzido pelas Assembléias ditas Populares, dentro da ideologia contemporânea da participação de todos no poder; restando, assim, refletida ideológica e topicamente a vontade popular na produção das normas jurídicas que irão salvaguardar os valores e sentimentos mais fundamentais para manutenção e continuidade das relações sociais dentro da evolução do grupo/Estado. (10)

            Entretanto, esta democracia é bem relativa, já que não se têm espaços efetivos/reais para que os menos favorecidos e culturalmente dotados de conhecimentos manifestem-se sobre o direito produzido e a ser elaborado por estas Assembléias Legislativas/Parlamentos, ditos redutos da democracia. (11)

            A forma como o direito desde a modernidade até os dias atuais vem sendo produzido, refletido, pensado e aplicado acaba tornando-o também um instrumento perverso da manutenção das diferenças, dessemelhanças e desigualdades. O direito, na maioria reduzido à lei, torna-se excludente, apenas voltado para iludir uma classe menos favorecida e estimular uma elite dominante. (12)

            Na maioria dos diplomais legais atuais, em especial em Estados Subdesenvolvidos, percebe-se um efeito meramente ideológico e simbólico das normas jurídicas. (13)

            Por exemplo, a Constituição Federal Brasileira de 1988 em seu art. 7º, VI, estabelece que o salário mínimo deverá atender a todas as necessidades do trabalhador e do povo nas áreas de saúde, alimentação, cultura, habitação, etc… Esta norma ilude os menos esclarecidos, tendo um efeito simbólico ao tentar demonstrar que o Estado Brasileiro garante uma vida digna aos seus trabalhadores com base em uma remuneração que atende a todos os anseios. O que na realidade fática não ocorre, levando o direito a um descrédito e perplexidade.

            Normas, como a acima relatada, têm um latente cunho programático (14), enquanto delimitam objetivos do Estado e buscam garanti-los, não se efetivando na prática (eficácia social) por falta de cientificidade em sua elaboração e ausência de reflexão crítica quanto à sua aplicação e conseqüências.

            O efeito que estas normas acabam produzindo é de um sentimento de desagradabilidade, dessemelhança, exclusão, afastamento, exploração dentro do contexto social, servindo como meio de contenção de avanços sociais maiores, simbolizando uma ideologia de uma sociedade excludente, reacionária e extremamente desigual.

            A própria redução do direito à lei; o excesso da produção legislativa e suas anomalias; a demora na solução dos conflitos pelo Poder Judiciário; bem como a forma como são elaboradas as leis pelos Parlamentos, criam um direito sem cunho de cientificidade e de difícil implantação que serve mais para manutenção do status quo do que para redução de desigualdades entre os indivíduos e entes que compõem o corpo social. Vejam-se estas razões de desequilíbrio e descrédito acerca do fenômeno jurídico, abaixo delineados:

            Primeiro, o fato de reduzir-se o direito à lei é algo extremamente irracional, porque as relações sociais tem uma dinamicidade, uma evolução temporal e tecnológica cada vez maior que não se adaptam bem a uma realidade jurídica cristalizada em Códigos/Leis de dezenas de anos atrás.

            O direito tem de se adaptar rápido às mudanças para realizar seu objetivo basilar de manter em ordem, segurança e com paz a coletividade. Assim, reduzir o fenômeno jurídico só a lei é algo conservador e ultrapassado.

            Segundo, há um excesso de produção legislativa. No Brasil, por exemplo, milhares de normas de diferentes graus, níveis e espécies estão em vigor. O cidadão e operador do direito não sabem empiricamente o conteúdo de tantas leis e normas que servem como forma de impor valores e regras muitas vezes em total dissonância com a realidade fática subjacente, apenas servindo para estabelecer um controle através de uma elite político-econômica.

            Não bastasse isto, no Estado Brasileiro, ainda têm-se as famigeradas medidas provisórias que são uma imposição do Poder Executivo que cria estas normas jurídicas, muitas de cunho geral, sem discussão e análise prévia do Parlamento (povo em tese).

            Terceiro, o Judiciário é o principal ente procurado para resolver conflitos sociais existentes. Este muitas vezes demora anos para solver as pendências que lhes são apresentadas, decidindo por demais com base em leis já totalmente defasadas e contra o "espírito" e vontade popular, já que apegados a um legalismo fetichista e estrito.

            Quarto, as normas jurídicas de cunho geral (leis) são elaboradas pelos Parlamentos (Assembléias, Câmaras), formados por representantes escolhidos pelo povo. Entretanto, o processo de escolha já torna difícil o acesso a pessoas de todos os ramos/classes sociais, acabando-se por serem eleitos na maioria indivíduos da elite econômica ou com esta comprometida (vejam-se os custos para eleger um deputado/vereador/senador).

            Logicamente, estes parlamentares irão refletir as idéias e anseios desta elite dominante, produzindo leis que beneficiem e aumentem as diferenças existentes; deixando mesmo de produzir normas que beneficiariam as classes menos favorecidas.

            Neste aspecto, o Brasil oferece muitos exemplos. Existe aqui a tendência do Parlamento em criar normas mais favoráveis a elite, e mesmo omitir-se na produção de outras que afetariam as classes controladores/dominantes. Analise-se: Primeiro, as leis que disciplinam e tipificam os crimes contra a previdência social; crimes contra a ordem econômica e financeira são extremamente lacônicas e de difícil aplicação, podendo-se contar o número de empresários que estão presos por crimes cometidos contra estes bens jurídicos que afetam milhares de brasileiros (veja-se o caso da ENCOL, do Juiz Nicolau, dos anões do orçamento). Segundo, a legislação, além de frágil e de não se basear em dados de ciência empírica, muitas vezes recebe interpretações literais de Magistrados que não percebem o dano social que cometem ao manter em liberdade indivíduos que cometem tão grandes abusos contra a população brasileira. (15)

            Outra situação de deturpação do fenômeno jurídico ocorre quando o Poder Público produz normas e regras para salvar organizações financeiras falidas e mal geridas, utilizando-se para tanto de milhões de reais, quando alguns programas sociais não recebem sequer pequenas ajudas para desenvolver um papel relevante junto aos mais necessitados do Brasil.

            Um exemplo de omissão do Legislativo Brasileiro para favorecer as elites está na não regulamentação do art. 7º, I, da CF/88 (despedida arbitrária), nem do imposto sobre grandes fortunas (art. 153, VII). O primeiro que deveria ser regulamentado para evitar abusos em despedidas de trabalhadores, protegendo a grande massa de brasileiros. E o segundo que regulamentado traria mais numerário/dinheiro aos cofres públicos com uma maior redistribuição de renda, dando e implantando um efeito psicológico de monta para diminuição das desigualdades sócio-econômicas existentes.

            Enfim, a redução do direito à forma legislada (legal), com aplicação restrita por parte do Judiciário para solução das contendas, não atende ao anseio social, não atuando significativamente no sentido de diminuir as dessemelhanças existentes. (16)

            O direito legislado é imposto pelo Estado, atestando-se que mesmo em regimes ditos democráticos não se baseia o fenômeno jurídico em elementos empíricos que dêem ao direito cientificidade para refletir os reais valores e sentimentos de todo o grupo social. Servem precipuamente as normas jurídicas para atender a interesses desarrazoados de uma elite dominante, em sua maioria conduzindo a relações sociais de afastamento entre os indivíduos e grupos de uma sociedade.

3. O DIREITO, AS FORMAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS E A PRODUÇÃO NORMATIVA: BUSCA DE ALTERNATIVAS

            Pelo anteriormente visto, o Direito deve ser dotado e informado por elementos de ciência empírica que atestem quais os valores a serem preservados dentro de cada grupo social/estatal na busca de soluções para os conflitos subjacentes, visando a manter o equilíbrio nas relações sociais. (17)

            Destaque-se que a forma de resolução de conflitos a ser estimulada contemporaneamente não é mais a judicial. O Juiz, mesmo dito um ser imparcial, está bem distante faticamente da realidade das partes litigantes, aplicando um direito oficial também muitas vezes desconexo com os anseios sociais atualmente prevalecentes, não satisfazendo e acalmando empiricamente as partes que sentem nas decisões judiciais um "mal-estar", dito por alguns como necessário.

            Quantas vezes pragmaticamente fica-se desiludido e sem esperanças na resolução de uma pendência levada ao conhecimento do Judiciário ?? Quantas vezes não se questiona a respeito da utilidade desta forma de resolução de conflitos, debatendo-se sobre a justiça e coerência das decisões ??

            Popularmente, o Juiz é distante, conservador, conhecedor de todas as leis. Mas qual o Magistrado que conhece efetivamente a contextura social na qual se desenvolveu empiricamente um conflito ?? Na maioria das vezes, não conhecem mesmo !!!

            Além desta desilusão e falta de confiança no Judiciário, acrescente-se a própria lentidão dos procedimentos judiciais, ainda se questionando se só cabe ao Estado produzir as normas jurídicas a merecem guarida e proteção.

            O questionamento central pode ser o seguinte: consegue o Estado regular toda a vida social impondo normas gerais a uma realidade humana tão multifacetada e que se altera por demais tendo em vista o ambiente altamente tecnológico, globalizado e culturalmente diversificado vivenciado atualmente ??? (18)

            Realmente, o Estado avocou o monopólio da jurisdição e da elaboração das normas jurídicas há mais de dois séculos; não tendo, todavia, este modelo de um direito dogmático, impositivo e aplicado pelo Judiciário mais respaldo nos dias atuais.

            Atualmente, deve-se buscar a solução dos conflitos de um modo menos traumático possível, sempre tentando a composição das partes de forma amigável com base na realidade social que informa a pendência existente.

            Por isso, tem-se de valorizar as conciliações, arbitragem, comissões prévias de resolução de conflitos. Estas formas de resolução de pendências são mais coerentes, justas e democráticas. Isto porque as partes deverão resolver compor o conflito com base em uma conciliação na qual vão tentar evitar maiores tumultos e relações de afastamento e desagradabilidade, recompondo de imediato o equilíbrio social. (19)

            Caso não seja possível a composição, deverá o conflito ser submetido a julgamento por parte de comissões existentes dentro das empresas formadas por trabalhadores e empregadores (questões trabalhistas); comissões formadas por consumidores e lojistas (questões de consumo); comissões de bairro/comunitárias (questões de vizinhança, família). Estas comissões aplicariam o direito mais justo a cada caso concreto com base nos valores plasmados na legislação vigente e na realidade social subjacente.

            Estas Comissões aplicariam normas de equilíbrio, tentando resolver o conflito com base em regras jurídicas, éticas e morais que se apresentam perante o grupo com objetivo de manter a paz e a harmonia entre todos.

            Ao Judiciário, só se levariam as questões mais intrincadas e que exigissem realmente a análise tópica de dispositivos legais, tais como questões de controle de constitucionalidade das leis. Além disto, o Estado e o Judiciário também serviriam para conter abusos de poder na composição dos litígios através das formas conciliatórias, convencionais e de comissões.

            As normas a serem aplicadas nas conciliações, comissões e arbitragem não precisariam ser necessariamente as estatais, poderiam ser as normas previstas e prescritas por cada segmento específico, respeitando apenas o núcleo mínimo de direitos e garantias estabelecidas nas Constituições e Cartas Fundamentais de cada Estado.

            Este modelo (20) proposto é essencialmente científico, porque as normas aplicadas a realidades específicas refletiriam indubitavelmente os valores e sentimentos de cada segmento social. Além disto, a aplicação e adaptação das regras gerais às contexturas sociais reais conduziriam a uma maior aproximação, estampando um sentimento de agradabilidade perante o grupo, resolvendo-se os conflitos de uma forma coerente e justa, analisando a riqueza da lide em toda sua amplitude e complexidade.

            A resolução dos conflitos, com aplicação de normas gerais e específicas pela própria coletividade, conduziria a soluções mais eqüanimes e céleres dos conflitos, resultando numa pacificação ampla com conseqüente maior equilíbrio das relações sociais. (21)

4. O DIREITO NA BUSCA DA SEMELHANÇA E PAZ NAS RELAÇÕES SOCIAIS: CONCLUSÕES

            O objetivo precípuo do direito deve ser, então, a garantia da paz e do equilíbrio das relações sociais, evitando conflitos com fins de promover o desenvolvimento do grupo social (sociedade) com redução das desigualdades existentes.

            As regras jurídicas surgem no meio social, sendo testadas, comprovadas e baseadas em dados de ciência empírica que atestem a conformidade das normas com a realidade social posta, em especial refletindo os reais valores e bens jurídicos a merecer proteção por todos os que compõem o seio social. (22)

            A solução de conflitos deve se basear neste tipo de normas que surgem do contexto social, e refletem a própria essência do homem e do grupo em toda sua riqueza empírica. Os conflitos devem ter uma solução próxima da realidade (23) para não se criarem decisões artificiais, impostas e dissociadas da realidade empírica, distantes de dados de ciência que devem informar o direito.

            O direito deve ir além da dogmática, buscando aproximar as pessoas, implementado e permitindo desenvolver sentimentos de agradabilidade entre os diversos atores sociais.

            Um direito, delineado desta forma, acaba por ser um instrumento transformador da realidade social, pacificando conflitos por ventura existentes e mantendo o equilíbrio do grupo que atinge um nível maior de satisfação.

            Importante notar, todavia, que a produção de um direito legislado, com base empírica e em dados de ciência, que reflita o sentimento social de semelhança e ajude a produzir relações de interação social positivas de cooperação, só é possível no momento em que a sociedade tem interesse em reduzir as desigualdades existentes entre os diversos indivíduos, entes sociais.

            É necessário para surgimento deste direito real e vivo, estabelecedor da paz, harmonia e equilíbrio social, que não haja grandes distâncias sociais e econômicas entre os indivíduos que compõem a sociedade, para que possam todos compartilhar de semelhantes anseios e sentimentos de altruísmo e cooperação para se desenvolverem.

            Não havendo esta redução de desigualdades materiais, as classes sociais tendem cada vez mais ao afastamento, construindo a elite um direito imposto que refletirá apenas os anseios de uma pequena parcela do grupo, qual seja: os dotados de capacidade econômica e política. (24)

            Assim, para aplicar as idéias aqui expostas, com vistas à construção de um direito transformador e real, necessário se faz a diminuição das distâncias sócio-econômicas existentes. (25)

            No Brasil, já começa haver a tentativa de adotar um direito mais voltado à realidade social, desenvolvendo-se formas de composição de conflitos baseadas em conciliações, comissões, arbitragem, já referidos no item anterior, tendo também vários Juizes tomado consciência de seu papel, aplicando um direito alternativo, que, na realidade, é o direito formado por sentimentos gerais de agradabilidade que emergem do seio da sociedade.

            Como já ressaltado, a sociedade e o direito estão umbilicalmente ligados, sendo o direito uma forma de controle e solução de conflitos, visando a manutenção da harmonia, paz e equilíbrio das relações sociais.

            Este direito não pode se restringir ao Estado, nem tampouco à lei, é bem mais amplo (26), devendo ser informado por dados empíricos de ciência que reflitam processos sociais de aproximação, promovendo sentimentos de agradabilidade.

            A aplicação das normas que emergem dos grupos e dos valores fundamentais informadores de toda a sociedade, obtidos através de dados de ciência empírica e fatos, associada a soluções alternativas dos conflitos, em especial através de composições, conciliações, arbitragem, fazem surgir um direito novo, no qual se estabelece um sentimento geral de agradabilidade, paz e harmonia, apoiado em elevado grau de solidariedade humana.

            Espera-se que o direito, a sua formação e aplicação sofram influência destas premissas, para que efetivamente ocorra a transformação da realidade posta em benefício de todos os seres humanos, com uma evolução social, mental e espiritual.

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NOTAS

            01. Luís Alberto Warat afirma que as tradições e costumes jurídicos já trazem uma grande carga de dominação e controle social, sendo certas crenças e valores jurídicos tomados como verdades que só servem para iludir e subjulgar: " Resumindo: os juristas contam com um emaranhado de costumes intelectuais que são aceitos como verdades de princípios para ocultar o componente político da investigação de verdades. Por conseguinte se canonizam certas imagens e crenças para preservar o segredo que escondem as verdades. O senso comum dos juristas é o lugar do secreto. As representações que o integram pulverizam nossa compreensão do fato de que a história das verdades jurídicas é inseparável (até o momento) da história do poder." (WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito – vol I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 15).

            02. Aqui, não se prega o fim da dogmática jurídica ou da filosofia diante de sua superação pela sociologia do direito. Ao contrário, os diversos âmbitos do estudo do direito devem ser analisados em busca de um maior amadurecimento teorético-científico. Esta opinião é coadunada com a de Machado Neto: " (…) o problema já não mais se coloca em termos de substituição, mas de coexistência pacífica entre a compreensão empírica da sociologia, a sistematização normativa da dogmática e a problemática estimativa da filosofia jurídica." (MACHADO NETO, Antônio Luís. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 59).

            03. Esta idéia de agradabilidade, a que tantas vezes nos reportaremos nesta monografia, está ligada ao postulado da semelhança entre os sentimentos, e idéias e vontades dos atores sociais, privilegiando as interações sociais de aproximação e coesão, gerando conseqüentemente uma maior conexão do direito com a realidade social posta, cf. SOUTO, Cláudio e SOUTO, Solange. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: livros Técnicos e Científicos Editora S/A, 1981, p. 124.

            04. Deve-se buscar ao contrário do distanciamento uma aproximação, entendendo-se o direito enquanto regras de acordos sociais com base em dados de ciência. Cláudio Souto sintetiza a necessidade de interações sociais positivas para que possa o direito se desenvolver plenamente: " O princípio geral teórico seria o de que quanto maior a aproximação (ou menor a distância, o que é o mesmo) entre pólos de interação social, maior a favorabilidade ao direito. Basta notar que, essencialmente, um grupo social qualquer só o é na medida em que seus indivíduos se considerem semelhantes no que aceitam, e se aproximam, e não o é, na medida em que eles se consideram dessemelhantes no que aceitam, e se afastam. (…)" (SOUTO, Cláudio. Ciência e Ética no Direito: uma alternativa de modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992, p. 24).

            05. Sobre uma evolução das idéias jurídicas ao longo da história da humanidade desde os tempos primitivos até a modernidade, entendida como o momento atual e não necessariamente o melhor, cf. AFTALIÓN, Enrique R. & VILANOVA, José. Introduccion al Derecho. 2. ed. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1998, pp. 203 a 298.

            06. O Código de Hamurabi é um exemplo típico deste direito primitivo mesclado com a religião. As penalidades contidas são bem radicais, cultuando-se a chamada Lei de Talião. Vejam-se algumas penalidades: " se um homem furar o olho de um homem livre, ser-lhe-á furado o olho; se um médico tratar ferida grave do paciente com punção de bronze, e se ele morrer, terá as mão decepadas; se um arquiteto construir para outrem uma casa e não a fizer bastante sólida, se a casa ruir, matando o dono, o arquiteto deverá ser morto. Se o morto for o filho do dono da casa, deverá ser morto o filho do arquiteto." (GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 26. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, pp. 290/291).

            07. Outros exemplos de cultura primitiva regulada por um direito arcaico são o Código de Manu e a Lei Hebraica que já trazem uma conotação mais humanista nas penalidades aplicadas, mas sofrem ainda extensamente a influência da religião, cf. GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 26. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, pp. 290 e segs.

            08. O direito em qualquer momento histórico reflete a contextura social latente, em especial na Idade Média, conhecida como "Idade das Trevas". Cappelletti bem observa isto: " há razões e condicionamentos sociais e culturais que, em determinado contexto histórico, estão e operam na norma e na instituição, na lei e no ordenamento, e também na interpretação e em geral na atividade dos juizes e dos juristas." apud SOBRINHO, Elicio de Cresci. Justiça Alternativa. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 89.

            09. cf. ADEODATO, João Maurício. Pressupostos e diferenças de um direito dogmaticamente organizado in Boletim da Faculdade de Direito – Stvdia Ivridica, nº 48, Coimbra: Coimbra Editora, 1999/2000.

            10. A partir da Idade Moderna, as mudanças sociais passam a ser crescentes na sociedade humana e o direito sofre influências e também influencia tais modificações na contextura político-sócio-econômica. Machado Neto bem destaca esta mudança: " Outro aspecto da mudança cultural que afeta profundamente o direito é aquele de inovação, da criação de novas relações e formas de vida, seja que tenham sido trazidas pelo contato cultural ou pelo desenvolvimento imanente à própria cultura local. (…) Se o direito atua como conservação e modificação da cultura assimilada ou inovada, é um fomentador criador de novas leis, de novos institutos jurídicos e até de novos ramos do direito. Os exemplos são, nesse sentido, abundantes, particularmente através da inteira história moderna do Ocidente em que uma nunca vista aceleração do tempo histórico tem determinado um surto incomparável de mudança cultural." (MACHADO NETO, Antônio Luís. Sociologia Jurídica. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 161).

            11. Warat entende não existir democracia atualmente, devido ao caráter excludente dos regime vigentes. Este autor assevera que faltam espaços para debates e efetiva participação, conduzindo o grupo a um totalitarismo evidente: " Enfim quero lembrar que o autoritarismo é sempre a ausência de teatro. Quando nos reconhecemos socialmente através de ordem, de identidades autoritárias, está faltando o palco, o espaço público para a grande atmosfera de festa que é a democracia como processo participativo. Daí que não se possa pensar em deslocar a ordem imaginária e discursiva do processo autoritário de reconhecimento das identidades sociais, sem fazer do lugar onde se fala, mas do que é falado, uma festa coletiva que prefigura o acesso autônomo do indivíduo como ator político." (WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito – vol II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 357).

            12. Cláudio Souto, mesmo destacando as virtudes da filosofia da justiça, reproduz crítica ao direito posto, asseverando que este reflete mais o interesse do poder constituído: " As ideologias e as filosofias da justiça, da liberdade e da igualdade procuram há séculos explicar os desequilíbrios sociais, visando-se à construção, pela prática, de sociedades harmonicamente coesas. Mas seu discurso tem sido vago e, desse modo, pouco apto a contribuir para deslocar os centros reais do poder econômico e político, que, ao contrário, retiram desse caráter vago a possibilidade do uso da bandeira liberal a serviço de seus interesses. Assim é que defrontamos com concepções que – em nome mesmo da justiça e de um liberalismo de pretensos resultados populares – têm legitimado aquele poder real de poucos." (SOUTO, Cláudio. Tempo do Direito Alternativo: uma fundamentação substantiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 19).

            13. Cf. NEVES, Marcelo da Costa Pinto. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994.

            14. Sobre a aplicabilidade das normas constitucionais e o caráter programático de boa parte delas, cf. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1993; SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982.

            15. Kelsen em posição diametralmente oposta afirma que não pode o Juiz decidir os casos concretos com base em análise de particularidades e dados de ciência empírica. Veja-se a crítica do Mestre de Viena: " O que certo juiz decidirá num caso concreto depende, na verdade, de um grande número de circunstâncias. Investigá-las todas está fora de questão. Sem levar em consideração o fato de que, hoje, ainda estamos inteiramente desprovidos dos métodos científicos para realizar tal investigação." (KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado (tradução de Luís Carlos Borges). 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 251). Acredito estar equivocado o citado autor porque a análise empírica com base em dados de ciência permite a aferição de soluções mais justas perante cada caso concreto, por exemplo: o problema dos transgênicos; casamento de homossexuais, enfim os chamados "hard cases", na linguagem da doutrina norte-americana, só auferem soluções justas com a utilização de dados de ciência que apoiem e sirvam para fundamentar as decisões/sentenças.

            16. Infelizmente, a formação dos operadores do direito ainda se apoia numa visão do direito enquanto fenômeno restrito à lei. Deve-se mudar este paradigma para se apoiar o entendimento e aplicação do direito dentro de uma contextura social nova, veja-se a opinião de José de Oliveira Ascensão: " (…) cabe ao jurista, justamente porque ergue o sistema do direito que é, revelar as contradições que nele se inserem em relação aos princípios que exprime ou para que deveria tender; pôr a nu dissonâncias menos visíveis; desvelar os pontos em que a pretensa racionalidade do sistema é afinal a expressão de interesses espúrios e não de qualquer exigência superior. O que significa que o verdadeiro jurista é e só pode ser incômodo para os interesses instalados; e que a retórica dos lobbies é radicalmente incompatível com a construção científica do direito." (ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito – Introdução e Teoria Geral – Uma Perspectiva Luso-Brasileira. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1994, pp. 179/180).

            17. Para superar as crises existentes, não é suficiente a edição de leis formais distantes da realidade social e de dados científicos. As normas jurídicas, para produzirem efeitos, devem ser baseadas em dados de ciência empírica. Bem claro é Cláudio Souto a este respeito ao asseverar que: " Na verdade, tudo indica que o desenvolvimento de uma ciência empírica do direito (que seja ciência não apenas de formas sociais, mas de conteúdos sociais) a estará conduzindo a esquemas conceituais menos imprecisos e, mesmo, a proposições genéricas, onde não se desconsidere a realidade empírica do ‘sentimento de justiça’ (sentido de agradabilidade em face ao que se acha que deve ser) operante socialmente." (SOUTO, Cláudio. Ciência e Ética no Direito: uma alternativa de modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992, p. 20).

            18. Realmente, a complexidade das relações sociais atualmente é evidente; os interesses dos diversos atores sociais são bem divergentes, havendo relações de distanciamento bem fortes em especial diante das grandes diferenças sócio-econômicas existentes. Por isto, é vital a reintrodução do direito dentro destas relações complexificadas, superando o mito da estabilidade e aceitando até uma práxis alternativa de resolução de conflitos: " uma práxis jurídica alternativa significa, simplesmente, reintroduzir o direito no interior das relações sociais, isto é, analisar empiricamente e estruturar normativamente os interesses sociais. Isto supera a ilusória visão da estabilidade da ordem de imutáveis situações privilegiadas, sem distanciar-se o aplicador do justo." (SOBRINHO, Elicio de Cresci. Justiça Alternativa. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 100).

            19. Acaba-se com estas soluções breves e céleres resgatando a paz e a harmonia, produzindo uma maior interação social entre os entes, conduzindo a uma maior realização/efetivação do direito. Veja-se a lição de Cláudio Souto: " Interações sociais de competição, de conflito ou de hierarquização (todas implicando a preponderância da idéia de dessemelhança entre os interagentes), são, em si mesmas, processos de afastamento no espaço social. Assim, nelas não se forma clima favorável ao direito – a não ser quando essas interações previnam afastamento ainda maior (que passaria a existir sem elas). Já as interações sociais onde prepondera a idéia de semelhança e, pois, a aproximação entre os pólos interagentes (a exemplo das interações de cooperação), são sempre favoráveis ao jurídico." (SOUTO, Cláudio. Tempo do Direito Alternativo : uma fundamentação substantiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 49).

            20. Quanto à expressão modelo, deve-se entendê-la como conjunto de valores e idéias aplicadas ao disciplinamento do fenômeno jurídico dentro de uma determinada realidade posta.

            21. Interessante observar que a busca da resolução dos conflitos no âmbito social através de formas alternativas, como arbitragem, conciliação, deve-se à crescente mudança social existente na contemporaneidade. Mudança social aqui é encarada como alteração de padrões de comportamento em face do estabelecimento de novos tipos de interação social. Bem ressaltam tal fato Lawrence Friedman e Jack Ladinsky: " A mudança social ocorre quando há alterações reconhecíveis nos padrões correntes de interação das relações pessoa-a-pessoa, ou quando emergem e se estabelecem novas relações." (SOUTO, Cláudio e FALCÃO, Joaquim. Sociologia e Direito – leituras básicas de sociologia jurídica. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1980, p. 229).

            22. Cláudio Souto bem destaca a necessidade de um direito informado por dados de ciência empírica que, mesmo sendo formalmente estatuído, abra-se cognitivamente para a realidade empírica existente: " Como o direito é forma e conteúdo ao mesmo tempo, e inseparavelmente, se se lhe quer atribuir o máximo possível de segurança cognitiva, é preciso informá-lo de lógica em sua forma, e de ciência substantiva em seu conteúdo. E quanto mais rigorosa seja a ciência substantiva que informe o jurídico, maior, evidentemente, a segurança cognitiva deste." (SOUTO, Cláudio. Ciência e Ética no Direito: uma alternativa de modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992, p. 90).

            23. A evolução do conhecimento e o próprio progresso sócio-econômico geram maiores cobranças e conflitos multifacetados, impensados em outros tempos históricos. Tais conflitos clamam por soluções também diversas das estampadas em realidades pretéritas.

            24. Bem assevera Cláudio Souto sobre as dessemelhanças econômicas que ensejam uma ruptura e desequilíbrio nas relações sociais, sendo desfavoráveis à idéia de justiça/agradabilidade: " Naturalmente, o problema do desenvolvimento econômico e social não se coloca apenas em nível internacional – nível das dessemelhanças acentuadas entre os chamados países ‘desenvolvidos’ e ‘subdesenvolvidos’ ou ‘em desenvolvimento’- mas em nível nacional, com referência às nítidas dessemelhanças quanto ao ritmo de desenvolvimento entre regiões de um mesmo país (…) Essas dessemelhanças acentuadas, que provocam processos de afastamento nos seus espaços sociais, e que são típicas do mundo de hoje, conduzem internacional e nacionalmente a um equilíbrio social instável porque fechado a um desenvolvimento não só econômico, mas a serviço de semelhança social objetiva e subjetivamente mais profunda, capaz de, correspondentemente, provocar uma profunda aproximação nos espaços sociais internos e internacionais e, com isso, a estabilidade do equilíbrio nesses espaços. Entende-se aqui por espaço social simplesmente o espaço da interação social." (SOUTO, Cláudio e SOUTO, Solange. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: livros Técnicos e Científicos Editora S/A, 1981, p. 175).

            25. A diminuição das distâncias sócio-econômicas conduziria a uma alteração de paradigmas existentes, tendo um efeito transformado no seio social. Veja-se: " Assim, o tipo ideal de um macrossistema social de maior abrangência, no sentido da favorabilidade ao direito, seria aquele em que houvesse um máximo de semelhança objetiva e subjetiva entre todos os seus interagentes e em que fossem todos esses interagentes socializados na idéia da semelhança essencial entre todos os homens. Desse modo, o sistema macrogrupal apresentaria o máximo de estabilidade e de abertura à mudança em seu equilíbrio." (SOUTO, Cláudio e SOUTO, Solange. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: livros Técnicos e Científicos Editora S/A, 1981, p. 133).

            26. A multivocidade do direito e sua relação com a sociedade não podem ser escamoteadas, mas reificadas constantemente dentro do contexto em que se realizam: " A sociedade então não pode ser definida como uma unidade substancial, mantendo-se, assim, indeterminada a natureza da sociedade. Uma sociedade democrática exige uma permanente reinvenção simbólica, baseada num trabalho de interrogação sobre as significações intertextualmente dadas."(WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito – vol II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 363).

  


Referência  Biográfica

Marcos André Couto Santos  –  Procurador Federal junto ao INSS em Recife (PE); Professor da FIR; Professor da Especialização em Direito Empresarial da UNICAP e Mestrando em Direito Público pela UFPE.

marcos@fir.br

Algumas linhas críticas sobre direito sucessório em face do NCC

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* Gisele Leite

A sucessão na técnica jurídica significa a transmissão de bens decorrente da substituição de uma pessoa por outra na titularidade de direito, pode operar-se a título gratuito, inter vivos ou causa mortis.  

Quando se refere aos direitos das sucessões relaciona-se àquela sucessão decorrente da morte e, excepcionalmente em vida, quando trata de partilha em vida e doações. 

Define-se o direito das sucessões como o conjunto de princípios jurídicos que disciplina a transmissão do patrimônio de uma pessoa que morreu, ou que é presumida morta, a outros, que são considerados seus sucessores.  

A razão de ser do direito sucessório existe em função do direito real, isto porque o patrimônio de alguém não pode se converter em res derelicta apenas com sua morte. A coisa não poderia simplesmente perecer sem ter seu titular. 

A expressão patrimônio como bem salienta Carlos Maximiliano envolve tanto o ativo como o passivo do falecido, requerido ou inventariado. Não há de se confundir e pretender enxergar no patrimônio todos os direitos existentes.  

Corroborando com tal entendimento, temos a existência dos direitos da personalidade, os direitos personalíssimos, os direitos de família puros que são intransmissíveis.  

Por tal razão, alguns doutrinadores preferem cogitar em patrimônio sucessível e não-sucessível.  

A sucessão pactícia é vedada tendo em vista o art. 426 do NCC dispositivo legal com idêntica redação do art. 1.089 do CC/1916. Todavia, tanto no velhusco Código Civil como também no Novo Código Civil há hipóteses que excepcionavam e, ainda excepcionam, como as doações aos nubentes (art. 314 CC/1916) e, a possibilidade de inclusão de sucessão de sócio no contrato social das sociedades (art. 1.042 CC/1916) que não foram repetidos pelo novo codex.  

No entanto, a partilha em vida é permitida e era pré-existente (no art. 1.778 do CC/1916) e foi relembrada pelo art. 2.018 do NCC e até mesmo ampliada, pois antes era faculdade do pai e agora dos ascendentes.  

A aversão aos atos jurídico causa mortis, só é excepcionada através do testamento e, em outras espécies contratuais como o seguro de vida.  

De qualquer maneira vige a vedação aos contratos causa mortis onde o evento morte atua como elemento acidental doa to jurídico. Nada impede que a morte seja até elemento necessário ao negócio.  

Para Carvalho Santos é proibida a disposição total patrimonial inter vivos, pois o declarante restaria privado de sua liberdade de testar. Também os que envolvem promessa que não deva ser executada, a não ser após a morte do promitente. Mas em função do art. 425 do NCC o caso foca fora da hipótese legal de proibição.  

Outra exceção é o usufruto vitalício onde há permissão legal (art. 1.400 § único do NCC) e outra exceção, a regra do art. 426 do NCC.  

Assim pontifica Carvalho Santos que é proibido:

Quer sejam realizados por alguém que disponha sobre sua própria herança;

Quer sejam realizados por alguém que disponha sobre os bens que irá herdar;

Quer sejam realizados por terceiros estranhos à herança;  

A razão da proibição dos pactos sucessórios é o fato de ser imoral vincular um ato jurídico à morte de alguém. O que produziria no beneficiário um interesse na morte do outro contratante. O pacto corvina até por segurança é vedado.  

No Direito Antigo havia várias espécies de pactos: o de simples instituição de herdeiros, pata de sucedendo; o pacto de sucessão mútuo de herdeiro, pacta mutua sucessione; e os pactos de disposição de herança (pacta de tertui dispositione); e, finalmente os pactos renúncia de herança (pacta de non sucedendo).  

No Direito pátrio desde as Ordenações do Reino tais espécies de pactos sucessórios são vedados havendo a exceção estipulada no contrato antenupcial que versava sobre a sucessão recíproca dos contraentes.  

A sucessão brasileira não admite em regra a forma contratual, mas em outros países é permitida como na Alemanha, Suíça e Áustria.  

As doações realizadas aos descendentes são computadas como adiantamento da legítima e não gozam da aversão legal, e inovando o Código Civil, atribuiu a mesma eficácia as doações de um cônjuge ao outro (art. 544 NCC).  

No entanto, o novo codex civil cometeu um pecadilho capital ao instituir a colação obrigatória dos descendentes beneficiados com doação, mas não ao cônjuge.  

O convivente também, não está sujeito à colação posto que é herdeiro necessário. Entretanto, pode sofrer verificação para efeito de excesso por via de doação inoficiosa (art. 548 NCC). É nítido o retrocesso que faz o novo codex ao desproteger a união estável, que passou ser chamada de entidade familiar.

Surge aparente um conflito entre o art. 544 e art. 1.829 do NCC, pois só há colação quando existe concorrência sucessória, somente alguns cônjuges estarão obrigados a cumprir o disposto do art. 544 do NCC.  

Difere a concorrência dos cônjuges com a herança dos ascendentes (art. 1.829, II NCC), pois não se fez distinção dos regimes matrimoniais. Em qualquer regime de bens matrimonial, o cônjuge que recebe a doação é obrigado a leva-la à colação quando concorre com ascendente do autor da herança.  

No entanto, quando concorre com descendentes é de se ressaltar que em havendo comunhão universal de bens que já garante parcela considerável da herança (cinqüenta porcento) dos bens do falecido, não participa da herança e, não se subordina à colação de bens doados com evidente prejuízo à prole.  

Também o parágrafo único do art. 551 do NCC que repete o art. 1.178 do CC/1916 traz a hipótese de pacto sucessório onde se vincula a transferência patrimonial da doação que os cônjuges recebem em comum em caso de morte, à parte deste acresce à do sobrevivente.  

Também são casos de pactos sucessórios a reserva vitalícia de usufruto (art. 1.400, parágrafo único NCC) a instituição de acréscimo de usufruto extinto pela morte de um dos usufrutuários (art. 1411 NCC), a cláusula de retorno de bens na doação (art. 547 NCC) e de fideicomisso (art. 1.951 e seguintes do NCC).  

Se tais situações não estivessem expressamente permitidas em lei, acarretariam nulidade ao ato jurídico face englobarem condições jurídicas impossíveis, o que pelo art. 123, I NCC é vício grave capaz de eivar de nulidade todo ato jurídico.  

Já em partilha em vida (art. 2.018 NCC) também apesar de representar outra exceção ao art. 426 do NCC há perfeita validade desde que respeitadas as regras sucessórias e, principalmente o respeito ao quinhão da legítima reservado aos herdeiros necessários.  

A sucessão anômala é aquela não regulada pelas regras normais do direito sucessório e, estão presentes no direito previdenciário (Lei 8.391/91) que prevê no art. 74 que a pensão por morte do segurado pela Previdência Social deverá ser rateada entre seus dependentes cujo rol é disposto no art. 16 do mesmo diploma legal que bem difere daquele da ordem de vocação hereditária da lei cível prevista no art. 1.829 NCC.  

É assim também com relação ao fundo de garantia por tempo de serviço (art. 20, IV, da Lei 8.036/90). A partilha do seguro de vida também se utiliza o conceito de beneficiário que não é herdeiro, e, sim o indicado como tal em contrato (art. 792 NCC).  

Dá-se, outrossim, sucessão anômala com a propriedade intelectual matéria atualmente regulada pela lei 9.610/98 e diferente da legislação anterior que beneficiava os filhos, pais, ou cônjuge por toda a vida.  

A transferência do direito autoral não se dá de forma absoluta, mas somente por setenta anos. E se não houver parentes sucessíveis cai a obra em domínio público. Assim não há sucessões nos moles cíveis e nem há o recolhimento do Estado no caso de direito autoral visto que cai em domínio público. Daí a presente onda de regravações para aplacar a eventual falta de criatividade contemporânea.

A sucessão dos concubinos é outro exemplo de anômala, pois é regida ainda pelas leis 8971/94 e 9.278/96 e, ainda pelos dispositivos do NCC(art. 1.790 NCC). Interessante notar que parecer ser possível então haver a concorrência sucessória entre o cônjuge e o companheiro pelos arts. 1.830 e 1.723 § 1o, combinado coma rt. 1.790 todos do NCC.

Separado de fato há mais de dois anos, sem culpa sua, o cônjuge sobrevivo tem direito hereditário (art. 1.830NCC), mas havendo entidade familiar, permitida pelo art. 1.723 NCC o companheiro sobrevivo também goza de direito hereditário. Então, nessa hipótese o famigerado concubinato impuro pelo lapso de tempo passará a ser puro.

Se concorrentes o cônjuge e o companheiro, a este, deve recolher apenas um terço dos bens conseguidos durante entidade familiar da qual participou.Se na concorrência com quem recebe em quarto lugar na vocação hereditária, merece igual solução.

A sucessão legítima é a que decorre de lei, e baseia-se na suposta (ou presumida) vontade do falecido quando deixa de testar, ou na hipótese de sucessão testamentária expressa.

Assim em função do art. 1786 as espécies de sucessão causa mortis são duas:

“a sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade”.

Enquanto a sucessão legítima possui vinte artigos, a testamentária possui 133 dispositivos legais. Deve-se ressaltar, todavia a maior regulamentação não significa, no entanto, sua maior utilização.

A sucessão testamentária não impede a sucessão legítima sendo as duas passíveis de coexistirem. Funcionando a legítima sempre como subsidiária à sucessão testamentária.

Desta forma, prevalecerá a sucessão legítima se o testamento é inválido ou ineficaz ou quando não se regula por ele toda a transferência patrimonial do sucedido (art. 1.786 NCC).

Não basta a vontade para verter em obrigatória a sucessão testamentária, deve esta ser a manifestada de forma solene, ou seja, por meio de um testamento ou de um codicilo.

Aliás, a definição codificada do testamento conforme preceitua o art. 1.626 CC/1916 é ato revogável pelo qual alguém, de conformidade coma lei dispõe, no todo ou em parte seu patrimônio, para depois da sua morte.”

Tal dispositivo não repetido no novo codex, embora sejam mantidas suas principais características conforme se depreende dos arts. 1.857 e 1.858 do NCC.

Já o codicilo não exige tantas formalidades como o testamento, aliás, a autora possui um pequeno artigo a respeito chamado “Considerações sobre o codicilo” (art. 1.881 NCC).

Grande repercussão é a inclusão do direito à herança como garantia constitucional ex vi o art. 5o, XXX da CF estando, portanto invalidades todas as excludentes de capacidade sucessória prevista no código civil. Ressalte-se que a regra é a capacidade, e a incapacidade, é a exceção.

Interpreta-se que a regra constitucional em tela visa não só prover o direito de propriedade de maior tutela como também de proteção absoluta o direito de herdar.

Questão assaz intrigante é o conflito existente entre o ditame constitucional que proíbe qualquer espécie de pena perpétua (art. 5o, XLVII e XLVI CF) a existência da indignidade e deserdação que são espécies de pena civil aplicadas de forma permanente, o que provoca uma calorosa discussão a respeito da validade da legislação infraconstitucional.

Também a paridade constitucional equiparando todos os filhos (art. 227, § 6o, da CF) implica na possibilidade de um filho ter dupla posição para recebimento de herança, é o caso do incestuoso que aparentemente pode disputar por direito próprio e, ainda por direito de representação pela mãe pré-falecida, o que afronta totalmente o princípio da igualdade dos quinhões hereditários.

O legislador pátrio optou pela capacidade sucessória do momento da abertura sucessória (art. 1.884 e 1.787 do NCC) e, art. 1.041 do NCC que manda que se regulem pelo Código Civil de 1916 as sucessões abertas durante sob sua vigência.

Algumas situações ensejaram maior ponderações, pois enquanto vigente o velhusco código de 1916 e, em face da equiparação dos filhos, é vexata quaestio o direito sucessório do filho cujo pai faleceu antes da Constituição Federal Brasileira de 1988.

Resta indagarmos se haverá a aplicação do princípio da igualdade em relação às sucessões abertas e, em andamento. Constam, em direito pátrio, casos em que a lei modificativa de capacidade sucessória se fez aplicar às sucessões já abertas como aconteceu com os colaterais, principalmente por ser mais benéfica.

A aberta de sucessão é o momento da transmissão da herança, na sucessão causa mortis é com o falecido do sucedido e, nesse momento exato, ocorre o droit de saisine previsto anteriormente pelo art. 1.572 do CC/1916 e que encontra correspondente no art. 1.784 do NCC.

Silencia o novo codex quanto à transmissão do domínio e da posse, expressando doravante apenas transmissão de herança que abarca todas as espécies de direito e, não apenas os relativos à propriedade.

Não estabeleceu com precisão quando exatamente a transferência de direitos se opera, atinando somente com a abertura da sucessão.

A Lei 6.015/73 (a Lei de Registros Públicos) alterou a sistemática impondo a obrigatoriedade do registro também os atos de entrega de legados, de imóveis, dos formais de partilha e das sentenças de adjudicação em inventário ou arrolamento sumário quando não houver partilha (art. 167, I, 25).

Assim restou instituída a transferência instantânea da propriedade dos bens hereditários pelos arts. 1.784 e 1.791, parágrafo único do NCC, aos herdeiros legítimos e testamentários.Desta forma parece solucionada a questão suscitada pela Lei de Registros Públicos.

A transmissão imediata à abertura da sucessão dando à continuidade das qualidades contidas na posse, assim se a posse é indireta é deferida desta maneira quando não possa ser direta (art. 1.784 c/c/ 1.791 NCC).

É diversa a transferência do domínio e da posse da herança se diferente for sucessão, assim se legítimo o herdeiro recebe a posse e o domínio dos bens transmitidos imediatamente à abertura da sucessão, já os legatários não é transferida a posse dos bens que lhes cabem, por força do art. 1.791 do NCC, mas o domínio lhes é transmitido desde a morte do testador.

O texto de 1916 era mais preciso quanto à especificação de que o inventariante, no caso exercido pelo cônjuge sobrevivente, em regra tenha a posse dos bens até a partilha. O art. 1.991 NCC não cogita em posse e, sim, administração.

Quanto aos bens fungíveis (onde a posse e o domínio andam inseparáveis) sequer o domínio é transferido, só com o integral cumprimento do testamento. O mesmo ocorre com relação ao legado de coisa de ser adquirida pelo testamenteiro do de cujus somente quando adquirida, é que o legado é cumprido.

As disposições CC/1916 dispunham os animais silvestres podiam ser apropriados se feridos e perseguidos, embora apreendidos (art. 595 CC/1916), ou se ingressarem em imóvel particular (art.597 do CC/1916) dispositivos suprimidos e ausentes no NCC.

Existe em verdade uma falsa dificuldade em considerar aqueles que não tendo personalidade jurídica à época da abertura da sucessão, possam ser titulares de direitos hereditários nesse momento (art. 1.798, 1.799, I do NCC).

Expressa o art. 1.784 NCC que a herança é transmitida aos herdeiros, legítimos e testamentários. Na sucessão universal há transmissão da totalidade do patrimônio do de cujus, ou uma quota-parte ideal dele; já na sucessão particular ou singular apenas transmite-se apenas direito certo e, individuado só tem aplicação na sucessão testamentária.

A diferenciação conceitual entre herdeiro e legatário não é absoluta no art. 1.723 CC/1916 permitia no sucedido se transformasse herdeiro e legatário. O que, mormente está proibida pelo art. 1.884 do NCC e, reafirmada pelo art. 1.857, parágrafo primeiro do NCC.

O direito português e o italiano permitem o legado em substituição da herança legítima. Porém manteve o novo codex a partilha em vida art. 2.018, e o fato de serem herdeiros ex re certa os que desqualifica como herdeiros.

A mulher possui o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, sendo este o único direito a inventaria (art. 1.831 NCC), igual direito se estende à companheira por força da Lei 9.248/96, mas infelizmente assim não manteve o NCC.

Para Antonio Junqueira de Azevedo que enuncia o herdeiro que se caracteriza como continuador das relações jurídicas pelo sucedido.

Enquanto que o legatário recebe bens circunscritos, porém, não é um continuador patrimonial do de cujus. Tal diferença é relevante para a aferição da posse para fins de usucapião e, neste sentido o NCC em seus arts. 1.206 e 1.207 traz que a posse do sucessor singular é facultado unir sua posse à do antecessor para os efeitos legais.

O legatário para alguns doutrinadores, é mero adquirente, apesar de que testamento de dar continuidade em suas relações jurídicas que deixa ao morrer. Portanto, a tese francesa de que somente o herdeiro é continuador patrimonial do de cujus é mais fantasiosa do que real.

O herdeiro ainda que necessário (legitimário ou reservatário) pode receber obrigatoriamente a herança salvo em caso de indignidade ou de deserdação. O lugar da abertura de sucessão é o último domicílio do falecido onde normalmente se encontram bens e negócios.

Excepcionalmente será competente o lugar onde se situam estes bens (art. 96 do CPC) e todas as questões sucessórias cingem-se ao local da abertura da sucessão. A unidade e a universalidade da sucessão exigem a concentração dos direitos hereditários em um só lugar.

Se, no entanto, se o falecido não tem domicílio certo se segue à regra contida no art. 12§ 1o, da LICC, o lugar da situação dos bens, e, se este variado, opta-se finalmente pelo lugar de seu falecimento (art. 96, parágrafo único, II do CPC). Todas essas regras não devem ser utilizadas de forma inflexível.

O Código Civil não permite a disposição da totalidade dos bens se existirem parentes na linha reta com capacidade sucessória.

Radbruch sublinha que o atual direito sucessório não passa afinal dum compromisso entre sistemas e princípios opostos.

Desta forma, não prospera a liberdade de testar que se opõe a legítima dos herdeiros necessários, a idéia de função econômica que justificaria a sucessão pela continuidade da unidade de bens apresenta-se em contrário, a regra da partilha que impõe divisão; e, principalmente, ao herdeiro, muitas vezes visto como continuador do de cujus, apresenta-se o legatário como mero recebedor de bens.

Tudo isto contribui para que o direito das sucessões seja muito complexo mais até do que é usualmente apresentado nos compêndios didáticos de direito civil.

Porém, nunca houve absoluta liberdade na indicação dos agraciados com a herança, a exemplo disto, temos a concubina impura. E o novo codex restringiu ainda mais a liberdade de testar, pois à parte que deve caber aos herdeiros necessários, a legítima, não pode mais constar do testamento (art. 1.857, § 1o, do NCC).

Porém, paradoxalmente manteve a partilha em vida (art. 2.018. NCC), se a sucessão é legítima apenas as pessoas físicas podem ser contempladas enquanto que na sucessão testamentária tanto as pessoas físicas como jurídicas podem ser beneficiadas desde que dotadas de personalidade jurídica que corresponde à qualidade para ser sujeito de direitos e obrigações e, naturalmente herdar.

O atual codex ao invés de mencionar capacidade utiliza erroneamente o vocábulo legitimação, mas convém elucidar que os termos não são sinônimos.

A capacidade em termos genéricos está ligada à aquisição ou exercício de direito e à peculiar situação em face de certos bens, pessoas e interesses.Já a legitimação está mais ligada ao gozo e, não à aptidão para receber herança.

A questão é meramente semântica e redacional em nada alterando com relação ao disciplinamento legal anterior que continua intacto.

Verifica-se a aptidão dos beneficiados há de ser apurada exatamente, por causa da transmissão imediata do domínio e posse da herança (art. 1.791, parágrafo único do NCC).

Há dois momentos distintos para se aferir capacidade; com relação ao falecido no momento da feitura do testamento e o momento da abertura de sucessão. E, entre esses momentos pode haver alteração da lei a ser aplicada.

A lei vigente na data da feitura do testamento vai regular a capacidade do testador e forma extrínseca do ato.

A incapacidade superveniente do testador não invalida o ato testamentário, nem o testamento do incapaz se convalida com a aquisição a posteriori de sua capacidade (art. 1.861 NCC). É a famosa regra tempus regit actum.

Assim a lei vigente na abertura da sucessão regula e a eficácia dos testamentos e a capacidade sucessória.


Referências 

Almeida, José Luiz Gavião de. Código civil comentado: artigos 1.784 a 1.856, volume XVII, Coordenador Álvaro Villaça Azevedo, São Paulo, Editora Atlas, 2003.

Cahali, Francisco José. Curso avançado de direito civil, volume 6: direito das sucessões arts. 1.572 a 1.805, São Paulo, Editora RT, 2000.

Gonçalves, Carlos Roberto. Direito das Sucessões, volume 4 da Série Sinopses Jurídicas, 3 ed., 2000, São Paulo, Editora Saraiva.

Venosa, Sílvio de Salvo, organizador. Novo Código Civil: texto comparado, Editora Atlas, 2002..

  


Referência  Biográfica

Gisele Leite  –   Mestre em Direito; Professora Universitária e Articulista dos sites: www.direito.com.br, www.mundojuridico.adv.br, www.estudando.com, www.apoena.adv.br e www.oguiadodireito.hpg.ig.com.br.

Filhos, bens e amor não combinam!

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* Maria Berenice Dias –

Sumário: 1. Novidades; 2. Perplexidades; 3. Regime de bens e meação; 4. Regime de bens e sucessão; 5. Direito de concorrência; 6. Concorrência e regime de bens; 7. Possibilidades interpretativas; 8. Outros questionamentos; 9. A única saída.


1. Novidades

O novo Código Civil, como tudo o que é novo, gerou resistências e despertou desconfianças. Também como toda a novidade, não correspondeu à expectativa geral e ensejou muitos desapontamentos, sendo lido com precipitação por alguns que pretenderam ser os pioneiros em interpretá-lo.

Mas não se pode tirar alguns méritos da nova codificação civil, e os exemplos são vários. Conseguiu sepultar todos aqueles dispositivos que eram letra morta no velho Código, como as referências desigualitárias entre o homem e a mulher, as adjetivações da filiação, o regime dotal.

Alguns avanços foram significativos. Corrigiu equívocos e incorporou orientações pacificadas pela jurisprudência, ao, por exemplo, afastar o desvirginamento da mulher como causa para a anulação do casamento. Assegurou o direito de alimentos mesmo ao cônjuge culpado pela separação, banindo, em boa hora, a única hipótese de pena de morte fora das exceções constitucionais. Como o responsável pelo fim do casamento não fazia jus a alimentos, se não tivesse condições de prover a própria subsistência, era condenado, quiçá, a morrer de fome.

No entanto, perdeu-se uma bela oportunidade de obter alguns ganhos. Era a vez e a hora de serem incorporados institutos já reconhecidos pelos tribunais. Não trouxe o Código Civil a guarda compartilhada, não consagrou a posse de estado de filho ou a filiação socioafetiva. Nem mesmo previu as relações de pessoas do mesmo sexo, agora nominadas como uniões homoafetivas. A mantença da culpa na separação também é um dos grandes exemplos da falta de sensibilidade do legislador.

O mais grave é que desgraçadamente o legislador cometeu inconstitucionalidades. Tratou desigualmente as entidades familiares decorrentes do casamento e da união estável, gerando diferenciações que não se coadunam com o princípio da isonomia. Manteve uma capitis diminutio contra o idoso, subtraindo-lhe a capacidade para, após os 60 anos, escolher o regime de bens. Essa previsão existente na lei anterior já era reconhecida pela jurisprudência como não recepcionada pelo sistema jurídico instituído em 1988. 

2. Perplexidades

Talvez as mais significativas alterações tenham ocorrido no âmbito do Direito Sucessório, sede em que estão sendo travadas as mais acirradas discussões. A inclusão do cônjuge, mas não do companheiro, como herdeiro necessário tem levado ao questionamento sobre a constitucionalidade da diferenciação, que não constava da legislação pretérita nem é desejada por ninguém. Trata-se de odioso retrocesso. Mas a novidade maior é a introdução de um novo instituto: o direito do cônjuge e do companheiro, ainda que em situações díspares, de concorrerem com os herdeiros descendentes ou ascendentes. Exsurge um estado condominial do cônjuge e do companheiro sobreviventes com os herdeiros de graus anteriores, figura até então inexistente e que tem gerado dúvidas e inseguranças.

Em um primeiro momento, o que vem causando perplexidade maior é o fato de o direito de concorrência, assegurado ao cônjuge sobrevivente no âmbito do Direito Sucessório, estar condicionado ao regime de bens do casamento. Igualmente não se encontra justificativa para o tratamento diferenciado dispensado ao cônjuge sobrevivente quando o regime de bens é o da comunhão parcial, a depender do fato de o de cujus ter ou não bens particulares.

Mas os motivos de inquietações não terminam aí. Causa surpresa a circunstância de o direito de concorrer ser deferido também na união estável, cujo regime de bens, por força do art. 1.725 do Código Civil, é o da comunhão parcial de bens. No entanto, não é feita qualquer diferenciação quanto à existência ou não de bens pretéritos, a condicionar o direito do parceiro de dividir o patrimônio com os herdeiros, como ocorre quando o de cujus era casado.

Afora tudo isso, a difícil redação do inciso I do art. 1.829 do Código Civil, que, além da falta de clareza, traz uma aparente duplicidade de negações, gera enormes dificuldades para a exata compreensão de seu conteúdo.

Surgiram opiniões absolutamente díspares apontando para soluções diametralmente opostas e até contraditórias. Afloraram tantas dúvidas, que a perplexidade tomou conta de todos, não só dos lidadores do Direito (1). Disseminou-se no seio da própria sociedade tal sentimento de insegurança, que o tema vem sendo trazido a debate até nos meios de comunicação. 

3. Regime de bens e meação

O instituto do regime de bens pertence ao âmbito do Direito de Família e serve para aclarar a origem, a titularidade e o destino dos bens conjugais.(2)

A diferença é bem posta por Zeno Veloso:

            Não se deve confundir meação com direito hereditário. A meação decorre de uma relação patrimonial – condomínio, comunhão – existente em vida dos interessados, e é estabelecida por lei ou pela vontade das partes. A sucessão hereditária tem origem na morte, e a herança é transmitida aos sucessores conforme as previsões legais (sucessão legítima) ou a vontade do hereditando (sucessão testamentária).(3)

A escolha do regime de bens feita por ocasião do casamento rege a situação patrimonial do casal durante a vigência do matrimônio e quando de sua dissolução, pela separação, divórcio ou falecimento de um dos consortes. Ocorrendo a morte de um, a identificação do regime de bens serve para sinalar se o cônjuge sobrevivente tem ou não direito à meação. A depender do regime eleito, o viúvo faz ou não jus à meação; é considerado condômino de todo o patrimônio ou dos bens que foram adquiridos durante o casamento. Assim, não se pode falar em herança sem antes apartar a meação do sobrevivo, o que não se confunde com direito hereditário.

Silentes os noivos, ou seja, não havendo eles firmado pacto antenupcial por ocasião do casamento, vigora, por determinação legal, o regime da comunhão parcial. Quando do falecimento de um dos cônjuges, o sobrevivente tem direito à meação, que se compõe da metade dos bens adquiridos durante o período da vida em comum. Portanto, primeiro há que se apartar os bens que pertencem ao cônjuge, isto é, a metade do que foi adquirido onerosamente durante a vigência da união, independente de quem o tenha adquirido. Desimporta a parcela individual de contribuição na formação do acervo patrimonial para estremar as meações. A divisão igualitária dos aqüestos é levada a efeito sem questionar-se a efetiva participação de cada um dos cônjuges na constituição do patrimônio comum. O chamado estado de mancomunhão gera o reconhecimento da co-propriedade em regime condominial dos bens amealhados a partir da celebração do casamento.

            Hipóteses há em que é irrelevante a vontade dos nubentes. Impõe a lei o regime da separação obrigatória (art. 1.641 do CC), quando o casamento se realiza contra a recomendação do legislador de que “não devem casar”. Tais interditos estão elencados no art. 1.523 do Código Civil. São limitações injustificáveis e inconstitucionais. Mas certamente a mais cruel das sanções de incomunicabilidade de patrimônio é quando um dos nubentes é maior de 60 anos (inciso II do art. 1.641 do CC). Além de flagrante afronta à Lei nº 10.741/03, conhecida como Estatuto do Idoso, inexiste a possibilidade de afastar a imposição legal por se tratar de hipótese não excepcionada no parágrafo único do art. 1.523 do Código Civil. Nesses casos, pode ser afastada a incomunicabilidade por decisão judicial, possibilidade que inexiste quando um dos noivos for um idoso. Sequer é admitida a comunhão de aqüestos. Porém, ainda que o legislador vede a comunicabilidade dos bens adquiridos durante o casamento, é imperioso que se reconheça que permaneçe em vigor a Súmula nº 377 do STF, (4) que presume o estado condominial dos bens amealhados na vigência da união. Assim, mesmo diante da imposição legal, para impedir o locupletamento injustificado de um dos cônjuges em detrimento do outro, mister afirmar a existência do direito à meação sobre o patrimônio amealhado durante o casamento, a ser atribuído ao cônjuge sobrevivente.

Quando o regime de bens é eleito pelos nubentes, por pacto antenupcial, a identificação da existência e da extensão da meação estará condicionada ao regime escolhido.

Em se tratando do regime de comunhão universal, todo o patrimônio se comunica e a meação é garantida sobre a integralidade do patrimônio, independente de haver sido adquirido antes ou na constância do casamento. Não há bens particulares ou patrimônio próprio na hora de definir a meação.

Em situação oposta, quando o pacto é pela separação total de bens, não há comunicação de patrimônio, única hipótese em que não há direito à meação.

No recém introduzido regime da participação final de aqüestos, a divisão patrimonial, quanto aos bens existentes antes do casamento, não difere do regime da comunhão parcial, ou seja, não se comunicam e constituem o patrimônio próprio de cada um. Os bens adquiridos em comum e durante a vida em comum pertencem ao casal e são repartidos por metade no fim do casamento. Até aí, não há divergência entre os dois regimes. A diferença diz tão-só com a identificação do que é patrimônio próprio e o que deve ser considerado como aqüesto para fins de divisão. Integram o conceito de patrimônio próprio, não sendo alvo da partição, os bens que cada cônjuge adquire, em seu nome e a qualquer título, na constância do casamento. Tais bens particulares não se dividem quando do fim do casamento, quer pela separação, quer pela morte.

Diante de tal panorama, imperioso concluir que somente no regime convencional de separação de bens é que não cabe falar em meação. Eleito o regime da comunhão universal, a meação incide sobre a integralidade do acervo patrimonial. No regime da comunhão parcial, bem como no regime de separação legal (por força da Súmula nº 377) a meação corresponde à metade dos bens adquiridos durante a vigência do casamento. Já no regime da participação final dos aqüestos, são excluídos da meação não só os bens existentes antes das núpcias, mas também os bens próprios de cada cônjuge adquiridos enquanto casados.

Falecido um dos cônjuges, a primeira providência é separar a meação do sobrevivente, a depender do respectivo regime de bens. A herança que se transmite aos herdeiros se constitui da meação do de cujus, seus bens próprios e os bens excluídos da comunhão (arts. 1.659 e 1.668 do CC).

Até o advento do atual Código Civil, quando da abertura da sucessão, o regime de bens servia somente para a identificação da existência e extensão do direito à meação. 

4. Regime de bens e sucessão

A correlação entre regime de bens e direito de meação não sofreu qualquer alteração no novo Código Civil. O que aflorou foi um direito novo, no âmbito do direito sucessório: o direito de concorrência. Sua existência e extensão estão condicionadas ao regime de bens que rege o casamento.

Na sucessão de pessoa casada, a inovação não foi só essa. O legislador promoveu o cônjuge à condição de herdeiro necessário, inserindo-o em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, depois dos descendentes e ascendentes. Assegurou-lhe direito a parte da herança, ainda que existam herdeiros de grau anterior. Mesmo havendo filhos, mesmo remanescendo ascendentes, o cônjuge, em algumas hipóteses, também herda, concorrendo com os demais herdeiros. Surge um estado condominial dos bens integrantes da herança entre o cônjuge e os herdeiros, em proporções diferenciadas, a depender da origem da filiação e do grau de parentalidade dos ascendentes.

No entanto, em sede de união estável, houve um significativo, perverso e inconstitucional retrocesso. Zeno Veloso é contundente quando afirma ter havido um recuo notável. O panorama foi alterado, radicalmente. Deu-se um grande salto para trás. Colocou-se o companheiro em posição infinitamente inferior com relação à que ostenta o cônjuge (5). O Código Civil, contrariando o comando constitucional e as leis que regulamentavam o instituto, não assegurou direito sucessório ao convivente nem o inseriu na ordem de vocação hereditária. O direito de concorrência concedido ao parceiro apresenta limite bem mais acanhado se comparado ao mesmo direito deferido ao cônjuge. Excluída a meação do sobrevivente, tão-só sobre a meação do companheiro falecido, ou seja, sobre a metade dos bens comuns é que ele concorre com os herdeiros. Os demais bens que compõem o acervo hereditário, que são os bens particulares existentes antes da união, se destinam exclusivamente aos herdeiros, sem qualquer participação do convivente. Como ele não integra a ordem de vocação hereditária, somente se pode falar em direito sucessório quando inexistirem herdeiros sucessíveis, isto é, parentes até o quarto grau. Portanto, na união estável, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da herança somente na ausência de filhos, pais, primos, sobrinhos-netos ou tios-avôs.

Mais uma vez é de se fazer eco a Zeno Veloso:

Haverá alguma pessoa, neste país, jurista ou leigo, que assegure que tal solução é boa e justa? Por que privilegiar a este extremo vínculos biológicos, ainda que remotos, em prejuízo dos vínculos do amor, da afetividade? Por que os membros da família parental, em grau tão longínquo, devem ter preferência sobre a família afetiva (que em tudo é comparável à família conjugal) do hereditando?(6)

5. Direito de concorrência

Quando se está frente a um texto legal novo, em havendo significativas mudanças, procurar identificar a intenção do codificador é o primeiro recurso hermenêutico que se deve utilizar.

Inquestionavelmente é de reconhecer que o legislador quis privilegiar o casamento. Além de elevar o cônjuge à condição de herdeiro necessário, assegurando-lhe direito à herança, concorre ele com os herdeiros que lhe antecedem na ordem de vocação hereditária. Concorre com filhos, comuns ou não, e concorre com os ascendentes. Com relação à união estável, faltou generosidade ao legislador, pois nem de direito de concorrência se pode chamar o que lhe deferiu o texto legal, uma vez que lhe é destinado somente singelo percentual dos bens comuns.

Também nítido o tratamento privilegiado deferido ao cônjuge ao ser brindado com uma quota mínima, em fração não inferior a um quarto do acervo hereditário, se todos os herdeiros forem filhos seus. Não perceberá menos de uma terça parte se os herdeiros forem os ascendentes do de cujus. Tal beneficiamento do cônjuge frente aos herdeiros que o antecedem parece provar que a intenção da lei foi favorecer quem compartilhou vidas, assumiu o dever de mútua assistência e participou na formação do patrimônio.

6. Concorrência e regime de bens

O direito de concorrência nada tem a ver com o direito à meação. Aqui se está na seara do direito sucessório, fora da órbita do Direito de Família, em que se situa o direito à meação, a depender do regime de bens do casamento. No entanto, as limitações impostas ao direito de concorrência estão condicionadas exclusivamente ao regime de bens do casamento, vinculação cuja razão de ser não se consegue atinar. Essa, aliás, é a primeira fonte geradora de perplexidades frente à redação do inciso I do art. 1.829 do Código Civil que reconhece o direito de o cônjuge concorrer com os descendentes.

Estabelece o art. 1.845 do Código Civil a ordem de sucessão legítima, reconhecendo como herdeiros os descendentes, os ascendentes, o cônjuge e os colaterais. A relação é excludente, pois a existência de um herdeiro antecedente afasta os demais da herança. O art. 1.829 repete o mesmo rol, mas defere ao cônjuge supérstite um direito a mais. Deixa ele de ser herdeiro eventual, condicionado à inexistência de herdeiros das categorias anteriores, para se transformar em co-herdeiro juntamente com os demais beneficiários. A depender do regime de bens do casamento, assegura a lei ao cônjuge supérstite parte dos bens da herança, fazendo surgir um estado condominial com os descendentes ou, na falta deles, com os ascendentes.

O inciso I do artigo 1.829 do Código Civil consagra o direito de concorrência que, no entanto, está sujeito a algumas exceções. Como as exceções são restritivas e excludentes do direito, merecem interpretação limitativa. Portanto, afora as hipóteses elencadas pelo legislador, prevalece o direito do cônjuge.(7) O critério escolhido para afastar a benesse é o regime de bens escolhido pelos noivos antes do casamento. Aponta a lei determinados regimes de bens frente aos quais é subtraído o direito de concorrer. Não há como deixar de reconhecer que, em todas as hipóteses não expressamente declinadas, prevalece a regra da concorrência. Assim, se a lei só exclui o direito nos regimes de comunhão universal, separação legal de bens e em uma modalidade da comunhão parcial – a depender da existência ou não de bens particulares do de cujus – ,  outra não pode ser a conclusão: nos demais regimes, quais sejam o da separação convencional de bens, o da participação final de aqüestos e em uma modalidade do regime da comunhão parcial, o cônjuge sobrevivente concorre com os herdeiros na herança do falecido. 

7. Possibilidades interpretativas

Sem qualquer dúvida, o direito de concorrência no regime da comunhão parcial de bens é o ponto mais debatido do novo Código Civil, podendo-se afirmar, sem medo de errar, que esse é o tema que tem gerado as maiores divergências na doutrina.

A primeira dúvida que suscita o indigitado dispositivo legal diz com sua intrincada construção gramatical. Primeiro traz, em uma mesma sentença, uma hipótese e três exceções, sendo que, com relação a uma delas, há um desdobramento. Se tudo isso não bastasse, usou o legislador uma dupla negação. As duas primeiras hipóteses excludentes são introduzidas pela locução conjuntiva “salvo se” e a última previsão vem depois de um ponto e vírgula e inicia com a expressão “ou se”. Indiscutivelmente essa espécie de construção só poderia gerar controvérsias e interpretações dissonantes.

A leitura que a doutrina tem feito de forma mais reiterada do inciso I do art. 1.829 do Código Civil – e  justificativas gramáticas, sintáticas e filológicas não faltam – é considerar que a lei exclui o direito de concorrência não só nos regimes da comunhão universal de bens e da separação obrigatória, mas também no regime da comunhão parcial de bens, contanto que o autor da herança não tenha deixado bens particulares. Por conseqüência, a preexistência de qualquer bem ao casamento garante ao cônjuge o direito a concorrer com os herdeiros sobre os bens da herança. Os exemplos que surgiram foram muitos, havendo-se tornado conhecido o da bicicleta.(8) Se, ao casar, o noivo não tivesse nenhum bem, o cônjuge, quando de sua morte, perceberia a sua meação, correspondente à metade dos bens amealhados durante a vida em comum, isto é, a metade de todo o a patrimônio existente. O restante, os bens integrantes da meação do falecido, comporia o acervo hereditário a ser dividido exclusivamente entre os seus herdeiros descendentes ou ascendentes. No entanto, se, ao casar, fosse o noivo proprietário de uma bicicleta, o consorte sobrevivente, além da sua meação sobre os bens adquiridos depois do casamento, concorreria com os herdeiros sobre a totalidade da herança, constituída não só da bicicleta, mas também da meação do finado. A identificação do percentual a ser transmitido ao sobrevivente dependeria do fato de concorrer com os filhos que teve com o de cujus ou somente com os filhos dele, havidos antes ou fora do casamento. Assim, segundo esse pensamento, que se tornou majoritário em sede doutrinária, o fato de o de cujus possuir bens particulares – ainda que seja somente uma bicicleta – garante ao cônjuge sobrevivente uma parcela do patrimônio individual. A resistência em aceitar esse raciocínio é por que a herança percebida pelo cônjuge sobrevivente, constituída por bens individuais do consorte falecido (normalmente havidos por esforço pessoal ou com a colaboração dos filhos de leito anterior), não mais retorna aos sucessores de quem era o seu titular. Quando da morte do cônjuge sobrevivente, tais bens seriam outorgados aos herdeiros seus: novo cônjuge, novos filhos ou ainda seus parentes colaterais. Eles perceberiam acervo patrimonial que sequer era de propriedade do parente morto, pois o titular era o cônjuge pré-morto. Não há como deixar de visualizar injustificável quebra do próprio princípio norteador do direito sucessório que orienta a transmissão patrimonial seguindo os vínculos de consangüinidade.

Mas surgiram interpretações outras ao indigitado dispositivo legal. Zeno Veloso(9) foi o primeiro a sustentar que, nessa hipótese, o direito de concorrência do cônjuge incide exclusivamente sobre os bens particulares do finado. Quanto ao patrimônio adquirido durante a vida em comum, como o cônjuge tem direito à meação, não concorreria com os herdeiros. Porém, essa construção, que busca contornar, ao menos em parte, a incongruência da norma legal, não pode subsistir. É ressalva que não está na lei. Seria estabelecer limitação ao direito de cônjuge sobrevivente sem que haja expressa previsão do legislador. Certamente a tentativa de excluir direitos sem permissão legal não resistiria ao ser questionada perante o Poder Judiciário.

Para os adeptos de qualquer dessas correntes interpretativas, pretendendo os nubentes simplesmente preservar seus patrimônios particulares, não há regime de bens que possam adotar. Quem tiver filhos e bens e pretender que o cônjuge não participe desse acervo, recebendo somente a meação do que venha a ser adquirido depois das núpcias, não tem saída. Simplesmente não pode casar! Pelo fato de existirem bens individuais, necessariamente – ao menos para quem assim lê o inciso I do art. 1.829 do CC – o cônjuge concorrerá com a prole preexistente sobre todo o acervo hereditário. Não dá para deixar de concluir que esse absoluto cerceamento à possibilidade de escolha sobre a forma de disposição do patrimônio configura limitação que afronta o direito à liberdade, princípio que goza de assento constitucional. A solução que se afigura a essa restrição é reconhecer a inconstitucionalidade de tal injustificável limitação.

Escasso o número de quem extrai dessa regra solução diametralmente oposta. Ao se atribuir ao ponto-e-vírgula que separa as duas exceções a função própria desse sinal gráfico, a forma de interpretar o dispositivo legal é bem diversa. Admite o afastamento do direito de concorrência se o de cujus possuía patrimônio particular. Assim, aquele que casa com quem possui bens particulares, quando da sua morte, perceberá somente a sua meação. Os herdeiros ficam com a titularidade exclusiva do acervo hereditário, composto pela meação do morto e pelo patrimônio preexistente ao casamento.(10) Apesar de todas as críticas a esse raciocínio, que, como dizem, afronta a letra da lei, ele certamente está em consonância com a lógica da vida, pois se harmoniza com a lógica da cadeia sucessória. O sistema legal sempre priorizou os vínculos de parentesco em sede de direito sucessório.

8. Outros questionamentos

Mas há outros pontos que geram questionamentos. Tanto no regime da comunhão parcial como no da participação final dos aqüestos, inexistem diferenças sobre o destino dos bens adquiridos antes do casamento: não integram a meação do consorte. Em ambas as hipóteses, o acervo partilhável é constituído pelos bens comuns adquiridos durante o casamento. Como o regime da participação final de aqüestos não está referido entre as exceções que afastam o direito de concorrência, mister reconhecer que ao cônjuge sobrevivente é sempre assegurada parcela da herança. Havendo ou não bens particulares, concorre com os herdeiros.

Cabe buscar uma justificativa para o tratamento diferenciado entre os dois regimes de bens. Por que, entre dois regimes que tratam igualmente os bens particulares, é feita distinção quanto à concorrência? Por que, em se tratando do regime de participação final nos aqüestos, independente da preexistência de patrimônio, é sempre assegurado ao cônjuge o direito de concorrer? Por que, no regime da comunhão parcial, o fato de o autor da herança possuir ou não bens particulares gera tratamento diferenciado quanto à concorrência do cônjuge?

Também não se atina por que, no regime legal da separação de bens (art. 1.641 do CC), não há direito à concorrência, limitação que inexiste em havendo a opção pela separação de bens por pacto antenupcial, uma vez que tal regime não foi inserido entre as exceções legais. Em ambas as hipóteses, não há falar em direito sucessório do cônjuge sobrevivente. Se a incomunicabilidade decorre da manifestação de vontade dos cônjuges, é assegurado ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrer com os herdeiros sobre todo o acervo hereditário. No entanto, se o mesmo regime de separação de bens decorre de imposição legal, ainda que injustificável a postura do legislador, não existe direito de concorrência. A menos que se vislumbre uma tentativa de punir quem casa com mais de 60 anos, nada autoriza tratamento desigualitário ante situações absolutamente idênticas. Aqui se avizinha também afronta ao princípio da igualdade, que dispõe de proteção constitucional.

Afora a incontornável ausência de respostas a essas interrogações, talvez mais desafiador seja identificar os critérios utilizados pelo legislador para excluir o direito à concorrência em algumas hipóteses, introduzindo limitações ao direito do cônjuge.

Subtrair o direito de concorrência no regime da comunhão universal de bens parece ser uma tentativa de impedir o excessivo beneficiamento do cônjuge sobrevivente. Como a totalidade do patrimônio do autor da herança pertence ao casal, receberá o cônjuge supérstite, a título de meação, a metade de todo o acervo hereditário. Tanto os bens particulares como os adquiridos durante a vida em comum serão partilhados por metade. Logo, no regime de comunhão universal de bens, o cônjuge sobrevivente fica com cinqüenta por cento de tudo. O restante, a meação do de cujus, é dividido entre os filhos do autor da herança, nada recebendo o sobrevivente sobre essa parcela.

Parece, pelo que diz a maioria, não ser outra a justificativa quanto ao regime da comunhão parcial, em que todo o patrimônio existente foi adquirido na constância do casamento. Como, ao casar, não possuía o de cujus patrimônio particular, o acervo hereditário é composto exclusivamente dos bens comuns amealhados durante a vigência do casamento. Nessa hipótese, igualmente, se divide a totalidade do patrimônio. O sobrevivente fica com a sua metade e não concorre com os descendentes quanto à outra metade dos bens. Mas talvez se deva fazer questionamento de outra ordem: se a intenção do legislador foi beneficiar o cônjuge, por que lhe deferir exclusivamente a meação, nada lhe dando de herança, ainda que todo o patrimônio tenha sido adquirido presumivelmente pelo esforço comum?

Sem perder de vista que a finalidade da instituição do direito de concorrência foi melhor aquinhoar o cônjuge, perplexidade maior advém ao se visualizar hipótese outra. Tudo indica que a intenção do legislador, ao introduzir as exceções excludentes do direito de concorrer, foi afastar a benesse quando o sobrevivente recebe a metade de todo o acervo patrimonial do de cujus. No regime da comunhão universal, a meação se constitui sobre os bens pretéritos de cada um dos consortes e sobre os adquiridos durante a vida em comum. No regime da comunhão parcial, segundo a doutrina majoritária, inexistindo bens anteriores ao casamento, igualmente haverá a partição igualitária do patrimônio. Ora, se o desejo foi só excluir a concorrência quando o cônjuge sobrevivo ficar com a metade da totalidade do patrimônio, cabe perguntar: por que excluir esse benefício de quem casou pelo regime da separação obrigatória de bens? Na dicção fria da lei, o consorte sobrevivente nada recebe, sequer a meação dos bens adquiridos durante a vida em comum. O viúvo, simplesmente por ser ou haver se casado com um sexagenário, fica sem nada, independentemente de existir bens particulares ou de haver contribuído na aquisição de patrimônio durante a constância do casamento.

A falta de congruência da lei torna-se mais evidente ao se atentar que, no regime convencional da separação, em que um cônjuge não é herdeiro do outro, o sobrevivente é brindado com o direito de concorrer com os sucessores.

Tratamentos tão antagônicos e paradoxais não permitem identificar a lógica que norteou a casuística limitação levada a efeito pelo legislador. Quando se depara com situações que refogem à razão, não se conseguindo chegar a uma interpretação que se conforme com a justiça, há que reconhecer que deixou o codificador de atender ao princípio da razoabilidade, diretriz constitucional que cada vez mais vem sendo invocada para subtrair eficácia a leis que afrontam os princípios prevalentes do sistema jurídico. São a igualdade e a liberdade, que sustentam o dogma maior de respeito à dignidade humana. E nada, absolutamente nada autoriza infringência ao princípio da igualdade, ao se darem soluções díspares a hipóteses idênticas e tratamento idêntico a situações diametralmente distintas. Também nítida é a afronta ao princípio da liberdade ao se facultar a escolha do regime de bens e introduzir modificações que desconfiguram a natureza do instituto e alteram a vontade dos cônjuges. Desarrazoado não disponibilizar a alguém qualquer possibilidade de definir o destino que quer dar a seus bens.

Imperioso concluir que são insustentáveis as distorções levadas a efeito pela lei, estabelecendo distinções ante situações rigorosamente iguais. É o que ocorre com o tratamento diferenciado entre o regime da comunhão parcial e o de participação final nos aqüestos, bem como entre o regime legal e o convencional de separação de bens. Além disso, é incongruente excluir o benefício frente a circunstâncias diametralmente opostas, como no regime da comunhão universal e no da separação obrigatória de bens. Em um se extirpa a concorrência pelo fato de o sobrevivente receber a metade de todo o acervo patrimonial. Já na outra hipótese é excluído o benefício de quem nada irá receber sequer a título de meação. Aqui também se vê ferido o princípio da razoabilidade. Cabe repetir: situações idênticas não podem receber tratamento diferenciado, assim como situações diversas não devem ser tratadas de forma igual. A única solução que se avizinha é simplesmente reconhecer a inconstitucionalidade das exceções estabelecidas no inciso I do art. 1.829 do Código Civil e estender o direito de concorrência ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens. 

9. A única saída

Frente ao que até aqui foi posto, e diante da diversidade de interpretações que o mesmo texto legal tem ensejado, cabe fazer uma pergunta: qual o regime de bens que deve adotar quem quer casar e, tendo filhos e bens, não pretende que, no caso de seu falecimento, o cônjuge receba parte do patrimônio amealhado antes do casamento?

Impositivo raciocinar por exclusão.

Às claras, não deve eleger o regime da comunhão universal, pois nessa hipótese o cônjuge receberia a metade do seu patrimônio particular a título de meação. Igualmente descabe optar pelo regime da separação de bens, já que, por não incluído esse regime nas exceções do inciso I do art. 1.829, o cônjuge sobrevivente teria direito à concorrência sobre todos os bens, inclusive os particulares. O mesmo se diga com referência ao regime da participação final de aqüestos, pois igualmente não foi excepcionado pela lei, persistindo o direito do sobrevivente de concorrer também sobre os bens individuais.

Não havendo regime de bens a eleger por pacto antenupcial, igualmente não pode o casal silenciar para que se instale o regime da comunhão parcial. Nessa hipótese, em face da existência de bens particulares  (para quem assim lê a lei), o viúvo concorrerá com os descendentes.

Qual a solução? O jeito é não casar? É viver em união estável? É esperar que um dos cônjuges complete 60 anos para casar pelo regime da separação legal? Como deixar os bens particulares só para os filhos?

A única conclusão a que se pode chegar é que está cerceada a vontade de quem quer casar, mas quer preservar seu patrimônio pessoal em favor de seus filhos. Pelo jeito, quem possui filhos e bens não pode casar! Conclusão: o novo Código Civil, que se dedicou com tanto empenho a regular o casamento (dedicou-lhe 202 artigos), impõe o celibato a quem possui filhos e patrimônio, ainda que seja somente uma bicicleta. Cabe lembrar que a própria Constituição Federal parece preferir o casamento ao impor empenho em casar os conviventes, mas a lei não está atentando a essa recomendação.

Como emprestou o legislador constituinte especial relevo ao direito à liberdade, além de assegurar irrestrita proteção à família, não dá para aceitar que alguém não tenha o direito de casar e dispor da forma que lhe aprouver sobre o destino de seu patrimônio após o seu falecimento.

A saída é uma só: reconhecer a inconstitucionalidade das exceções postas no inciso I do art. 1.829 do Código Civil, quiçá de todo o artigo 1.829.

Falando em inconstitucionalidade, era bom inserir no rol o tratamento discriminatório concedido à união estável não só no âmbito sucessório, mas em incontáveis dispositivos espraiados na lei. Desrespeitam a diretriz traçada pela Constituição Federal, que não estabeleceu qualquer hierarquização entre as entidades familiares e as elencou de forma exemplificativa.

Ao sugerir-se a eliminação de dispositivos legais, era de se aproveitar e revogar também a parte final do art. 1.845 do Código Civil, afastando o cônjuge da condição de herdeiro necessário.

Não se visualizando a necessidade social de modificar a lei, as mudanças introduzidas se revelam despiciendas, não se justificando as alterações levadas a efeito. Geram tantas e tão absurdas conseqüências, que a única solução que se avizinha é abstrair as novidades do contexto normatizado.

Enquanto o legislador se queda silente, mister que o Poder Judiciário assuma essa tarefa. De todo descabido que se curvem os juízes às aberrações legais e se esqueçam de que lhes incumbe a missão de fazer justiça. O novo Código Civil não foi feliz. A lei não está imitando a vida.(11). E, quando ocorre esse desrespeito, é necessário olvidar o que a lei diz, pois, quando o direito ignora a realidade, a realidade se volta contra o direito, ignorando o direito, conforme sempre vaticinou Ripert.

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[1] Cabe referir o sem-número de manifestações, sugestões e opiniões que recebi de atentos estudiosos, quando da publicação dos artigos anteriores sobre o tema intitulados: “Ponto e Vírgula” e “Ponto Final”. Merecem ser citadas as ponderações manifestadas por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Jamil Bannura, Mario Delgado, Enéas Castilho Chiarini Júnior, Eduardo Franceschetto Junqueira, Fernando Nogueira, André Sarda, Antônio Sérgio Dias Leal e Sidney Martins.

[2] MADALENO, Rolf. Do regime de bens entre os cônjuges. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 193.

[3] VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 286.

[4] Súmula nº 377 do STF: No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.

[5] VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 286.

[6] VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 293.

[7] Não é possível concordar com Miguel Reale em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 12 de abril de 2003, quando afirma a possibilidade de excluir o direito de concorrência por analogia.

[8] O exemplo é trazido pelo Des. Luiz Felipe Brasil Santos, em artigo disponibilizado no site do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM (www.ibdfam.com.br) intitulado “A sucessão dos cônjuges no novo Código Civil”.

[9] Esta é a posição de Zeno Veloso. (VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 281).

[10] Esta forma de interpretação é a que sustento em dois artigos em que abordo o tema intitulados “Ponto e vírgula” e “Ponto final”, disponíveis em meu site www.mariaberenice.com.br .

[11] VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 294.

 


Referência  Biográfica

Maria Berenice Dias  –  Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS e Vice-Presidente Nacional do IBDFAM.

www.mariaberenice.com.br

Alguns benefícios concedidos para que empresas se instalem nos municipios utilizando-se o ICMS

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* Jomar Luiz Bellini 

INTRODUÇÃO

           A idéia deste trabalho é levantar algumas questões que se relacionam com os incentivos fiscais oferecidos pelos Municípios, nesta guerra fiscal, em que todos estão participando, e que com a justificativa de criar empregos, esquecem-se de normas legais.

           Uma das engenhosidades criadas pelos Municípios está a devolução do icms, por um prazo determinado, de parte do produto arrecadado pelo Estado e repartido para os Municípios, na chamada quota-parte, de um percentual sobre a participação individual da empresa contemplada por este incentivo.

            Buscando o esclarecimento do leitor, levantamos algumas controvérsias em torno da questão, as quais serão abordadas à luz das normas constitucionais tributárias, bem como dos principais conceitos e princípios de Direito Tributário, visando, um posicionamento balizado acerca da constitucionalidade do referido incentivo. 

 DA INCOMPETÊNCIA PARA LEGISLAR SOBRE A MATÉRIA 

            A primeira e fulminante inconstitucionalidade neste incentivo é falta de competência para o Município legislar sobre a matéria, ou seja, restituir parte do valor que seria recolhido aos cofres do governo estadual.

            Importante a transcrição do artigo 155 e seu inciso II:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

            Não pode o Município legislar sobre uma matéria a qual esta proibida.

           Em nome da unidade federativa insculpida na Constituição, não pode haver invasão dessa competência, mesmo não sendo utilizada por quem de direito, uma vez que é indelegável.

          Geraldo Ataliba[i] conceitua competência tributária com sendo a regra geral, no direito constitucional tributário brasileiro, em matéria de impostos, é a privaticidade – ou exclusividade – da competência das pessoas políticas, para instituí-los e arrecadá-los.

            Continua, em outro trecho que por isso, cada pessoa política (União, Estados e Municípios) dispõe de uma faixa privativa de impostos a exigir. Quem diz privativa, diz exclusiva, quer dizer: excludente de tôdas as demais pessoas; que priva de seu uso tôdas as demais pessoas. A exclusividade da competência implica na proibição peremptória, erga omnes, para a exploração desse campo.[ii] (destaques não originais)

            Leciona Paulo de Barros Carvalho que o não-aproveitamento da faculdade legislativa, a pessoa competente estará impedida de transferi-la a qualquer outra. Trata-se do princípio da indelegabilidade da competência tributária.[iii]

             Diferente não é o culto mestre Hugo de Brito Machado que nos informa que o princípio da competência é aquele pelo qual a entidade tributante há de restringir sua atividade tributacional àquela área que lhe foi constitucionalmente destinada. Já sabemos que competência tributária é o poder impositivo juridicamente delimitado, e, sendo dividido. O princípio da competência obriga a que cada entidade tributante se comporte nos limites da parcela de poder impositivo que lhe foi atribuída.[iv]

              Para selar de vez a questão de competência tributária o professor Roque Antônio Carraza diz com clareza solar eliminando qualquer dúvida que a delimitação das competências da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal é reclamo impostergável dos princípios federativo e da autonomia municipal e distrital, que nosso ordenamento jurídico consagrou e que (…) de fato, entre nós, a força tributante estatal não atua livremente, mas dentro dos imites do direito positivo. ( … ), cada uma das pessoas políticas não possui, em nosso País, poder tributário (manifestação ius imperium do Estado), mas competência tributária (manifestação da autonomia da pessoas política e, assim, sujeita ao ordenamento jurídico-constitucional). A competência tributária subordina-se às normas constitucionais, que, como é pacífico, são de grau superior às de nível legal, que prevêem as concretas obrigações tributárias.[v]

              Ao deliberar sobre a possibilidade de restituir (algo que não foi indevidamente pago), estar-se-ia isentando por via indireta a empresa que preenchesse os requisitos ali constantes.

              A isenção faz parte do exercício da competência tributária atribuída a cada ente federado, não podendo, por via obliqua, ser concedido tal benefício por pessoa incapaz.

DA IMPOSSIBILIDADE DE RESTITUIR ALGUMA RECEITA PÚBLICA 

            Primeiramente tem-se por obrigatório dizer que esse tipo de incentivo normalmente traz a restituição de um percentual do valor arrecadado pela empresa beneficiada com relação à sua participação na composição do índice municipal de arrecadação.

            No entanto, a única forma de se restituir alguma receita pública, que no sentido largo ou estrito, será quando a Administração Pública, receber, por erro, dinheiro que quem não deveria, ou se devido receber a mais.

            Por receita pública no sentido largo temos que é a totalidade de ingresso de dinheiro nos cofres públicos, sem se considerar a origem ou a finalidade da entrada do dinheiro no erário[vi] e no sentido estrito é a totalidade de entradas de dinheiro que aumentem o patrimônio do Estado ou entidade de direito público, sem qualquer correspondência no passivo.[vii]

            Pela classificação alemã, existem duas formas de receitas: a originária e a derivada.

            A originária também conhecida como de economia privada ou de direito privado é a proveniente de rendas ou proventos de bens e serviços das atividades de empresas industriais ou comerciais do Estado ou de outras entidades públicas estatais sem exercício do poder público e, sem a utilização da força constitucional para transferir a Administração Público, parte do patrimônio da pessoa.

            Já a derivada, ou de economia pública ou de direito público é a entrada ou ingresso obtidos compulsória ou coercitivamente, por arrecadação de direito público como, por exemplo, os tributos e as transferências constitucionais.

            Como se verifica o valor repassado pelo Estado ao Município pode ser considerado como receita pública derivada, pelo fato de ser obrigatório o envio de sua cota parte, sob pena de extinguir o princípio federativo, conforme posto em nossa Constituição.

            Sendo certo que qualquer proposta reformadora desse princípio, não poderá sequer ser motivo de apreciação pelo Congresso Nacional, conforme dispõe o inciso I, do § 4º do artigo 60 da CF.

            O artigo 155, inciso I, diz que compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

            No artigo 158, inciso IV, diz que pertence aos Municípios vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.

            Portanto, essa receita é derivada do pacto federativo existente no Brasil, onde para que permaneça a autonomia dos Municípios o Estado transfere parte do produto arrecadado, assim como a União.

            As pessoas (físicas ou jurídicas) são obrigadas a contribuir para com os gastos do Estado e o artigo 3º do Código Tributário Nacional, define o que seja tributo:

“Art. 3º. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.” [viii]

             Se a Constituição Federal atribui aos Estados, competência para a instituição e cobrança do imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços, a sua exigência é legal e deve ser paga, não podendo o contribuinte a se recusar a pagar, sob pena de ser compelido a pagar no Judiciário, podendo ser despojado de seu patrimônio, para cumprir essa obrigação.

             Pois bem, se legal e constitucional esse pagamento não há que se falar em restituir nenhum valor pago.

             Ao buscarmos os significados das palavras verificamos que restituir é:

 (lat. restituere). 1. Fazer a restituição de; entregar (o que se tornou ou se possuía indevidamente): Restituíram as mercadorias furtadas. Restituir a seu dono o que lhe foi tomado. vtd 2. Restabelecer ao estado anterior: restituíram–lhe a liberdade. Este regime lhe restituíra a saúde. vpr 3. Recuperar o perdido; indenizar-se: restituir-se alguém daquilo que perdeu ou que lhe tiraram. Vtd 4. Indenizar de : restituir um prejuízo. “Restituir alguém de perdas e danos”(constâncio) vtd. vti. e vpr 5. Reempossar (-se), reintegrar(-se), restabelecer (-se): Depuseram o tirano e restituíram o presidente. Restituiriam o príncipe ao reino. Restituir à (ou na) posse e direitos de que o privam” (Morais). Restituir-se no seu reino, em sua graça (idem). Vtd 6. Fazer voltar: Restituíram-no no antigo cargo. Vpr 7 Abastecer-se, prover-se (do que faltava).[ix]

             Tem-se que restituir está sempre condicionado a ter de devolver algo que tinha posse indevidamente, e no caso presente isso não ocorre. A empresa recolheu aos cofres públicos, que não é municipal, um determinado valor devido e, portanto legal.

              Se recolhido a maior deverá buscar a restituição ou juridicamente, repetir o indébito. (art. 165 CTN), de quem recebeu a mais.

              Portanto, não há que se falar em restituir algo que foi recolhido por erro, mesmo porque o Município sequer recebeu esse dinheiro, pois não é de sua competência a instituição e recebimento, sendo privativamente do Estado-membro.

              Iêdo Batista Neves[x], escreve restituição como sendo a devolução, ou a entrega, ao legítimo dono, da coisa havida ou possuída indevidamente ou a reintegração ou da reposição no estado de fato anterior.

              Dúvida nenhuma existe quanto a impossibilidade da restituição por parte do Município de qualquer valor, uma vez que não recebeu nenhum imposto denominado de ICMS da empresa que seria beneficiada pela lei ora comento. 

DA VEDAÇÃO DE AJUDAR FINANCEIRAMENTE EMPRESA COM FINS LUCRATIVOS

            Se não bastasse todo exposto anteriormente, dispõe o artigo 19 da lei 4320 de 07 de março de 1964:

Art. 19. A Lei de Orçamento não consignará ajuda financeira a qualquer título, a empresa de fins lucrativos, salvo quando se tratar de subvenções cuja concessão tenha sido expressamente autorizada em lei especial.[xi]

             Uma rápida análise do que dispõe o artigo 19, nasce como a fonte pura de água, que é terminantemente vedado a concessão de qualquer ajuda financeira à empresa que tenha finalidade lucrativa.

              Finalidade lucrativa tem de se entender como sendo aquela que remunera seus diretores, e que ao final de um determinado período faz a apuração do resultado e sendo positivo, transfere parte para seus dirigentes e/ou cotistas ou acionista.

              Sem medo errar, a lei que cria incentivos a instalação de empresas na cidade, não contempla as entidades sem fins lucrativos.

              A lei incentivadora busca investimentos, criar empregos, dar melhores condições de vida aos residentes no município, sem no entanto criar problemas político-jurídicos para os seus dirigentes e via de conseqüência aos próprios beneficiados.

              O Estado tem que concentrar seus esforços no atendimento mínimo indispensável para que se dê vida digna atendendo aos princípios constitucionais (art. 5º, 196, 201, 203, 205, 215 da CF.).

              Diante de tudo isso é vedado a Administração subvencionar a atividade privada na qual não esteja diretamente ligada com suas obrigações.

              Outra limitação consta no artigo 21 da mesma lei:

 Art. 21. A Lei de Orçamento não consignará auxílio para investimentos que se devam incorporar ao patrimônio das empresas privadas de fins lucrativos.

              Ora, com o “incentivo” que se pretende criar, o valor repassado será incorporado diretamente ao patrimônio da empresa beneficiada.

              Não se discute aqui o que seria patrimônio da empresa e tão somente que esse passaria para a empresa sem qualquer contrapartida para a Municipalidade.

              Considerando que o incentivo venha a ser aprovado, necessário se fará constituir um fundo para que fizesse em face de essa despesa, ou seja, seria uma maneira de vincular a receita oriunda do repasse do Estado.

              Dispõe o artigo 71, da lei 4320/64:

Art. 71. Constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que, por leis, se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação.

              A lei instituidora desse incentivo obrigatoriamente deverá dispor sobre o fundo, uma vez que irá vincular a receita ao pagamento ou a restituição à empresa beneficiada.

              Poder-se-ia dizer que seria desnecessário a criação de fundo e que essa restituição seria feita diretamente do orçamento municipal. Estaríamos então diante de uma despesa.

              Dispõe o artigo 167, inciso IV, da Constituição Federal:

Art. 167. São vedados:

IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para manutenção e desenvolvimento do ensino, como determinado pelo art. 212, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem assim o disposto no § 4º deste artigo;[xii]

              Nenhum texto, muito menos jurídico, se prescinde de uma interpretação, por mais claro que seja.

              No entanto, jamais se conseguirá modificar a essência do que escrito: Não se pode vincular receitas à fundo ou despesa.

              Não param aí as inconstitucionalidades.

              A Constituição visando impor ao Administrador Público um planejamento sério e compatível com suas condições veda o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual (inciso. I, art. 167) e a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais (inciso. II, art. 167).

              Deverá constar no Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias além do Orçamento Anual. Caso contrário, descumprido está toda a Seção II, do Capitulo II do Título VI da Constituição Federal.

ISENÇÃO: LEI ESPECÍFICA 

              O artigo 150 dispõe sobre as vedações, quando da elaboração do orçamento e no seu parágrafo 6º é claro ao dizer que qualquer subsídio ou isenção somente poderá ser concedido por meio de lei específica. Diz o parágrafo 6º:

§ 6.º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão relativos a impostos, taxas ou contribuições só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, letra “g”. [xiii]

             Portanto a lei que venha conter uma isenção ou qualquer incentivo deverá ser específica e não genérica. [xiv]

              Somente pode isentar quem tem a competência para isentar, excetuando o Imposto Sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços, uma vez que o artigo 155, § 2º, inciso XII, letra “g”, disponha que cabe a lei complementar regular a forma como, mediante deliberações dos Estados e do Distrito federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.

DO MOMENTO PARA ESSA CONCESSÃO 

            Como é consabido está em trâmite no Congresso Nacional e em ampla discussão junto à sociedade, uma reforma tributária, onde entre outras questões, está a unificação dos impostos sobre circulação, produtos e sobre serviços, transformando-os em Imposto sobre Valor Agregado, de competência da União e de arrecadação dos Estados.

            Por mais que se crie emprego é de fundamental importância que seja criado com o devido suporte social, sob pena que causar um colapso nos serviços públicos municipais, tais com na área da saúde e de educação com o aumento de demanda em desproporção as condições da Municipalidade de satisfaze-las.

            A sistemática de devolução ou de retorno dos benefícios financeiros auferidos somente se daria em 2 anos após o início de funcionamento da empresa.

CONCLUSÃO 

           A receita da transferência por parte do Estado Membro para o Município é derivada a partir do momento da existência da coercitividade do seu repasse sob pena de responsabilidade de que descumpre o mandamento constitucional;

            Não há que se falar em restituição de qualquer valor a qualquer empresa, uma vez que não houve recebimento indevido por parte da Municipalidade, carecendo, portanto, de fundamento jurídico essa proposta;

           Peca por inconstitucionalidade o incentivo que se pretende criar para as empresas que venham a se instalar no Município de Araçariguama, uma vez que cria uma isenção de forma indireta ao ICMS de competência do Estado e não do Município.

            Inconstitucional também, pois vincula receita a fundo ou mesmo despesa com a lei, uma vez que não limita ou mesmo explicita o limite que poderá ser gasto dentro de um determinado período.

            É vedada pela lei 4.320/64, a ajuda financeira para empresa particular, salvo no caso por ela excepcionada, o que não se aplica no presente caso;

            De igual forma veda a consignação de auxilio para investimento que incorporará diretamente ao seu patrimônio da empresa beneficiada;

            A lei, se constitucional fosse, deve especificar critérios objetivos para o enquadramento das empresas que venham a ser beneficiadas, obedecendo ao artigo 195, § 3º da Constituição Federal;.

            Contraria o § 6º do artigo 150 da Constituição Federal ao não propor a presente isenção ou incentivo em lei específica;

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[i] Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. pg. 106. Ed. RT. 06-68.

[ii] Ob. cit. p. 107.

[iii] Curso de Direito Tributário. 7ª ed. pg. 143. Ed. Saraiva. 1995.

[iv] Curso de Direito Tributário. 11ª ed., pg 29. Ed. Malheiros. 01-96.

[v] Curso de Direito Constitucional Tributário. 10ª ed. pg. 285/287. 08-97.

[vi] Júlio Mariano Júnior. Lições de Direito Tributário – Parte Geral – Copola Editora. pg. 31. 1994.

[vii] Ob. cit. p. 31.

[viii] destaque não original.

[ix] Michaelis – Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Ed. Melhoramentos. 1998.

[x] Vocabulário Prático de Tecnologia Jurídica e de Brocardos Latinos. Ed. Fase. 1991.

[xi] destaque não original.

[xii] destaques não originais.

[xiii] destaques não originais.

[xiv] TRF 4ª R. – AMS 1999.70.00.028811-0 – PR – 1ª T. – Rel. Juiz Amir Sarti – DJU 22.11.2000 – p. 125; TRF 4ª R. – AMS 1999.70.09.003962-0 – PR – 1ª T. – Rel. Juiz Amir Sarti – DJU 22.11.2000 – p. 109; TJRJ – AC 2383/1993 – (26082000) – 2ª C.Cív. – Relª Desª Leila Mariano – J. 25.04.2000.

  


Referência  Biográfica

Jomar Luiz Bellini  –  Professor de Direito Processual Civil, Teoria Geral do Processo, na Universidade de Sorocaba e Faculdade  de Direito de Itapetininga.; Doutorando em Direito Processual Civil na PUC-SP; Mestre em Direito político e Econômico pela Universidade Mackenzie-SP; Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP e Especialista em Comércio Exterior pela FECAP-SP.

Críticas às críticas ao modelo de arbitragem no Brasil

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* Enéas Castilho Chiarini Júnior 

1.0 – Introdução

O ilustre magistrado e professor, Júlio César Ballerini Silva, em magnífico artigo intitulado “Críticas ao modelo de arbitragem no Brasil”, publicado através de CD-Rom Jurídico pela editora Dominus Legis, faz severas críticas à Lei 9307/96 – Lei da Arbitragem –, e ao próprio instituto da arbitragem.

Tal artigo, por ser tão completo, conciso e bem argumentado, pode ser considerado como uma síntese dos argumentos contrários à difusão da arbitragem no Brasil.

Porém, por fazer parte de uma instituição arbitral; por ter participado de um curso de formação de árbitros, promovido pela SBDA – Sociedade Brasileira para Difusão da Arbitragem – e, finalmente, por ser advogado, comprometido, segundo parágrafo único do artigo 2º do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, com “o aprimoramento das instituições, do Direito e das leis”, devendo “pugnar pela solução dos problemas da cidadania e pela efetivação dos seus direitos individuais, coletivos e difusos…”, além de “estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo sempre que possível, a instauração de litígios”, julgo meu dever de advogado, membro de estabelecimento arbitral, e de cidadão, fazer divulgar as características positivas da arbitragem, além de desmascarar o engano daqueles que diuturnamente lutam contra a efetivação deste meio extrajudicial de solução de controvérsias.

O presente estudo visa, portanto, desfazer alguns equívocos cometidos pelo eminente jurista, e esclarecer que, ao contrário do que muitos – infelizmente – pensam, a sociedade brasileira deu, ao aprovar a referida lei, um grande e importante passo na busca da completa efetivação do texto constitucional, principalmente no que tange à cidadania e aos direitos sociais.

Júlio César Ballerini Silva, logo no início de seu texto afirma que se enganam os juristas ao “…entenderem o instituto da arbitragem como uma das soluções mais eficazes para o fenômeno denominado ‘crise do Poder Judiciário’…”, porém, tentaremos mostrar, com o presente estudo, que isso, ao contrário do que o eminente jurista pensa, é verdadeiro, além de demonstrar, também, que não faz sentido a afirmação de que a adoção da arbitragem “…trará sérios problemas sócio-políticos, econômicos e jurídicos, se aceita sem sérias reservas em nossa ordem jurídica.”

2.0 – Imposição da Globalização

O eminente jurista, faz crer – e neste particular não discordamos – que a promulgação da lei em questão é conseqüência de uma imposição do fenômeno que se convencionou chamar de Globalização.

Concordamos com ele quando afirma que:

“…não se poderá desconhecer fatores como a flexibilidade do conceito de soberania que vem sendo imposto, em sede macrofatorial, pelo FMI e outros organismos internacionais de crédito, aos governos de países da América Latina e do Sudeste Asiático…”

Em outra passagem, ele afirma, ainda, que:

“…parece claro que não se pode esquecer das considerações acima a respeito da necessidade de enfraquecimento do Poder Judiciário nacional para atender interesses de organismos financeiros internacionais, organismos esses não contentes com a existência de Constituições resguardando a dignidade humana em detrimento do capital nos chamados países emergentes…”

Nossa discórdia, referente à este tema, reside apenas no tocante aos efeitos da submissão aos interesses supra-nacionais dos “organismos internacionais de crédito”.

No momento, cabe apenas – pois esta afirmação será clareada no conjunto do texto – a alegação de que, ao contrário do que acredita nosso “adversário”, a adoção da arbitragem trará benefícios, não apenas aos “organismos internacionais de crédito”, mas também, e principalmente, a todo o povo brasileiro.

3.0 – Jurisdição para minorias

Segundo nosso douto opositor, estar-se-ia, com a adoção da arbitragem, criando uma ordem jurídica paralela, ágil e funcional, a qual somente interessaria aos “grandes conglomerados econômicos”, e da qual se excluiria parcela significativa do povo brasileiro, o qual estaria condenado a se socorrer do “falido” sistema judiciário estatal brasileiro.

Em suas próprias palavras:

“De nada adianta, portanto, um instituto que deixe à margem um grande número de cidadãos, implicando numa distribuição de Justiça célere para alguns privilegiados, e, a partir do momento que a crise do Poder Judiciário deixar de tornar um problema para os grandes conglomerados econômicos, que dispõem de grande influência junto aos Poderes Executivo e Legislativo, obviamente não mais ocorrerão, com a mesma intensidade verificada atualmente […], investimentos necessários ao Judiciário convencional, repetindo-se o fenômeno já vivenciado por outros setores estratégicos do governo […] não se pode esquecer que, embora para o governo de matiz axiológica neoliberal possa parecer sedutora a tese de resolução do problema do Poder Judiciário a custo zero, ou seja, favorecendo a criação de uma ordem jurisdicional particular e paralela, que interessará a uma minoria, estará deixando de atentar para a missão constitucional do Poder Judiciário, expressamente assegurada no mister da garantia de análise de lesões e ameaças de lesões aos direitos das pessoas residentes e domiciliadas no Brasil.”

O equívoco do eminente Júlio César Ballerini Silva, reside no fato de que, esquece-se ele que, ao difundir-se e fortalecer-se o instituto da arbitragem em âmbito nacional, estar-se-á, indiretamente, contribuindo para a diminuição da instauração de processos judiciais, reduzindo-se, assim, o volume de processos para serem julgados, o que, por um lado contribuirá para uma menor demora nos julgamentos, além de, por outro lado, possibilitar aos julgadores estatais um maior tempo para estudo de cada processo que tiver sob sua jurisdição. O resultado não poderá ser outro senão uma justiça estatal mais célere e de melhor qualidade, principal anseio da população no tocante ao Poder Judiciário.

Assim, mesmo que a arbitragem seja uma jurisdição para minorias – o que não é verdade, pois os custos do procedimento arbitral não são tão elevados como nosso opositor tenta fazer crer, principalmente se levarmos em conta que, pela velocidade de julgamento, o “mais barato”, as vezes, pode acabar sendo o “mais caro” –, ela acabará por beneficiar também aqueles que não possuem recursos para se socorrer da arbitragem, uma vez que, conforme colocado, estes terão a possibilidade de ver seus processos julgados de forma mais ágil e com melhor qualidade.

4.0 – Cidadania

Ballerini Silva afirma, também, que “…com a criação de ordens jurídicas paralelas, será cada vez mais difícil conferir efetividade aos direitos fundamentais dos cidadãos (cláusulas pétreas dentro do estabelecido no artigo 60, § 4º, inciso IV da Carta Política de 05.10.1988).”

Porém, ser cidadão não é – conforme reconhecido no trecho acima – apenas ter direitos políticos. O termo cidadão implica muito mais que isso. Implica, sobretudo, ser reconhecido como ser humano, portador de valores e dignidade próprios.

Para que se possa dizer que um indivíduo é um cidadão, é necessário que sejam efetivados direitos básicos, como na área da saúde, educação, segurança, liberdade…

É neste sentido que, em 1988, o então presidente do Congresso Nacional Constituinte, Ulisses Guimarães, se referiu à Constituição Federal como sendo a “Constituição Cidadã”, pois esta declara vários direitos individuais e coletivos que, em conformidade com a mais moderna concepção de Direitos Humanos, são indispensáveis para que o indivíduo seja considerado cidadão (para maior aprofundamento no tema, ler João Baptista Herkenhoff, “Como funciona a cidadania” da editora Valer, ou “Ética, educação e cidadania” da Livraria do Advogado, ou, ainda, “Cidadania para todos” da Thex Editora).

Sendo assim, não concordamos com o autor quando ele se preocupa com a arbitragem, fazendo crer que sua adoção seria uma afronta à cidadania, uma vez que, conforme dito, ela contribuirá para uma justiça mais célere e de melhor qualidade – o que por si só já é um avanço em termos de cidadania –, além de, conforme o próprio autor afirmou, seu fortalecimento possibilitará ao Governo Federal que, ao invés de investir maciçamente no Poder Judiciário, possa investir maior quantidade de recursos em outras áreas como a saúde, educação, segurança, lazer, meio-ambiente, etc… (não que o Judiciário não precise de investimentos, mas, ao contrário, existem outras áreas, como as citadas, que precisam, mais que o Poder Judiciário, de investimentos), o que, certamente – e ao contrário do que o autor acredita – representará um grande avanço em termos de cidadania.

5.0 – A inconstitucionalidade

5.1 – O duplo grau de jurisdição

Este autor ataca a constitucionalidade do instituto, afirmando que o mesmo não observa o duplo grau de jurisdição, que, segundo sua visão, decorreria da ampla defesa, que, por sua vez, ao lado do contraditório, seriam os pilares básicos do devido processo legal.

Nas suas próprias palavras:

“…o legislador parece ter se esquecido da existência de prerrogativas constitucionais básicas.

Veja-se, por exemplo, o disposto no artigo 5º, inciso LIV da Magna Carta, que estabelece que aos litigantes serão sempre assegurados o contraditório e ampla defesa, bem como os meios e recursos a ela inerentes.

Ora, a ampla defesa pressupõe o acesso a recursos (o texto constitucional é claro a esse respeito), que, no caso, estão sendo negados pela legislação pátria a respeito do tema.”

Porém, sobre a questão de ser, ou não, o duplo grau de jurisdição um direito assegurado pela Constituição Federal de 1988, o Eminente Relator, Ministro Sepúlveda Pertence do STF, no RHC 79785-7 – RJ, concluiu que a Constituição “…efetivamente não erigiu o duplo grau de jurisdição em garantia fundamental.”

Assim –  sob o ponto de vista jurisprudencial – não está correto o entendimento de nosso opositor, o que nos leva a conclusão de que, sob este argumento, a lei 9307/96 é constitucional.

A referida lei é também constitucional sob o enfoque doutrinário se analisarmos a exigência do duplo grau de jurisdição em conjunto com o princípio da autonomia da vontade, o qual será analisado a seguir.

5.2 – A inafastabilidade de apreciação pelo Poder Judiciário de lesão ou ameaça a Direito

O autor também ataca a constitucionalidade da referida lei ao afirmar que:

“Do mesmo modo, o inciso XXXV do mesmo artigo 5º da Magna Carta, estabelece que a lei não excluirá de apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão, de modo que norma infraconstitucional, de forma alguma, poderia impedir o acesso ao Poder Judiciário, mas, no entanto, tal não foi o pensamento do legislador pátrio, que obstou tal acesso, limitando a atuação do Poder Judiciário, aos termos do artigo 7º da lei em estudo, quando o Juiz deverá atuar apenas para conduzir a parte resistente, que tenha firmado cláusula compromissória, à instituição da arbitragem.”

Porém, a constitucionalidade do impedimento ao acesso ao Judiciário é decorrente da autonomia da vontade das partes.

É o que se depreende da leitura do artigo 1º da lei da arbitragem que afirma que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios…”

Uma vez que a lei afirma que as partes “poderão” recorrer à arbitragem, ela torna este procedimento não obrigatório, e, sendo, portanto, facultativo, ambas as partes devem estar de acordo com a instauração do procedimento arbitral.

A razão para que o procedimento arbitral deva ser convencionado pelas partes reside, justamente, no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Por este dispositivo constitucional poder-se-ia – como fez Ballerini Silva – pugnar-se pela inconstitucionalidade da Lei de Arbitragem, no sentido de que a decisão da controvérsia deveria ser tomada, exclusivamente, pelo Poder Judiciário.

Tal raciocínio, porém, utiliza o que os estudiosos da lógica chamam de argumento a contrário, o que, do ponto de vista lógico, é inconcebível.

Se a Constituição diz que o acesso ao Judiciário não será excluído, não está dizendo – como quer o referido autor – que a resolução do conflito passe, obrigatoriamente, por este Poder.

O que a Constituição afirma é que, caso seja de interesse da parte, esta poderá recorrer ao judiciário, afirmação esta que não é, de forma alguma, incompatível com a Lei nº 9307/96, uma vez que esta condiciona a instauração do procedimento arbitral à anuência de ambas as partes, ao dizer que: “as partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem…” (artigo 3º).

A autorização para se evitar o Poder Judiciário explica-se pelo fato de que somente poderão ser dirigidos ao procedimento arbitral os litígios que tratem de direito patrimonial disponível, conforme expresso no artigo 1º da Lei.

Assim, quanto a este argumento, também se chega a conclusão de que a lei em questão é, com base no princípio da autonomia da vontade, perfeitamente constitucional.

5.3 – Proibição de criação de Tribunal de exceção

O eminente jurista Ballerini Silva tenta, ainda, pugnar pela inconstitucionalidade da referida lei, ao apontar o dispositivo constitucional que proíbe a instauração de tribunal de exceção (artigo 5º, inciso XXXVII da CF/88).

Porém, o que nosso opositor se esquece desta vez é que para se fazer uma boa interpretação constitucional deve-se levar em conta o momento histórico em que a mesma foi elaborada (os diversos autores que tratam de hermenêutica – quer seja geral, quer seja constitucional – são uníssonos a respeito).

Pois bem, a Constituição foi promulgada ao fim de um regime ditatorial militar, onde eram comuns os julgamentos sumários em tribunais suspeitos, o que – por si só – justifica a presença em sede constitucional de tal garantia (além é claro de se tratar de exigência feita em decorrência dos artigos IX e X da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU).

Porém, uma boa hermenêutica não se finaliza apenas apreciando-se o momento histórico em que a Constituição foi promulgada (aqui também os autores são unânimes), mas sim ao se examinar o sistema como um todo, e, principalmente, qual a intenção do legislador ao elaborar a lei que se quer interpretar.

Assim, a intenção do Congresso Constituinte, ao inserir no corpo constitucional o referido dispositivo, foi de impedir que os futuros governos pudessem ter meios de cassar – ou caçar – seus adversários políticos – prática que era comum no antigo regime.

Nada impede, portanto, que, respeitando-se princípio da autonomia da vontade das partes, elas possam abrir mão da referida garantia constitucional, principalmente por que, segundo a lei 9307/96, somente poderá ser árbitro quem tiver a confiança das partes (artigo 13).

Ora, o conceito de tribunal de exceção é absolutamente incompatível com a presença de julgador de confiança das partes que serão julgadas.

Assim, mais uma vez, chega-se a conclusão de que a lei da arbitragem é constitucional.

5.4 – Publicidade dos atos processuais

Como se não bastasse, nosso opositor tenta, mais uma vez, pugnar pela inconstitucionalidade da lei em voga, agora apontando a obrigatoriedade de publicidade dos atos processuais estabelecida pelo inciso LX do artigo 5º da Constituição Federal.

Mais uma vez, cabe lembrar que a referida garantia de publicidade dos atos processuais foi estabelecida para se evitar os erros cometidos no passado, e que sua intenção foi, portanto, de proibir os julgamentos secretos que também eram comuns no regime militar.

O que se busca com tal dispositivo é resguardar às partes que serão julgadas a garantia de que a lei e o devido processo legal serão sempre seguidos.

Nada impede que as partes, por vontade própria, desejem, ao utilizar a arbitragem, manter em segredo toda a matéria referente ao processo, e, inclusive, o próprio processo em si.

Existem duas explicações para isso. A primeira é que o julgador, conforme dito a pouco, é pessoa de inteira confiança das partes, de forma que estas sabem que o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e outros princípios serão observados.

A segunda explicação é que, se por erro, ou má-fé de qualquer dos envolvidos, os princípios (que segundo Alexy deveriam ser chamados de regras) acima expostos não forem observados no julgamento arbitral, será possível, através do Judiciário, pedir a nulidade do julgamento, com base no artigo 32, inciso VIII da lei arbitral.

Assim, conclui-se que a lei 9307/96 é plenamente constitucional, conforme bem se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, fato este que é de conhecimento do eminente Ballerini Silva, o qual chega a afirmar:

“É bem verdade que, em recente julgamento, o Supremo Tribunal Federal, em decisão histórica não muito divulgada e difundida nos meios judiciais, a despeito de sua magnitude, reconheceu, por maioria de votos (e não pela totalidade) que a Lei nº 9.307/96 seria constitucional, a despeito das falhas apontadas…”

6.0 – Poderes do árbitro

Ballerini Silva levanta dúvidas a respeito dos poderes conferidos à figura do árbitro, afirmando que:

“…a lei adota uma postura dúbia a respeito da figura do árbitro, posto que, tal como mencionado acima, a lei equiparou-o a Juiz de Direito (artigo 18), conferindo-lhe amplos poderes instrutórios (artigo 22), atribuindo-lhe o poder de prolatar sentenças, inclusive em atendimento ao seu livre convencimento (artigo 21, § 2º), atribuindo a possibilidade de formação de coisa julgada a tais decisões (artigo 31).

E deve ser destacado que o único fundamento político da existência de um terceiro com função de julgar é, justamente, sua imparcialidade, o que deve é obtido [sic] através de uma fundamentação (com tal fundamentação permite-se conhecer o raciocínio lógico e coerente que levou à prolação da decisão, restringindo-se sobremaneira as possibilidades de arbítrio e corrupção).

Mas, mesmo a par de pretender conferir ao árbitro tais prerrogativas institucionais, a todo momento se refere o legislador à necessidade de utilização do Poder Judiciário para conferir-se efetividade ao texto legal, como se observa, v.g., no artigo 7º e seus consectários e no artigo 22, §§ 2º e 4º.

Ora, se o árbitro é Juiz de Direito, revestido de inúmeras prerrogativas de Magistrado, porque a postura dúbia de se prever a necessidade do mesmo recorrer ao Poder Judiciário tradicional para a imposição de seus atos e deliberações ? O escopo da lei, ‘a priori’ não teria sido o de promover a agilidade de julgamento, sem necessidade de se acionar um moroso e complexo Poder Judiciário ?”

Vamos por partes.

Primeiro, com relação ao “livre convencimento” do árbitro, a lei não está dizendo – conforme crê o eminente jurista – que o árbitro é livre para decidir e ponto.

A lei diz apenas que sua decisão é livre, sem dever de observar o entendimento alheio, mesmo que este entendimento não compartilhado pelo árbitro seja o do Supremo Tribunal Federal.

O árbitro, assim como todo magistrado, possui o dever de fundamentar sua sentença (se não pelo dever constitucional de fundamentação de toda decisão – artigo 93, IX –, ao menos pelo artigo 26 da lei arbitral que estabelece, explicitamente, o dever de fundamentar sua sentença).

Assim, não houve qualquer irregularidade com a expressão “livre convencimento”, apesar de que pela melhor técnica deveria ter sido expresso “livre convencimento fundamentado”. Porém, por uma hermenêutica sistemática da lei, chega-se à conclusão de que é exatamente isto que é indicado pelo citado artigo 21, § 2º.

Quanto aos poderes instrutórios, estes são indispensáveis para o julgamento.

Quanto ao efeito de coisa julgada das decisões arbitrais, estas são necessidades lógicas decorrentes da própria lei, pois não faria sentido socorrer-se da arbitragem se sua sentença pudesse ser alterada pelo Poder Judiciário.

Quanto à necessidade de socorro ao Poder Judiciário, a explicação é que o árbitro possui apenas o poder de dizer o direito das partes, nada mais. O árbitro não possui – e, por sua natureza, não pode possuir – o direito/poder de mando, principalmente com relação à terceiros sobre os quais não possui qualquer relação jurídica.

Com isto explica-se a necessidade de pedir ao Judiciário a condução sobre varas de testemunhas que se recusam a comparecer perante o tribunal arbitral (artigo 22, § 2º), ou de se pedir ao Judiciário que conceda medidas coercitivas ou cautelares (artigo 22, § 4º).

Quanto à necessidade de se recorrer ao judiciário para instauração do tribunal arbitral (artigo 7º), isto se explica, justamente, pelo fato de que o tribunal arbitral ainda não foi instaurado.

Como um árbitro, que ainda não é árbitro – pois só se torna árbitro após a instauração do tribunal arbitral –, e que, portanto, ainda não tem qualquer poder sobre as partes, poderia dar início ao procedimento arbitral?

A solução é uma só: dar início ao procedimento arbitral via Poder Judiciário.

Assim, não fazem sentido as preocupações referentes a pretensa falta de coerência com relação aos poderes dos árbitros, pois como visto, existe sim uma coerência d lei a este respeito, e, diga-se, o tratamento dispensado aos árbitros não poderia ter sido diferente. Bem andou o legislador no tocante à matéria em questão.

7.0 – Da possibilidade do julgamento por eqüidade.

A lei no seu artigo 2º, abre a possibilidade expressa das partes escolherem quais as leis que regerão a decisão da controvérsia, ou, até mesmo, se a decisão a ser tomada deverá ser exclusivamente por critérios de eqüidade.

Nosso opositor acredita que tal abertura estabelecida seria perigosa, merecendo “cuidado”, uma vez que tal possibilidade, sob seu ponto de vista, revelaria “…o aspecto puramente econômico que serviu de propulsor da edição da lei.”

Primeiramente, é bom esclarecer que o objetivo da lei é, realmente dar um tratamento diferenciado aos “direitos patrimoniais disponíveis”, conforme expresso logo em seu artigo 1º.

Segundo, cumpre lembrar que não são, portanto, passíveis de julgamento por via arbitral os direitos indisponíveis, tais como os direitos de matéria penal, tributária, família, sucessão ou direitos fundamentais.

Assim, não existe qualquer problema no aspecto – positivo – de as partes poderem escolher livremente quais as regras que deverão ser aplicadas ao julgamento.

Quanto, mais especificamente, à eqüidade, esta é, conforme definição clássica, uma lei perfeita, estabelecida apenas para um único caso concreto, e que amolda-se perfeitamente às características do caso sob julgamento.

Mais precisamente, nas palavras de Celso Ribeiro Bastos, a eqüidade “..é uma apreciação subjetiva, cujo critério reside no senso de justiça. O Código de Processo Civil de 1939, no seu art. 114, conceituava a eqüidade nos seguintes termos: ‘Quando autorizado a decidir por eqüidade, o juiz aplicará a norma que estabeleceria se fosse legislador.’" (in Curso de direito financeiro e de direito tributário, pág. 189).

Assim, não existe qualquer preocupação plausível para afirmar-se que o julgamento por eqüidade seja digno de “cuidado”, como afirmou Ballerini Silva, principalmente porque o julgamento só será por via da eqüidade se ambas as partes acordarem neste sentido, não havendo óbice para afastar a aplicação do princípio da autonomia da vontade – o qual, diga-se, é o fundamento e sustentáculo do instituto da arbitragem.

8.0 – Grande conglomerados internacionais X pequenos contratantes nacionais

Um preocupação correta do referido autor é de que:

“Seria muito difícil a uma pequena empresa nacional, como por exemplo, uma padaria, contratar um grande escritório de advocacia, com profissionais especializados em usos e costumes internacionais para enfrentar uma grande empresa multinacional que rotineiramente dispõe de grupos de escritórios de grandes internacionalistas, especializados neste tipo de pendências, como por exemplo, as grandes companhias produtoras de refrigerante, que, muitas vezes, através de suas distribuidoras, em virtude de seu nome no mercado, já impõem as vendas casadas de seus produtos, e não terão maiores obstáculos em impor cláusulas compromissórias prevalecendo-se de seu poder econômico.

Acabou-se, portanto, por legitimar o darwinismo econômico na ordem jurídica pátria…”

Porém, esqueceu-se o autor de que a lei em seu artigo 21, § 2º ordena, de forma clara, que “serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento.” (note-se que o advérbio temporal “sempre” está colocado entre vírgulas, o que aponta para uma preocupação do legislador em dar ênfase ao referido ordenamento de “sempre” se respeitar tais princípios).

Além de que, por força do artigo 32 da lei em questão, se estes princípios não forem observados, estar-se-á diante de uma sentença nula.

Assim, não existem motivos para tão grande preocupação com as desproporções econômicas existentes entre os “grandes conglomerados internacionais” e os “pequenos contratantes nacionais”, pois, apesar de, realmente, ser possível que os pequenos contratantes nacionais sejam pressionados para aderirem “…a contratos que contenham em seu bojo cláusulas compromissórias”, se houverem problemas que devam ser resolvidos por via arbitral, esta desproporção econômica não deverá dar ensejo a prejuízos no tocante a parcialidade da solução da controvérsia.

É claro que sempre existirá o problema apontado pelo autor de que os grandes conglomerados econômicos serem representados por um “grande escritório de advocacia, com profissionais especializados em usos e costumes internacionais”, enquanto que os pequenos contratantes nacionais não teriam recursos para serem representados por escritórios de advocacia de igual capacidade.

Porém, será que se este procedimento arbitral – onde exista desproporção econômica entre as partes, e, em que uma delas contrata um escritório de advocacia altamente especializado, enquanto que a outra parte contrata apenas um escritório de advocacia sem qualquer especialização – fosse julgado pelo Poder Judiciário o problema central da questão – a desigualdade entre os advogados – seria resolvido? Claro que não, este problema continuaria existindo mesmo perante o Poder Judiciário. Então, porquê se impedir a arbitragem apenas por isso?

9.0 – “Relação de consumo” & “contrato de adesão”

Afirma nosso opositor que:

“…não se desconhece a argumentação dos defensores da arbitragem no sentido de que a legislação vedaria a imposição da arbitragem, ao menos no que tange às relações de consumo.

Mas cuida-se de proteção pífia, aparente, sem maior efetividade, posto que, em primeiro lugar, e sobretudo entre empresas, se torna difícil caracterizar uma relação como sendo de consumo, e, portanto, de acordo com as regras previstas pela Lei nº 8.078/90.

[…]

Assim, uma primeira dificuldade já surgiria daí, posto que, nem sempre será possível caracterizar uma relação envolvendo um grande grupo econômico, como uma relação de consumo, e com isso não se poderia ensejar a aplicação da norma contida no artigo 4º da Lei nº 9.307/96, que, supostamente, resguardaria as relações de consumo em matéria de arbitragem.”

Porém, ao contrário do que afirma Ballerini Silva, a lei 9307/96 não veda a arbitragem em contrato de relação de consumo.

O § 2º do artigo 4º da lei é expresso no sentido de que, no tocante aos contratos de adesão – e aqui está o equívoco de acreditar-se que “contrato de adesão” seja sinônimo de “relação de consumo” – “…a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa  de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.”

Antes de mais nada, cumpre esclarecer que quando a lei fala em “instituir a arbitragem” trata-se de efetivamente instaurar o tribunal arbitral e dar início ao procedimento da arbitragem, e não de fazer constar no contrato a possibilidade futura de se utilizar de procedimento arbitral para solucionar problemas ainda não existentes, como parece ter sido o entendimento do eminente jurista.

Assim, a primeira conseqüência deste dispositivo é que, quando tratar-se de contrato de adesão, aquele que elaborou o contrato não poderá utilizar-se de sua torpeza a seu favor, alegando que a lei veda a arbitragem em contrato de adesão.

É o que se depreende da primeira parte do dispositivo, quando ele afirma que “…só terá validade se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem…”.

Assim, perfeitamente válida a arbitragem se é do aderente a iniciativa de instaurar o procedimento arbitral.

Outra conseqüência do mesmo dispositivo, é que somente poderá o elaborador do contrato de adesão se socorrer do procedimento arbitral se aquele que aderiu ao contrato tiver, “expressamente”, concordado com sua instituição. É o que decorre da parte final do dispositivo em análise.

Assim, cumpre deixar claro que não existe, ao contrário do que afirma Ballerini Silva, óbice à arbitragem em relações de consumo.

O que existe é uma preocupação, por motivos óbvios, do legislador em proteger aquele que assina um contrato de adesão.

Uma preocupação válida é a afirmação de que:

“…de nada adianta o estabelecimento formal de uma garantia em favor do consumidor, no gênero de exigir-se que a arbitragem seja instituída de forma clara e destacada do texto de um contrato, posto que, do ponto de vista da efetividade, ou o consumidor aderirá para obter o produto, ou, se discordar, não realizará o contrato (a experiência bancária esta aí para que todos possam verificar como ocorre do ponto de vista empírico).”

Realmente, esta possibilidade existe, e, certamente ocorrerá na prática, mas, se isso acontecer, poderá o aderente se recusar a instaurar o procedimento arbitral, fazendo com que a outra parte precise se socorrer do Poder Judiciário para a instauração do tribunal arbitral – aqui está mais um motivo para a possibilidade aberta pelo artigo 7º da lei –, sendo que o Poder Judiciário, após ouvir as alegações de ambas as partes, decidirá se deverá ser instituído o tribunal arbitral para solucionar a controvérsia, ou se, por outro lado, houve algum tipo de coerção por parte daquele que exigiu a anuência contratual do aderente que justifique a não instauração do procedimento arbitral.

Porém, continuando-se na leitura do artigo de Ballerini Silva, esta parece não ter sido sua preocupação, pois ele afirma que:

“Pense-se, por exemplo, no caso de um grande banco que, para efetuar o refinanciamento de uma dívida já vencida, com o devedor, imponha um contrato com uma cláusula de convenção de arbitragem, o fazendo de forma expressa e clara, com destaques e negrito para a cláusula, e através da qual se estabeleça que o árbitro seja o gerente de um outro banco, também associado à FEBRABAN, ou jurista que já tenha publicado teses justificando a cobrança de juros onzenários por instituições financeiras.

E, por mais que o consumidor saiba o que ocorre, não conseguirá obter a repactuação se não firmar a convenção, nada podendo fazer em relação ao árbitro, posto que, formalmente, não se encontram presentes quaisquer das hipóteses de impedimento ou suspeição que poderiam ser alegadas em face de um Juiz estatal (isso sem que se mencione que o critério de decisão pode ser, como já mencionado limhas atrás, o da equidade, ainda mais amplo, permitindo uma margem de discricionariedade cada vez maior, agravando-se a questão formulada).

[…]

E não que os árbitros não venham a ser imparciais, como exige a lei que o sejam, mas corre-se o sério risco de que, em contratos de adesão, se escolham representantes de classes setoriais, ideologicamente comprometidos com o desfecho da lide, o que não se pode conceber, por razões óbvias.”

Assim, mais uma vez, demonstra o autor que sua preocupação principal – mesmo que tente camuflar em forma de comprometimentos ideológicos – é com relação à imparcialidade do árbitro, esquecendo-se de que, somente poderá ser árbitro aquele que tiver confiança das partes (artigo 13), e do disposto nos, já citados, artigos 21, § 2º e 32 da lei 9307/96, sobre a nulidade da sentença que não observar, entre outros princípios, a imparcialidade do árbitro.

Por outro lado, com relação ao fato de o árbitro ser – ou poder ser – uma pessoa ideologicamente comprometida, cumpre lembrar que o magistrado aposentado João Baptista Herkenhoff, em um de seus trabalhos (Como aplicar o Direito – à luz de uma perspectiva axiológica, fenomenológica e sociológico-política – da editora Forense) demonstra que todo magistrado, como ser humano que é, possui valores pessoais os quais estão contidos em cada uma de suas sentenças.

Assim, porque se preocupar com a ideologia do árbitro quando os juízes também possuem – em maior, ou em menor grau – um comprometimento ideológico?

Mais, se ambos possuem um certo grau de comprometimento ideológico, o árbitro é escolhido de livre vontade pelas partes, enquanto que o juiz é imposto, ou por questões de jurisdição, ou por sorteio.

10.0 – Considerações finais

Com o presente estudo, o qual não pretende exaurir o tema, fica demonstrado que a arbitragem é perfeitamente constitucional, e mais, que sua difusão e aplicação prática, ao contrário do que pensam alguns, possibilitará uma relativa melhora – quantitativa e qualitativa, como visto –  do Poder Judiciário, além de propiciar que os escassos recursos econômicos das três esferas de governo possam ser direcionados para áreas de maior urgência, ampliando-se, assim, o leque de direitos sociais efetivados no mundo real, e não apenas em sede constitucional.

Assim, o fortalecimento da arbitragem no Brasil servirá para garantir uma maior cidadania, principalmente aos economicamente desfavorecidos.

Deve-se, de uma vez por todas, deixar-se de lado os aspectos de interesse de classe com que, sobretudo os magistrados – na tentativa de conservar seu Poder Social (cuja existência foi comprovada em forma de pesquisa desenvolvida por João Baptista Herkenhoff que culminou em seu livro intitulado “O Direito dos Códigos e o Direito da Vida” editado por Sérgio Antônio Fabris) – buscam combater a arbitragem, atribuindo-lhe características que não são, nem de longe, verdadeiras.

Divulgar a arbitragem, e lutar pelo seu fortalecimento no plano nacional é, portanto, dever de cidadania, com o qual todos devem contribuir para que o Poder Judiciário possa cumprir com seu dever constitucional de distribuir justiça aos que dela têm fome e sede.

  

 

Referência  Biográfica

Enéas Castilho Chiarini Júnior  –  Advogado em Pouso Alegre/MG; Pós-graduando em Direito Constitucional pelo IBDC (Inst. Bras. de Dir. Constitucional) em parceria com a FDSM (Fac. de Dir. do Sul de Minas); Capacitado para exercer as funções de Árbitro/Mediador pela SBDA (Soc. Bras. para Difusão da Mediação e Arbitragem); e Membro, desde a fundação, do Quadro de Árbitros da CAMASUL – Câmara de Mediação e Arbitragem do Sul de Minas –, é, ainda, autor de diversas matérias jurídicas publicadas em revistas do Brasil e do exterior, e em diversos sites jurídicos.

chiarinijunior@adv.oabmg.org.br


“A arbitrabilidade de controvérsias nos contratos com o Estado e empresas estatais”

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* José Emilio Nunes Pinto 

1.         As recentes decisões administrativas e judiciais envolvendo a arbitragem como mecanismo de solução de controvérsias em contratos celebrados por empresas estatais indicam uma tendência de repúdio à utilização do instituto naqueles casos.  Essa posição coloca em risco não apenas a construção correta dos princípios gerais de Direito Administrativo, dos princípios a que se sujeita a Administração Pública, os diversos dispositivos legais aplicáveis assim como a estruturação de parcerias e associações entre o Estado, suas entidades da Administração Indireta e o Setor Privado.

2.         A realidade nos mostra que, a par de suas funções típicas, o Estado, a cada momento, está mais presente na vida econômica e social, em muito como decorrência de princípios constitucionais.  O surgimento e fortalecimento do Estado empresário, mediante a inclusão da atuação na área econômica dentre as suas diversas funções, não teve por efeito diminuir o papel atribuído à iniciativa privada, mas o de criar um ambiente de atuação paralela e, mais recentemente, de interação e conjugação de esforços para superar desafios e arregimentar recursos e capacitação empresarial.

3.         Na perspectiva de atuação, o Estado se defronta com uma realidade insofismável – a escassez de dotações orçamentárias para a implantação de projetos de grande porte e a magnitude de recursos necessários à satisfação das necessidades dos cidadãos e das comunidades.  Em países como o Brasil, há uma urgência premente em se desenvolver a área de infraestrutura, condição essencial para que se propicie o desenvolvimento econômico e, por conseqüência, o atendimento adequado das necessidades sociais.  O desenvolvimento industrial e comercial dependem de uma infraestrutura adequada; a criação de empregos dependerá de que se evolua para a plenitude da atividade econômica.

4.            Instrumentos como a concessão de serviços públicos e privatização exerceram, na década de 90, importante papel na aceleração do processo de atendimento das necessidades de infraestrutura, mediante a exploração pelo setor privado de recursos de propriedade do Estado e prestação de serviços públicos essenciais.  A partir de agora, no entanto, o Estado se aproxima do setor privado para, em conjunto, desenvolverem projetos essenciais ao desenvolvimento do País.  Essas associações são conhecidas como parcerias público-privadas, identificadas pelo acrônimo PPP, e haverão de conviver com as concessões outorgadas pelo Estado e com as empresas privatizadas, exerçam elas atividades econômicas ou se dediquem à prestação de serviços públicos.

5.         Em qualquer dessas circunstâncias, assim como nos casos em que o Estado, diretamente ou por meio de sua Administração Indireta, figure como contratante, certo é que cresce o volume de negócios entre este e o setor privado, propiciando uma vasta gama de arranjos contratuais, desenhados especialmente para regular as relações entre as partes.  Exemplos desses contratos encontramos nos contratos de concessão, estes tipicamente contratos administrativos, nos contratos de construção de obras de grande porte, nos instrumentos relativos à compra e venda de bens e serviços, assim como nos arranjos contratuais destinados a regular as relações das partes no capital de empresas e sociedades de propósito específico relativas a projetos de grande porte.

6.         Basta que existam interesses em confronto para que se possa admitir o surgimento de controvérsias da mais variada natureza, desde questões relativas à interpretação de textos contratuais à ocorrência de eventos de inadimplemento; isso sem falarmos no impacto de fatos e circunstâncias em cadeias contratuais complexas, dando lugar a efeitos patrimoniais decorrentes de contratos que se situem a montante e a jusante da relação contratual controversa, dada a complexidade e integração da respectiva cadeia contratual.

7.         A arbitragem se revela, portanto, como o mecanismo adequado para a solução de controvérsias em relações contratuais da natureza das anteriormente mencionadas.

8.         Por outro lado, é importante que se tenha em mente que projetos dessa natureza não se implantam exclusivamente com o aporte de recursos próprios.  Aos recursos aportados pelo grupo empreendedor se juntam os recursos de terceiros, sejam os decorrentes de empréstimos de longo prazo tradicionais, sejam os que decorram da emissões de títulos de dívida.  Sob essa modalidade de operações estruturadas, as denominadas garantias corporativas do grupo empreendedor são substituídas pela integridade e estabilidade do fluxo de caixa que o projeto seja capaz de gerar, permitindo que o próprio projeto, em sua fase operacional, seja capaz de liquidar os empréstimos e demais obrigações financeiras incorridos para a sua implementação.  Na perspectiva dessa forma de estruturação, o surgimento de controvérsias é fator que poderá afetar a estabilidade e integridade do fluxo de caixa do projeto assim considerado, razão pela qual os financiadores desejam ver presente, em todos os contratos destinados a instrumentar o projeto em todas as suas fases, denominados genericamente de contratos do projeto, cláusula compromissória que permita que se venha a decidir por arbitragem qualquer controvérsia surgida entre as diversas partes contratantes.

9.         Ocorre, no entanto, que, neste momento, questiona-se mais e mais se a arbitragem pode ser legalmente prevista em contratos em que o Estado e/ou as empresas estatais sejam parte.  Até então, ainda que sujeitas a julgamento de recursos interpostos, as decisões administrativas e judiciais se posicionam pela ilegalidade da arbitragem nesses casos.  O que pretendemos com este Artigo é analisar as razões alegadas para ilegalidade da utilização da arbitragem nesses contratos e, em sendo possível, apresentar uma construção capaz de permitir que se superem as dúvidas e questionamentos e, consequentemente, que se traga à discussão um conjunto de argumentos fundados na lei e nos princípios de Direito Administrativo que sirvam de suporte.

10.       Em linhas gerais, as decisões que negam validade às cláusulas compromissórias se fundam (i) na violação do princípio da legalidade, (ii) na violação do princípio da publicidade e (iii) na violação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular.  Por todos esses argumentos, as decisões existentes inquinam de nulidade a cláusula compromissória e, como conseqüência, determinam a substituição da arbitragem pela submissão aos tribunais estatais ou determinam a suspensão de procedimentos arbitrais instaurados com base em cláusula compromissória com efeito vinculante.

11.            Questão paralela à discutida anteriormente, mas sempre inserida no âmbito da violação do princípio da legalidade, é o cabimento ou não da arbitragem em contratos oriundos de procedimentos licitatórios em face da linguagem contida no artigo 55, § 2º da Lei de Licitações, o qual analisaremos a seu tempo.

12.            Costuma-se afirmar, nas relações entre partes privadas, que o que não for proibido por lei, seja expressamente, seja em decorrência da análise do conjunto de normas legais e regulamentares aplicáveis, será permitido e lícito praticar.  No campo do Direito Administrativo, no entanto, essa afirmação perde sentido por aplicação do princípio da legalidade.  Segundo esse princípio, a Administração somente poderá atuar se o fizer em estrita observância às disposições legais a ela aplicáveis e às quais deve se sujeitar.  Do ponto de vista doutrinário, há vários significados atribuídos ao princípio da legalidade, mas, no que tange à questão objeto deste Artigo, entendemos que nos bastará enfocar a noção de habilitação legal.  Assim sendo, para que o Estado ou empresas estatais prevejam a arbitragem em seus contratos, necessário será que sejam detentores de habilitação legal, ou seja, que a lei os permita utilizar a arbitragem como meio de solução de controvérsias contratuais.

13.       Muito se tem dito que, a despeito de inexistir uma autorização legal genérica, inclusive que permitisse a adoção da arbitragem em contratos oriundos de procedimentos licitatórios, há leis especiais que contêm essa autorização, como é o caso das regras relativas a cláusulas essenciais de contratos de concessão nas áreas de energia elétrica, gás e petróleo, telecomunicações, transporte aquaviário e rodoviário que dispõem, ainda que utilizando linguagem diferente, sobre a utilização da arbitragem na solução de controvérsias decorrentes dos contratos de concessão.  No início deste Artigo, nos referimos a ser o contrato de concessão o contrato administrativo típico no universo de contratos tidos como desse tipo.  Por isso mesmo, nos questionamos quais as razões que determinariam que o Estado, enquanto Poder Concedente, pudesse prever a arbitragem para solução de controvérsias, enquanto ele ou qualquer de suas empresas, no desempenho de relações comerciais típicas do setor privado, não o poderiam fazer.  Parece existir nisso uma inconsistência, pois na concessão de seus direitos a terceiros pode o Estado ajustar que as controvérsias sejam solucionadas por arbitragem, enquanto que em contratos comerciais esse direito não encontraria suporte.  Esta questão intrigante deverá ser analisada sob o prisma da arbitrabilidade.

14.              A arbitrabilidade comporta dois aspectos: a arbitrabilidade subjetiva, ou seja, quem poderá ser parte num procedimento arbitral, e a arbitrabilidade objetiva, equivalendo dizer quais as questões e matérias que possam ser objeto de solução por arbitragem.

15.       As decisões administrativa e judicial a que nos referimos no início deste Artigo se fundamentam em argumentos relacionados, a um só tempo, à falta de cumprimento de requisitos necessários a assegurar a arbitrabilidade subjetiva e objetiva, decidindo-se pela ilegalidade nos casos examinados, chegando-se à suspensão de procedimentos existentes.  Na medida em que inexista lei que autorize expressamente o Estado e as empresas estatais a se utilizar da arbitragem, estes não poderiam ser legítima e legalmente partes em procedimentos dessa natureza – inarbitrabilidade subjetiva – enquanto que a predominância do interesse público sobre o particular, elemento típico do Estado e inerente à natureza das sociedades que controla, acarretaria a indisponibilidade dos direitos – inarbitrabilidade objetiva.

16.       Será realmente que é correto se afirmar que, salvo os casos mencionados nas leis relativas a setores de infraestrutura e de gás e petróleo, o Estado e suas empresas não dispõem de autorização legal para submeter litígios e controvérsias à arbitragem?  São o Estado e, em nível hierárquico inferior a ele, as empresas por ele controladas, detentores de status tal que os impeça de ser parte num procedimento arbitral?  Qual seria o fundamento do dispositivo legal contido em cada uma das leis mencionadas que permitiria a arbitragem nos contratos de concessão?  Parece-nos evidente que a questão relativa à inarbitrabilidade subjetiva nos contratos com o Estado não seja de natureza a permitir que se possa superá-la para determinadas áreas em detrimento de outras.  A prevalecer o entendimento corrente, somos obrigados a admitir a inconsistência lógica, já que o sujeito da arbitragem seria o mesmo Estado ou qualquer de suas empresas controladas.  Além disso, se impossibilidade existe à luz dos argumentos discutidos, essa impossibilidade decorre de princípios estruturais de Direito Administrativo e que não podem ser resolvidos por uma disposição legal autorizativa.  A lei administrativa se baseia em princípios consagrados pelo Direito Administrativo e não poderá ela permitir, por seu texto, o que com eles seja incompatível e não possa subsistir, já que esses princípios desempenham importante papel no desenvolvimento e sedimentação dos respectivos institutos.  Os princípios gerais, e é sempre útil que se relembre, exercem influência quando da elaboração das leis e são elemento valioso para a integração do direito.

17.            Portanto, entendemos que, a despeito de respeitáveis opiniões, não se possa tratar como exceção a matéria da arbitrabilidade subjetiva nos contratos com o Estado.  Assim sendo, somos de opinião que inexiste qualquer princípio geral que, per se, impeça o Estado e suas empresas de participar de procedimentos arbitrais.  Superado este obstáculo, entendemos, entretanto, que, por força do princípio da legalidade, a arbitrabilidade subjetiva esteja a depender de autorização legal.  Finalmente, entendemos que essa autorização geral existe e está presente no texto do artigo 1º da Lei de Arbitragem.

18.              O artigo 1º antes mencionado estatui que:

 

“Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.”

Na verdade, a Lei de Arbitragem optou por cingir a arbitrabilidade subjetiva às pessoas capazes de contratar.  Inexiste, a nosso ver, no texto de lei, qualquer traço ou sinal que permita excluir do conceito de arbitrabilidade subjetiva o Estado e as empresas por ele controladas e que integram a Administração Indireta.  O sentido da palavra “pessoas”, na forma utilizada pela lei, abrange, com recurso às disposições contidas no Código Civil, inclusive e além das pessoas físicas e jurídicas de direito privado, as pessoas jurídicas de direito público interno e, em especial, o Estado (União, Estados e Municípios), as autarquias, assim como as empresas estatais.  Portanto, o Estado e empresas por ele controladas estão devidamente autorizados a utilizar-se da arbitragem, sendo que essa autorização tem caráter geral e está inserida no texto legal que regula, no Brasil, o instituto da arbitragem.

19.       É justamente por essa razão que entendemos que as disposições relativas à arbitragem e inseridas nas leis especiais que regulamentam determinados setores e atividades não se constituem em exceção a um princípio que teoricamente impediria que o Estado e suas empresas se sujeitassem à arbitragem.  Essas leis, por não serem específicas em relação à arbitragem, estão alinhadas com a autorização geral contida na Lei de Arbitragem.  Se examinarmos o conteúdo dessas disposições, constataremos que não têm elas o objetivo precípuo de autorizar que as controvérsias surgidas nos contratos por elas regulados sejam dirimidas por arbitragem.  O foco central dessas disposições é determinar as cláusulas contratuais que são tidas como essenciais em contratos da natureza daqueles por ela regulados para assegurar a validade e legalidade dos mesmos.  Assim sendo, baseadas na autorização geral contida na Lei de Arbitragem e requerida pelo princípio da legalidade, outorgam elas à cláusula que regule a utilização da arbitragem nesses contratos o caráter de essencialidade.  É claro que, por serem leis de mesma hierarquia, a declaração do caráter de essencialidade reitera (mas, sublinhe-se, não cria) qualquer tipo de autorização legal, até porque esta já existe.

20.       No entanto, o fato de haver autorização legal para que se assegure a arbitrabilidade subjetiva nos contratos com o Estado e empresas por ele controladas não é suficiente para que se afirme que, em todos os casos, a arbitragem será aplicável.  Resta-nos, portanto, examinar a questão da arbitrabilidade objetiva nos contratos com o Estado.  A Lei de Arbitragem limitou o escopo de sua aplicação a litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.  Se, a exemplo das pessoas físicas e pessoas jurídicas de direito privado, onde nem todos os direitos em relação aos quais possam surgir controvérsias são passíveis de solução por arbitragem, o mesmo acontece com o Estado e com empresas por ele controladas.  Em vários e valiosos estudos doutrinários recentes, afirma-se que a arbitragem em contratos com o Estado e suas empresas é cabível, mas conclui-se afirmando que isso somente será verdadeiro em relação a direitos patrimoniais disponíveis.  E, em geral, para-se nessa afirmação.  A preocupação deste Artigo, a partir de então, é determinar que direitos estão sob a titularidade do Estado e das empresas por ele controladas que são, por sua natureza mesma, indisponíveis e que, consequentemente, não dariam lugar à instauração de procedimento arbitral caso surgissem controvérsias em relação aos mesmos.

21.       No encaminhamento da discussão da questão central deste Artigo, vimos insistindo na importância da arbitragem para a solução de controvérsias decorrentes de arranjos contratuais em que o Estado e suas empresas controladas são parte.  Estamos focando no campo contratual.  Se olharmos para o período em que ocorreu o desenvolvimento da teoria do contrato administrativo, constataremos que logo se concluiu que as regras de direito aplicáveis aos contratos privados, se tomadas em sua integralidade, não atenderiam aos pressupostos do Direito Administrativo.  Cotejando as regras aplicáveis àqueles contratos com as peculiaridades do papel desempenhado pelo Estado, essas regras deixavam de acomodar a questão relativa à preponderância do interesse público sobre o particular.  O papel do Estado deve ser desempenhado em prol da coletividade e essa regra se sobreporá a qualquer interesse particular.  Dessa forma, o equilíbrio das partes ao longo de toda a relação contratual e a imutabilidade dos ajustes contratuais seriam incompatíveis com a prevalência do interesse público.  Assim sendo, muito embora se tenham tomado de empréstimo regras aplicáveis aos contratos entre particulares, criou-se em favor do Estado, e porque não dizer, da Administração Pública, determinadas regras que refletem a prevalência do interesse público sobre o particular colocando-a em situação privilegiada sobre o contratante particular o que, numa relação contratual exclusivamente entre partes privadas, seria considerado ilícito.  A essas regras ou, melhor dizendo, a essas peculiaridades do contrato administrativo que o diferem do contrato entre particulares denominamos de cláusulas exorbitantes.  E quais são essas cláusulas exorbitantes?

22.       Em grande parte, as cláusulas exorbitantes foram elevadas à categoria legal e se encontram elencadas no artigo 58 da Lei de Licitações.  O texto legal as trata como prerrogativas conferidas à Administração, o que expressa a posição de supremacia da Administração sobre o particular contratado.  Dentre as cláusulas exorbitantes, podemos citar: o direito de alteração unilateral do contrato, de sua rescisão unilateral, de fiscalização de sua execução, de ocupação provisória dos bens, pessoal e serviços objeto do contrato, do acréscimo e supressão limitado a 25% do objeto do contrato, a imposição de penalidades e a inaplicabilidade da exceção de contrato não cumprido (“exceptio non adimpleti contractus”).  Evidentemente, em se tratando de cláusulas dessa natureza, certo é que a aplicação das mesmas deverá estar motivada e, em muitos dos casos, a própria lei indica as condições de aplicação ou caberá à Administração demonstrar a existência de um interesse público a proteger.

23.            Aspecto interessante é o relativo ao tratamento das conseqüências patrimoniais da aplicação das cláusulas exorbitantes pela Administração.  Constitui esse tratamento um direito indisponível?  Tomemos, por exemplo, o caso da alteração unilateral do contrato pela Administração.  Ao permitir que a Administração assim proceda, a lei, no entanto, estabelece que isso será possível para adequação do contrato às finalidades do interesse público e ressalva que os direitos do contratado deverão ser preservados.  O texto legal indica, ainda, que, nesse caso, deve-se proceder à revisão das cláusulas econômico-financeiras para a manutenção do equilíbrio contratual (art. 58, § 2º da Lei de Licitações).  Estamos diante do denominado equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, elevado à categoria de garantia constitucional, na forma do art. 37 (xxi) da Constituição Federal, o qual está regulado no art. 65, § 6º da lei de Licitações.  De uma forma ou de outra, podemos incluir o equilíbrio econômico-financeiro juntamente com o fato do príncipe e o fato da Administração dentre os eventos que determinam a mutabilidade da relação contratual, expressos em cláusulas exorbitantes e caracterizando-se, portanto, como direitos indisponíveis.  Pois bem, somos de opinião que a determinação da existência ou não do direito de invocar o equilíbrio econômico-financeiro se enquadra na categoria de direitos indisponíveis não sujeitos à arbitragem, mas, ao mesmo tempo, entendemos que a definição do mecanismo para que se restaure a equação inicial é direito disponível e, portanto, quaisquer controvérsias a ele relativa são passíveis de arbitragem, o que equivale dizer que o tratamento das conseqüências patrimoniais é matéria, a nosso ver, arbitrável.

24.       Em síntese, entendemos que, nos contratos com o Estado e suas empresas, estes dispõem de autorização legal para submeter as respectivas controvérsias à arbitragem, nos termos do art. 1º da Lei de Arbitragem (arbitrabilidade subjetiva), mas as controvérsias relativas a cláusulas exorbitantes não darão lugar à arbitragem por se caracterizarem como direitos indisponíveis, estando excluídas, portanto, do escopo da arbitrabilidade objetiva.

25.            Esclarecidos esses aspectos fundamentais, certamente questionará o leitor como essa construção se coaduna com a disposição contida no art. 55, § 2º da Lei de Licitações que é, em geral, interpretada como vedando a utilização da arbitragem e determinando o recurso ao foro estatal.  Somos forçados a concordar que, inexistindo uma forma de harmonização desses dois entendimentos contraditórios, a construção desenvolvida estará prejudicada.  Mas não nos parece ser este o caso.  Senão vejamos.

26.       Toda a celeuma em torno desse artigo decorre do uso da expressão “…que declare competente o foro da sede da Administração para dirimir qualquer questão contratual…”  Com base nessa linguagem, entendeu-se que a lei optara pelo recurso aos tribunais estatais, vedando, consequentemente, o recurso à arbitragem.  Se desvincularmos essa parte do texto do que se lhe segue, certamente seremos levados a essa conclusão.  No entanto, o texto legal continua estabelecendo que “…salvo o disposto no § 6º do art. 32 desta Lei.”  O mencionado parágrafo, por sua vez, menciona outras disposições da mesma lei que são excepcionadas de sua aplicação.  O que é importante reter, entretanto, é que todas essas disposições se referem a licitações internacionais com características excepcionais (tais como, aquelas com recursos de financiamento outorgado por organismo internacional, por agência de cooperação, para entrega de bens no exterior, assim como nos casos de licitação para aquisição de bens por unidade administrativa com sede no exterior), caso em que a aplicação obrigatória da regra do foro da sede da Administração estaria dispensada.  Ora, se analisarmos a disposição em sua integralidade, somos forçados a concluir que o uso da expressão “foro da sede da Administração” é tomado em sua acepção geográfica, ou seja, do local onde a entidade licitadora está localizada, e não no sentido de tribunal estatal.  Não faria o menor sentido a legislação permitir que, no exterior, as controvérsias se dirimissem até mesmo por arbitragem, enquanto que, no Brasil, o recurso aos tribunais estatais seria regra mandatória e inderrogável.  Por essa razão, entendemos inexistir, na Lei de Licitações, qualquer empecilho ou obstáculo à utilização da arbitragem para a solução de controvérsias oriundas dos respectivos contratos, sendo esta possível sempre e quando a controvérsia se refira a direitos patrimoniais disponíveis não decorrentes de cláusulas exorbitantes.

27.       Muito embora a construção apresentada elimina os demais argumentos que fundamentam as decisões referidas no início deste Artigo, entendemos que devamos analisar a questão relativa ao interesse público como inerente à natureza do papel desempenhado pelo Estado e por suas empresas controladas.  Reiteramos que, a nosso ver, a questão da supremacia do interesse público sobre o particular é a razão mesma de ser da existência das cláusulas exorbitantes e que, neste caso, desapareceria a razão para a sua análise em separado.  Entretanto, é importante que se examine a questão.  Somos de opinião que o interesse público é muito mais inerente à natureza da atividade desenvolvida do que da natureza jurídica de quem a desenvolve.  Se assim não fosse, estaríamos diante de uma enorme contradição.  Tomemos, por exemplo, o segmento de geração de energia elétrica.  No modelo hoje existente, esse segmento é desenvolvido, na maior parte dos casos, por sociedades de economia mista federais e estaduais, sendo que parcela minoritária está em mãos de empresas privadas decorrentes de privatização.  Por expressa disposição constitucional, os serviços de energia elétrica, em qualquer de seus segmentos, são considerados serviço público.  Em assim sendo, há neles o componente da supremacia do interesse público sobre o particular.  Portanto, se vincularmos o interesse público à natureza do capital social da empresa geradora, em nosso exemplo, chegaremos à conclusão de que as que estejam sob o controle privado poderão se utilizar da arbitragem para dirimir as respectivas controvérsias contratuais enquanto que as empresas estatais estariam impedidas de fazê-lo.  Ora, a questão é lógica antes de ser jurídica.  Como é que uma atividade idêntica poderá ser tratada de forma distinta a depender da natureza do capital social de quem a desenvolve?  Portanto, invocar, nos casos de empresas sob controle estatal no exercício de atividades de concessão igualmente desempenhadas por empresas privadas, a impossibilidade de recurso à arbitragem para solução de controvérsias, parece ser descabido e sem fundamento legal que a suporte.

28.       Outro aspecto levantado como obstáculo à utilização da arbitragem é que esta representaria uma violação ao princípio da publicidade, já que uma das características da arbitragem é ser um procedimento sigiloso.  Esta afirmação não é absoluta.  É certo que as partes podem optar por dar um tratamento sigiloso à arbitragem, mas isso dependerá do caso específico.  A Lei de Arbitragem, e a exemplo dela os regulamentos de entidades arbitrais, é silente quanto a este ponto, deixando a definição às partes.  Logo, à vista do princípio da publicidade a que o Estado e suas empresas estão sujeitos, nada impede que se elimine esse elemento dos respectivos procedimentos, razão pela qual essa argumentação não procederia.  Mas resta a questão de como se proceder nas arbitragens em que o Estado e suas empresas sejam parte, ou melhor dizendo, qual seria a extensão de aplicação do princípio da publicidade.  Certamente, o respeito a esse princípio não irá desaguar na abertura de audiências realizadas no contexto da arbitragem a todo e qualquer cidadão.  Não é isso, até porque a Lei de Arbitragem designa o árbitro como o juiz de fato e de direito, estando ele dotado dos poderes necessários para restringir o acesso à audiência às partes, seus advogados e terceiros a eles vinculados e de interesse do procedimento, em especial a reunião dos árbitros para decidir a questão e elaboração da sentença arbitral, de cujo ato nem mesmo as partes participam.  A Administração e seus agentes, por expressa disposição constitucional (art. 70 e seu § único da Constituição Federal), estão submetidos à obrigação de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, seja do Poder Legislativo, por meio dos Tribunais de Contas, seja pelo sistema de controle interno de cada Poder.  Entendemos que a aplicação do princípio da publicidade estará satisfeita na medida em que as partes sujeitas a tal obrigação reportem a esses órgãos de controle o andamento e resultados da arbitragem.  No entanto, somos de opinião, e vale ressaltar, que o fato da arbitragem em contratos com o Estado e suas empresas não se beneficiar do sigilo não exime os árbitros do cumprimento de seu dever de discrição, estando impedidos de revelar quaisquer detalhes do procedimento arbitral, salvo para os órgãos de controle externo e interno a que está sujeita a Administração e sempre que por estes solicitado.  Nos demais casos, prevalecerá o dever legal de discrição do árbitro, que contempla o sigilo.

29.       Um ponto relevante a se determinar é se a arbitragem que envolva o Estado e suas empresas controladas poderá ser fundada na equidade.  Neste ponto, somos definitivos.  Na medida em que o Estado e suas empresas estão sujeitos ao princípio da legalidade, entendemos que somente poderão prever na cláusula compromissória que a arbitragem será baseada na lei, e jamais na equidade.  A arbitragem fundada na equidade seria uma violação flagrante, a nosso ver, ao princípio da legalidade.

30.       A última questão relevante neste tema se refere à escolha do árbitro por parte do Estado e de suas empresas controladas.  Pode o Estado ou qualquer de suas empresas controladas nomear como árbitro um funcionário ou empregado público?  Entendemos que isso não será possível.  A Lei de Arbitragem, em seu artigo 13, § 6º, estabelece que o árbitro deverá, ao longo de todo o procedimento arbitral, desempenhar suas funções, dentre outras características, com imparcialidade e independência, razão porque criou declarações de independência quando de sua nomeação e criou o dever de revelar fatos e circunstâncias que possam de qualquer forma afetá-la.  Seja regido pelo regime estatutário ou CLT, o funcionário ou empregado público, conforme o caso, está adstrito ao dever de lealdade ou fidelidade à Administração e ao dever de obediência às determinações hierárquicas.  Entendemos que essa sujeição é incompatível com a condição exigida por lei do árbitro de ser independente e imparcial.  Logo, nossa posição é a de não admitir o funcionário ou empregado público como árbitro.  No entanto, essa conclusão não afeta o direito do Estado de eleger livremente o árbitro.  Poderá a escolha recair em qualquer terceiro que reúna as condições necessárias para integrar o Tribunal Arbitral, desde que não seja ele funcionário ou empregado público, da mesma forma que o particular poderá ver impugnado árbitro que indicar por não demonstrar independência ou imparcialidade.

Estamos cientes de que as conclusões contidas neste Artigo representam uma posição ousada e inovadora.  Nossa intenção é, apenas e tão somente, a de oferecer ao debate um conjunto de argumentos coerentes e que decorrem da interpretação das leis vigentes e dos princípios fundamentais de Direito Administrativo.  Acreditamos estar trazendo à discussão argumentos novos quanto à determinação dos direitos indisponíveis do Estado e de suas empresas controladas.  No mais, caberá a nós esperar que a questão seja dirimida, em caráter definitivo, por quem de direito e a quem a Constituição Federal atribui essa competência.  


Referência  Biográfica

José Emilio Nunes Pinto  –  Sócio responsável pela área de Arbitragem de Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados
jpinto@tozzini.com.br