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A Moderna Interpretação Constitucional

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* Amandino Teixeira Nunes Junior 

SUMÁRIO: 1.Introdução; 2. Direito como fenômeno cultural; 3.Constituição como espécie normativa singular; 4.Interpretação constitucional, 4.1.Conceito, 4.2.Especificidade da interpretação constitucional, 4.3.Método de interpretação constitucional, 4.3.3.1.Método integrativo ou científico- Espiritual, 4.3.3.2.Método tópico, 4.3.3.3.Método concretista de Peter Häberle, 4.4.Princípios de interpretação constitucional, 4.4.1.Princípio da unidade da constituição, 4.4.2.Princípio da concordância prática ou da harmonização, 4.4.3.Princípio da força normativa da constituição, 4.4.4.Princípio da máxima efetividade, 4.4.5.Princípio do efeito integrador, 4.4.6.Princípio da interpretação conforme á constituição, 4.4.7.Princípio da proporcionalidade; 5. Modernas técnicas de interpretação constitucional, 5.1.Declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, 5.2.Declaração de inconstitucionalidade com apelo ao Legislativo, 5.3.Interpretação conforme à constituição; 6.Conclusão; Bibliografia, Notas.

 


 

1.Introdução

            O presente artigo pretende identificar e sistematizar os métodos, os princípios e as técnicas da moderna teoria da interpretação aplicáveis ao Direito Constitucional. No seu desenvolvimento, procura-se dar realce tanto ao Direito pátrio como ao Direito estrangeiro, reservando-se especial atenção para a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro e do Tribunal Constitucional Federal alemão.

            O estudo que aqui se empreende não tem por objeto formular uma teoria geral sobre o tema. Ele se volta, basicamente, para a atividade interpretativa especificamente constitucional, e procura fundamentar e sistematizar o conhecimento necessário para alcançar tão importante desiderato.

            Neste sentido, procura-se, inicialmente, examinar o Direito como fenômeno cultural, cuidando de afastá-lo dos fenômenos ditos naturais. Adiante, faz-se a apreciação de algumas peculiariedades que singularizam as normas constitucionais, diferenciando-as das demais normas jurídicas.

            Em seguida, percorre-se a interpretação constitucional propriamente dita. Analisam-se, assim, o conceito, a especificidade, os métodos e os princípios de interpretação constitucional.

            Passa-se, logo após, ao exame detalhado e individual das modernas técnicas de interpretação constitucional existentes.

            Finalmente, à guisa de conclusão, procura-se apresentar, esquematicamente, uma síntese das idéias expostas ao longo do trabalho.

2. DIREITO COMO FENÔMENO CULTURAL

            O conceito de Direito não é um problema que a Ciência Jurídica ou a Filosofia do Direito tem por resolvido em definitivo. Muitos juristas e jusfilósofos têm se preocupado com o tema, deixando suas valiosas contribuições sem, entretanto, dar uma resposta à questão com caráter de definitividade.

            Não obstante esse fato, é preciso ter em mente que o Direito é um fenômeno cultural e, como tal, afasta-se radicalmente das ciências ditas naturais, visto que, quanto a estas, as conclusões obtidas se revestem das verdades resultantes do método empírico-indutivo a que se submetem as realidades próprias das ciências naturais.

            A propósito, ensina Inocêncio Mártires Coelho:

            "Em relação a esses objetos, observados os fenômenos e formulada uma hipótese – como "explicação antecipada e reacional" para a sua ocorrência -, se essa solução provisória, após submetida a experimentação, vier a se verificar, então o cientista da natureza dará por concluído o seu trabalho, enunciando uma lei, que traduzirá, em linguagem sintética e generalizadora, as relações constantes e necessárias que existem entre os fenômenos observados." (1)

            E, adiante, aduz o eminente autor:

            "Já os objetos culturais – porque são ontologicamente valiosos – exigem para o seu conhecimento um método específico e adequado, um método empírico-dialético, que se constitui pelo ato gnosiológico da compreensão, através do qual, no ir e vir ininterrupto da materialidade do substrato à vivência do seu sentido espiritual, procuramos descobrir o significado das ações ou das criações humanas. Neste setor da realidade, a busca de explicações constituiria um absurdo tão grande quanto julgar os fenômenos da natureza." (2)

            Destarte, os objetos culturais podem variar em significado e, por conseguinte, ser a eles agregados valores. Diante dos objetos culturais podem ser, assim, produzidas interpretações sempre renovadas e sempre integradas às anteriores.

            Já os objetos naturais não variam em significado. Assim, uma lei física é sempre a mesma em qualquer lugar do planeta, não lhe cabendo qualquer sorte de interpretação. Vale, tão-somente, o quanto for observado e comprovado através da experiência.

            É, pois, entre os objetos do mundo da cultura (compreendido como aquele criado pelo homem: o mundo do espírito) que se insere o Direito.

            Em síntese magistral, diz-nos Gustav Radbruch:

            "Compreender, quer dizer aqui o mesmo que apreender um facto cultural, precisamente um facto cultural, isto é, nas suas ligações e relações com o valor da cultura que lhe corresponde. E se isto é assim duma maneira geral, é evidente que o especial "compreender" da ciência jurídica não poderá ser senão o sabermos aprender também o direito como realização do respectivo conceito; isto é, como um dado cujo sentido é o de realizar a idéia de direito; ou ainda como uma tentativa de realização dessa idéia." (3) 

3. CONSTITUIÇÃO COMO ESPÉCIE NORMATIVA SINGULAR

            Inocêncio Mártires Coelho, em expressiva passagem, assevera que:

            "Sendo ambas – Lei e Constituição – espécies de normas jurídicas, criações do homem, portanto, submetem-se à conceituação genérica do Direito como fenômeno cultural, realidade significativa…" (4)

            Conquanto seja uma espécie de norma jurídica, e como tal deve ser interpretada, a Constituição merece exame destacado dentro do ordenamento jurídico, considerando as singularidades que suas normas apresentam.

            Luís Roberto Barroso enumera quatro singularidades das normas constitucionais: a) superioridade hierárquica; b) natureza da linguagem; c) conteúdo específico; d) caráter político. (5)

            A superioridade hierárquica expressa a supremacia da Constituição e "é a nota mais essencial do processo de interpretação constitucional. É ela que confere à Lei Maior o caráter paradigmático e subordinante de todo o ordenamento, de forma tal que nenhum ato jurídico possa subsistir validamente no âmbito do Estado se contravier seu sentido." (6)

            Por sua vez, a natureza da linguagem refere-se à veiculação, no texto constitucional, de normas de índole principiológica que apresentam "maior abertura, maior grau de abstração e, conseqüentemente, menor densidade jurídica." (7)

            J. J. Gomes Canotilho reconhece um "espaço de conformação" aos órgãos concretizadores. Consigna o ilustre mestre de Coimbra:

            "Situadas no vértice da pirâmide normativa, as normas constitucionais apresentam, em geral, uma maior abertura (e, consequentemente, uma menor densidade) que torna indispensável uma operação de concretização na qual se reconhece às entidades aplicadoras um "espaço de conformação" ("liberdade de conformação", discricionariedade") mais ou menos amplo." (8)

            De outra feita, a Constituição é sede de determinadas categorias de normas que refogem à estrutura típica das normas dos demais ramos do Direito. Citem-se as normas determinadoras de competências, as normas de organização, as normas de garantias de direitos fundamentais e as normas programáticas.

            Não se destinam tais normas a prescrever condutas de indivíduos ou de grupos sociais. Têm elas as funções precípuas de estruturar organicamente o Estado, regular os direitos fundamentais e as respectivas garantias e indicar os valores a serem preservados e os fins sociais a serem atingidos.

            Finalmente, a Constituição apresenta normas de caráter político "quanto à sua origem, quanto ao seu objeto e quanto aos resultados de sua aplicação." (9)

            Isto significa que as normas constitucionais resultam de um poder político fundamental — o poder constituinte originário —, juridicizam o fenômeno político e acarretam consequências para o conjunto de instituições e poderes (partidos políticos, grupos de interesses, categorias empresariais e trabalhistas, opinião pública, etc.) quando concretizadas e aplicadas.

            Na verdade, a Constituição é, como acentua Pontes de Miranda, "o conjunto de regras jurídicas onde as forças políticas encontram o seu leito, o seu equilíbrio." (10) É, em suma, o estatuto jurídico-político do Estado.

            Essas peculiaridades singularizam, pois, as normas constitucionais, exigindo princípios e métodos específicos para a sua interpretação, como se verá adiante. 

4. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

            4.1. CONCEITO

            A interpretação constitucional busca compreender, investigar e revelar o conteúdo, o significado e o alcance das normas que integram a Constituição. É uma atividade de mediação que torna possível concretizar, realizar e aplicar as normas constitucionais.

            Nas palavras de J. J. Gomes Canotilho:

            "Interpretar as normas constitucionais significa (como toda a interpretação de normas jurídicas) compreender, investigar e mediatizar o conteúdo semântico dos enunciados lingüísticos que formam o texto constitucional. A interpretação jurídica constitucional reconduz-se, pois, à atribuição de um significado a um ou vários símbolos lingüisticos escritos na constituição." (11)

            Ressalte-se que o preclaro professor português destaca o caráter lingüístico da interpretação constitucional (como de resto de qualquer interpretação), "a exigir que os interlocutores falem a mesma linguagem, como condição de possibilidade de sua mútua compreensão, porque – como adverte Gadamer — quem fala uma linguagem que mais ninguém fala, em realidade não fala." (12)

            Em síntese, a interpretação constitucional consiste num processo intelectivo por meio do qual enunciados lingüisticos que compõem a constituição transformam-se em normas (princípios e regras constitucionais), isto é, adquirem conteúdo normativo.

            4.2. ESPECIFICIDADE DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

            Inocêncio Mártires Coelho adverte que existe, na doutrina, grande discussão sobre a existência de uma interpretação especificamente constitucional, ou, ao revés, não passa tal pretensão de um anseio de autores entusiasmados. Escreve o ilustre autor:

            "A propósito, qualquer levantamento realizado entre os doutrinadores contemporâneos mais conceituados evidenciará que é grande esse entusiasmo, muito embora, a rigor, a especificidade da interpretação constitucional se restrinja à parte dogmática das constituições, isto é, àquela parte onde estão compendiados os direitos fundamentais, interpretando-se os preceitos restantes de acordo com os "métodos" tradicionais." (13)

            Ernest-Wolfgang Böckenförde, reforçando esse entendimento, coloca os direitos fundamentais como pano de fundo para embasar sua teoria de interpretação especificamente constitucional. (14)

            Nesta mesma perspectiva situa-se Robert Alexy, quando coloca objeções a uma divisão dicotômica entre princípio e regra e desenvolve fecunda doutrina em obra dedicada aos direitos fundamentais. (15)

            Advirta-se que a interpretação constitucional destinada à parte dogmática das constituições – e, portanto, aos direitos fundamentais – serve-se de princípios próprios, aplicáveis apenas às normas constitucionais de índole principiológica, deixando-se às regras constitucionais os métodos hermenêuticos do direito em geral.

            Diante desse panorama, em que se reconhece a existência da especificidade da matéria constitucional – ainda que se possa restringir-se à parte dogmática das constituições -, torna-se evidente que a interpretação especificamente constitucional é, essencialmente, uma hermenêutica de princípios – isto é, "mandatos de otimização" que "podem e devem ser aplicados na medida do possível e com diferentes graus de efetivação. (16)

            Em síntese, "a doutrina do direito constitucional pressupõe hoje uma metódica constitucional adequada. Em termos aproximados, a metódica constitucional procura favorecer os métodos de trabalho aos aplicadores – concretizadores das normas e princípios constitucionais."(17)

            4.3. MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

            Paulo Bonavides assinala que "a moderna interpretação da Constituição deriva de um estado de inconformismo de alguns juristas com o positivismo lógico-formal que tanto prosperou na época do Estado liberal." (18)

            Com efeito, até a Constituição de Weimer, vivia-se o período de ouro das constituições normativas, do formalismo jurídico, típico do Estado liberal. "Por onde veio a resultar um Direito Constitucional fechado, sólido, estável, mais jurídico do que político, mais técnico do que ideológico, mais científico do que filosófico. Um Direito Constitucional compacto, sistemático, lógico, que não conhecia crises nem se expunha à tensões e às graves tormentas provocadas pelo debate ideológico da idade contemporânea." (19)

            Com o aparecimento do Estado Social, quando as constituições assumem a forma de autênticos pactos reguladores de sociedades heterogêneas e pluralistas, arvoradas por grupos e classes com interesses antagônicos e contraditórios, surge uma nova interpretação constitucional, que "já não se volve para a vontade do legislador ou da lei, senão que se entrega à vontade do intérprete ou do juiz, num Estado que deixa assim de ser o Estado de Direito clássico para se converter em Estado de justiça, único onde é fácil a união do jurídico com o social… " (20)

            Os modernos métodos de interpretação constitucional caracterizam-se, pois, pelo abandono do formalismo clássico e pela construção de uma hermenêutica material da Constituição.

            Paulo Bonavides destaca três métodos atuais de interpretação constitucional: a) método integrativo ou científico-espiritual; b) método tópico; c) método concretista. (21)

            4.3.1 MÉTODO INTEGRATIVO OU CIENTÍFICO-ESPIRITUAL

            O método integrativo ou científico-espiritual foi desenvolvido por juristas alemães, capitaneado por Rudolf Smend, que assinala:

            "La Constitución no puede ser comprendida sólo como un estatuto de la organización, que estructura el Estado y que faculta e impone ciertas actividades al mismo, sino a la vez, como una forma victal de los ciudadanos que participan en la vida del Estado." (22)

            Na doutrina de Rudolf Smend, a base de valoração, vale dizer, os valores expressos e tutelados pela Constituição (econômicos, sociais, políticos e culturais) operam como valores de interpretação coletivos dos cidadãos e, destarte, devem ser compreendidos e aplicados.

            Como acentua Paulo Bonavides:

            "A concepção de Smend é precursoramente sistêmica e espiritualista: vê na Constituição um conjunto de distintos fatores integrativos com distintos graus de legitimidade. Esses fatores são a parte fundamental do sistema, tanto quanto o território é a sua parte mais concreta." (23)

            Adiante, aduz o ilustre professor cearense:

            "O intérprete constitucional deve prender-se sempre à realidade da vida, à "concretude" da existência, compreendida esta sobretudo pelo que tem de espiritual, enquanto processo unitário e renovador da própria realidade, submetida à lei de sua integração. " (24)

            4.3.2.MÉTODO TÓPICO

            Por sua vez, o método tópico foi desenvolvido pelos juristas alemães Theodor Viehweg e Josef Esser. A primeira obra sobre o assunto, denominada "Tópica e Jurisprudência", de autoria de Viehweg, foi publicada em 1953.

            O método tópico caracteriza-se como uma "arte de invenção" e, como tal, uma "técnica de pensar o problema", elegendo-se o critério ou os critérios recomendáveis para uma solução adequada.

            Referindo-se ao método tópico, Paulo Bonavides faz a seguinte ponderação:

            "Da tópica clássica, concebida como uma simples técnica de argumentação, a corrente restauradora, encabeçada por aquele jurista de Mogúncia, compôs um método fecundo de tratar e conhecer o problema por via do debate e da descoberta de argumentos ou formas de argumentação que possam, de maneira relevante e persuasiva, contribuir para solucioná-lo satisfatoriamente". (25)

            A principal crítica feita ao método tópico é a de que "além de poder conduzir a um casuísmo sem limites, a interpretação não deve partir do problema para a norma, mas desta para os problemas." (26) Com a tópica, a norma e o sistema perdem o primado: são rebaixados à condição de meros pontos de vista ou "tópoi", cedendo lugar à hegemonia do problema.

            4.3.3. MÉTODO CONCRETISTA

            Finalmente, o método concretista foi desenvolvido por três juristas alemães Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle. Cada um deles ofereceu valiosos contributos para o desenvolvimento desse método.

            O método concretista gravita em torno de três elementos essenciais: a norma que vai concretizar, a compreensão prévia do intérprete e o problema concreto a solucionar.

            Como salienta Paulo Bonavides:

            "Os intérpretes concretistas têm da Constituição normativa uma concepção diferente daquela esposada pelos adeptos de outros métodos, porquanto não consideram a Constituição um sistema hierárquico-axiológico, como os partidários da interpretação integrativa ou científico-espiritual, nem como um sistema lógico-sistemático, como os positivistas mais modernos. Ao contrário, rejeitam o emprego da idéia de sistema e unidade da Constituição normativa, aplicando um "procedimento tópico"de interpretação, que busca orientações, pontos de vista ou critérios-chaves, adotados consoante a norma e o problema a ser objeto de concretização. É uma espécie de metodologia positivista, de teor empírico e casuístico, que aplica as categorias constitucionais à solução direta dos problemas, sempre atenta a uma realidade concreta, impossível de conter-se em formalismos meramente abstratos ou explicar-se pela fundamentação lógica e clássica dos silogismos jurídicos"(27)

            4.3.3.1 MÉTODO CONCRETISTA DE KONRAD HESSE

            O método concretista de Konrad Hesse parte da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer. Para Hesse, o teor da norma só se completa no ato interpretativo. A concretização da norma pelo intérprete pressupõe um compreensão desta; essa compreensão pressupõe uma pré-compreensão.

            Como lembra Lenio Luiz Streck:

            "Assim, partindo de Gadamer, Hesse mostra como o momento da pré-compreensão determina o processo de concretização: a concretização pressupõe a compreensão do conteúdo do texto jurídico a concretizar, a qual não cabe desvincular nem da pré-compreensão do intérprete nem do problema concreto a solucionar. O intérprete não pode captar o conteúdo da norma desde o ponto de vista quase arquimédico situado fora da existência histórica, senão unicamente desde a concreta situação histórica na qual se encontra, cuja elaboração (maturidade) conformou seus hábitos mentais, condicionando seus conhecimentos e seus pré-juízos."(28)

            Para Hesse, a concretização e a compreensão só são possíveis em face do problema concreto, de forma que a determinação do sentido da norma constitucional e a sua aplicação ao caso concreto constituem um processo unitário.

            Nas palavras textuais de Hesse:

            "Finalmente, a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma ("Gebot optimaler Verklichung der Norm"). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o Direito e, sobretudo a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça desta tábula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determina da situação."(29)

            4.3.3.2. MÉTODO CONCRETISTA DE FRIEDRICH MÜLLER

            O método concretista de Friedrich Müller, segundo Paulo Bonavides, "tem sua base medular ou inspiração maior na tópica, a que ele faz alguns reparos, modificando-a em diversos pontos para poder chegar aos resultados da metodologia proposta."(30)

            Para Friedrich Müller, o "texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo"(31), que, após interpretado, transforma-se no programa normativo.

            Além do texto, a norma constitucional compreende também um domínio normativo, isto é, pedaço da realidade concreta, que o programa normativo só parcialmente contempla.

            Segundo Friedrich Müller, a norma constitucional não se confunde com o texto da norma. Ela é mais que isso: é formada pelo programa normativo e pelo domínio normativo. "De sorte que a interpretação ou concretização de uma norma transcende a interpretação do texto, ao contrário portanto do que acontece com os processos hermenêuticos tradicionais no campo jurídico. (32)

            É importante ressaltar ainda que a "análise dos dados lingüisticos (programa normativo) e a análise dos dados reais (domínio normativo) são dois processos parciais, separados entre si, dentro do processo de concretização. " (33) Cabe ao intérprete da norma articular tais processos.

            Para Friedrich Müller, portanto, a normatividade constitucional consiste no efeito global da norma com seus dois componentes (programa normativo e domínio normativo), no processo de concretização, que só se completa quando se chega à norma de decisão, isto é, à norma aplicável ao caso concreto.

            4.3.3.3. MÉTODO CONCRETISTA DE PETER HÄBERLE

            De registrar, com Paulo Bonavides, que:

            "A construção teórica de Häberle parece desdobrar-se através de três pontos principais: o primeiro, o largamento do círculo de intérprete da Constituição; o segundo, o conceito de interpretação como um processo aberto e público; e, finalmente, o terceiro, ou seja, a referência desse conceito à Constituição mesma, como realidade constituída e "publicização" ("verfassten Wirklichkeit und Öffentlichkeit")"(34)

            Com efeito, o próprio Peter Häberle expõe magistralmente sua tese:

            "Propõe-se, pois, a seguinte tese: no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição."(35)

            E, adiante, aduz o eminente professor alemão:

            "Interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos "vinculados às corporações" ("Zünftamässige Interpreten") e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade ("weil Verfassungsinterpretation diese offene Gesellschaft immer von neuem mitkonstituiert und von ihr konstituiert wird"). Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade."(36)

            O método concretista da Constituição aberta de Peter Häberle, como se pode perceber, é a própria ideologia democrática e demanda, na sociedade em que for aplicado, alguns requisitos fundamentais: sólido consenso democrático, instituições fortes, cultura política desenvolvida, pressupostos não encontrados em sistemas sociais e políticos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.(37)

            4.4. PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

            Sendo a hermenêutica constitucional uma hermenêutica de princípios, é inegável que o ponto de partida do intérprete há de ser os princípios constitucionais, que "são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui."(38)

            Luís Roberto Barroso assinala ainda que "a dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser esquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípio e as normas-disposição."(39)

            As normas-princípio (ou simplesmente princípios) distinguem-se das normas-disposição (também referidas como regras) pelo seu maior grau de abstração e por sua posição mais destacada dentro do ordenamento. São formuladas de maneira vaga e indeterminada, constituindo espaços livres para a complementação e desenvolvimento do sistema, por não se limitarem a aplicar-se a situações determinadas, podendo concretizar-se num sem número de hipóteses.

            As normas-disposição, por sua vez, comparativamente às normas-princípio, apresentam um grau de abstração reduzido e têm eficácia restrita às situações específicas às quais se destinam.

            Segundo Luís Roberto Barroso:

            "Não há, é certo, entre umas e outras, hierarquia em sentido normativo, por isso que, pelo princípio da unidade da Constituição, todas as normas constitucionais encontram-se no mesmo plano. Isso não impede, todavia, que normas de mesma hierarquia tenham funções distintas dentro do ordenamento. De fato, aos princípios cabe, além de uma ação imediata, quando diretamente aplicáveis a determinada situação jurídica, uma outra, de natureza mediata, que é a de funcionar como critério de interpretação e integração do Texto Constitucional. "(40)

            Veja-se, a seguir, o catálogo dos princípios de interpretação constitucional encontrados na doutrina. Como se poderá notar, a maioria desses princípios foi formulada a partir dos novos métodos de interpretação constitucional existentes.

            4.4.1.PRINCÍPIO DA UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO

            Na conformidade desse princípio, as normas constitucionais devem ser consideradas não como normas isoladas e dispersas, mas sim integradas num sistema interno unitário de princípios e regras.

            Como acentua J. J. Gomes Canotilho:

            "O princípio da unidade da Constituição obriga o intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar.(41)

            O princípio da unidade da Constituição, segundo o ilustre constitucionalista português, conduz à rejeição de duas teses ainda presentes na doutrina do direito constitucional: a tese das antinomias normativas e a tese das normas constitucionais inconstitucionais.

            A jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão tem conferido singular importância ao princípio da unidade da Constituição. Em decisão magistral, lavrou aquela Carta que:

            "O princípio mais importante da interpretação é o da unidade da Constituição enquanto unidade de um conjunto com sentido teleológico-lógico, já que a essência da Constituição consiste em ser uma ordem unitária da vida política e social da comunidade estatal".(42)

            4.4.2.PRINCÍPIO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA OU DA HARMONIZAÇÃO

            Formulado por Konrad Hesse, esse princípio impõe ao intérprete que "os bens constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou concorrência, devem ser tratados de maneira que a afirmação de um não implique o sacrifício do outro, o que só se alcança na aplicação ou na prática do texto."(43)

            O princípio da concordância prática ou da harmonização parte da noção de que não há diferença hierárquica ou de valor entre os bens constitucionais. Destarte, o resultado do ato interpretativo não pode ser o sacrifício total de uns em detrimento dos outros. Deve-se, na interpretação, procurar uma harmonização ou concordância prática entre os bens constitucionalmente tutelados.

            4.4.3.PRINCÍPIO DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO

            Também formulado por Konrad Hesse, esse princípio estabelece que, na interpretação constitucional, deve-se dar primazia às soluções ou pontos de vista que, levando em conta os limites e pressupostos do texto constitucional, possibilitem a atualização de suas normas, garantindo-lhes eficácia e permanência.

            4.4.4. PRINCÍPIO DA MÁXIMA EFETIVIDADE

            Segundo esse princípio, na interpretação das normas constitucionais, deve-se atribuir-lhes o sentido que lhes empreste maior eficácia.

            Destarte, "as normas constitucionais devem ser tomadas como normas atuais e não como preceitos de uma Constituição futura, destituída de eficácia imediata."(44)

            O princípio da máxima efetividade significa o abandono da hermenêutica tradicional, ao reconhecer a normatividade dos princípios e valores constitucionais, principalmente em sede de direitos fundamentais.

            4.4.5. PRINCÍPIO DO EFEITO INTEGRADOR

            De acordo com esse princípio, na resolução dos problemas jurídico-constitucionais, deve-se dar prioridade às interpretações ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e possibilitem o reforço da unidade política, porquanto essas são as finalidades precípuas da Constituição.

            Assim, partindo de conflitos entre normas constitucionais, a interpretação deve levar a soluções pluralisticamente integradoras.

            4.4.6. PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO

            Segundo esse princípio, "nenhuma lei deve ser declarada inconstitucional quando não puder ser declarada em harmonia com a Constituição"(45), sendo esta interpretação a única adequada e realmente válida.

            A aplicação do princípio da interpretação conforme à Constituição só é possível quando, em face de normas infraconstitucionais polissêmicas ou plurissignificativas, existem diferentes alternativas de interpretação, umas em desconformidade e outras de acordo com a Constituição, sendo que estas devem ser preferidas àquelas. Entretanto, na hipótese de se chegar a uma interpretação manifestamente contrária à Constituição, impõe-se que a norma seja declarada inconstitucional.

            O princípio da interpretação conforme à Constituição constitui uma moderna técnica de controle da constitucionalidade das leis, como se verá adiante.

            4.4.7. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

            Esse princípio, conquanto tenha tido aplicação clássica no Direito Administrativo, foi descoberto nas últimas décadas pelos constitucionalistas, quando as declarações de direitos passaram a ser atos de legislação vinculados. Trata-se de norma essencial para a proteção dos direitos fundamentais, porque estabelece critérios para a delimitação desses direitos.

            O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três aspectos fundamentais: a) adequação; b) necessidade (ou exigibilidade); c) proporcionalidade em sentido estrito.

            A adequação significa que o intérprete deve identificar o meio adequado para a consecução dos objetivos pretendidos. A necessidade (ou exigibilidade) significa que o meio escolhido não deve exceder os limites indispensáveis à conservação dos fins desejados. A proporcionalidade em sentido estrito significa que o meio escolhido, no caso específico, deve se mostrar como o mais vantajoso para a promoção do conjunto de valores em jogo.

            Na Alemanha, berço doutrinário do princípio da proporcionalidade, o Tribunal Constitucional Federal, em decisão prolatada em 1971, assim o sintetizou:

            "O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e exigível, para que seja atingido o fim almejado. O meio é adequado, quando com o seu auxílio se pode promover o resultado desejado; ele é exigível quando o legislador não poderia ter escolhido outro igualmente eficaz, mas que seria um meio não-prejudicial ou portador de uma limitação menos perceptível a direito fundamental."(46)

            O princípio da proporcionalidade constitui uma verdadeira garantia constitucional, protegendo os cidadãos contra o uso desatado do poder estatal e auxiliando o juiz na tarefa de interpretar as normas constitucionais.

5.MODERNAS TÉCNICAS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

            A moderna interpretação constitucional, como vimos, significa uma reação ao rígido formalismo jurídico em nome da idéia de justiça material e de segurança jurídica. Neste sentido, o que se assiste no segundo pós-guerra, "é uma inclinação da jurisprudência procurando maximizar as formas de interpretação que permitam um alargamento ou restrição do sentido da norma de maneira a torná-la constitucional. Procura-se buscar até mesmo naquelas normas que à primeira vista só parecem comportar interpretação inconstitucional — através da ingerência da Corte Suprema alargando ou restringindo o seu sentido — uma interpretação que se coadune com a Carta Magna."(47)

            Dentre as modernas técnicas de interpretação constitucional existentes, destacam-se: a) declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade; b) declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador; c) interpretação conforme à Constituição.

            5.1. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE SEM A PRONÚNCIA DE NULIDADE

            A declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade encontra suas raízes na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Nessa técnica de interpretação, "o Tribunal rejeita a argüição de inconstitucionalidade, anunciando, todavia, uma possível conversão dessa situação ainda constitucional ("noch verfassungsgemass") num estado de inconstitucionalidade."(48)

            Essa técnica de interpretação constitucional pode ser admitida desde que a norma em exame não seja integralmente inconstitucional, isto é, inconstitucional em todas as hipóteses interpretativas que admitir.

            A declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade contém um juízo de desvalor em relação à norma questionada, obrigando o legislador a empreender a medida requerida para a supressão do estado de inconstitucionalidade, bastando para tanto apenas alguma alteração fática.

            5.2. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE COM APELO AO LEGISLADOR

            A declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador também tem origem na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Nessa técnica de interpretação, "busca-se não declarar a inconstitucionalidade da norma sem antes fazer um apelo vinculado a "diretivas" para obter do legislador uma atividade subseqüente que torne a regra inconstitucional harmônica com a Carta Maior. Incumbe-se ao legislador a difícil tarefa de regular determinada matéria, de acordo com o que preceitua a própria Constituição."(49)

Gilmar Ferreira Mendes acentua que podem ser designadas pelo menos três grupos típicos dessa técnica de interpretação na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão: a) "apelo ao legislador" em virtude de mudança das relações fáticas ou jurídicas; b) "apelo ao legislador" em virtude de inadimplemento de dever constitucional de legislar; c) "apelo ao legislador" por falta de evidência da ofensa constitucional. (50)

            Com respeito à aplicação da declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador no direito brasileiro, diz-nos Celso Ribeiro Bastos:

            "Esta espécie de decisão perde muito de sua importância no sistema jurídico pátrio, na medida em que uma vez reconhecida inconstitucional a norma, caberá à Corte assim pronunciá-la, o que não obsta que indique o caminho que poderia o legislador adotar na posterior regulamentação da matéria.

            O tema apresenta certa relevância no caso da ação de inconstitucionalidade por omissão. Nesta, a decisão contém um exortação ao legislador para que, abandonando seu estado de inércia, ultime suas tradicionais funções, regulando determinada matéria, de acordo com o que preceitua a própria Carta Magna. A decisão, no caso, apresenta cunho mandamental, no que é capaz de colocar em mora a ação do legislador. Assim, o Tribunal determina que o legislador proceda às providências requeridas, limitando-se a constatar a inconstitucionalidade da omissão."(51)

            5.3. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO

            A interpretação conforme à Constituição, na qual o órgão jurisdicional declara qual das possíveis interpretações se mostra compatível com

            a Lei Maior, origina-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. "Não raro afirma a Corte Constitucional a compatibilidade de uma lei com a Constituição, procedendo à exclusão das possibilidades de interpretação consideradas inconstitucionais." (52)

            No direito pátrio, essa técnica de interpretação está presente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Veja-se, a propósito, o seguinte trecho da ementa de decisão da ADIN nº 1.344-1-ES, na qual foi relator o Ministro Moreira Alves:

            "Impossibilidade, na espécie, de se dar interpretação conforme à Constituição, pois essa técnica só é utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o sentido da norma é unívoco, como sucede no caso presente.

            Quando, pela redação do texto no qual se inclui a parte da norma que é atacada como inconstitucional, não é possível suprimir dele qualquer expressão para alcançar essa parte, impõe-se a utilização da técnica de concessão da liminar para a suspensão da eficácia parcial do texto impugnado sem a redução de sua expressão literal, técnica essa que se inspira na razão de ser da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto em decorrência de este permitir interpretação conforme à Constituição."

            Na Representação de Inconstitucionalidade nº 1.417-7-DF, de que foi também relator o Ministro Moreira Alves, pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal da seguinte forma, na ementa de decisão:

            "O princípio da interpretação conforme à Constituição ("Verfassungskonforme Auslegung") é princípio que se situa no âmbito do controle da constitucionalidade, e não apenas simples regra de interpretação.

            A aplicação desse princípio sofre, porém, restrições, uma vez que, ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, o STF, em sua função de Corte Constitucional, atua como legislador negativo, mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da instituída pelo Poder Legislativo.

            Por isso, se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme à Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo."

            Discorrendo sobre o tema no direito comparado, Celso Ribeiro Bastos faz a seguinte ponderação:

            "No Brasil, ao contrário do que acontece na Alemanha – onde a interpretação conforme à Constituição resulta na procedência parcial da ação direta de inconstitucionalidade, declarando inconstitucionais os sentidos que são incompatíveis com a Lei Fundamental -, a interpretação conforme à Constituição resulta na improcedência da ação de inconstitucionalidade, já que a norma em questão permanece no ordenamento jurídico pátrio, com a interpretação que a coloca em harmonia com a Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal equiparou em seus julgados a interpretação conforme à Constituição à declaração de nulidade parcial sem redução do texto." (53)

6. CONCLUSÃO

            Em desfecho deste estudo, que discorreu sobre diferentes cenários do universo constitucional, sempre tendo em conta a moderna interpretação da Constituição, não há como deixar de reconhecer que:

            a)O Direito é um fenômeno cultural ou realidade significativa e, como tal, afasta-se radicalmente das ciências naturais, exigindo, para seu conhecimento, o método empírico-dialético.

            b)A Constituição, embora seja uma espécie de norma jurídica, e como tal deve ser interpretada, apresenta peculiaridades, que singularizam as suas normas.

            c)As normas constitucionais apresentam, em geral, maior teor de abstração, reconhecendo-se aos seus aplicadores um "espaço de conformação" mais ou menos amplo.

            d)Em face de suas singularidades, as normas constitucionais demandam, para sua interpretação, métodos e princípios específicos.

            e)A interpretação constitucional é uma atividade de mediação que torna possível compreender e concretizar o conteúdo semântico dos enunciados lingüísticos que compõem a Constituição.

            f)A moderna interpretação constitucional caracteriza-se pelo abandono do formalismo clássico e pela construção de uma hermenêutica material da Constituição.

            g)Dentre os atuais métodos de interpretação constitucional destacam-se o método integrativo ou científico-espiritual, o método tópico e o método concretista.

            h)O método integrativo ou científico-espiritual pressupõe a articulação da norma com os valores econômicos, políticos, sociais e culturais subjacentes à Constituição, que constituem a realidade existencial do Estado.

            i)O método tópico caracteriza-se como uma "técnica de pensar o problema", elegendo o critério ou os critérios recomendáveis para a solução adequada do caso concreto.

            j)O método concretista gravita em torno de três questões fundamentais: a norma a concretizar, a compreensão prévia do intérprete e o problema concreto a solucionar.

            l)O método concretista desenvolveu-se a partir das contribuições dos juristas alemães Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle.

            m)Dentre os atuais princípios de interpretação constitucional destacam-se o da unidade da Constituição, o da concordância prática ou da harmonização, o da força normativa da Constituição, o da máxima efetividade, o do efeito integrador, o da interpretação conforme à Constituição e o da proporcionalidade.

            n)O princípio da unidade da Constituição remarca a noção do texto constitucional como sistema unitário e harmônico de princípios e regras, impondo ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições (antinomias) entre suas normas

            o)O princípio da concordância prática ou da harmonização impõe ao intérprete a combinação dos bens constitucionais em conflito ou em concorrência, de forma a evitar o sacrifício de uns em relação aos outros.

            p)O princípio da força normativa da Constituição estabelece que, na interpretação constitucional, deve-se dar preferência às soluções que, considerando os limites do texto constitucional, possibilitem a atualização das suas normas, garantindo a sua eficácia e permanência.

            q)O princípio da máxima efetividade significa que o intérprete deve atribuir às normas constitucionais o sentido que lhes dê maior eficácia.

            r)O princípio do efeito integrador impõe ao intérprete prioridade aos pontos de vista que levem a soluções pluralisticamente integradoras.

            s)O princípio da interpretação conforme à Constituição induz à interpretação de uma norma infraconstitucional em harmonia com a Lei Maior, em meio a outras alternativas interpretativas que o preceito admitir.

            t)O princípio da proporcionalidade se traduz na adequação meio-fim, na necessidade (ou exigibilidade) da prática do ato legislativo e na aferição de seu custo-benefício (proporcionalidade em sentido estrito).

            u)Dentre as modernas técnicas de interpretação constitucional existentes, originárias da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, destacam-se a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, a declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador e a interpretação conforme à Constituição.

            v)Na declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade rejeita-se a argüição de inconstitucionalidade, anunciando-se, porém, uma possível conversão dessa situação (ainda constitucional) num estado de inconstitucionalidade.

            x)Na declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador busca-se não declarar a inconstitucionalidade da norma legal sem antes fazer um "apelo" para obter do legislador uma providência que a torne harmônica com a Constituição.

            z)Na interpretação conforme à Constituição, considerada pelo Supremo Tribunal Federal não apenas como simples regra de hermenêutica mas sobretudo como mecanismo de controle da constitucionalidade, busca-se declarar qual das possíveis interpretações que a norma infraconstitucional admite a que se mostra compatível com a Lei Maior.

 

BIBLIOGRAFIA

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Notas

            1..COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre, Sérgio A.

            Fabris Editor, 1997, pág. 32.

            (2) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., págs. 32-33.

            (3) RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra, Armênio Amado, 1979, pág. 240.

            (4) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit. pág. 31.

            (5) BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo, Saraiva, 1999, pág. 107.

            (6) BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 107.

            (7) BARROSO, Luís Roberto, op. cit. pág. 107.

            (8) CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra, Almedina, 1993, pág. 210.

            (9) BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 110.

            (10) MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1970, t. 1, pág. 296.

            (11) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 208.

            (12) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., pág. 54.

            (13) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., pág. 27.

            (14) Veja-se, a propósito: "Escritos sobre derechos fundamentales", Baden – Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1993.

            (15) Consultem-se a respeito: "Derecho y Razón Práctica", México, Distribuciones Fontanara, 1993; e "Teoria de los Derechos Fundamentales", Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993.

            (16) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., pág. 84.

            (17) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 132.

            (18) BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Malheiros, 1994, pág. 424. (19) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 424.

            (20) BONAVIDES, Paulo, op. cit. pág., 435.

            (21) BONAVIDES, Paulo, op. cit., págs. 434 e ss.

            (22) SMEND, Rudolf, apud. ENTERRÍA. Eduardo Garcia de. Hermenêutica e supremacia constitucional. RDP, v. 77, n. 19, jan/mar/1986, págs. 36-37.

            (23) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 436.

            (24) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 437.

            (25) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 449.

            (26) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 214.

            (27) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 440.

            (28) STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica (em) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000, pág. 244.

            (29) HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, pág. 22.

            (30) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 456.

            (31) CANOTILHO, J.J. Gomes, op. cit., pág. 215.

            (32) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 456.

            (33) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 216.

            (34) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 228.

            (35) HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e " procedimental " da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, pág. 13.

            (36) HÄBERLE, Peter, op. cit., pág.13

            (37) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 472.

            (38) BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 147.

            (39) BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 147.

            (40) BARROSO, Luis Roberto, op. cit., págs. 147-148.

            (41) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 226.

            (42) BVerfGE 19, 206(220) apud BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 189.

            (43) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., pág. 91.

            (44) BASTOS, Celso Ribeiro, op. cit., pág. 100.

            (45) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 474.

            (46) BVerfGE 30, 292 (316) apud BASTOS, Celso Ribeiro e TAVARES, André Ramos. As tendências do Direito Público no limiar de um novo milênio. São Paulo, Saraiva, 2000, pág. 79.

            (47) BASTOS, Celso Ribeiro, e TAVARES, André Ramos, op. cit., págs., 69-70.

            (48) MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo, Saraiva, 1999, pág. 212.

            (49) BASTOS, Celso Ribeiro, e TAVARES, André Ramos, op. cit., pág. 72.

            (50) MENDES, Gilmar Ferreira, op. cit., pág. 239.

            (51) BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo, Celso Bastos Editor, IBDC, 1997, pág. 174.

            (52) MENDES, Gilmar Ferreira, op. cit., pág. 230.

            (53) BASTOS, Celso Ribeiro, e TAVARES, André Ramos, op. cit., pág. 76.

 


 

Referência  Biográfica

Amandino Teixeira Nunes Junior  –  Consultor legislativo da Câmara dos Deputados; Professor do UniCEUB e do IESB, em Brasília (DF); Mestre em Direito pela UFMG e Doutorando em Direito pela UFPE

amandinojunior@uol.com.br

Despacho inicial e efeito interruptivo da prescrição no Processo de Conhecimento

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Walter Vechiato Júnior 

Código de Processo Civil

      Art. 219. A citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa; e, ainda quando ordenada por juiz incompetente, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição.

      § 1º A interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação.

      § 2º Incumbe à parte promover a citação do réu nos dez (10) dias subseqüentes ao despacho que a ordenar, não ficando prejudicada pela demora imputável exclusivamente ao serviço judiciário.

      § 3º Não sendo citado o réu, o juiz prorrogará o prazo até o máximo de 90 (noventa) dias.

      § 4º Não se efetuando a citação nos prazos mencionados nos parágrafos antecedentes, haver-se-á por não interrompida a prescrição.

      § 5º Não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato.

      § 6º Passada em julgado a sentença, a que se refere o parágrafo anterior, o escrivão comunicará ao réu o resultado do julgamento.
 Código Civil

      Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á:

      I – por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual; ….

1. Processo de conhecimento. O processo de conhecimento tem o objetivo de absorver os fatos constitutivos do autor e os fatos extintivos, impeditivos e modificativos do réu, visando a extinção normal do processo consistente na prestação jurisdicional mediante sentença de mérito em que o pedido inicial é julgado procedente ou improcedente (CPC, art. 269, I). Entre a petição inicial e a sentença, o processo de conhecimento apresenta diversos atos processuais, que respeitam os procedimentos adequados (comum – ordinário e sumário; especial – jurisdição graciosa e contenciosa). O procedimento ordinário, por exemplo, destaca a seguinte seqüência: a) fase postulatória – petição inicial, despacho inicial, citação, atitudes do réu (que abrange a contestação) e réplica; b) fase saneadora – audiência preliminar e saneamento; c) fase instrutória – audiência de instrução e julgamento; e, d) fase decisória – sentença. Entre os atos praticados no processo, o estudo em tela destaca o despacho inicial.

2. Despacho inicial. O despacho inicial corresponde ao primeiro momento processual em que o juiz tem contato físico com os autos do processo, após a entrada no cartório distribuidor (mais de um juízo competente na mesma comarca) ou de protocolo (único juízo na comarca) (CPC, art. 263). Proposta a ação, o despacho inicial do juiz pode ser positivo, negativo e correcional.

3. Despacho inicial positivo. O despacho inicial positivo indica o recebimento da petição inicial e a ordem para a citação do réu (cite-se). Esta é a regra para todos os processos e procedimentos do CPC. É o momento em que o magistrado avalia o preenchimento das condições genéricas da ação (existência) e dos pressupostos processuais (validade). O recebimento (aptidão) da petição inicial indica que o juiz entendeu que as condições e os pressupostos estão devidamente preenchidos, neste momento, o que não lhe retira a possibilidade, no curso dos autos, de constatar a ausência e extinguir o processo sem julgamento do mérito, pois tais matérias são de ordem pública (CPC, art. 267, IV e VI). Na prática forense, o juiz não declara expressamente o preenchimento das condições genéricas da ação e dos pressupostos processuais, apenas ordena a citação do réu, com as cautelas legais (CPC, art. 285).

              Há quem sustente que o despacho inicial positivo tem natureza de decisão interlocutória, pois as condições e os pressupostos foram observados positivamente pelo juiz, desafiando o agravo de instrumento. Discordo. Primeiro, a teoria abstrata foi adotada pelo ordenamento processual civil vigente, que sustenta a permanente preocupação do juiz com as condições e os pressupostos – existência, podendo o juiz rever a admissibilidade, de ofício ou a requerimento do réu, a qualquer tempo, no primeiro grau de jurisdição – sentença processual. Considerar decisão interlocutória traz a idéia de adoção da teoria da asserção, na qual as condições genéricas da ação são entendidas como exercício do direito de ação, razão pela qual o recebimento da inicial indica que o juiz considerou verdadeiras as assertivas (afirmações) do autor, tornando eventual reexame das condições, em que constatar a ausência, autêntico julgamento de mérito – sentença de mérito. Segundo, não há interesse ao réu recorrer do despacho inicial positivo, pois eventuais questões processuais ou de mérito podem ser sustentadas em contestação, no exercício do contraditório.  

4. Despacho inicial correcional. O despacho inicial correcional manda o autor emendar a inicial naquilo que verificou ausente, em relação aos requisitos genéricos e específicos e à documentação, no prazo de dez (10) dias (CPC, arts. 282, 283 e 284). Este prazo pode ser prorrogado, por igual período e mais de uma vez, desde que o requerimento da prorrogação seja apresentado pela parte dentro do prazo em andamento.

              Cumprida a correção, o juiz manda citar o réu, tal como o despacho inicial positivo (CPC, art. 285). O desatendimento da ordem para correção no prazo legal de dez (10) dias (ou no prazo prorrogado judicialmente, mediante requerimento), implica o indeferimento da inicial e a extinção do processo sem julgamento do mérito (CPC, arts. 267, I, 284, parágrafo único, e 295, VI). É sentença processual da qual cabe, em tese, apelação prevista no art. 296 do CPC – provavelmente será desprovida, se o juízo de admissibilidade for positivo (ausência de interesse em recorrer – necessidade e adequação); descabe ao autor emendar a inicial na interposição do recurso.

              O despacho inicial positivo e o correcional são irrecorríveis. A fundamentação de ambos os pronunciamentos jurisdicionais não precisa ser extensa. Quanto ao despacho inicial positivo, a prática forense tem admitido a singela expressão “Cite-se, com as cautelas legais”. As discussões sobre eventual recurso estão no tópico acima. Já o despacho inicial correcional deve ser claro, sem erros materiais ou omissões, notadamente em relação a tornar explícitos os pontos a serem corrigidos ou emendados pelo autor. Tal providência evita omissão e nulidade (prejuízo ao autor), as quais podem ser, se verificadas no caso concreto, combatidas com embargos de declaração (para sanar a omissão ou erro material) ou agravo de instrumento (para invalidar o despacho por ausência de fundamentação).

              “Embora não exista dispositivo legal impondo a indicação, quando intimada a parte autora para emendar a petição inicial, do requisito ausente na exordial, deve o magistrado, com os olhos nos modernos princípios da instrumentalidade das formas e da economia e celeridade processuais, especificar as falhas contidas na peça, sob pena de, por rigorismo processual, entravar o prosseguimento do feito e impedir a célere composição do litígio” (RT 804/183).

              Nas demandas em que o advogado ou a parte atuar em causa própria – inexistência, recusa ou impedimento de advogado no foro, a ausência de indicação do endereço na petição inicial resulta no despacho inicial correcional, que determina ao advogado-autor ou à parte autora a emenda no prazo de quarenta e oito (48) horas, pena de indeferimento liminar (CPC, arts. 36 e 39, I e parágrafo único, 267, I, e 295, VI).  

5. Despacho inicial negativo. O despacho inicial negativo significa a negativa de seguimento (não-recebimento, indeferimento) à petição inicial (CPC, art. 295); é, na verdade, uma sentença que desafia a apelação prevista no art. 296 do CPC, viabilizando o juízo de retratação em quarenta e oito (48) horas; é possível sustentar o cabimento de embargos de declaração, visando a retratação do magistrado, em decorrência de erro material ou equívoco manifesto.

              Este despacho, que tem natureza de sentença, só é proferido diante de manifesta (evidente) situação demonstrada nos autos que exige a extinção do processo, pelo contrário, deve o juiz emitir o despacho inicial correcional, viabilizando ao autor emendar a petição inicial; persistindo o vício ou a causa extintiva, bem como no caso do autor desrespeitar tal despacho, aí, sim, o juiz profere a referida sentença. “Encerrar o processo, sem dar ao autor a oportunidade para emendar a inicial é ofender o art. 284 do CPC” (DJU 23-10-2000-121). Esta sentença (proferida sem a citação do réu) pode ser: a) processual e resultar na extinção do processo sem julgamento do mérito (ex.: carência inicial – falta de uma ou mais das condições genéricas da ação; procedimento inadequado); e, b) de mérito, para extinguir o processo com julgamento do mérito, no caso em que o magistrado reconhece, de ofício, a decadência do direito material do autor.

      A natureza do despacho inicial negativo pode também ensejar decisão interlocutória, quando o juiz nega seguimento à petição inicial de terceiro que pretende intervir espontaneamente no processo, mediante assistência e ação de oposição (CPC, arts. 50 e 56), bem como à peça de reconvenção, proposta pelo réu no procedimento ordinário do processo cognitivo (CPC, arts. 299 e 315) e a de ação declaratória incidental, pelo autor ou pelo réu (CPC, art. 325). Cabe agravo de instrumento (CPC, art. 524).

6. Interrupção da prescrição – Efeito material do despacho inicial positivo. Prescrição é a perda do direito de ação, dada a inércia do autor em ajuizar a ação para reconhecer o seu pretendido direito. O despacho inicial positivo interrompe a prescrição e cancela o prazo corrido.

              A interzupção da prescrição é efeito material do despacho inicial positivo, que admite a petição inicial (constatação da presença das condições genéricas da ação e dos pressupostos processuais) e determina a citação, mesmo que tenha sido proferido por juiz incompetente. Ocorre uma única vez (CC, art. 202, caput). Na prática forense, é difícil o magistrado tornar explícita, no despacho inicial positivo, a existência (condições) e a validade (pressupostos) da ação e do processo; apenas determina cite-se, com as cautelas legais. Este despacho pressupõe o recebimento (aptidão) petição inicial, para fins de interrupção da prescrição.

              O despacho inicial correcional significa a ordem judicial destinada ao autor emendar a petição inicial, pena de indeferimento (CPC, arts. 39 e 284). Este despacho não indica a aptidão da petição ificial, tanto qum o magistrado constatou alguma falha e viabiliza a retificação ou complementação pelo autor. Com a emenda satisfatória, o magistrado, aí sim, recebe a petição inicial e determina a citação, interrompendo a prescrição.

              O despacho inicial negativo tem natureza de sentença, que extingue o processo sem julgamento do mérito ou, excepcionalmente, com julgamento do mérito (decadência) (CPC, arts. 267 e 269, IV). Não há falar em interrupção da prescrição, pois esta sentença não admitiu a petição inicial. A apelação é cabível no prazo de quinze (15) dias e permite o juízo de retratação, em quarenta e oito (48) horas; sendo este positivo (juiz se retrata e recebe a inicial), a prescrição é interrompida (CPC, art. 296).

              Esta é a regra para o processo cognitivo, cautelar e executivo. O processo de execução do CPC e da LEF já continha esta regra, desde a vigência dos respectivos ordenamentos jurídicos (CPC, art. 617; LEF, art. 8º, § 2º). O processo cognitivo (com regras aplicáveis ao processo cautelar) previa a interrupção da prescrição como um dos efeitos materiais da citação (CPC, art. 219, caput); somente após a efetiva citação (mandado, correio, edital ou hora certa), a prescrição estaria interrompida. O art. 202, I, ab initio, do CC derrogou o art. 219, caput, do CPC, para determinar, no processo cognitivo e cautelar, a interrupção da prescrição no despacho inicial positivo, equiparando-se ao processo executivo. No processo cautelar, a prescrição só se interrompe com o despacho inicial positivo, quando o procedimento for preparatório, pois a cautelar incidental indica a existência de ação principal, na qual o despacho já foi devidamente realizado.

              A interrupção da prescrição, determinada no despacho inicial positivo, retroage ao ajuizamento da ação – data em que a petição inicial foi distribuída ou despachada, pois no instante em que a petição é entregue ao órgão jurisdicional a demanda considera-se proposta e o processo, existente (CPC, arts. 219, § 1º, e 263). Na existência de única vara na comarca, o processo inicia-se com o despacho do juiz na petição inicial (CPC, art. 263, primeira parte); a coincidência entre este despacho (inicial positivo) e a interrupção da prescrição, dispensa o efeito retroativo. Havendo mais de um juízo (ou vara) na comarca, o processo inicia-se através da distribuição (CPC, art. 263, segunda parte), caso em que a interrupção da prescrição no despacho de aptidão da petição inicial retroage à data da propositura.

              As demais regras do art. 219, §§ 2º a 5º, continuam em vigor; o autor deve observar os prazos legais para a citação e suportar as conseqüências de sua negligência (CC, art. 202, I, in fine).  

7. Efeitos da citação. Analisando o art. 219 do CPC, a doutrina ensina que a citação válida gera efeitos processual e material. O efeito processual ou técnico da citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa e o efeito material ou substancial, constitui o réu em mora e interrompe a prescrição.

              Sendo válida a citação, o efeito material aparece diante do juízo competente ou incompetente (absoluta e relativamente), abrangendo todas as tutelas, inclusive as de urgência em que se defere ordem liminar (tutela antecipada e cautelar). Já a citação inválida não produz nenhum efeito no juízo competente ou incompetente.

              Com a vigência do art. 202 do CC, o art. 219 do CPC está derrogado, quanto ao efeito material da interrupção da prescrição, o qual ocorre com o despacho inicial positivo (LICC, art. 2º, § 1º). A situação é equiparada ao processo de execução (CPC, art. 617; LEF, art. 8º, § 2º).

              Assim, o art. 219 do CPC (citação válida) apresenta somente o efeito material da constituição do réu em mora e os efeitos processuais da prevenção, litispendência e litigiosidade da coisa.

8. Citação e interrupção da prescrição.  O art. 202, I, do CC derrogou o art. 219, caput, do CPC, quanto ao efeito material da interrupção da prescrição, o qual ocorre com o despacho inicial positivo (LICC, art. 2º, § 1º). Preserva-se a retroatividade da interrupção da prescrição à data da propositura da ação, quando existente mais de uma vara da comarca (distribuição) (CPC, arts. 219, § 1º, e 263, segunda parte); diante de única vara, o despacho inicial corresponde à data da propositura, dispensando a retroatividade (CPC, art. 263, primeira parte).

              O efeito interruptivo da prescrição, decretado no despacho inicial positivo, é condicionado à efetivação da citação, na forma e no prazo legal (CC, art. 202, I, in fine). A forma indica a citação real (mandado e correio) e ficta (edital e hora certa), já estudada acima.

              A citação deve ser realizada no prazo máximo de cem (100) dias. Tal preceito decorre da interpretação dos §§ 2º, ab initio, e 3º do art. 219, pois deve o autor providenciar a citação do réu no prazo de dez (10) dias subseqüentes ao despacho inicial positivo (cite-se), prorrogável até noventa (90) dias. Vencido o prazo máximo – cem (100) dias, o efeito retroativo da prescrição à data da propositura da ação só se aperfeiçoa se o atraso não ocorreu por culpa do autor (CPC, art. 219, § 4º). Embora a interrupção ocorra com o despacho inicial positivo, segundo o art. 202, I, do CC, a regra do § 4º do art. 219 deve ser preservada, para punir a conduta culposa do autor. Considera-se culpa do autor, v.g., a ausência ou a demora injustificada de recolhimento de despesas processuais atinentes às diligências do oficial de justiça (citação real por mandado, citação ficta por hora certa), do edital (citação por edital), quando não há o requerimento ou a concessão dos benefícios da justiça gratuita.

              O efeito retroativo da prescrição é preservado (não há prejuízo ao autor), independentemente da citação realizada em tempo superior a cem (100) dias, quando existir: a) demora imputável exclusivamente ao serviço judiciário, no cumprimento do ato citatório (CPC, art. 219, § 1º, in fine) (exs.: remessa de carta ou correio; expedição de mandado; expedição e cumprimento de carta precatória para citação por mandado; formalização do edital); e, b) omissão, desvio ou dificuldade imposta pelo réu para receber o ato citatório. Descabe ao réu sustentar, após a citação ou o comparecimento espontâneo nos autos do processo, o excesso de tempo para o cumprimento do ato e requerer a extinção do processo sem julgamento do mérito por abandono de causa ou ausência de pressuposto processual de validade (CPC, art. 267, II, III e IV), ou, ainda, a extinção do processo com julgamento do mérito em razão da prescrição (CPC, art. 269, IV).

              “As férias forenses não interrompem a prescrição (CC, art. 202), havendo expressa previsão legal de que as citações destinadas a evitar o perecimento do direito devem ser feitas nesse período (CPC, art. 173, II)” (RCLD 25/10; BAASPE 2.179/312-e).

              Antes da vigência do art. 202, I, do CC, o efeito interruptivo se perdia diante:

        – do reconhecimento da nulidade da citação do processo cognitivo nos embargos à execução (CPC, art. 741, I)  – hipótese em que o direito de ação do autor poderia não mais existir, tendo em vista que o vício derrubaria o efeito material da interrupção da prescrição (CPC, art. 219, caput). Agora, a interrupção da prescrição ocorre no despacho inicial positivo; a nulidade da citação decretada nos embargos pode anular todos os atos subseqüentes, mas a interrupção da prescrição, no processo cognitivo, está preservada no despacho inicial positivo; a nova citação deve observar as regras dos §§ 2º e 3º do art. 219;

        – da sentença terminativa (CPC, art. 267, II a X)  – a negligência e o abandono (II e III) da causa, a ausência de pressupostos processuais e de condições genéricas (IV e VI), a perempção, a coisa julgada e a litispendência (V), a convenção de arbitragem (VII), a desistência (VIII), a intransmissibilidade do direito (IX) e a confusão entre as partes (X) implicam a extinção do processo sem julgamento do mérito, motivo pelo qual os efeitos da citação já realizada deixam de existir. A negligência, o abandono, a perempção, a convenção de arbitragem ou a desistência do autor esclarecem, por si só, a desnecessidade de manter-se a interrupção da prescrição; o próprio autor atuou contrário ao exercício do seu direito de ação. A falta de pressuposto processual implica a invalidade do processo e de condição genérica da ação, inexistência do direito de ação. A litispendência e a coisa julgada formal e material indicam a existência de ação anterior, naquela, em andamento (com o mencionado efeito em vigor), e nesta, encerrada; o autor bem conhece suas atitudes que impedem a repropositura da ação. A intransmissibilidade do direito material e a confusão entre autor e réu impedem o exercício do direito de ação.

              Nos moldes do art. 202, caput e I, do CC, a interrupção da prescrição só ocorre uma única vez – no despacho inicial positivo. Sendo o processo iniciado, com a aptidão da petição inicial, e posteriormente extinto sem julgamento do mérito, nos moldes do arts. 267, II a X, e 329 do CPC, a coisa julgada formal não impede a repropositura de nova ação e o reinício do prazo prescricional (na data do trânsito em julgado formal), mas não existe outra interrupção da prescrição no novo despacho inicial positivo. Destacam-se três situações: a) se o processo for extinto por abandono ou negligência do autor, que não providencia a citação do réu, no prazo e na forma legal, o efeito interruptivo não ocorre no despacho inicial e a repropositura da ação corre o risco de ser constada a prescrição do direito de ação (CPC, art. 267, II e III; CC, art. 202, I, in fine); b) se o autor, para salvaguardar um pretendido direito, que sabe não ser seu, ou dele tem dúvidas sobre o titular, ajuizar a ação, simplesmente para interromper a prescrição, a sentença terminativa pode reconhecer a carência superveniente e o exercício mal intencionado do direito de ação, para extinguir o processo sem julgamento do mérito (CPC, arts. 16 a 18, 267, VI, 295, 329). A repropositura da ação é inibida pela inexistência de nova interrupção da prescrição, como único objetivo pleiteado pelo autor, desde a primeira ação; e, c) o magistrado, excessivamente apegado à forma, extingue o processo sem julgamento do mérito, por carência superveniente à citação (falta de condição genérica ou de pressuposto processual); da sentença não existe apelação, formando-se a coisa julgada formal. A repropositura da ação exige a demonstração de que a causa extintiva da primeira não mais existe; a sua aptidão (despacho inicial positivo) não interrompe a prescrição; assim, a morosidade excessiva do Poder Judiciário, na prestação da tutela jurisdicional adequada de mérito (procedência ou improcedência do pedido) pode gerar a prescrição intercorrente e extinguir o direito de ação do autor, mediante alegação simples do réu, em qualquer grau de jurisdição (CPC, art. 303, III; CC, art. 193). Favorecendo o absolutamente incapaz, o magistrado ou o tribunal pode reconhecer, de ofício, a prescrição (CC, arts. 3º e 194). Se a morosidade decorrer de dolo ou fraude do magistrado, ou este praticar condutas tendentes à recusa, omissão ou retardamento, sem justo motivo, de ato oficial ou mediante requerimento, há responsabilidade objetiva do Estado ou da União (magistratura estadual ou federal) (CF, arts. 5º, LXXV, e 37, § 6º; CPC, art. 133; LOMAN, art. 49). A culpa não tem previsão legal e diante de norma restritiva, não deve o magistrado (e o parquet) responder pela negligência, imprudência ou imperícia. No caso de recusa, omissão ou retardamento injusto, a prova da responsabilidade necessita que a parte tenha requerido o cumprimento do ato e o juiz não respeitado o prazo legal; o abrandamento do cumprimento do prazo pelo magistrado precisa ser analisado no caso concreto a impedir prejuízo à parte que postula tempestivamente, em juízo, o seu pretendido direito (CPC, arts. 189, 198 e 199).

              No caso de indeferimento liminar da petição inicial, o despacho inicial é negativo, de modo que não há falar no efeito material em tela, mesmo que a natureza do pronunciamento jurisdicional seja sentença terminativa (CPC, arts. 267, I, e 295); indeferimento posterior (ao despacho inicial positivo), o efeito interruptivo não desaparece, mas é único, de sorte que o novo despac`o inicial posi|ivo na nova ação não interrompe a prescrição, cujo prazo voltou a correr naquela sentença decorrente do indeferimento posterior (CPC, art. 329; CC, art. 202, caput). O julgamento do mérito exige a relação jurídica processual completa (autor juiz réu), mas o pronunciamento ex officio da decadência pelo juiz, no despacho inicial negativo (sentença de mérito), implica a extinção do processo com julgamento do mérito sem a citação do réu e os efeitos pertinentes deste ato processual (CPC, art. 269, IV).

              Nas demais hipóteses destinadas à sentença de mérito (CPC, art. 269, I a V), a prescrição resta interrompida à época do despacho inicial positivo, mas não existe retomada do curso prescricional com o trânsito em julgado, pois há formação de coisa julgada formal e material, a fim de preservar a segurança jurídica das decisões judiciais que aplicam processualmente o direito material ao caso concreto.

              No caso de desaparecimento dos autos do processo em curso, cabe a qualquer das partes ajuizar ação de restauração de autos (CPC, art. 1.063); a ação de restauração não retira o efeito material de interrupção da prescrição pertinente à ação originária (cujos autos do processo estão desaparecidos).

 Abreviaturas

BAASPE    – Boletim da Associação dos Advogados de São Paulo (Ementário)

CC – Código Civil (L 10.406, de 10-1-2002)

CF – Constituição Federal (Promulgada em 5-10-1988)

CPC – Código de Processo Civil (L 5.869, de 11-1-1973)

DJU – Diário da Justiça da União

DL – Decreto Lei

L – Lei

LC – Lei Complementar

LEF – Lei da Execução Fiscal (L 6.830, de 22-9-1980)

LICC – Lei de Introdução ao Código Civil (DL 4.657, de 4-9-1942)

LOMAN – Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC 35, de 14-3-1979)

RCLD – Revista Consulex (Leis e Decisões)

     


Referência  Biográfica

WALTER VECHIATO JÚNIOR   –  Advogado, Professor da Universidade Braz Cubas (UBC – Mogi das Cruzes/SP) nos cursos de graduação e pós-gradução lato sensu e do Curso Preparatório Jurídico (CPJ – Mogi das Cruzes/SP), nas disciplinas de Direito Processual Civil e Direito Civil, Autor das obras Curso de Processo Civil (volumes 1 e 2), Comentários ao CPC e Tratado dos Recursos Cíveis (todas pela Editora Juarez de Oliveira).

Arbitragem: um instituto calcado na autonomia da vontade

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* Enéas Castilho Chiarini Júnior

1.0 – Introdução

É de conhecimento geral que o processo judicial, não só em nosso país, é excessivamente lento e caro, de forma a descontentar a grande maioria dos indivíduos que se vêem na necessidade de se socorrer de processo judicial para solucionar seus problemas.

Tal lentidão é fruto da modernização do Estado e sua conseqüente aumenta de demanda judicial, além da crescente conscientização da população quanto aos seus direitos de cidadão, o que aumentou o número de processos judiciais sem o necessário aumento e modernização do Poder Judiciário.

Deste contexto surge a necessidade de se buscar alternativas, rápidas, baratas e funcionais na solução de controvérsias.

Desta necessidade nasce a arbitragem, instituto que, contemporaneamente, ganha forças em todo o mundo globalizado.

No Brasil é editada a Lei nº 9.307/96 que, de forma definitiva, acolhe o instituto – o qual já era previsto em nosso ordenamento desde 1817.

Apesar disso, existem aqueles que, por desconhecimento do instituto, temem o processo arbitral, procurando evitá-lo ao máximo.

Assim, o presente trabalho pretende contribuir para a divulgação do instituto da arbitragem, na medida em que apresenta sua íntima ligação com o princípio da autonomia da vontade.

Busca-se, assim, demonstrar que a Arbitragem é decorrente da vontade das partes, e que estas, no processo arbitral, ao contrário do procedimento estatal, tudo podem. Podem escolher quem irá decidir a questão, o prazo máximo para a promulgação da sentença, e, até mesmo quais as regras de direito que serão aplicadas ao problema.

2.0 – Conceitos

Para a elaboração de um trabalho o qual se deseja compreensível, torna-se imperiosa a conceituação de seus objetos, razão pela qual o presente trabalho inicia a conceituação do instituto da arbitragem, e do princípio da autonomia da vontade, os quais são temas centrais do presente trabalho.

2.1 – Arbitragem

4font face="Arial" size="2">No Brasil, a arbitragem é regulada pela Lei nº 9307/96 a qual não traz uma definição do que seja a arbitragem, sendo necessário recorrer-se à doutrina para a sua definição.

Para Jarrosson apud Bosco Lee e Valença Filho: “A arbitragem é a instituição pela qual um terceiro resolve o litígio que opõem duas ou mais partes, exercendo a missão jurisdicional que lhe é conferida pelas partes.” (Op. cit., pág. 19).

Outra definição trazida pelos mesmos autores é a de Irineu Strenger, para quem:” Arbitragem é instância jurisdicional praticada em função de regime contratualmente estabelecido, para dirimir controvérsias entre pessoas de direito privado e/ou público, com procedimentos próprios e força executória perante tribunais estatais.” (Op. cit., pág. 20).

A arbitragem pode ser, portanto, conceituada como sendo um método extrajudicial de solução de controvérsias, onde as partes pactuam, previamente, no sentido de que a controvérsia seja decidida por pessoa – ou pessoas – neutra, imparcial, escolhida de comum acordo, e conhecedora da matéria a ser decidida, através de um processo jurídico não-estatal – menos formal que o processo estatal – e sigiloso, cuja decisão final, além de não desafiar recursos – exceto por vícios formais, nunca pelo mérito da decisão -, possui força executiva judicial.

A arbitragem possui uma natureza jurídica mista. É privada pela sua origem em um pacto de vontades, e é, ao mesmo tempo, pública pela sua função jurisdicional.

2.2 – Autonomia da vontade

A autonomia da vontade é um princípio (No sentido apresentado por Robert Alexy onde os princípios se diferenciam das regras na medida em que aqueles podem ter maior, ou menor, aplicação de acordo com o caso concreto, enquanto que estas somente podem ser aplicáveis, ou não-aplicáveis) do direito obrigacional, e que é um dos fundamentos da arbitragem.

Pode ser apresentado como corolário do direito de liberdade, segundo o qual as partes são livres para pactuarem como quiserem (desde que respeitados alguns limites mínimos, conforme se verá adiante).

Outro princípio relacionado com o da autonomia da vontade é o princípio do pacta sunt servanda, de modo que as partes são livres para acordarem o que quiserem, e, justamente por isso, o contratado deve ser cumprido. Ou, dizendo de forma diferente, a autonomia da vontade somente existe porque o que for pactuado será cumprido, mesmo que a força.

Pode-se, assim, conceituar-se o princípio da autonomia da vontade como sendo a possibilidade de, em certos casos autorizados por lei – direitos disponíveis -, as partes convencionarem, livremente, o que lhes aprouver a cerca de seus direitos e deveres, de maneira que, o que for pactuado será juridicamente exigível, ou, não sendo a exigibilidade possível, dará ao credor a possibilidade de pedir indenização por perdas e danos decorrentes do não cumprimento da obrigação convencionada.

3.0 – Arbitragem & Autonomia da vontade

O instituto da arbitragem está intimamente ligado ao princípio da autonomia da vontade, podendo-se dizer, a exemplo de Bosco Lee e Valença Filho (Op. cit.. pág. 21), que o princípio da autonomia da vontade está onipresente no instituto da arbitragem.

Esta relação existe, em primeiro lugar, pelo fato de que, somente será estabelecido o procedimento arbitral se ambas as partes pactuarem neste sentido.

É o que se depreende da leitura do artigo 1º da Lei da Arbitragem (Lei nº 9307/96), que afirma que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios…” [grifei].

Uma vez que a lei afirma que as partes “poderão” recorrer à arbitragem, ela torna este procedimento não obrigatório, e, sendo, portanto, facultativo, ambas as partes devem estar de acordo com a instauração do procedimento arbitral.

Outra razão para que o procedimento arbitral deva ser convencionado pelas partes reside no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Por este dispositivo constitucional pode-se, inclusive, pugnar-se pela inconstitucionalidade da Lei de Arbitragem, no sentido de que a decisão da controvérsia deveria ser tomada, exclusivamente, pelo Poder Judiciário.

Tal raciocínio, porém, utiliza o que os estudiosos da lógica chamam de argumento a contrário, o que, do ponto de vista lógico, é inconcebível.

Se a Constituição diz que o acesso ao Judiciário não será excluído, não está dizendo, como querem alguns, que a resolução do conflito passe, obrigatoriamente, por este Poder.

O que a Constituição afirma é que, caso seja de interesse da parte, esta poderá recorrer ao judiciário, afirmação esta que não é, de forma alguma, incompatível com a Lei nº 9307/96, uma vez que esta condiciona a instauração do procedimento arbitral à anuência de ambas as partes, ao dizer que: “as partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem…” (artigo 3º) [grifei].

A autorização para se evitar o Poder Judiciário explica-se pelo fato de que somente poderão ser dirigidos ao procedimento arbitral os litígios que tratem de direito patrimonial disponível, conforme expresso no artigo 1º da Lei.

Interessante notar-se também que: “…a competência do árbitro é de origem eminentemente contratual, visto ter a arbitragem um fundamento convencional: “o poder de julgar reconhecido aos árbitros nasce de um acordo de vontades”. Mediante uma convenção abitral, as partes submetem a resolução do litígio a um tribunal arbitral e, por conseqüência, afastam a competência da jurisdição estatal, que, de outro modo seria compulsória. Neste sentido se manifesta o Prof. Francisco Cláudio santos: ‘A nova lei brasileira (Lei nº 9.307/96), orientada para privilegiar a vontade da parte, dá realce a esta vertente significativa da liberdade, que é a(autonomia da voftade…” (Boco Lee e Valença Filho, op. cit., pág. 22).

O princípio da autonomia da vontade permeia o instituto da arbitragem ao permitir que as partes designem: o modo pelo qual o tribunal arbitral será constituído, as pessoas que ocuparão a posição de árbitros, as regras de direito a serem aplicadas no procedimento arbitral, o prazo para que a sentença seja proferida.

Outro exemplo da autonomia das vontades reside no fato de que, enquanto no procedimento judicial estatal as partes não podem, de forma alguma, escolherem quem será o juiz a decidir a causa, na arbitragem ocorre exatamente o oposto, ou seja, somente terá poderes para decidir a questão aquele – ou aqueles, caso existam mais de um árbitro – a quem as partes delegarem poderes para tanto.

3.1 – A autonomia da vontade na Lei nº 9307/96

São exemplos da presença expressa do princípio da autonomia da vontade na lei arbitral, os artigos 1º, 2º, 3º, 5º, 6º, 8º, 9º, 11, 13 e 23.

O artigo 1º, como já citado, afirma que as partes, desde que capazes de contratar, poderão valer-se da arbitragem para solucionar seus litígios que tenham, como problema central, direitos patrimoniais disponíveis.

No artigo 2º, a lei abre a possibilidade de as partes escolherem, livremente, as regras de direito que serão aplicadas à arbitragem, ou, se a arbitragem será julgada por critérios de eqüidade (Segundo Celso Ribeiro Bastos in Curso de direito financeiro e de direito tributário, pág. 189, a eqüidade “..é uma apreciação subjetiva, cujo critério reside no senso de justiça. O Código de Processo Civil de 1939, no seu art. 114, conceituava a eqüidade nos seguintes termos: ‘Quando autorizado a decidir por eqüidade, o juiz aplicará a norma que estabeleceria se fosse legislador.’"). É importante ressaltar que o resultado prático desta possibilidade não pode ferir a ordem pública e/ou os bons costumes.

Pelo artigo 3º as partes podem optar pela arbitragem em convenção de arbitragem, que pode ser, segundo o mesmo artigo, a Cláusula Compromissória, ou o Compromisso Arbitral (aquela é uma cláusula contratual onde as partes se comprometem a submeter controvérsia futura ao procedimento arbitral – artigo 4º da lei -, e este é o contrato, posterior à controvérsia, em que as partes decidem utilizar da arbitragem como meio de solucionar o litígio – artigo 9º da lei).

No artigo 5º existe a possibilidade de as partes decidirem qual será o “órgão” que arbitrará a sentença, se uma instituição arbitral permanente, ou se um tribunal arbitral ad hoc (Observe-se que a utilização da expressão “Tribunal Arbitral ad hoc” não é correta, uma vez que todo Tribunal Arbitral é, necessariamente, ad hoc, ou seja todo tribunal arbitral é constituído para a solução do litígio em questão, e, uma vez realizado o julgamento, o tribunal é extinto, deixando de existir. A expressão é aqui utilizada, apenas para diferenciar as instituições que possuem um quadro de árbitros, cujos serviços arbitrais poderão ser contratados, dos tribunais montados exclusivamente para solução de um litígio. Ou seja, o indivíduo convocado para atuar como árbitro NÃO É arbitro, ele PERMANECE árbitro enquanto existir o tribunal arbitral, sendo correta a afirmação de que “eu não SOU árbitro, eu ESTOU árbitro”. Interessante notar, como fizeram Bosco Lee e Valença Filho (op. cit., pág. 28) que: “…o juiz exerce a função jurisdicional de forma vitalícia; seguindo a carreira da magistratura. A missão do árbitro, em contrapeso, é efêmera, não permanecendo o árbitro nesta condição para além do processo ao qual ele foi designado.”), instituído, única e exclusivamente, para o julgamento de um caso concreto e específico.

O artigo 6º explicita que deverá haver acordo prévio quanto à forma de instituição da arbitragem.

Pelo artigo 8º fica a cláusula compromissória considerada de forma autônoma em relação ao contrato que a contém. É mais um exemplo da presença do princípio da autonomia da vontade, uma vez que, tendo as partes pactuado pela preferência do procedimento arbitral, este desejo prevalece inalterável, mesmo que o contrato seja considerado nulo. Ou seja, mesmo que o contrato contenha algum vício que o anule, o desejo das partes de se socorrerem pelo processo da arbitragem deverá ser respeitado.

O artigo 9º define o compromisso arbitral como sendo uma convenção, ou seja, fruto da vontade das partes.

Já o artigo 11 apresenta, em seus seis incisos, alguns aspectos que poderão ser convencionados livremente pelas partes.

O artigo 13, por sua vez, autoriza às partes a escolherem, livremente, o árbitro, de forma que este poderá ser “…qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes.”

Por fim, o artigo 23 autoriza as partes a estipularem, livremente o prazo em que a sentença deverá ser proferida.

3.2 – Limites à autonomia da vontade

A autonomia da vontade, como todos os outros direitos fundamentais, não é absoluto, sofrendo limitações de ordem pública.

A primeira limitação é quanto a capacidade das partes, de sorte que o incapaz não possui autonomia da vontade necessária para decidir se quer, ou não, submeter seu litígio à arbitragem.

A autonomia da vontade é limitada, sobretudo quando se trata de questões de direitos indisponíveis, como por exemplo os de Direito Tributário, Direito Penal, Direito de Família e Sucessão, além, é claro e principalmente, dos Direitos Fundamentais.

3.2.1 – Direitos Disponíveis e Direitos Indisponíveis

“Mas o que é um direito disponível? Para Patrice Level, um direito é disponível quando está ‘sob o total domínio de seu titular, de tal modo que este pode fazer tudo em relação a aquele, principalmente alienar, e mesmo renunciar’. O critério da livre disponibilidade é na verdade de difícil apreensão. Todavia, segundo o direito brasileiro de arbitragem, o caráter patrimonial da relação litigiosa delimita a disponibilidade do direito e, por conseqüência, a abitrabilidade da matéria.” ( João Bosco Lee e Clávio de Melo Valença Filho, op. cit. pág. 62)

A contrario sensu, direito indisponível é aquele do qual não se pode dispor, ou para o qual a Lei impõe restrições de disponibilidade.

3.2.2 – Direito Tributário

O Direito Tributário, por tratar de direitos do Estado, indisponíveis por natureza, não pode, jamais, ser resolvido por meio da arbitragem.

Primeiro por que a arbitragem é um instituto que depende da vontade das partes, e o Estado não “desejou” que litígios referentes a tais direitos pudessem ser resolvidos pela arbitragem.

Segundo por que, por se tratarem de direitos do Estado são de interesse da coletividade, não existindo quem possua legitimidade para julgar tais direitos pela via arbitral.

3.2.3 – Direito Penal

O Direito Penal, é o direito público por excelência.

Intimamente ligado aos Direitos Fundamentais, não existe possibilidade de decisão acerca de direito penal que possa ser resolvida através da arbitragem, mesmo porque, trata-se de questão de interesse estatal, e, assim como o Direito Tributário, não existe legitimidade para que pessoas não-ligadas ao Poder Judiciário pudessem solucionar problemas relacionados ao Direito Penal.

Por outro lado, ainda, em muitos casos – ação penal pública incondicionada – é impossível, até mesmo para o Estado, abrir mão do direito de punir.

3.2.4 – Direito de Família e Sucessões

O direito de família e o direito das sucessões, em regra (afirmo que o direito de família é em regra indisponível pois, através da adoção, direitos de família como o de filiação, de paternidade e de alimentos tornam-se disponíveis, assim como direitos sucessórios também são, de certa forma disponíveis, uma vez que é possível ao sucesso rejeitar a herança a que teria direito), também é indisponível.

A indisponibilidade de tais direitos decorre do caráter de direito fundamental que possuem o direito de família e o direito de sucessão.

Os direitos de família são fundamentais, pois todo indivíduo possui direito à ter um pai e uma mãe, e a pertencer a uma família.

Também o direito das sucessões possui caráter fundamental, uma vez que todo indivíduo possui o direito de herdar o patrimônio de seus ascendentes.

Desse caráter de direito fundamental é que decorre a indisponibilidade dos direitos de família e sucessões, de tal sorte que, nos casos de adoção, é sempre necessário recorrer-se à via judicial para se assegurar a lisura do procedimento de adoção, assim como, no caso de sucessão onde existam menores, é necessário sempre a participação do Ministério Público a velar pelos direitos destes.

3.2.5 – Direitos Fundamentais

Direitos fundamentais são, segundo corrente alemã, direitos humanos reconhecidos pelo direito interno, ou pelo direito internacional, quer seja nas constituições nacionais, quer seja em tratados internacionais (Fábio Konder Comparato, op. cit., pág. 56).

Tais direitos podem ser conceituados da seguinte forma: “Por direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente entendidos aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir. Este conceito não é absolutamente unânime nas diversas culturas. Contudo, no seu núcleo central, a idéia alcança uma real universalidade no mundo contemporâneo…” (João Baptista Herkenhoff, Gênese dos Direitos Humanos, págs. 30 e 31).

Por serem direitos ligados à dignidade da pessoa humana, estes direitos são tidos, unanimamente, por indisponíveis, chegando-se ao ponto de pugnar-se pela impossibilidade de denúncia de tratados internacionais que tratem de direitos humanos.

“Dado que eles se impõem, pela sua própria natureza, não só aos Poderes Públicos constituídos em cada Estado, como a todos os Estados no plano internacional, e até mesmo ao próprio Poder Constituinte, à Organização das Nações Unidas e a todas as organizações regionais de Estados, é juridicamente inválido suprimir direitos fundamentais, por via de novas regras constitucionais ou convenções internacionais. Uma das conseqüências desse princípio é a proibição de se pôr fim, voluntariamente, à vigência de tratados internacionais de direitos humanos […] Ora, o poder de denunciar uma convenção internacionais só faz sentido quando esta cuida de direitos disponíveis. Em matéria de tratados internacionais de direitos humanos, não há nenhuma possibilidade jurídica de denúncia, ou de cessação convencional da vigência, porque se está diante de direitos indisponíveis e, correlatamente, de deveres insuprimíveis.” (Fábio Konder Comparato, op. cit., págs. 64 e 65).

Ficando, assim, demonstrada a indisponibilidade dos direitos fundamentais, o que implica na indisponibilidade dos direitos de liberdade, e por conseqüência de todo o sistema de Direito Penal, além dos ramos do Direito de Família, e do Direito das Sucessões.

3.2.6 – Direito do Trabalho

O Direito do Trabalho é um caso diferente, onde a indisponibilidade dos direitos trabalhistas, durante a vigência do contrato de trabalho, decorre de sua posição de subordinação na relação de trabalho, de forma que o trabalhador é considerado como hipossuficiente na relação que possui com seu empregador.

Desta hipossuficiência decorre todo o sistema protetivo em favor do trabalhador e esta proteção se justifica na medida em que, num país como o Brasil, existem milhões de desempregados, e, onde a maioria dos trabalhadores recebem uma remuneração que não lhe garante, na maioria das vezes, nem o suficiente para se alimentar dignamente.

Sem esta proteção, seria fácil para que os empregadores impusessem condições, na hora de contratar seus empregados, que acabariam por transformar o trabalhador em escravo (coisa que, mesmo com toda a proteção aos trabalhadores, ainda ocorre em nosso país, para se confirmar tal afirmação basta acompanhar as notícias que são comuns neste sentido).

Porém, o motivo de toda esta proteção, e consequentemente, da indisponibilidade de tais direitos, decorre da fragilidade do empregado enquanto empregado. O que se pretende é, como dito, dar total poder aos empregadores para que façam com os empregados o que bem entenderem.

E, justamente por isso, não se justifica que tal indisponibilidade dos direitos decorrentes da relação de trabalho permaneçam para além do contrato de trabalho.

Assim, a legislação permite que, após o fim da vigência do contrato de trabalho, estes direitos possam ser livremente negociados entre ex-empregado e ex-empregador, de forma que é totalmente compatível a arbitragem e os direitos trabalhistas – apenas frise-se: desde que após o fim do contrato de trabalho -, não existindo óbice para que problemas decorrentes do contrato de trabalho sejam solucionados pela via arbitral.

4.0 – Conclusão

Fica com o presente estudo demonstrado que a arbitragem está ligada à autonomia da vontade de forma indissociável, uma vez que a vontade das partes é condição sine qua non do procedimento arbitral, pois, sem a anuência das partes, estar-se-ia contrariando o disposto no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, o que tornaria o instituto inconstitucional.

Ninguém, ao contrário do que se poderia imaginar, tem nada a perder com a arbitragem, uma vez que o árbitro deve observar o dever de imparcialidade. Nem mesmo os advogados perderiam campo profissional, uma vez que, apesar de não obrigatória a sua presença no procedimento arbitral, sua partacipação é, sem lúvida nenhuma aconselhável. Pelo contrário, abre-se mais um campo de atuação para os profissionais do Direito que poderão ser indicados a atuarem como árbitros.

Deve-se deixar para que o Estado decida apenas as questões ligadas à direitos indisponíveis, para que, assim, diminua o número de processos judiciais, o que acabará por trazer maior celeridade ao Poder Judiciário que poderá, enfim, julgar de forma mais rápida os processos mais urgentes que, via de regra, cuidam, justamente, dos direitos indisponíveis.

Divulgar a arbitragem, e lutar pelo seu fortalecimento no plano nacional é, portanto, dever de cidadania, com o qual todos devem contribuir para que o Poder Judiciário possa cumprir com seu dever constitucional de distribuir justiça aos que dela têm fome e sede.

5.0 – Referências Bibliográficas

ALEXY, Robert. Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais. Palestra proferida na Fundação Casa Rui Barbosa, Rio de Janeiro em 10.12.98. Tradução informal de Gilmar Ferreira Mendes. Texto distribuído, via internet, pelo próprio tradutor, aos alunos do curso de especialização latu sensu em Direito Constitucional pelo IBDC – Inst. Bras. de Dir. Constitucional – em parceria com a FDSM – Faculdade de Direito do Sul de Minas;

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito financeiro e de direito tributário. (trechos) 20ª ed., São Paulo: saraiva, 1999;

BEGALLI, Paulo Antônio. Prática forense avançada. 1ª ed., Belho Horizonte: Del Rey, 2001;

BOSCO LEE, João e VALENÇA FILHO, Clávio de Melo. A arbitragem no Brasil. 1ª ed., Programa CACB-BID de fortalecimento da arbitragem e da mediação comercial no Brasil. Brasília: 2001;

CALAIÁCOVO, Juan Luis e CALAIÁCOVO, Cynthia Alexandra. Negociação, mediação e arbitragem. (tradução de Adilson Rodrigues Pires) 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999;

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001;

DELGADO, José Augusto. A arbitragem: direito processual da cidadania. in Mediação: métodos de resolução de controvérsias. 1ª ed., São Paulo: LTr, 1999;

HERKENHOFF, João Baptista. Gênese dos Direitos Humanos. 1ª ed., São Paulo: Editora Acadêmica, 1994;

NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Manual da monografia jurídica. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999;

PIETRO DA SILVA, Tânia Braga. Desvendando a arbitragem. in Mediação: métodos de resolução de controvérsias. 1ª ed., São Paulo: LTr, 1999;

SBDA – Sociedade Brasileira para Difusão da Mediação e Arbitragem. Apostila do curso de capacitação em mediação. edição de maio de 2002.

   


Referência  Biográfica

Enéas Castilho Chiarini Júnior:   Advogado; pós-graduando em Direito Constitucional pelo IBDC – Instituto Brasileiro de Direito Constitucional – em parceria com a FDSM – Faculdade de Direito do Sul de Minas; e capacitado para exercer as funções de Mediador e Árbitro pela SBDA – Sociedade Brasileira para Difusão da Mediação e Arbitragem – em convênio com a ACIPA – Associação Comercial e Industrial de Pouso Alegre.

ernyonnet@terra.com.br

Crise na Execução Penal

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* Renato Flávio Marcão

Sumário: 1. Abordagem do tema; 2. Natureza e objeto da execução penal, 2.1. Natureza da execução penal, 2.2. Objeto da execução penal; 3. Artigos 3º a 8º da Lei de Execução Penal; 4. Conclusão.

 


1. Abordagem do tema

            Conforme sentenciou Roberto Lyra, é pela execução, em última análise, que vive a lei penal.

            Que a lei penal não tem "andado bem" é cediço. Os mais variados "equívocos legislativos" nos dão conta do caos em que se encontra a produção legislativa em matéria penal e processual. A tal respeito temos nos pronunciado não é de hoje. (1)

            Está em fase de estudos o Projeto que modificará a Lei de Execução Penal. É preciso, então, estabelecer reflexões sobre algumas questões doutrinárias e práticas da Lei, conforme buscaremos nas próximas linhas, dentro da singela visão que o trabalho propõe, estabelecendo afirmações e questionamentos relevantes para o estudo do tema.

2. Natureza e objeto da execução penal

            2.1. Natureza da execução penal

            Jurisprudência e doutrina nos apontam as divergências reinantes sobre a natureza da execução penal.

            Para alguns, "a execução criminal tem incontestável caráter de processo judicial contraditório" (TACrimSP, HC nº 307.582/5, 2ª Câm., rel. juiz José Urban, j. em 10.07.97, v.u.). É de natureza jurisdicional (JUTACrimSP 94/99).

            Ada Pellegrini Grinover ensina que: "Na verdade, não se nega que a execução penal é atividade complexa, que se desenvolve, entrosadamente, nos planos jurisdicional e administrativo. Nem se desconhece que dessa atividade participam dois Poderes estaduais: o Judiciário e o Executivo, por intermédio, respectivamente, dos órgãos jurisdicionais e dos estabelecimentos penais". (2)

            Segundo Paulo Lúcio Nogueira, "a execução penal é de natureza mista, complexa e eclética, no sentido de que certas normas da execução pertencem ao direito processual, como a solução de incidentes, enquanto outras que regulam a execução propriamente dita pertencem ao direito administrativo". (3)

            Por fim, Julio Fabbrini Mirabete anota que: "… afirma-se na exposição de motivos do projeto que se transformou na Lei de Execução Penal: ´Vencida a crença histórica de que o direito regulador da execução é de índole predominantemente administrativa, deve-se reconhecer, em nome de sua própria autonomia, a impossibilidade de sua inteira submissão aos domínios do Direito Penal e do Direito Processual Penal". (4)

            Temos que a execução penal é de natureza jurisdicional, não obstante a intensa atividade administrativa que a envolve.

            Embora envolvida intensamente no plano administrativo, não se desnatura, até porque todo e qualquer incidente ocorrido na execução pode ser submetido à apreciação judicial, por imperativo constitucional, o que acarreta dizer, aliás, que o rol do art. 66 da Lei de Execução Penal é meramente exemplificativo.

            Não bastasse, as decisões que determinam, efetivamente, o destino da execução, são jurisdicionais.

            2.2. Objeto da execução penal

            Visa-se pela execução fazer cumprir o comando emergente da sentença penal condenatória ou absolutória imprópria (5), assim considerada aquela que não acolhe a pretensão punitiva, mas reconhece a prática da infração penal e impõe ao réu medida de segurança. (6)

3. Artigos 3º a 8º da Lei de Execução Penal

            Diz o art. 3º da LEP: "Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei".

            São várias as conseqüências da condenação e os direitos atingidos pela sentença. Podemos citar, exemplificativamente: a. lançamento do nome do réu no rol dos culpados (art. 393, II, do CPP), providência que após a Constituição Federal de 1988, por imposição do art. 5º, LVII, só é possível após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória; b. prisão do réu (cf. art. 393, inc. I, do CPP, arts. 321 e s., e 594, do mesmo Codex; c. tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime (art. 91, I, do CP e art. 63, do CPP); d. perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou do terceiro de boa-fé: dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, porte ou detenção constitua fato ilícito (art. 91, II, alínea "a", do CP); do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso (art. 91, II, alínea "b", do CP); e. perda de cargo, função pública ou mandato eletivo (art. 92, I, do CP); a incapacidade para o exercício do pátrio poder, tutela ou curatela, nos crimes dolosos, sujeitos a pena de reclusão, cometidos contra filho, tutelado ou curatelado (art. 92, II, do CP); a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso (art. 92, III, do CP); f. constitui ob{táculo à naturadização do condenado (art. 12, II, alínea "b", da CF); g. suspensão dos direitos políticos enquanto perdurar os efeitos (art. 15, III, da CF); g. induz reincidência (art. 63, do CP); h. formação de título para execução de pena ou, no caso de semi-imputabilidade, medida de segurança consistente em tratamento ambulatorial ou internação (arts. 105 e 171, da LEP).

            De outro vértice, não são atingidos pela sentença penal condenatória os seguintes direitos: a. inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos da Constituição Federal (art. 5º, caput, da CF); b. de igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações, nos termos da Constituição (art. 5º, I, da CF); c. de sujeição ao princípio da legalidade (art. 5º, II, da CF); d. de integridade física e moral, não podendo ser submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III e XLIX, da CF; Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997); e. liberdade de manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato (art. 5º, IV, da CF; Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, alterada pela Lei nº 7.300, de 27 de março de 1985); f. direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem (art. 5º, V, da CF; Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, alterada pela Lei nº 7.300, de 27 de março de 1985); g. liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos (art. 5º, VI, da CF); h. de não ser privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (art. 5º, VIII, da CF); i. expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX, da CF); j. inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 5º, X, da CF); k. inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer (art. 5º, XII, da CF); l. plenitude da liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar (art. 5º, XVII, da CF); m. o direito de propriedade (material ou imaterial), ainda que privado, temporariamente, do exercício de alguns dos direitos a ela inerentes (art. 5º, XXII, da CF); n. o direito de herança (art. 5º, XXX, da CF); o. o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder, e obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situação de interesse pessoal (art. 5º XXXIV, alíneas "a" e "b", da CF); p. direito à individualização da pena (art. 5º XLVI, da CF); q. ao cumprimento da pmna em estabedecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (art. 5º, XLVIII, da CF); r. relacionados ao processo penal em sentido amplo (art. 5º, LIII a LVIII, entre outros, todos da CF); s. direito de impetrar habeas corpus, mandado de segurança, mandado de injunção e habeas data (art. 5º, LXVIII, LXIX, LXXI e LXXII, da CF), com gratuidade (art. 5º, LXXVII, da CF); t. à assistência jurídica integral gratuita, desde que comprove insuficiência de recursos (art. 5º LXXIV, da CF); u. indenização por erro judiciário, ou se ficar preso além do tempo fixado na sentença (art. 5º, LXXV, da CF).

            Comporta destaque o direito de "sujeição ao princípio da legalidade".

            Com efeito, a Lei de Execução Penal estabelece diversos benefícios em favor dos executados, sendo certo que tais não são efetivados durante a execução. Onde, então, a legalidade? Qual legalidade?

            Legalidade é a estrita observância da Lei ou o que é possível praticar em razão do descaso do Estado?

            O que se dizer, então, do direito à "individualização da pena" ?

            É sabido que o processo individualizador se desenvolve em diversas fases. Inicia-se com a individualização formal, passa pela judicial, e culmina com a individualização na execução.

            Como se afirmar, entretanto, que a individualização ocorre na execução?

            Sabemos que em completa desatenção ao art. 5º da LEP (7), não há uma devida classificação do condenado ou do internado.

            Como regra, também não há um "programa individualizador" para a execução das penas, restando no vazio o art. 6º da Lei de Execução Penal.

            Em relação ao exame criminológico a situação não é diversa.

            A despeito do que vem determinado nos arts. 8º e 9º da LEP, é do conhecimento de todos que não se dispõe de pessoal capacitado e treinado, para a realização do exame criminológico, que quando é feito, muito pouco ou quase nada de seguro aponta.

            A bem da verdade, na maioria das comarcas do Estado de São Paulo tal exame é substituído por um parecer apresentado por Assistente Social, que não dispõe de conhecimento específico para a análise do comportamento do criminoso, restringindo seu trabalho a uma única entrevista. Soma-se a tal relatório de entrevista um parecer psicológico também decorrente de um único encontro.

            O resultado, evidentemente, não poderia ser outro.

            Realizam-se tais entrevistas e utilizam-se tais trabalhos técnicos, mais pelo formalismo do que pelo conteúdo.

4. Conclusão

            A crise instalada na execução penal se reflete, também, na segurança pública. Não se restringe aos direitos e garantias do preso.

            É certo que, na medida em que não se efetivam as regras da execução penal, pune-se o condenado duas vezes.

            Contudo, a apenação maior recai sobre a sociedade ordeira que financia, com o pagamento de impostos, taxas etc, a estruturação de um sistema que idealiza, busca e não atinge, mercê do descaso daqueles que foram eleitos e são pagos com o fruto do trabalho e do esforço dos que a integram.

            A parcela ordeira da população é, no mínimo, triplamente vítima.

            Vítima do medo; do crime, e também da inércia/ineficiência de seus representantes junto a Poderes Instituídos, há muito fracassados ante a incontida ascensão do império em que reina absoluta a ilicitude penal.

Notas

            1. MARCÃO, Renato Flávio, e MARCON, Bruno. Direito Penal brasileiro: do idealismo normativo à realidade prática. RT 781/484-96. Disponível na internet.

            2. Execução Penal, São Paulo : Max Limonad,1987, p. 7.

            3. Comentários à Lei de Execução Penal. São Paulo : Saraiva, 1996, p. 5/6.

            4. Execução Penal, São Paulo : Atlas, 1997, p. 25.

            5. MARCÃO. Renato Flávio. Lei de execução penal anotada. São Paulo : Saraiva, 2001, p. 3.

            6. CAPEZ. Fernando. Curso de processo penal. São Paulo : Saraiva, 1998, p. 342.

            7. "Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal".

      


Referência  Biográfica

Renato Flávio Marcão :  Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Penal Especialista em Direito Constitucional. Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal Coordenador Cultural da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo – Núcleo de São José do Rio Preto-SP. Sócio-fundador da AREJ – Academia Riopretense de Estudos(Jurídicos e Cogrdenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP) Autor do livro: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001)

rmarcao@terra.com.br

O Dano Moral e sua Indenização

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* Clovis Brasil Pereira –

SUMÁRIO  1.  Generalidades     2. Dano moral e sua tipificação    3. O valor das indenizações e sua complexidade     4.  atribuição do valor à causa      5.  Conclusão     6.   Bibliografia


1.  Generalidades  

O dano moral e sua justa indenização tem merecido grande destaque no mundo jurídico pátrio, notadamente após  a promulgação da Constituição Federal em 1988, que em seu artigo 5º, assevera  a igualdade de todos  perante a lei,  sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

O mesmo artigo, no inciso V, assevera  que “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.   O inciso X,  prescreve que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

É certo que já na vigência do Código Civil de 1916[1],  já revogado,  era previsível a indenização decorrente de dano moral, que assim proclamava: “Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legítimo interesse econômico e moral”.

E seu parágrafo único, completava:  “O interesse moral só autoriza a ação quando  toque diretamente o autor ou à sua família”.

Assim, embora possível, o dano moral ficara restrito em sua tipificação. Em legislação específica, notadamente na Lei 5.270/67, denominada “Lei de Imprensa”, art. 49 e segs., e Lei 4.417/62, conhecida como Código Brasileiro de Telecomunicações, art. 84, também viabilizavam, antes de 1988, a indenização por dano moral, nos casos específicos.

È certo todavia, que a Carta Constitucional atual pacificou o cabimento desta modalidade de indenização, ao prevê-la expressamente no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, artigo 5º, incisos V e X, já referidos.

A jurisprudência, por sua vez, se pacificou no acolhimento  da cumulação de pedidos de indenização por dano moral e material, através pelo Superior Tribunal de Justiça[2], que assim definiu: “São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”.

Na verdade, a Constituição federal de 1988 abriu as portas para a reparação civil mais ampla, decorrente de dano moral, incorporando tal possibilidade no Código Civil  de 2002, em vigor desde 11 de janeiro de 2003, que ao tratar dos Atos Ilícitos[3], assim prevê: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. 

2.   Dano Moral e sua tipificação  

Os danos morais se originam de fatos humanos que conduzem a lesões de interesses alheios, juridicamente protegidos, mas que atingem apenas a reserva psíquica do ofendido.

Na lição de Orlando Gomes[4]  “os danos morais são lesões praticadas contra os direitos considerados essenciais à pessoa humana, denominados direitos da personalidade”.

Referido doutrinador classifica esses direitos da personalidade em direitos à integridade física, tais sejam, direito à vida, ao próprio corpo e ao cadáver, e direitos à integridade moral, ou seja, direito à honra, à liberdade, à imagem, à privacidade, à intimidade, e ao nome.

Carlos Alberto Bittar[5],  em artigo  publicado,  definiu danos morais como “lesões sofridas pelas pessoas físicas e jurídicas, em certos aspectos de sua personalidade, em razão de investidas injustas de outrem. São aqueles que atingem a moralidade e a afetividade da pessoa, causando-lhe constrangimentos, vexames, dores, enfim, sentimentos e sensações negativas”.

O mesmo autor, ao analisar no mesmo artigo, a incidência cumulada de danos morais e materiais mistos, observa que “podem ambos conviver, em determinadas situações, sempre que os atos agressivos alcançam a esfera geral da vítima, como dentre outras, nos casos de morte de parente próximo em acidente, ataque à honra alheia pela imprensa, violação à imagem em publicidade, reprodução indevida de obra intelectual alheia em atividade de fim econômico, e assim por  diante”.

Para que o dano seja objeto de indenização exige-se a comprovação do nexo causal entre a conduta do agente e o resultado, do que deflui a obrigação de reparar-se o dano.

O dano moral pode ser analisado sob dois prismas: o interno, quando o lesado padece em termos subjetivos, ou seja, sente-se diminuído em sua auto-estima  e valoração, com ou sem repercussão somática; o externo, quando se deprecia a imagem do ser humano objetivamente, isto é, quando o ato repercute negativamente no meio social, circunstâncias que envolvem determinada pessoa, igualmente com reflexos sobre ela.

No primeiro caso, temos a título de exemplo, a ocorrência de acidente, onde a vítima sobre o dano, em decorrência de aleijão (deformidade física). No segundo, a calúnia, a difamação ou a injúria, onde o lesado sofre o dano em razão da repercussão negativa da ofensa no meio social.


3.  O valor da indenização e sua complexidade  

A apuração do valor indenizatório, nas ações decorrentes de dano moral, tem se mostrado, ao longo do tempo, de maneira bastante complexa e controvertida, isto porque não existem parâmetros previstos em lei para a fixação do valor da reparação do dano moral.

Parece-nos ainda, que tais indenizações não devem mesmo obedecer regras fixas, pré-determinadas, como desejam alguns, na esteira de projeto de lei em discussão no Congresso Nacional, onde se pretende limitar o valor das indenizações em determinados patamares.

Nessa hipótese, se aprovada tal limitação, tirará do magistrado a possibilidade de examinar cuidadosamente cada  caso, às luz das provas produzidas, as características próprias de cada dano, o alcance e a repercussão da ofensa, o que parece-nos um grande equívoco.

Observe-seque o Código Civil de 2002[6], prescreve que “a indenização mede-se pela extensão do dano”.  Previu o legislador ordinário, que para se aferir o valor real a título de indenização por dano moral ou material, deve-se levar em conta o resultado da lesão, para o dano em sí e sua extensão.

Entendemos muito tímida a limitação  simplesmente “à extensão do dano”, e em descompasso com toda a evolução doutrinária e jurisprudencial desenvolvida a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, e que caminha numa construção mais abrangente para a caracterização do ano, e sua adequada  mensuração, para busca de uma justa indenização, com o fim de aplacar a dor e o sofrimento do ofendido.

Para Fabrício Zamprogna  Matielo[7] o valor do dano moral depende da análise de vários aspectos subjetivos e objetivos para sua quantificação.

Segundo o autor, “as circunstâncias objetivas dizem com a possibilidade econômica de o obrigado suportar e efetivamente cumprir com o teor condenatório, sob pena de se fazer desmoralizar o Judiciário e fazer letra morta de todo o conteúdo processual.             

Afora isso, ainda em termos objetivos, há que se perquirir qual o montante justo e suficiente para oferecer ao lesado meios amplos de buscar alivio para o mal sofrido, seja qual fora modalidade de lenitivo buscada, o que ficará a critério exclusivo do próprio atingido.”

Como circunstâncias subjetivas,  “indaga-se qual o ânimo dos agentes quando do fato danoso e após o mesmo, em especial no que pertine ao lesante. Ele poderá agir com diversos graus de reprovabilidade,  devendo responder tão mais severamente quanto maior a culpabilidade e a reação ao ilícito provocado. Analisa-se, também, eventual grau de contribuição da vítima para a verificação do resultado lesivo, fazendo com que a chamada culpa concorrente amenize a situação do autor da lesão”.

Para o Prof. Martinho Garcez Neto[8]  “são dois os modos porque é possivel obter-se a reparação civil: a restituição do estado anterior e a reparação pecuniária, quando o direito lesado seja de natureza reintegrável”.

Assim, no caso da dor, da tristeza, ou do aborrecimento desmedido, não é possível desfazer tais circunstâncias, mas sim, pleitear o meio de compensação dos efeitos deles decorrentes, através de uma indenização pecuniária, pelo dano moral experimentado. 

Busca-se sim, dar ao ofendido, uma satisfação, um conforto, para aplacar ou pelo menos, amenizar a sensação de dor e sofrimento experimentados.

Tal indenização deve ser, de tal sorte, que sirva também de agente punitivo e inibidor ao causador do dano, para que este não mais o repita.

Dessa conjugação é que flui a idéia de que cada caso, deve ser analisado de forma isolada, para que não se caia num simplismo puro e simples, onde o valor da condenação de uma pequeno empresário, por exemplo, corresponda a de um grande banqueiro. Nessa hipótese, se o valor for fixado num mesmo patamar, levando-0se em conta a condição do pequeno empresário, em nada afetará o grande banqueiro, que não se verá inibido ao cometimento de outros danos de efeito moral.  Na mesma linha de raciocínio, se o patamar for fixado levando-se em conta a condição do banqueiro, em nada tirará o estímulo do pequeno empresário a não mais repetir o gesto danoso, uma vez que não podendo pagá-la, a decisão judicial se mostrará inócua, inaplicável.

Nesse sentido se mostra oportuna a lição de Fabrício Zamprogna Matielo[9]  que “a reparação está fulcrada na observância do binômio capacidade econômica (do lesante) X necessidade de meios (alcançáveis ao lesado).  Ao mesmo tempo, não deve, a demanda reparatória, ser fonte de enriquecimento indevido, nem minguada ao ponto de nada representar. Importa lembrar, ainda, que a reparação dos danos morais deve entender ao dúplice objetivo para os quais foi idealizada, ou seja, compensação ao atingido e punição ao agente da lesão” (grifo nosso).

Observa-se ainda, que a Lei de Imprensa  e o Código Brasileiro de Telecomunicações, conforme já anteriormente dito,  trazem parâmetros específicos para fixação do dano moral, o que tem se mostrado por vezes, muito pífio, para reparação das ofensas decorrentes de tais dispositivos legais, notadamente pela repercussão e velocidade com que as falsas imputações ou falsas noticias se propagam, nos chamados  veículos de massa,  notadamente televisão,  rádio e internet.

Face a previsão constitucional posterior a esses dois dispositivos legais, que datam 1962 (Código Brasileiro de telecomunicações) e 1967 (Lei de Imprensa),  parece-nos inclusive que tais parâmetros encontram-se derrogados pela Carta Magna, o que sem sido admitido pela jurisprudência majoritária,  ficando à critério do Magistrado, no exame de cada caso concreto, a fixação de valores compatíveis à justa indenização pelo dano moral decorrente do ato lesivo.

4.   Atribuição do valor à causa

É norma inserta no Código de Processo Civil[10] “que “a toda causa será atribuído um valor certo, ainda que não tenha conteúdo econômico imediato”.

Tem sido comum, no entanto, nas ações indenizatórias que buscam a compensação pelo dano moral,   prudência na atribuição do valor à causa. Na maioria dos casos, os pedidos não são pleiteados em valor certo, o que parece-nos incorreto, à luz do que dispõe o Estatuto Processual, mas sim de  forma insinuada,  onde o valor da causa é atribuído de forma simbólica, e o pedido inicial, é pela condenação em indenização equivalente a 100, 200, 500 ou mais salários mínimos.  Existe pois, nesta hipótese,  um enorme fosso entre o valor atribuído à causa, e o pedido de condenação, em desalinho com a regra processual contida no CPC.

Logicamente que essa modalidade que domina a prática das ações indenizatórias, de dano moral, tem por objetivo o recolhimento de custas processuais simbólicas, e ainda para fugir da condenação nas verbas de sucumbência, no caso de improcedência da ação.

Certamente, cabe ao requerido, no momento certo, formular sua impugnação, após analisar a conveniência ou não de questionar o valor atribuído à causa, conforme preceitua  o Código de Processo Civil[11].

5.    Visão da Jurisprudência            

Demonstraremos a seguir, algumas decisões de nossos Tribunais, ao longo do tempo,  no julgamento de ações indenizatórias, com objetivo de ilustrar o campo de incidência do dano moral, sua tipificação e os parâmetros utilizados para sua fixação:

5.1. INDENIZAÇÃO – Danos físicos e morais – Arbitramento pelo Juiz – Admissibilidade – Voto vencido. “O arbitramento do dano fica ao inteiro arbítrio do juiz que, não obstante, em cada caso, deve atender a repercussão econômica dela, a dor experimentada pela vítima e o grau de dolo ou culpado ofensor”.  (TJSP; Ap. 219.366-1/5; 8ª Câm.; j. 28.12.94; rel. Des. Felipe Ferreira; RT 717/126).

5.2. DANO MORAL. INDENIZAÇÃO. PARÂMETROS DE FIXAÇÃO DO QUANTUM. “Há de ser dúplice o parâmetro de fixação do critério para definição da quantia devida: a extensão da responsabilidade do lesante, que deve sentir expressivamente o desembolso, sem contudo inviabilizar-se financeiramente; e a justa compensação ao lesado, acerca de quem se levarão em conta circunstâncias, tanto de ordem pessoal como social em que esteja inserido, sem, porém, transfigurar-se em causa de enriquecimento. Embargos infringentes desacolhidos, por maioria”. (TJRS; Embargos infringentes 596161968; 3º Grupo de Câmaras Cíveis; Porto Alegre; rel. Dês. Luiz Gonzaga Pila Hofmeister; j. 04.10.96; RTJRS 181/160).

5.3.   Responsabilidade Civil – Estabelecimento bancário – Dano Moral. “Conta corrente aberta com documentos falsificados. Nome do autor levado aos cadastros de inadimplentes e cartórios de protestos. Dever de indenizar caracterizado pela ausência de cautela do banco, ditado ainda pela doutrina do risco profissional. Dano moral que independe da demonstração de prejuízo econômico. Montante  da indenização mantido como forma de sancionamento pelo descaso do banco com a situação. Recurso improvido”.  (1º TACivil-SP 6ª Câm.; Ap. nº 1.060.492-7-Piracicaba-SP; Rel. Juiz Marciano da Fonseca; j. 2.04.2002; v.u.).

5.4.  DANO MORAL – Responsabilidade civil. Acidente de trânsito – vitima fatal (cônjuge). “Fixação pelo magistrado a quo em 50 salários mínimos para cada uma das partes. Pretensão pelas autoras de majoração da indenização. Alegação da ré de inexistência de dano moral, ante a propositura da ação deforma tardia (12anos após o evento). Indenização compatível com o lapso temporal da propositura da ação. Recursos improvidos”. (1º TACiv-SP, Apelação Sumária nº 1.044.677-0; 8ª Câmara, São Paulo, 17.04.02; v.u.; rel. juiz Grava Brazil).

5.5.  ESTADO DO MARANHÃO. OFICIAL DO CORPO DE BOMBEIROS MILITAR. EXONERAÇÃO POR HAVER SIDO ADMITIDO SEM CONCURSO. REPARAÇÃO DAS PERDAS E DANOS SOFRIDOS, COM BASE NO ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Legitimidade da pretensão, tendo em vista que a nomeação do recorrente para a corporação maranhense se deu por iniciativa do Governo estadual, conforme admitido pelo acórdão recorrido, havendo importado o encerramento de sua carreira militar no Estado do Rio de Janeiro, razão pela qual, com a exoneração, ficou sem os meios com que contava para o sustento próprio e de sua família. Recurso provido para o fim de reforma do acórdão, condenando o Estado à reparação de danos morais e materiais, a serem apurados em liquidação, respectivamente, por arbitramento e por artigos”. (STF – RE 330834/MA; j. 03.09.02; rel. Min. Ilmar Galvão). 

5.6. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – Desligamento indevido de telefone… “Na fixação do valor da indenização dos danos morais deve o juiz adotar um critério de prudência e razoabilidade, atento às circunstâncias peculiares da causa, ensejando uma indenização apta a compensar o constrangimento e os dissabores sofridos e punir o agente causador do dano, desestimulando-o à prática de novos fatos envolvendo outros consumidores.   No caso, apesar de não se poder considerar os eventuais prejuízos  sofridos pelo estabelecimento comercial do Apelante, há que se considerar o constrangimento e o vexame sofridos por ele perante seus clientes no estabelecimento comercial. Além disso, não pode a indenização ser fixada em valor insignificante, que praticamente nada signifique para o ofensor, porque deve ser em valor que sirva como forma de punição ao ofensor”. (TAPR – 1ª Câm. Cível; AC nº 0215907-1-Altônia-PR; Rel. Juiz Roberto de Vicente; j. 10.12.2002; v.u.).

5.7.  Responsabilidade Civil. Acidente de Trabalho. Indenização. Direito Comum. valor da causa. Dano material e moral. Fixação com critério e prudência Necessidade – “Na ação de indenização por acidente de trabalho fundada em direito comum,com pretensão de reparação de dano material e moral, o calor a causa deve ser fixado com critério e prudência, de forma a não impedir o acesso à justiça pela parte contrária. (2º TACiv-SP, AI 777.735-00/3, 11ª Câm., 24.2.03, rel. juiz Egídio Giacoia).

5.8. DANO MORAL – Listas negras. “Restou incontroverso nos autos que a reclamada elaborava e atualizava, de tempos em tempos, a chamada “lista negra”, com o nome de todos os ex-funcionários que vieram a pleitear seus direitos no Poder Judiciário Trabalhista. No caso presente, a reclamada adotava procedimentos vis, não apenas discriminando ex-empregados que ajuizaram reclamações trabalhistas, quando do fornecimento de referência, mas também coagindo as empresas que lhe prestavam serviços para que não contratassem ou até mesmo demitissem tais pessoas. Se o fato de que a reclamada elaborar tal listagem e encaminha-la a uma única firma já é motivo bastante para configurar o dano à pessoa da autora, quanto mais se considerarmos as centenas de empresas que lhes prestavam serviços ou comercializavam seus jornais. Caracterizada a lesão ao trabalhador, impõe-se o ressarcimento do dano. Recurso a que se dá provimento parcial (tão-somente para reduzir o valor da indenização” (TRT – 24ª Região; RO nº 452/2002-001-24-00-7-Campo Grande-MS; Relatora Juíza Dalma Diamante Gouveia;  j. 3/04/2003; maioria de votos e v.u.). 

5.9. ADMINISTRATIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL – INSCRIÇÃO INDEVIDA EM CADASTRO DEINADIMPLENTES – DANO MORAL – PROVA – ART. 159 DO CC/1916. “Jurisprudência desta Corte pacificada no sentido de quer a indevida inscrição no cadastro de inadimplentes, por si só, é fato gerador de indenização por dano moral, sendo desnecessária a prova objetiva do abalo à honra e à reputação sofrida pelo demandante”. (STJ – RESP 468573/PB – j.  07.08.03; rel. Min. Eliana Calmon).

5.10.  DANO MORAL. Cabimento pelo excessivo atraso na entrega de apartamento a construir (I), além da devolução corrigida dos valores desembolsados (II). Não há bis in idem, porque a verba de dano moral engloba a frustração da casa própria e os lucros cessantes pelo não recebimento do imóvel no prazo avençado. Apelo provido parcialmente. (TJ-RJ; Ap. Civ. 2003.001.15400; j. 13.08.03; rel. Des. Severiano Ignácio Aragão). 

6. Conclusão

A  indenização por dano moral busca a reparação de injusta agressão aos bens jurídicos tutelados no direito da personalidade, protegendo a honra., a liberdade, a intimidade, a imagem, a privacidade, a saúde, o bom nome, dentre outros.

Em sua mensuração, devem ser observados, caso a caso, a extensão do dano, conforme o previsto no Código Civil, bem como a capacidade econômica do lesante, a repercussão do dano sob o prisma interno e externo, servindo de meio a aplacar ou suavizar a dor e o desconforto sofridos pelo ofendido, e ainda, como meio inibidor ao ofensor, para que não venha repetir a ofensa moral. 

Vemos a aplicação das sanções indenizatórias em todas as esferas da atividade humana, onde reste tipificada a ofensa moral, notadamente nas áreas criminal e civil, nas relações capital-trabalho, na imprensa em geral (rádio, jornal, televisão, etc.), no direito autoral, nas relações de consumo, dentre outras.

Busca-se, na verdade, com uma justa indenização, abrandar os efeitos da agressão injusta, independente de sua natureza, como forma de conforto, com o fim de restabelecer os preceitos básicos de dignificação da pessoa humana, mandamento maior tutelado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal vigente.

7.  Bibliografia 
 

BITTAR, Carlos Alberto, Reparação Civil por Danos Morais, RT, São Paulo, 1993

CASILLO, João, Dano à Pessoa e sua indenização,  RT, São Paulo, 1987

GARCEZ NETO, Martinho, Prática da Responsabilidade Civil, Saraiva, 1989.

GOMES, Orlando, Introdução ao Direito Civil, Rio, Forense, 1983.

LEVADA, Cláudio Antônio Soares, Liquidação de Danos Morais, Copola Editora, 1997

MATIELO, Fabrício Zamprogna, Dano Moral – Dano Material e Reparações, Ed. Sagra Luzzato, 4ª edição.

SANTOS, Antonio Jeová, Dano Moral Indenizável,  Ed. LEJUS, São Paulo, 1997

THEODORO JÚNIOR, Humberto, Dano Moral, Ed. Oliveira Mendes, 1ª edição, 1998

——————————————————————————–

[1] Código Civil, 1916, artigo 76, § único

[2] STJ, Súmula 37

[3] Código Civil, 2002, artigo 186

[4] GOMES, Orlando, Introdução ao Direito Civil, Rio, Forense, 1983, p. 129

[5]  BITTAR, Carlos Alberto, Reparação Civil por Danos Morais, in Revista do Advogado nº 44, Out/1994

[6] Código Civil, 2002, artigo 944

[7] MATIELO, Fabrício Zamprogna, Dano Moral –Dano Material e Reparações, Ed. Sagra Luzzato, 5ª edição. P. 185

[8] GARCEZ NETO, Martinho, Prática da Responsabilidade Civil, Saraiva, 1989, p. 50

[9] MATIELO, Fabrício Zamprogna, Ob. Cit., p. 186

[10] CPC, artigo 258

[11] CPC, artigo 261

 


 

Referência  Biográfica

Clovis Brasil Pereira  –  Advogado, Especialista em Processo Civil, Mestre em DireitoProfessor Universitário. Ministra Cursos Práticos no Legale Cursos Jurídicos, Curso Êxito, Unidades da ESA, no Estado de São Paulo. É Coordenador e Editor responsável do site jurídico www.prolegis.com.br

Contato:  prof.clovis@54.70.182.189

Pluralismo jurídico na União Européia

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* Amandino Teixeira Nunes Junior

Sumário: 1.Introdução; 2. Pluralismo jurídico, 2.1.Antecedentes históricos, 2.2.Concepções atuais; 3.União Européia, 3.1.Formação histórica, 3.2.Instituições comunitárias; 4. Pluralismo jurídico na União Européia, 4.1.Direito nacional, 4.2.Direito comunitário, 4.2.1.Conceito, 4.2.2.Classificação, 4.2.3.Características; 5. Conclusão; Bibliografia.


1.INTRODUÇÃO

            O presente artigo pretende discutir o pluralismo jurídico decorrente do processo de integração na Europa, considerando a existência concomitante de dois ordenamentos jurídicos no contexto da União Européia: o nacional, constituído pelo Direito interno dos países que a integram, e o supranacional, constituído pelo Direito Comunitário.

            Inicialmente, examina-se o pluralismo jurídico, seus antecedentes históricos e as concepções atuais que o identificam. Adiante, aborda-se a União Européia, sua formação histórica e as instituições que a compõem.

            Em seguida, analisa-se o pluralismo jurídico na União Européia, a partir do estudo do Direito Nacional e do Direito Comunitário, enquanto sistemas com diferentes princípios, regras, procedimentos e áreas de competência, mas que interagem entre si.

            Finalmente, à guisa de conclusão, procura-se apresentar, esquematicamente, uma síntese das idéias expostas ao longo do artigo, que venham contribuir para o enriquecimento do tema.

2.PLURALISMO JURÍDICO

            2.1.ANTECEDENTES HISTÓRICOS

            O Direito tem sido normalmente identificado como a ordem jurídica do Estado, isto é, aquela composta por normas elaboradas, editadas e asseguradas por órgãos estatais. No entanto, a ampliação do estudo da Sociologia Jurídica tem implicado o reconhecimento de que o Estado não detém mais o monopólio da criação e aplicação das normas jurídicas. Assim, admite-se a existência simultânea de ordens jurídicas distintas, que, por sua própria dinâmica, tornam-se insuscetíveis à apreensão por um único Direito (estatal).

            Como observa Ana Lúcia Sabadell:

            "Esta questão vem sendo tratada sob a denominação de pluralismo jurídico, provocando acirradas discussões no meio acadêmico. Na verdade não existe uma única resposta. Devemos examinar a situação concreta de cada período histórico para saber se existe um ordenamento jurídico unitário ou uma pluralidade de sistemas jurídicos."(1)

            O pluralismo jurídico existiu na Europa durante o período medieval e o período moderno. "Em paralelo ao direito criado pelos aparelhos centrais dos Impérios e dos Reinos (direito real), vigoravam o sistema jurídico da Igreja e uma multiplicidade de direitos locais consuetudinários (fundamentados nos costumes e em antigas tradições jurídicas) e de direitos de várias corporações (Universidades, membros de determinadas profissões, "irmandades"). O direito romano era reconhecido como fonte do direito; as opiniões dos grandes "doutores" (jurisconsultos) eram consideradas como legalmente válidas. Além disso, os diferentes grupos étnicos (tais como os mouros, judeus e ciganos) também mantinham o seu próprio direito, independentemente do lugar em que moravam".(2)

            Citado por Antônio Carlos Wolkmer,(3) Norbert Rouland destaca quatro manifestações jurídicas na Idade Média: um Direito "senhorial", baseado no militarismo; um Direito "canônico", informado por princípios cristãos; um Direito "burguês", fundado na atividade econômica; e, finalmente, um Direito "real", com a pretensão de incorporar os demais em nome da centralização do poder político, resultante da expansão do sistema capitalista.

            Essa multiplicidade de formas e de conteúdos jurídicos foi denunciada por filósofos racionalistas e iluministas, que chegavam a considerar o Direito medieval caótico e monstruoso. A desproporcionalidade e o autoritarismo na aplicação das penas, sem o direito dos acusados à ampla defesa e ao contraditório, propiciavam uma sociedade submissa, em que os excluídos do círculo de poder dominante (isto é: a nobreza, a realeza e o clero) não tinham qualquer representação.

            Com o fim da Idade Média e com o advento da Idade Moderna, a questão do pluralismo jurídico abre espaço para uma nova proposta, fundada no liberalismo e no individualismo. "A consolidação de uma nova forma de sociedade, capitalista, impõe uma nova concepção do político e do jurídico e uma crescente autonomia das ciências, livres do domínio religioso." (4)

            No final do século XIX, o pluralismo jurídico toma por base a obra de Otto von Gierke, que examinou o Direito das "corporações", na Alemanha. Na mesma linha de uma leitura sociológica dos sistemas jurídicos, citem-se Eugen Ehrlich, que analisou as manifestações do Direito "vivo" nas comunidades camponesas da região de Bukowina (Europa central), em detrimento do Código Civil do Império Austro-Húngaro, e Karl Llewllyn, que analisou o ordenamento jurídico desenvolvido pelos índios Cheyenne, nos EUA.

            Nas primeiras décadas do século XX, surgem as abordagens pluralistas de Santi Romano, sustentando que todo corpo social (partido político, religião, empresa) é uma instituição, que desenvolve seu próprio ordenamento jurídico, e de Widar Cesarini Sforza, defendendo a existência das relações jurídicas reguladas por normas costumeiras ou por acordos e decisões entre particulares, independente do Direito estatal. (5)

            Nas últimas décadas, a questão do pluralismo jurídico tem sido objeto de diversos estudos, tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista empírico, dando origem a três concepções atuais, retratadas por Ana Lúcia Sabadell(6), como se verá adiante.

            2.2. CONCEPÇÕES ATUAIS

            Pode-se destacar três concepções atuais do pluralismo jurídico. A primeira concepção situa-se nas análises teóricas sobre a "interlegalidade". Os adeptos desta concepção "identificam a existência de vários sistemas de normas jurídicas que interagem entre si, criando redes de relações jurídicas continuamente mutantes."(7) Esta é a posição nuclear do pós-positivismo jurídico, que considera o monopólio estatal da elaboração e aplicação do Direito como uma construção historicamente superada.

            A segunda concepção refere-se às mudanças ocorridas no cenário internacional, que propiciaram o surgimento de organizações internacionais (ONU, OMC) e supranacionais, de caráter regional (União Européia, NAFTA, Mercosul), que passaram a reclamar, de modo crescente, espaço de normatividade, por vezes, em detrimento dos ordenamentos jurídicos internos. A coexistência de normas jurídicas nacionais, internacionais e supranacionais criou uma nova forma de pluralismo jurídico que os estudiosos e pesquisadores passaram a analisar nos últimos anos. (8)

            A terceira concepção encontra-se nas pesquisas empíricas sobre o Direito "informal", alheio ao Direito "oficial", e no seio de diversas instituições sociais como igrejas, sindicatos, associações civis e empresas. (9)

            Dentre as concepções atuais do pluralismo jurídico, interessa-nos diretamente a segunda, em face do tema objeto do presente trabalho.

3.UNIÃO EUROPÉIA

            3.1.FORMAÇÃO HISTÓRICA

            O cenário internacional tem sofrido profundas transformações, nas últimas décadas, com o surgimento de blocos regionais, e a conseqüente interdependência entre os países que os integram.

            Na Europa, o processo de integração ganha impulso com a assinatura, em Paris, em 11 de abril de 1951, do Tratado de Paris, que instituiu a Comissão Européia do Carvão e do Aço (CECA) e, em Roma, em 25 de março de 1957, dos Tratados que instituíram a Comunidade Econômica Européia (CEE, hoje CE) e a Comunidade Européia de Energia Atômica (CECA ou EURATOM).

            O primeiro tinha por propósito a criação de um mercado comum de carvão e do aço. O segundo tinha por objetivo a criação de uma economia comum através da aproximação sucessiva das políticas econômicas dos países-membros. O terceiro propunha-se a promover, na Europa, a utilização da energia para fins pacíficos.

            Seguiram-se a esses o Tratado de Fusão dos Executivos, de 1965, que unificou as estruturas da CECA, da CE e do EURATOM; o Tratado de Bruxelas, de 1972; e o Ato Único Europeu, de 1987, que ampliou os poderes das Comunidades Européias e aperfeiçoou os procedimentos de tomada de decisão.

            Em 7 de fevereiro de 1992, foi assinado, em Maastricht, o Tratado da União Européia (TUE), firmado pelo Reino da Bélgica, pelo Reino da Dinamarca, pela República Federal da Alemanha, pela República Helênica, pelo Reino da Espanha, pela República Francesa, pela Irlanda, pela República Italiana, pelo Grã-Ducado de Luxemburgo, pelo Reino dos Países Baixos, pela República Portuguesa e pelo Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, que entrou em vigor em 1o de novembro de 1993. Em janeiro de 1995, a República da Áustria, a República da Finlândia e o Reino da Suécia aderiram ao Tratado da União Européia.

            O Tratado de Maastricht, de 1992, foi alterado pelo Tratado de Amsterdã, de 1997, e pelo Tratado de Nice, de 2001.

            O Tratado da União Européia representa uma nova fase no processo de integração naquele continente, imposta pela necessidade da criação de bases sólidas para a edificação da Europa futura. Além de promover a unificação dos países europeus, eliminando as barreiras que dividiam a Europa e melhorando as condições da vida e de emprego, o Tratado da União Européia reafirma o objetivo de assegurar a segurança e a liberdade de seus cidadãos.

            A União Européia inova e supera em muitos aspectos as organizações internacionais tradicionais, em particular na sua estrutura, funcionamento, poderes e competências. Fala e age como se fosse um Estado continental e elabora e promulga normas jurídicas que vigoram nos países que o integram e firma acordos com outros grupos de países. Vem inspirando a formação de blocos regionais semelhantes, como o NAFTA e o Mercosul.

            Os objetivos da União Européia, inicialmente apenas econômico e monetário, ampliaram-se consideravelmente, com a inserção de novos domínios, como a cultura, a informação, a defesa de consumidores, a segurança, a energia, o meio ambiente, as relações internacionais e o desenvolvimento científico e tecnológico, até alcançar a amplitude e a complexidade que apresenta hoje. Daí as profundas implicações no campo da Sociologia Jurídica e do Direito, com o surgimento de um pluralismo jurídico, caracterizado pela existência concomitante de dois ordenamentos: o primeiro, representado pelo Direito Nacional, composto por normas internas elaboradas no âmbito de cada país-membro; e o segundo, representado pelo Direito Comunitário, composto por normas supranacionais decorrentes dos Tratados comunitários e elaboradas pelas instituições comunitárias diretivas (Conselho da União Européia, Comissão Européia e Parlamento Europeu) e pela jurisprudência emanada do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias.

            3.2.INSTITUIÇÕES COMUNITÁRIAS

            A estrutura da União Européia compreende órgãos fundamentais, designados pelos Tratados comunitários como instituições. O seu exame permite distinguir quatro instituições diretivas: o Conselho da União Européia, a Comissão Européia, o Parlamento Europeu e o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias.

            O Conselho da União Européia é a instituição responsável pela coordenação das políticas econômicas gerais dos países-membros, dispondo de poder de decisão próprio. É composto por um representante, de nível ministerial, de cada Estado-membro, com prerrogativas específicas para assumir, por seu país, compromissos vinculantes. É a única instituição comunitária em que os Estados-membros são representados.

            A Comissão Européia é a instituição incumbida de velar pela aplicação dos Tratados comunitários, formulando recomendações e pareceres sobre as matérias neles tratadas. Dispõe de poder de decisão próprio e está habilitado a tomar as iniciativas necessárias para garantir a coordenação e a execução das ações da União Européia e dos Estados-membros. É composta por vinte membros, escolhidos em função de sua competência geral, entre técnicos e políticos, com mandato de cinco anos e com todas as garantias de independência.

            Segundo Alejandro López Lacube, a Comissão Européia é "a instituição comunitária por excelência e a mais original" (10).

            O Parlamento Europeu tem como atribuição mais importante a participação no processo conducente à elaboração das normas comunitárias através dos procedimentos fixados nos Tratados da União Européia, a saber: procedimento de cooperação, procedimento de co-decisão, procedimento de consulta e procedimento do parecer favorável. Co-legisla, portanto, com o Conselho da União Européia, sob proposta da Comissão Européia. Tem ainda a faculdade de rejeitar o orçamento, no seu conjunto, o que fortalece o seu controle sobre as atividades comunitárias.

            É composto por seiscentos e vinte e seis representantes populares (os eurodeputados), eleitos por sufrágio universal direto, para um mandato de cinco anos.

            Finalmente, o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias é a instituição que garante o respeito e a observância da ordem jurídica comunitária através da interpretação e aplicação dos Tratados da União Européia. Tem uma posição de destaque, em relação às demais instituições comunitárias, por exercer uma função fundamental no processo de integração européia.

            Como observa Maria Teresa Cárcamo Lobo:

            "O Tribunal de Justiça tem um papel de extraordinária importância na construção do ordenamento jurídico comunitário, no exercício de suas funções de tribunal constitucional, tribunal judicial, tribunal administrativo e instituição de consulta (…) Alguns de seus acórdãos marcaram o perfil político-jurídico da Comunidade e a densidade constitucional efetiva da integração européia." (11)

            É composto de quinze juízes e assistido por oito advogados-gerais, aos quais cabe apresentar publicamente, com independência e imparcialidade, as conclusões fundamentadas sobre as demandas submetidas ao órgão jurisdicional comunitário.

            As instituições comunitárias diretivas mantêm entre si um diálogo interinstitucional, que envolve uma gestão interativa e compartilhada, no âmbito da União Européia.

4.  PLURALISMO JURÍDICO NA UNIÃO EUROPÉIA

            4.1.DIREITO NACIONAL

            O Direito Nacional compreende um conjunto de princípios e regras elaborado soberanamente por cada Estado-membro da União Européia, com eficácia restrita ao território respectivo. Encontra-se na Constituição e nas leis infraconstitucionais integrantes do ordenamento jurídico interno de cada país-membro.

            A relação entre o Direito Nacional e o Direito Comunitário é extremamente complexa, em face da transferência de parcela dos poderes soberanos dos Estados-membros às instituições comunitárias dotadas de supracionalidade, como se verá adiante.

            Como acentua Márcio Monteiro Reis:

            "Esta foi uma solução encontrada pelos Estados europeus em seu processo de integração, realizado através da formação de uma Comunidade de Estados. Nela, como em qualquer comunidade, há uma área comum ao lado das áreas privativas de cada membro. Assim, os Estados renunciam à sua competência em determinadas matérias concretas sobre as quais os órgãos comunitários passam a legislar, administrar e julgar. Suas decisões têm efeito direto. Portanto, ao legislar, o órgão comunitário está produzindo "lei" para todos os Estados, criando direitos e obrigações para eles e seus cidadãos imediatamente, sem necessidade de nenhum ato estatal. O mesmo se dirá com os atos administrativos ou judiciais. Todos produzem efeitos como se fossem provenientes de instâncias nacionais." (12)

            4.2.DIREITO COMUNITÁRIO

            4.2.1.CONCEITO

            Miguel Ángel Ekmekdjian, a propósito do conceito de Direito Comunitário, afirma:

            " (.. ) El derecho comunitário no es un derecho extranjero ni siquiera un derecho exterior, es un derecho próprio de los Estados miembros, tanto como su derecho nacional, com la característica especial de coronar la jerarquía normativa en todos ellos. (…) El ordenamiento jurídico comunitário se configura como un plexo de normas cuyos sujetos activos y pasivos son los Estados miembros y sus cidadanos. Dotado de órganos proprios, tiene poderes soberanos en ciertas materias específicas y – en la misma medida – los Estados miembros han perdido la soberanía en tales ámbitos reservados a al comunidad. En ellos, los países miembros conservan, sin embargo, competencias residuales, pero deben ejercelas conforme a la política legislativa comunitaria (…)" (13)

            No mesmo diapasão, Carlos Francisco Molina del Pozo, conceitua o Direito Comunitário como:

            "(…) el conjunto de normas y princípios que determinan la organización, funcionamiento y competencias de las Comunidades Europeas, (que) se conforma como un orden jurídico sui generis, dotado de autonomía com relación a los ordenamientos nacionales, distinto del orden jurídico internacional y del orden jurídico interno de los Estados miembros y caracterizado por unos rasgos peculiares."(14)

            Observe-se que ambos os conceitos de Direito Comunitário fazem menção a características próprias e a sua distinção em relação ao Direito Nacional.

            4.2.2.CLASSIFICAÇÃO

            O Direito Comunitário apresenta duas categorias fundamentais de normas: o direito originário e o direito derivado.

            O Direito Comunitário originário é formado pelos tratados que instituíram as Comunidades Européias, com seus anexos, protocolos, declarações e convênios relativos à sua execução, bem como pelos Tratados subseqüentes que os modificaram.

            O Direito Comunitário derivado é formado pelas normas advindas das instituições comunitárias competentes para produzi-las, a saber: Conselho da União Européia, Comissão Européia, Parlamento Europeu e Tribunal de Justiça das Comunidades Européias.

            Distintamente do Direito Comunitário originário, o Direito Comunitário derivado não se forma pela vontade direta dos Estados-membros manifestada ao aderir aos Tratados Comunitários, mas através de procedimentos legislativos autônomos com a participação das instituições comunitárias diretivas.

            Os atos jurídicos que integram o Direito Comunitário derivado são: os regulamentos, as diretivas, as recomendações, as decisões, os atos convencionais, os princípios gerais de Direito e a jurisprudência. (15)

            4.2.3.CARACTERÍSTICAS

            As características essenciais do Direito Comunitário são: a autonomia, a primazia, a aplicabilidade direta, o efeito direito e a aplicabilidade de sanção ao Estado-membro por descumprimento da norma comunitária.

            A autonomia do Direito Comunitário constitui o fundamento da ordem jurídica comunitária. Consiste na capacidade de criar um direito igual para toda a União Européia, uniforme e integralmente válido em todos os Estados-membros.

            A primazia do Direito Comunitário significa que suas normas possuem supremacia sobre as normas dos ordenamentos jurídicos dos Estados-membros, inclusive sobre as de natureza constitucional.

            Com efeito, ao aderirem à União Européia, os Estados consentem em transferir em favor das instituições comunitárias parcelas de suas competências, compartilhando, assim, os seus poderes soberanos. Os princípios e regras do Direito Comunitário afirmam-se, pois, em relação a todo o Direito Nacional, qualquer que seja o seu nível hierárquico.

            A aplicabilidade direta do Direito Comunitário significa que as suas normas se integram ao ordenamento jurídico de cada Estado-membro, independente de a norma interna determinar essa inserção.

            A jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias firmou-se como verdadeiro instrumento de criação judicial do direito. Trata-se, como se disse, do art. 177° do Tratado de Roma, com suas alterações, que confere ao Tribunal comunitário a atribuição de proferir decisões judiciais normativas, relativamente às questões prejudiciais sobre a uniformidade da aplicação e a apreciação da validade dos princípios e regras dos Tratados comunitários e dos atos e decisões adotados pelas instituições da União Européia.

            O efeito direto do Direito Comunitário significa que as suas normas, ao entrarem em vigor, geram direitos e impõem deveres aos particulares, que podem invocá-los perante os órgãos jurisdicionais nacionais.

            Por fim, os Estados-membros podem sofrer sanções, impostas pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, pelo descumprimento de uma norma de Direito Comunitário ou até mesmo pelo não-acatamento de uma decisão judicial.

            Como se viu, a relação do Direito Nacional com o Direito Comunitário – cuja coexistência concomitante identifica o pluralismo jurídico na União Européia – encontra-se, basicamente, na autonomia deste em relação àquele, na primazia deste sobre o Direito Nacional e na aplicabilidade direta do Direito Comunitário nos ordenamentos jurídicos dos Estados-membros. Essa relação não decorre dos Tratados comunitários, mas da rica jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias.

5. CONCLUSÃO

            Em desfecho deste estudo, que discutiu o pluralismo jurídico no contexto da União Européia, não há como deixar de reconhecer que:

            a)a ampliação do estudo da Sociologia Jurídica implica o reconhecimento de que, hoje, o Estado não possui o monopólio de criação e aplicação das normas jurídicas;

            b)o pluralismo jurídico significa a existência concomitante de ordens jurídicas distintas, que, por sua própria dinâmica, não podem ser apreendidas por um único código (estatal);

            c)o pluralismo jurídico existiu na Europa durante a Idade Média, caracterizada pela descentralização política e pela multiplicidade de centros de poder, e a Idade Moderna, caracterizada pelo monopólio do Estado na criação e elaboração do Direito;

            d) a abordagem pluralista pode ser encontrada nas obras de Otto von Gierke (final do século XIX), de Santi Romano e de Widar Cesarini Sforza (primeiras décadas do século XX);

            e)as concepções atuais sobre o pluralismo jurídico encontram-se nas análises teóricas sobre a interlegalidade, nas mudanças verificadas no cenário internacional (decorrentes dos processos de integração) que propiciaram o surgimento do Direito supranacional, em detrimento do Direito interno, e nas pesquisas de campo desenvolvidas pela Sociologia Jurídica sobre o Direito "informal";

            f)a União Européia representa a fase mais avançada no processo de integração na Europa, inovando e superando em muitos aspectos as organizações internacionais tradicionais, especialmente na sua organização, funcionamento, poderes e atribuições;

            g)as instituições comunitárias com poderes de decisão são o Conselho da União Européia, a Comissão Européia, o Parlamento Europeu e o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias;

            h)a adesão dos Estados nacionais à União Européia implica a transferência irrevogável de parcela dos seus poderes soberanos às instituições comunitárias dotadas de supranacionalidade;

            i)o Direito Comunitário apresenta normas originárias, decorrentes dos Tratados comunitários, e normas derivadas, decorrentes de procedimentos legislativos autônomos, com a participação do Conselho da União Européia, da Comissão Européia, do Parlamento Europeu e da jurisprudência emanada do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias;

            j)a relação entre o Direito Nacional e o Direito Comunitário, afirmada por uma fecunda construção jurisprudencial, encontra-se nas características do Direito Comunitário: a autonomia deste em relação ao Direito Nacional, a primazia da norma comunitária sobre a estatal, a aplicabilidade direta das normas comunitárias sobre a ordem jurídica de cada Estado-membro, o efeito direito do regramento comunitário nos particulares e a aplicabilidade de sanção ao Estado-membro que descumprir uma norma comunitária;

            k)o pluralismo jurídico na União Européia é identificado pela existência simultânea de dois ordenamentos jurídicos distintos: o nacional e o supranacional;

            l)a construção de um novo paradigma para o Direito passa por uma perspectiva pluralista democrática.

NOTAS

            1. SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitura externa do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2000, pág. 104.

            2. SABADELL, Ana Lúcia, ob. cit., págs. 104-105.

            3. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura do Direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994, pág. 170.

            4. MALISKA, Marcos Augusto. Pluralismo jurídico e Direito moderno. Curitiba: Juruá. 2000, pág. 23.

            5. SABADELL, Ana Lúcia, ob. cit., págs. 105-107.

            6. SABADELL, Ana Lúcia, ob. cit., pág. 106.

            7. SABADELL, Ana Lúcia, ob, cit. pág. 106.

            8. SABADELL, Ana Lúcia, ob. cit., pág. 107.

            9. No Brasil, as pesquisas mais conhecidas sobre o pluralismo jurídico são as desenvolvidas pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, numa favela do Rio de Janeiro, nos anos 70, à qual deu o nome de "Pasárgada". Tais pesquisas demonstraram a existência de um Direito "informal", reconhecido por seus moradores, que resolvia conflitos de habitação e de propriedade, empregando normas diferentes das elaboradas pelo Direito estatal. Neste sentido, veja-se: SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1988.

            10. LECUBE, Alejandro F. López. Manual de Derecho Comunitário: análisis comparativo de la Unión Europea y el Mercosul. Buenos Aires: Editorial Ábaco, 1997, pág. 131.

            11. LOBO, Maria Teresa Cárcamo. Ordenamento Jurídico Comunitário. Belo Horizonte: Livraria e Editora Del Rey, 1997, pág. 32.

            12. REIS, Márcio Monteiro. Mercosul, União Européia e Constituição: a integração dos Estados e os ordenamentos jurídicos nacionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pág. 66.

            13. EKMEKDJIAN, Miguel Ángel. Introducción al Derecho Comunitario Latinoamericano. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1996, pág. 42.

            14. POZO, Carlos Francisco Molina del. Manual de Derecho de la Comunidad Europea. Madrid: Editorial Trivium S.A., 1997, págs. 505-506.

            15. Insere-se, também, no Direito Comunitário derivado, a rica jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, que, em face do art. 177º do Tratado de Roma, com suas alterações, pode proferir decisões judiciais normativas em seus julgados, em relação às questões prejudiciais. Sobre o assunto, veja-se: SOUZA, João Ricardo Carvalho de. Constituição brasileira & Tribunal de Justiça do Mercosul. Curitiba: Juruá, 2001.

BIBLIOGRAFIA

            EKMEKDJIAN, Miguel Ángel. Introducción al Derecho Comunitario Latinoamericano. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1996.

            LECUBE, Alejandro F. López. Manual de Derecho Comunitario: análisis comparativo de la Unión Europea y el Mercosul. Buenos Aires: Editorial Ábaco, 1997.

            LOBO, Maria Teresa Cárcamo. Ordenamento Jurídico Comunitário. Belo Horizonte: Livraria e Editora Del Rey, 1997.

            MALISKA, Marcos Augusto. Pluralismo jurídico e Direito moderno. Curitiba: Juruá, 2000.

            POZO, Carlos Francisco Molina del. Manual de Derecho de la Comunidad Europea. Madrid: Editorial Trivium S.A., 1997.

            REIS, Márcio Monteiro. Mercosul, União Européia e Constituição: a integração dos Estados e os ordenamentos jurídicos nacionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

            SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitura externa do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

            SANTOS, Boaventura Sousa. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1988.

            SOUZA, João Ricardo Carvalho de. Constituição brasileira & Tribunal de Justiça do Mercosul. Curitiba: Juruá, 2001.

            WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma cultura no Direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994.

        


Referência  Biográfica

Amandino Teixeira Nunes Junior:  Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados, professor do UniCEUB e do IESB, em Brasília (DF), mestre em Direito pela UFMG, doutorando em Direito pela UFPE

amandinojunior@uol.com.br

Casamento e Regime de Bens

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*Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka  –

Sumário:  1. A família e o casamento, ontem e hoje: o núcleo familiar contemporâneo e a assunção constitucional dos novos modelos. 2. O casamento e o estatuto patrimonial de regência dos bens conjugais, escolhido pelos nubentes, antes da celebração ou selecionado pela lei, em caso de não opção. 2.1. O regime de bens de eleição, assim escolhido pelos nubentes por meio de pacto antenupcial. 2.2. Na ausência de pacto antenupcial, vigorará, entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial. 3. Os diversos regimes de bens elencados pelo legislador contemporâneo (Código Civil de 2002) e a análise comparativa com o direito positivo que ainda vige (Código Civil de 1916). 3.1. As disposições de caráter geral e a principiologia de regência econômica das relações conjugais, na nova Lei Civil. 3.2. As modalidades de regime de bens do casamento adotadas pelo novo Código Civil: 3.2.1. Do regime de comunhão parcial. 3.2.2. Do regime de comunhão universal. 3.2.3. Do regime de separação de bens. 3.2.4. Do regime de participação final nos aqüestos.

1. A família e o casamento, ontem e hoje: o núcleo familiar contemporâneo e a assunção constitucional dos novos modelos. (1)

          Não se inicia qualquer locução a respeito de família se não se lembrar, a priori, que ela é uma entidade histórica, ancestral como a história, interligada com os rumos e desvios da história ela mesma, mutável na exata medida em que mudam as estruturas e a arquitetura da própria história através dos tempos. Sabe-se, enfim, que a família é, por assim dizer, a história e que a história da família se confunde com a história da própria humanidade.

          A respeito de qualquer sociedade que se mencione, arcaica ou recente, ocidental ou oriental, bem sucedida ou não, cuja trajetória tenha contribuído mais, ou menos, para a formação do arcabouço histórico de todo o ciclo que o ser humano desenha sobre a face da terra, enfim, a respeito de qualquer sociedade, dois pólos são sempre obrigatoriamente referidos, como essencialmente integrantes de sua conjuntura: o pólo econômico e o pólo familiar.

          Alguma vez, a ênfase pendula para um dos pólos, em franco desprestígio do outro, e vice-versa. Alguma vez, o observador social refere melhor o aspecto econômico de uma sociedade – ou de parte temporal de sua construção – mas, em outra vez, referirá antes o paradigma da família, quando estiver intentando compreender e explicar as razões das mudanças comportamentais, ou de costumes, ou as sociais, ou as religiosas, ou quaisquer outras, enfim.

          No que diz de perto à entidade familiar, acentuada é, sem dúvida, a sua influência nos desmoldes e reestruturações humanas de toda a sorte, especialmente quando se leva em conta a diversidade de sistemas que, ao longo da história da civilização, registraram e esculpiram os diferentes modelos de família.

          Sempre importa, por isso, reconhecer o perfil evolutivo da família, ao longo da história, adequá-lo com o incidente social, econômico, artístico, religioso ou político de cada época, para o efeito final de se buscar extrair os porquês das transmudações, os acertos e os desacertos de cada percurso, a influência na consciência dos povos, sempre a partir do modus familiar e da relação efetivamente havida entre os seus membros, mormente entre o homem e a mulher.

          Muitos – e muito diferentes – foram, portanto, os grupos familiares e os valores que os nortearam, sendo verdade que alguns destes valores talvez ainda se encontrem em voga nos dias atuais, quer pela sua normal eternização, quer por terem sido ressuscitados após lapsos temporais mais ou menos longos.

          De resto importa constatar, desde logo, e ao que tudo indica, que há uma imortalização na idéia de família. Mudam os costumes, mudam os homens, muda a história; só parece não mudar esta verdade, vale dizer, a atávica necessidade que cada um de nós sente de saber que, em algum lugar, encontra-se o seu porto e o seu refúgio, vale dizer, o seio de sua família, este locus que se renova sempre "como ponto de referência central do indivíduo na sociedade; uma espécie de aspiração à solidariedade e à segurança que dificilmente pode ser substituída por qualquer outra forma de convivência social". (2)

          Biológica ou não, oriunda do casamento ou não, matrilinear ou patrilinear, monogâmica ou poligâmica, monoparental ou poliparental, não importa. Nem importa o lugar que o indivíduo ocupe no seu âmago, se o de pai, se o de mãe, se o de filho; o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores, e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade pessoal.

          Parece não restar dúvida, afinal, em cultura como a nossa, de que o núcleo familiar que se descortina contemporaneamente, mostra-se "desintoxicado" do rigor – quase obrigatório – da legitimidade. O modelo que era oferecido pelo legislador do século passado já não se oferta mais como "único" ou "melhor", mesmo porque o descompasso gravado entre ele e a multiplicidade de modelos apresentados na "vida como ela é", de tão enorme, já não admite a sobrevivência de outra saída que não esta, adotada, enfim, pelo legislador contemporâneo, de constitucionalizar relevantes inovações, entre elas, e principalmente, a desmistificação de que a família só se constitui a partir do casamento civilmente celebrado; a elevação da união livre, dita estável pelo constituinte, à categoria de entidade familiar; a conseqüência lógica de que, por isso, a união estável passou a realizar, definitivamente, o papel de geratriz de relações familiares, ela também; a verificação de que efeitos distintos, além dos meramente patrimoniais, estão plasmados nestas outras – e constitucionalmente regulamentadas – formas de constituição da família, hoje. (3)

          Constituído o núcleo familiar, enfim, de toda a sorte e qualquer que seja a sua base estrutural, o fato é que efeitos patrimoniais derivarão dessa união de pessoas à volta do ideal comum de se associarem, perpetrando a espécie e buscando a efetivação de seus valores, sonhos e verdades.

          Interessa, hoje, neste conclave, e de modo mais específico, detalhar os efeitos patrimoniais que são os decorrentes do casamento como forma básica da formação de um núcleo familiar. Não se cuidará do regime de bens ocorrido na união estável ou em qualquer outra forma de fundação da família, mas se cuidará, afinal, apenas do regime patrimonial estabelecido entre cônjuges, isto é, entre aquelas pessoas que escolhem o casamento como forma de constituição de suas famílias.

2. O casamento e o estatuto patrimonial de regência dos bens conjugais, escolhido pelos nubentes, antes da celebração ou selecionado pela lei, em caso de não opção.

          Celebrado o casamento civil, portanto, os bens pertencentes a cada um dos cônjuges e também aqueles por eles adquiridos na constância da vida matrimonial, se submeterão a um regime patrimonial que tenha sido escolhido por eles, antes das núpcias, ou, no silêncio quanto a esta assunção voluntária de um regime, àquele que a lei disser, ou, em alguns casos, impuser.

          No passado, conforme a história legislativa de nosso país, o regime que o legislador decidiu oferecer aos que não produziam sua própria opção, foi o regime da comunhão universal de bens, pelo qual se comunicavam os bens de um e de outro dos cônjuges, quer os havidos antes do casamento, quer os adquiridos durante a sua constância, conformando, pois, um patrimônio único cuja alienação dependia também de uma comunhão de consentimentos.

          No final do século XIX, à guisa de justificar a escolha do legislador pátrio pelo modo de plena comunicabilidade dos bens, como o regime legal de bens, no casamento, o famoso jurista Lafayette escreveu que em sua natureza e efeito a comunhão é por certo o regime que mais se coaduna com a índole da sociedade conjugal, e a comunhão de bens reproduz no mundo material a identificação da vida e destino dos cônjuges e contribui poderosamente para fortifica-la e consolida-la, confundindo na mais perfeita igualdade os interesses de um e de outro. (4)

          Mas os tempos se alteraram, os cônjuges mudaram, a sociedade matrimonial se distanciou do modelo do outro século e, aos poucos, a universalidade de comunhão de bens cedeu o espaço exigido pela parcialidade de comunhão patrimonial, fato que se consubstanciou, enfim, pela Lei nº 6515/77, a lei do divórcio, que alterou o regime legal a ser adotado, se a hipótese fosse a de não outra escolha pelos nubentes, antes da celebração, por meio de pacto antenupcial.

          Nos dias que correm, ao lado do velho e sempre novo amor à primeira vista – como tão romanticamente diz Euclides de Oliveira (5) – permanece a ordem mais terrena, digamos assim, segundo a qual quem casa quer casa! Ora, esse é o descortinamento do matrimônio pelos seus palcos menos espiritualizados e mais racionais, o que não deve ser referido mal, já que o homem e a mulher, como a grande maioria dos animais, tem a necessidade e o desejo de abrigar sua prole sob confortável e seguro teto, provavelmente o da primeira casa que serve de lar à família que então se forma.

          Um homem, uma mulher, uma criança. Uma casa, um lar. Retrato da felicidade, quiçá.

          Mas, em alguns casos – na verdade mais numerosos do que seria desejável que o fossem – pode acontecer de o lar, conformado estreitamente em apenas um bem material, transmudar-se no signo da discórdia e do rompimento do retrato feliz de uma família consolidada. Afinal, quem é que não ouviu já falar no antigo gracejo, comum de ser contado e recontado entre os advogados, que afirma que esses profissionais, após a celebração de certas núpcias, apenas espreitam e aguardam o momento em que o meu bem (tratamento romantizado entre os que se amam) se transforme em meu bem (o grito de posse, a respeito do patrimônio familiar, por ocasião do rompimento da sociedade conjugal)?

          A partilha dos bens amealhados, no tempo em que meu bem significar apenas o reclamo possessório, costuma ser sempre muito disputada, bélica mesmo, e, por isso, dolorosa.

          No mais dos casos, contudo, a divisão obedecerá as regras já traçadas para aquele dos regimes de bens que norteou a conjugalidade que agora se dissipa e rompe. Obedecerá às normas pré-ordenadas pelo estatuto patrimonial dos consortes.

          Nem sempre será assim tão simples, no entanto.

          Para se examinar, pois, o perfil dos diferentes regimes de bens, mormente à face da nova Lei Civil (6), será útil rever os principais aspectos de cada um deles, bem assim alinhavar as principais modificações consolidadas pelo legislador da lei nova, e, finalmente, assinalar alguns dos eventuais problemas que o jurista, o operador do Direito e o aplicador da lei poderão enfrentar por conta da entrada em vigor do nosso Código Civil.

2.1. O regime de bens de eleição, assim escolhido pelos nubentes por meio de pacto antenupcial.

          Leve-se em conta, antes, que a nova Lei manteve aquela liberdade de os cônjuges expressarem a sua autonomia privada no que concerne ao regime de bens que desejam e escolhem – e que regerá seus interesses econômico-patrimoniais – sendo certo que o farão, então, exatamente como no direito positivo que ainda vige, por meio de pacto antenupcial (arts. 1639, 1640, § único e 1655, NCC). O pacto, caso elaborado pelos nubentes, deverá ser assentado, após o casamento, no Registro de Imóveis do domicílio conjugal, exatamente para que possa valer erga omnes, embora valha já, independentemente de registro, nas relações interpessoais dos cônjuges e entre eles e seus herdeiros.

          Mesmo o Código anterior, portanto, já admitia, como se sabe, que os nubentes escolhessem o seu estatuto patrimonial de casamento, sempre que não desejassem adotar o regime preferido pelo legislador pátrio, e exceto naquela hipótese que impunha o regime obrigatório da separação de bens (§ único, incisos I, II, III e IV do art. 258 do CCV), hipótese esta bastante revisitada e modificada pela doutrina e pela jurisprudência, nestas duas últimas décadas, especialmente (7).

          O pacto, para não padecer de nulidade, já se disse, deverá ser formalizado por meio de escritura pública, segundo a exigência do art. 1.653 do novo Código, que repete a regra do art. 256 do Código Beviláqua, que ainda vige. E mais: ele segue, como no Código Civil vigente, condicionado à realização do matrimônio. Ocorrendo a não realização das núpcias, o pacto se verá sem a sua respectiva eficácia jurídica, ainda que formalmente válido, tendo em vista não se tratar, na espécie, de negócio nulo.

          O art. 1.655 do novo Código Civil reescreve, com o mesmo viés sujeito a críticas, a norma contida no art. 257 do Código Civil de 1916, declarando ser nula convenção ou cláusula firmada no pacto antenupcial, que contravenha disposição absoluta da lei. No meu sentir, não teria sido necessário que o legislador incluísse, nesse passo, regra que é de caráter absoluto e geral, uma vez que qualquer convenção, qualquer pacto – e não apenas o pacto antenupcial – que atentar contra norma de ordem pública será cravado pelo estigma da nulidade.

          Contudo, se não houver qualquer convenção antenupcial estabelecida entre os nubentes, ou se, havendo, ela restar nula ou ineficaz, vigorará entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial (art. 1.640, NCC e art.258 do CC/1916).

          2.2. Na ausência de pacto antenupcial, vigorará, entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial, posto ser o regime legal.

          Regime legal de bens é aquele ao qual o Código dá preferência, isto é, é aquele da escolha posterior à vontade dos nubentes, escolha esta, agora, do próprio legislador que, no silêncio das partes, decide ser este – e não outro – o melhor estatuto de regência das relações patrimoniais do casamento. O regime legal do Código Civil ainda em vigor é o da comunhão limitada de bens, conforme determinado pelo art. 258 do CC/1916, com a redação que lhe deu a Lei do Divórcio, a Lei 6515/77.

          Antes do advento desta Lei, prevalecia, entre nós, o regime legal da comunhão universal de bens, estabelecendo a comunicação de todo o conjunto patrimonial dos cônjuges, quer fossem bens aprestos, vale dizer, os bens adquiridos antes da celebração das núpcias, quanto bens aqüestos, vale dizer, os bens adquiridos na constância do casamento, talvez porque, como se referem os doutrinadores históricos, foi sempre muito acentuada e forte a influência da Igreja nas relações matrimoniais, imaginando-as contraídas para se perpetuarem por toda a existência dos nubentes.

          O Código Civil de Miguel Reale manteve a mesma regra no seu art 1.640, dispondo que na falta de convenção ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial.

          Sobre as razões, ou fundamento, desta seleção do legislador da Lei do Divórcio e mantida pelo novo Código Civil, fico com as apontadas por Arnaldo Rizzardo (8) que atribui ao caráter contratual do casamento, o fato de se ter eleito, como regime legal, este que encerra a preservação do patrimônio de cada cônjuge, já existente antes de casar, admitindo a comunicação apenas dos bens amealhados na vigência da relação conjugal como fruto do esforço comum do marido e da mulher. Parece mesmo ser, este regime, aquele que melhor respeita a idéia de que o casamento é uma estreita comunhão de vida e que, portanto, os cônjuges devem ter os mesmos direitos sobre os bens adquiridos, na constância do matrimônio, como resultado do trabalho e do esforço comum. Dividem os cônjuges o produto econômico de sua sociedade nupcial, sem misturar riquezas oriundas de suas famílias de origem e que não tiveram o menor concurso do consorte na construção dos aprestos (9).

3. Os diversos regimes de bens elencados pelo legislador contemporâneo (Código Civil de 2002)
e a análise comparativa com o direito positivo que ainda vige (Código Civil de 1916).

          O novo Código Civil descreve e regulamenta quatro regimes de bens do casamento, vale dizer: a comunhão parcial, a comunhão universal, a total separação de bens e o regime de participação final nos aqüestos (arts. 1.672 a 1.686, NCC), este como a grande novidade da nova Lei, e que substitui o espaço legislativo antes destinado ao regime dotal, regulado pelo Código Bevilaqua, mas que não teve, de modo algum, qualquer repercussão que houvesse sido significativa, verdadeira letra morta, efetivamente, a qual, já não sem tempo, é excluída da regulamentação pátria.

          3.1. As disposições de caráter geral e a principiologia de regência econômica das relações conjugais, na nova Lei Civil.

          Guardando a mesma estrutura do Código de 1916, o Direito Patrimonial de Família do novo Código Civil – rubrica que não tem correspondência com o Código Bevilaqua – expõe preambularmente um corpo de normas que anuncia a principiologia deste conteúdo patrimonializado das relações conjugais, disciplinando a sua abrangência, a propriedade e a administração dos bens, bem como a fruição e a disposição deles, por parte do marido e/ou da mulher e, ainda, as obrigações que eles poderão eventualmente assumir (arts. 1639 a 1652, NCC).

          Nota-se, gratamente, pelo exame prévio e comparativo dos dois diplomas legais, que anda melhor o legislador atual, pois a estrutura formal e a redação escolhida para regulamentar o assunto é condizente com a proposta axiológica da nova Carta Constitucional Brasileira, de igualdade entre marido e mulher, deixando, felizmente, de se referir à mulher casada, para referir-se a marido e mulher, bem como deixando de lado a antiga e inócua, hoje, referência à presunção de autorização do marido a favor da mulher (como faz o art. 247 do Código Civil de 1916, ainda em vigor, entre nós).

          O art. 1.642 do novo Código, por sua vez, estabelece regras acerca da autonomia de administração (ainda que de certa forma limitada) dos cônjuges na manutenção e conservação do seu acervo comum, bem como estabelece o direito de demandar pela defesa e de reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis que, porventura, tenham sido doados ou transferidos pelo outro cônjuge ao concubino ou à concubina (10) , repetindo regra já anteriormente estampada no Código de 1916 (art. 248, IV e 1177) e dando por anulável a alienação assim produzida.

          Neste acento ainda preambular do direito patrimonial no casamento, segundo a normativa do novel Código, talvez a mais sofrida discrepância ou involução esteja contida nesse mesmo art. 1642, em seu inciso V (parte final), que dispôs sobre o direito de cada um dos cônjuges de reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo outro cônjuge ao concubino, desde que provado que os bens não foram adquiridos pelo esforço comum destes,[se o casal estiver separado de fato há mais de 5 (cinco) anos.] (grifos e destaques meus). Diz-se involução pelo fato de já restar assentado entre nós, há bom tempo, em ambiência jurisprudencial, que a separação de fato prolongada traz, como conseqüência em prol da justiça e da moralidade, a incomunicabilidade dos bens havidos por qualquer dos separados, no curso desta separação, tendo em vista a ausência do ânimo socioafetivo, na feliz expressão de Rolf Madaleno (11).

          Este jurista gaúcho diz, com propriedade (e tem toda a razão), que está pacificado pela jurisprudência brasileira que a separação fática acarreta inúmeros efeitos jurídicos, especialmente o da incomunicabilidade de bens entre cônjuges fatualmente separados […] e que não existe nenhum sentido lógico em manter comunicáveis durante cinco longos anos, bens hauridos em plena e irreversível separação de fato dos cônjuges, facilitando o risco do enriquecimento ilícito, pois o consorte faticamente separado poderá ser destinatário de uma meação composta por bens que não ajudou a adquirir (12).

          Nesses casos, o que desponta com clareza, e com exatidão se descreve, é aquela situação que determinado segmento muito lúcido da doutrina nacional denomina de casamento meramente residual. Segismundo Gontijo, inspirado em Thereza Alvim, diz que se trata de uma circunstância conjugal de cuja existência restou mero assentamento no registro público, e não pode prevalecer sobre a realidade fática de ele ter deixado de existir até mesmo sensorialmente para cada um dos cônjuges, bem como para a comunidade circundante que até os supõe casados com os atuais companheiros (13).

          É comumente repetido – e não é demais repeti-lo, também aqui, pois que preciso e precioso – o acórdão da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo que teve como relator o Desembargador Silvério Ribeiro, e que assim descreve a situação que está em tela, agora: […] não coaduna com os princípios de Justiça efetuar a partilha de patrimônio auferido por apenas um dos cônjuges, sem a ajuda do consorte, em razão de separação de fato prolongada, situação que geraria enriquecimento ilícito àquele que de forma alguma não teria contribuído para a geração de riqueza. O fundamental no regime da comunhão de bens – prossegue o acórdão famoso – é o animus societatis e a mútua contribuição para a formação de um patrimônio comum. Portanto, sem a idéia de sociedade e sem a união de esforços do casal para a formação desse patrimônio, afigurar-se-ia injusto, ilícito e imoral proceder ao partilhamento de bens conseguidos por um só dos cônjuges, estando o outro afastado da luta para a aquisição dos mesmos (14).

          O sentimento do injusto presente na voz dos Tribunais, como acontece com o acórdão mencionado, espalha-se por tantas outras decisões (15) e fortalece a idéia evolutiva do pensamento doutrinário e jurisprudencial, entre nós, sobre o assunto, já bem antes do criticado inciso V (última parte) do art. 1642 do novo Código vir a lume, por aprovação e sanção presidencial, de sorte que não é sem razão que paira a sensação de retrocesso, para a comunidade jurídica, à face da conservação da arcaica regra.

          Por isso, tal postura do legislador representa mesmo o engessamento das relações afetivas que se renovam, já que conviventes que não promoveram a sua precedente separação judicial e a correspondente partilha de seus bens conjugais, arriscam sofrer a invasão de seus bens, até cinco anos depois de iniciada a sua fática separação, se não ostentarem provas contundentes de que as suas atuais riquezas materiais decorreram do esforço comum do par convivente (16).

          É certo que, mesmo sendo pessoalmente partidária desta corrente que entende se dar a incomunicabilidade dos bens havidos por um dos cônjuges, no curso de prolongada separação de fato, não posso deixar de mencionar os vieses da corrente contrária, mesmo porque os que a sustentam merecem toda a consideração do ambiente jurídico, pelo fato de serem consagrados juristas nacionais, de nome e renome inscritos nas páginas do direito brasileiro, os quais reúno, aqui, na pessoa do ilustre professor Eduardo Oliveira Leite que, ao responder uma consulta sobre o tema, em 1992, expandiu suas fundamentadas considerações em sentido contrário. A formalidade ali estampada prendeu-se, àquela época, ao princípio maior da imutabilidade do regime patrimonial de bens entre cônjuges, presente no Código de 1916, mas já ausente do Código Civil por entrar em vigor, em 2003. De toda a sorte, e em homenagem ao pensamento distinto, registro a informação e a fonte de consulta ao referido, e muito bem escrito, parecer (17).

          Quanto à iniciativa judicial conferida a ambos os cônjuges de demandarem pelas ações previstas nas hipóteses de infração aos incisos III, IV e V deste art. 1.642, ainda em pauta de menção, o que se anota, gratamente, foi o cuidado do legislador da nova Lei Civil de atentar para a igualdade constitucional destes partícipes da ordem conjugal uma vez que, na regra anterior (que ainda vige, até 2003) tal iniciativa é conferida somente à mulher ou aos seus herdeiros (art. 249, CC/1916), exatamente porque a administração dos bens conjugais, até a promulgação da atual Constituição Federal, competia somente ao marido, participando a mulher como mera colaboradora do lar.

          Ainda neste lapso de apreciação inicial das disposições do novo Código sobre o estatuto patrimonial de regência das relações econômicas entre os cônjuges, penso ser assunto da mais alta importância e indagação a substancial alteração realizada, acerca da passagem de imutabilidade para mutabilidade do regime de bens originalmente escolhido (18).

          O art. 1639, em seu § 2º, dispôs ser admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.

          Sempre se ladearam, entre nós, mormente em sede jurisprudencial, as opiniões controvertidas acerca de ser, ou não, mais benéfica que prejudicial, a conversão da disposição legislativa de proibição da mudança do regime de bens, para um sistema de permissão, ainda que sob rígidas regras de apreciação judicial e resguardo dos direito de terceiros.

          A mais antiga e acentuada posição acerca da possibilidade de reversão encontra-se, entre nós, na opinião de Orlando Gomes que, desde a década de 80 já colocava à exposição, as entranhas do assunto, perguntando quais as razões que teriam levado o legislador de 1916 a traçar a regra da imutabilidade do regime de bens, e, principalmente, se essas razões ainda sobreviviam, a justificar a mantença da regra (19). O jurista ilustre demonstrava a sua estranheza quanto ao assunto, especialmente quando trazia à luz o fato de poderem, os nubentes, livremente escolher o seu regime de bens, antes das núpcias, mas não poderem reenquadrá-lo, quando e se fosse conveniente ao casamento, respeitados, claro, os direitos de terceiros. Tanta liberdade numa fase, e uma proibição peremptória na fase imediatamente seguinte, em nome de quais princípios, de quais valores ou de qual segurança, nunca se saberá bem (20).

          Sem dúvida, os partícipes desta corrente de possibilidade de alteração do regime de bens do casamento, na constância dele, recomendavam, como bem o fez o próprio Orlando Gomes, que todas as medidas de segurança e preservação de direitos de terceiros, principalmente, fossem adotadas. Como escreve Rolf Madaleno (21), o jurista baiano já aconselhava que a mudança do regime ficasse subordinada à autorização judicial, a requerimento judicial de ambos os cônjuges, que precisariam justificar a sua pretensão, verificando o juiz da plausibilidade do seu deferimento e preservando a segurança de terceiros, mormente credores, a fim de que não fossem prejudicados no exercício de seus direitos, ressalvando em qualquer caso essa hipótese, com ampla publicidade da sentença a ser transcrita no registro próprio.

          Como se vê, e uma vez mais, tinha razão o professor Orlando Gomes, tanto é que o legislador brasileiro adotou exatamente a sua opinião a respeito do assunto, bem como as cautelas que ele sugeriu (art. 1639, § 2º, NCC).

          É bem provável que o legislador anterior, em 1899, tenha preferido a regra da imutabilidade porque temeu, àquela época, que o cônjuge mais frágil na relação conjugal – a mulher, a bem da verdade, e na maioria dos casos do passado – fosse enganado por razões muito distintas da verdadeira intenção do outro cônjuge, se houvesse ficado em aberto a possibilidade da alteração de regime. Ou mesmo que a alteração camuflasse apenas uma simulação ou uma fraude a credores, desativando o patrimônio responsável pelo cumprimento de obrigações por meio de um expediente doloso, como esse, em certos casos.

          Parece bem ter razão Silvio de Salvo Venosa (22) quando, a respeito do que se cuida, menciona que a proteção do legislador de 1916 corria a favor da mulher casada do século XIX, já que era tida como dotada de menor experiência no trato das riquezas econômicas do casamento, quase sempre administradas pelo marido.

          Compreensível, quiçá, e então, a cautela do legislador de antanho, mas completamente incompreensíveis suas razões nos dias atuais, quando a igualdade entre marido e mulher, na esfera do casamento, não é apenas uma figuração constitucional, mas, bem mais que isso, uma realidade da contemporaneidade.

          O mesmo e festejado Rolf Madaleno escreve, e com toda a razão, que considerando a igualdade dos cônjuges e dos sexos, consagrada pela Carta Política de 1988, soaria sobremaneira herege aduzir que em plena era de globalização, com absoluta identidade de capacidade e de compreensão dos casais, ainda pudesse um dos consortes apenas por seu gênero sexual, ser considerado mais frágil, mais ingênuo e com menor tirocínio mental do que o seu parceiro conjugal. Sob esse prisma, desacolhe a moderna doutrina a defesa intransigente da imutabilidade do regime de bens, pois homem e mulher devem gozar da livre autonomia de vontade para decidirem refletir acerca da mudança incidental do seu regime patrimonial de bens, sem que o legislador possa seguir presumindo que um deles possa abusar da fraqueza do outro (23).

          Além disso, é interessante anotar a opinião de Débora Gozzo (24), segundo a qual a maioria dos nubentes se sente constrangida para discutir questões de cunho patrimonial antes do casamento, entendendo que essa natural inibição inicial poderia levar a escolhas erradas quanto ao regime, além de instalar um clima mais propício para os casamentos por interesse. Seria certo então deduzir que com o passar do tempo, quanto mais sedimentado o relacionamento conjugal, quanto maior a intimidade dos cônjuges quanto mais fortalecidos os seus vínculos familiares e as suas certezas afetivas, mais autorizada estaria a modificação de seu regime patrimonial no curso do casamento, facilitando a correção dos rumos escolhidos quando ainda eram pessoas jovens e inexperientes (25).

          Mas, enfim, resta a pergunta que foi deixada inicialmente, no enfrentamento desse assunto: a alteração significativa trazida pelo novo Código Civil, admitindo a possibilidade de modificação do regime de bens do casamento, na sua constância, trará mais benefícios que prejuízos às relações familiares e às relações obrigacionais, no seio da sociedade brasileira, a partir de 2003? O fato de ter se rendido, a novel legislação, a essa tendência mundial à volta da mutabilidade do regime de bens do casamento, terá conseguido mesmo a proeza de ter extirpado os malefícios do passado, ter consolidado a situação jurídica da mulher no casamento, ter cercado o deferimento da alteração do regime com as necessárias e rígidas cautelas assecuratórias de direitos de terceiros, tanto quanto baste para ser boa a transformação perpetrada, ou, ao contrário, terá apenas admitido que o abuso tenda a aumentar, restando a cargo do judiciário mais essa tarefa de buscar adivinhar as verdadeiras intenções que podem se esconder nas dobras de um pedido bilateral, dos cônjuges, a respeito da modificação das regras de regência de seu estatuto patrimonial de casamento?

          Sabe-se, pelo peso da verdade, que não será lei ou norma que, em qualquer circunstância, irá coibir as práticas ilícitas e as operações camufladas. Daí, a buscar com desmesurado cuidado uma resposta para tal indagação, me parece excesso de racionalidade. Os atos viciados, e por isso nulos ou anuláveis, estão pululando todo o tempo na realidade da vida negocial e na esfera econômica dos homens, quer a norma jurídica seja mais dura ou mais rígida, quer a opção legislativa tenda para um lado ou para outro, nas considerações mais polemizadas, como é o caso desse assunto da mutabilidade ou imutabilidade do regime matrimonial de bens.

          Por isso, segundo a minha visão pessoal, só o tempo dirá, e por mera consideração estatística, sob a égide de qual das tendências legislativas (a de 1916, pela imutabilidade, ou a de 2002, pela mutabilidade) terá ocorrido o maior número de casos de alteração do estatuto patrimonial calcada em razões que não as verdadeiramente apontadas como justificadoras do pedido. Penso assim justamente por considerar que, mesmo antes da aprovação do novo Código, as regras mais fechadas da legislação Bevilaqua já se encontravam abrandadas, quer pela possibilidade de doações entre cônjuges, quer pela edição da Súmula 377, do STF, que transformou o regime legal ou obrigatório da separação de bens (§ único do art. 258, CC/1916) em regime de comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento, quer pela promulgação da Lei do Divórcio e seu art. 45 que abrandou a regra dura do regime obrigatório (26), ou quer, finalmente, pela possibilidade de se realizar pacto antenupcial condicionado, o que admitiria a possibilidade de alteração incidental do regime adotado, pela superveniência de outro fato derivado do implemento da condição como, por exemplo, o nascimento de um filho.

          Como diz Rolf Madaleno, as possibilidades todas de fraude, simulação, ou mau uso da regra mais branda estampada no Código Civil de Miguel Reale, só o tempo é que dirá, e só as ocorrências é que cuidarão de demonstrar se o legislador acertou ao revogar o princípio da imutabilidade do regime de bens, ou se seguirá prevalecendo o nítido sentimento de que às vésperas da ruptura não anunciada, mesmo nos dias de hoje, um cônjuge ainda consegue abusar da fraqueza do outro (27).

3.2. As modalidades de regime de bens do casamento adotadas pelo novo Código Civil. (28)

          3.2.1. Do regime de comunhão parcial.

          Como já se disse, este é o regime oficial de bens, no casamento, selecionado, pois, pelo legislador pátrio, desde a promulgação da Lei do Divórcio, em 1977, pelo qual comunicar-se-ão apenas os bens adquiridos na constância do casamento, e revelando, por isso mesmo, um acervo de bens que pertencerão exclusivamente ao marido, ou exclusivamente à mulher, ou que pertencerão a ambos.

          Com a dissolução da conjugalidade, restará comunicável, então – e por isso passível de partilha entre os cônjuges que se afastam – o acervo dos bens comuns, ficando excluídos, dessa partilha, os bens ressalvados pelos arts. 1659 e 1661 do novo Código Civil, dispositivos esses que repetem as mesmas exclusões já anteriormente previstas pelos arts. 269 e 272 do Código Civil de 1916. Excluídos estavam, e permanecem, então, os bens que cada cônjuge já possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do matrimônio por doação, sucessão ou sub-rogados em seu lugar (art.269, inciso I, CC/1916 e 1659, inciso I, CC/2003).

          Relativamente aos bens sub-rogados, anote-se que caminhou bem o novel legislador, ao incluir disposição que os alcança, para deles estabelecer, também, a incomunicabilidade, já evidente por todas as letras, mas não expressamente prevista no Código anterior.

          Nas relações de bens que se excluem e de bens que se comunicam, nesse regime, poucas foram as alterações, sendo que se deve apontar, mais nitidamente, para o fato de a nova Lei ter excluído da comunicabilidade os frutos civis do trabalho, ou indústria de cada cônjuge, que integravam o rol, na legislação de 1916 (art. 271, VI). Não foi a melhor solução esta, encontrada pelo legislador do novo Código, de retirar tais frutos do rol dos bens que se comunicam e encaixá-los, assim simplesmente, no rol dos que não se comunicam. Na realidade, melhor teria sido se o Código que entrará em vigor tivesse apenas declarado comunicáveis os frutos civis do trabalho ou indústria dos cônjuges, quer no regime da comunhão parcial, quer no regime da comunicação universal, por se tratar especialmente das economias de cada cônjuge, oriundas do seu próprio trabalho e resultantes, no mais das vezes, dos naturais sacrifícios que marido e mulher realizam, abdicando de viagens, supérfluos, reduzindo despesas, consumos e serviços, em intensa e esforçada economia doméstica para somar valores destinados ao futuro dos filhos ou à velhice dos consortes. (29)

          Mas se esta dose de sacrifício não for de ambos, por acaso, e se apenas um deles reservar as suas economias havidas dos rendimentos de seu trabalho, em detrimento do outro que, em significativo número de vezes sequer atividade remunerada desempenha, além das tarefas do lar, propriamente ditas, então é possível que ocorra uma enorme injustiça, em conseqüência da opção realizada pelo legislador de incluir tais rendimentos entre os que não se comunicam com o outro cônjuge.

          Por outra visão, poderá ocorrer, também, que o cônjuge que desempenha uma atividade profissional, melhor remunerada, esteja encarregado de arcar com um mais significativo número de encargos doméstico-financeiros, enquanto que o outro, até mesmo por ganhar menos, seja capaz de maiores peripécias econômicas, amealhando um acervo de bens resultantes desta economia e que não se comunicarão com o seu consorte, em caso de dissolução da sociedade matrimonial.

          Mas, enfim, quer por qual lado se examine a questão, parece que sempre haverá uma conseqüência que pode ser desastrosa, derivada desta ingênua tentativa do legislador atual de melhorar discrepâncias, entre regimes, ocorridas no Código de 1916.

          Os artigos derradeiros do capítulo do novo Código, acerca do regime da comunhão parcial – os arts. 1663 a 1666 – oferecem uma redação mais objetiva à administração conjugal do patrimônio comum, em redação contextualizada com a Lei nº 4.121 de 1962 (Estatuto da Mulher Casada) e com a igualdade constitucional dos cônjuges, como ao seu modo e com as suas limitações já regulavam os artigos 274 e 275 do Código de 1916, conforme bem analisa Rolf Madaleno.

          3.2.2. Do regime de comunhão universal.

          Este regime foi aquele que, entre nós, e até o advento da Lei do Divórcio, posicionou-se como o regime legal, casando-se sob sua regulamentação a esmagadora maioria de brasileiros, até 1977.

          Conforme suas regras, comunicam-se entre os cônjuges todos os seus bens presentes e futuros, além de suas dívidas passivas, ocorrendo um enorme amálgama entre os bens trazidos para o casamento pela mulher e pelo homem, bem como aqueles que serão adquiridos depois, formando um único e indivisível acervo comum, passando, cada um dos cônjuges, a ter o direito à metade ideal do patrimônio comum e das dívidas comuns. (30)

          No novo Código Civil, o regime da comunhão universal de bens, o regime da unificação patrimonial mais completa, encontra-se disciplinado entre os arts. 1667 a 1671.

          A redação mais enxuta do art. 1668 do novo Código, e seus cinco incisos, repetem – conforme comenta Rolf Madaleno – embora não na mesma ordem, os incisos I, II, III, VI, VII, VIII, IX (parcialmente), XI e XIII do art. 263 do Código Civil de 1916.

          Restarão revogados no futuro – prossegue o referido autor – os incisos IV, V, IX (parcialmente), X e XII desse mesmo artigo 263 do Código que ainda vige. São disposições respeitantes ao regime dotal, revogado pela nova codificação, à fiança prestada pelo marido sem a outorga da mulher e a figura do bem reservado que já havia desaparecido do direito brasileiro com a igualdade constitucional dos cônjuges, deixando de admitir que pudesse seguir a mulher sendo privilegiada com a não comunicação dos bens que, uma vez comprados com os seus próprios recursos financeiros, restavam considerados como sendo bens de sua exclusiva propriedade. (31)

          3.2.3. Do regime de separação de bens. (32)

          Relativamente a este regime de bens, isto é, o regime que visa promover a completa separação patrimonial do acervo de bens pertencente a cada um dos cônjuges, alinho-me, claramente, entre aqueles que anotam ter sido um retrocesso do legislador contemporâneo a inclusão das arcaicas regras contidas na legislação de 1916, estas em franca decadência, depois de fortemente modificadas pela Súmula 377 do STF.

          O novo Código Civil, assim como o Código vigente, em apenas três artigos reescreve, ainda que com redação melhorada, o inteiro contexto proibitivo já anteriormente expressado pelos arts. 276 e 277 do Código Bevilaqua.

          Assim, a nova legislação, no art. 1641 declara as circunstâncias que levarão à obrigatoriedade da separação total, reproduzindo, de certa forma, o que já era invocado, desde 1916, como a circunstância de alguém se casar com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento, ou a circunstância de ter mais de 60 anos o nubente (33), ou, ainda, a circunstância de depender, a pessoa que quer se casar, de suprimento judicial.

          A inserção deste dispositivo no novo Código trouxe a renovação de sua aplicação cogente, quiçá, mesmo em face da extensa e robusta jurisprudência de abrandamento, consolidada na Súmula 377 do STF (34), revelando-se como significativo e preocupante retrocesso.

          Rolf Madaleno identifica os problemas que poderão surgir e adverte que a ausência de revogação expressa da Súmula 377 vai ocasionar enormes divergências, sem saber se ela será ou não aplicável, após a entrada em vigor do novo Código Civil. Expressa o autor sua opinião, à face da mantença de um tal dispositivo legal, da seguinte maneira: manter a punição da adoção obrigatória de um regime sem comunicação de bens, porque pessoas se casaram sem observar as causas suspensivas da celebração do casamento (art.1.641, inciso I, do NCC) ou porque contavam com mais sessenta anos de idade (art. 1.641, inciso II do NCC), ou ainda porque casaram olvidando-se do necessário suprimento judicial (art. 1.641, inciso III do NCC), é ignorar princípios elementares de Direito Constitucional, respeitantes à igualdade das pessoas, que não podem ser discriminadas em função do seu sexo ou da sua idade, como se fossem causas naturais de incapacidade civil. Sobretudo – ele prossegue – porque atinge direito cravado na porta de entrada da Carta Política de 1988, cuja nova tábua de valores coloca em linha de prioridade o princípio da dignidade humana, cujos valores já vinham sendo preconizados pela Súmula 377 do STF, ao ordenar a comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento, como se estivesse tratando da comunhão parcial de bens. (35)

          Alinho-me, portanto, a esse modo de pensar. Se as dúvidas terão, ou não, procedência, só o tempo dirá. A história jurídica matrimonial brasileira nos dirá, depois.

          Antes de encerrar a análise deste regime de bens do casamento, o regime da separação total, não devo esquecer de mencionar que ele pode ser adotado, pelos nubentes, como fruto da eleição ou escolha, convencionando-lo por meio de pacto antenupcial. Se assim for, o regime em pauta vai se desvendar como um excelente regime patrimonial, no casamento, tendo em vista que ele representa exatamente o contrário disso, quer dizer, ele é a total ausência de regime patrimonial, mantendo bem separados e distintos os patrimônios do marido e da mulher.

          Talvez mesmo tenham integral razão aqueles que prognosticam ser este regime, quando convencionado pelos nubentes, o que se revela como o regime das futuras uniões conjugais […], na medida em que cada um dos cônjuges […] irá concorrer com as suas economias pessoais para atender às cargas específicas da sociedade afetiva, mantendo intactos os seus bens ou as suas fortunas no caso de separação. Especialmente quando se habilitam para um recasamento, conclui Rolf Madaleno, ocorrendo nessas ocasiões, uma forte influência econômica pelo temor de poder arcar com novo prejuízo de uma separação que já lhes tomou anteriormente, significativa parcela dos bens materiais. (36)

          3.2.4. Do regime de participação final nos aqüestos.

Cria, o legislador civil nacional, outro regime de bens, que vem ocupar o lugar deixado pelo regime dotal, sem que, no entanto, guarde relativamente a este qualquer semelhança. Ocupa o lugar, não as características. Ao contrário, o regime da participação final nos aqüestos guarda semelhanças e adquire características próprias a dois outros regimes, na medida em que se regulamenta, em seu nascedouro e suas constância por regras semelhantes às desenhadas pelo legislador para o regime da separação de bens, em que cada cônjuge administra livremente os bens que tenha trazido para a sociedade conjugal, assim como aqueles que adquirir, por si e exclusivamente, durante o desenrolar do matrimônio. Por outro lado, assume de empréstimo regras muito parecidas àquelas dispensadas ao regime da comunhão parcial, quando da dissolução da sociedade conjugal por separação, divórcio ou morte de um dos cônjuges.

          Nesse sentido, cada cônjuge possui patrimônio próprio, que administra e do qual pode dispor livremente, se de bens móveis se tratar, dependendo da outorga conjugal apenas para a alienação de eventuais bens imóveis (CC, arts. 1.672 e 1.673). Mas se diferencia do regime da separação de bens porquanto, no momento em que se dissolve a sociedade conjugal por rompimento dos laços entre vivos ou por morte de um dos membro do casal, o regime de bens como que se transmuda para adquirir características do regime da comunhão parcial, pelo que os bens adquiridos onerosamente e na constância do matrimônio serão tidos como bens comuns desde a sua aquisição, garantindo-se, assim, a meação ao cônjuge não-proprietário e não-administrador.

          Desta feita e porque afastado um dos cônjuges da administração dos bens adquiridos, traça o Código Civil uma série de disposições que, pormenorizadamente, visam disciplinar a apuração dos bens partíveis em meação, pelo valor e no montante verificados na data em que cessou a convivência dos cônjuges (art. 1.683), tudo para evitar se consubstancie qualquer espécie de lesão ao direito do cônjuge que até então figurava como não-proprietário e não-administrador.

          Assim é que o art. 1.674 determina quais os bens que se qualificam como bens aqüestos, excluindo dessa classe aqueles bens que cada um dos cônjuges possui já antes de convolar as justas núpcias, bem como aqueles bens que, no lugar daqueles primeiros se sub-rogaram (inciso I); exclui ainda os bens que sobrevieram ao cônjuge, na constância do casamento, mas em decorrência de liberalidade só a ele dirigida (posto que se instituída em favor de ambos, esse bem seria bem em co-propriedade dos mesmos) ou em decorrência de sucessão (inciso II); e exclui, por fim, as dívidas que sobre esses bens exclusivos pesem, uma vez que, não aproveitando esses bens ao outro cônjuge, a ele não podem também prejudicar (inciso III).

          O art. 1679 institui quotas iguais em créditos estabelecidos em decorrência do trabalho conjunto dos cônjuges, bem como determina o condomínio em mesmas condições na hipótese dos bens terem sido adquiridos na constância do casamento e com a comunhão de esforços laborais, pelo que, como co-proprietários desses bens, aos cônjuges será lícita a administração conjunta dos mesmos e, em caso de dissolução do matrimônio, ser-lhes-á lícito demandar a dissolução do condomínio, se possível e pelos modos legais. Caso contrário, podem optar pela venda do bem e a divisão do valor auferido.

          Em seguida o Código traça regras para que terceiros tenham ciência da real titularidade dos bens pertencentes aos membros do casal que se uniu em matrimônio e que escolheu esse novel regime para lhes reger as relações patrimoniais. Assim é que pelo art. 1.680, presume-se que as coisas móveis, perante os credores de um dos membros do casal, ao devedor pertencem, salvo se o cônjuge não devedor conseguir provar que o bem sob litígio é bem de seu uso pessoal, como uma linha telefônica utilizada exclusivamente pelo não-devedor, uma linha de telefonia móvel nessas mesmas condições, um veículo automotor utilizado da mesma forma.

          No que aos bens imóveis respeita, o Código repete o velho princípio de que titular do domínio é aquele que constar do registro, mas excepciona no parágrafo único do art. 1.681, dispondo que uma vez impugnada a titularidade do bem (por um credor do cônjuge não-proprietário, por exemplo), caberá ao proprietário provar a aquisição regular do bem ou dos bens.

          O Código desenha, ainda, as regras aplicáveis ao caso de o cônjuge proprietário e administrador ter obrado em detrimento da meação futura, quer por ter alienado bens sem a necessária outorga do seu comparsa, ainda que gratuitamente, quer por ter contraído dívidas que em nada aproveitaram à sociedade conjugal.

          Assim, quando da verificação do montante dos bens aqüestos os valores dos bens que tenham sido doados por um dos cônjuges em detrimento da meação do outro, porquanto pendente da necessária autorização conjugal, serão apurados pelo valor que possuiriam no momento mesmo da dissolução, devendo ser computados no monte como forma de se repor a parte lesada, isso se o cônjuge prejudicado ou seus herdeiros não optarem por reivindicar o bem doado, direito que se lhes assiste (art. 1.675). Para Rolf Madaleno, possível é, ainda, a compensação do bem doado por outro de mesmo valor, se com isso concordar o prejudicado (37). O mesmo se dá com os bens alienados em detrimento da meação (art. 1.676).

          Relativamente às dívidas contraídas por apenas um dos cônjuges e posteriormente ao casamento (porquanto as anteriores só ao devedor digam respeito), por elas responderá o cônjuge que a contraiu, salvo se provar que, de alguma forma, total ou parcialmente, reverteu o crédito tomado em favor do outro, quando, então, este último também responderá (art. 1.677).

          Na hipótese de um cônjuge solver dívida contraída pelo outro e em seu benefício exclusivo, poderá o que pagou com seus bens exclusivos imputar tal dívida paga à meação do devedor beneficiado (art. 1.678).

          Em qualquer hipótese, as dívidas exclusivas de um dos cônjuges que sejam superiores à sua meação não podem obrigar nem ao outro cônjuge, nem aos herdeiros do devedor, caso se trate de dissolução da sociedade conjugal por morte, conforme dispõe o art. 1.686.

          Verificado o montante e descontadas as dívidas imputáveis em comum ou a cada qual do s cônjuges pelas regras assinaladas, há de se proceder à partição do patrimônio. Mas pode ser que a divisão de todos os bens em natureza não seja aconselhável, pelo que é possível que se proceda ao cálculo do valor de alguns bens para que o cônjuge não-proprietário receba sua parte em dinheiro. Se não for possível o pagamento em espécie pelo cônjuge proprietário, é permitida, mediante apreciação judicial, a avaliação e venda de tantos bens quantos bastarem para ultimar a partilha (art. 1684).

          Para o caso de dissolução da sociedade por morte de um dos cônjuges, verificar-se-á o monte sucessível após a separação dos bens conforme as regras traçadas acima, entrando então os herdeiros (descendentes, ascendentes ou mesmo o cônjuge supérstite, em sendo esse o caso) nos bens que constituam a meação do cônjuge morto e em seus bens exclusivos, tudo de acordo com a disposição do art. 1.685.

Notas

As considerações que a autora faz, nesse sub-item deste estudo já foram igualmente registradas, em uma conferência denominada Família e Casamento em evolução, proferida em 15.04.1999, no I Seminário "Desafios e perspectivas do Direito de Família" promovido pela Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná – FEMPAR e do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.

Gustavo Tepedino. "Novas formas de entidades familiares: efeitos do casamento e da família não fundada no matrimônio". Temas de Direito Civil, p. 326.

Para aprofundar este assunto, v. Silvana Maria Carbonera. "O papel jurídico do afeto nas relações de família". Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Coord. Luiz Edson Fachin, p. 273 e seguintes.

Direito de Família, Rio, 1889, p. 98, citado por Daniela Maria Cilento Morsello, no artigo denominado "O regime de bens entre os cônjuges, no Projeto de Código Civil". Revista do Advogado, nº 58, p. 91-95.

Leia-se, a respeito, o artigo de Euclides de Oliveira denominado "Separação de fato – Comunhão de bens – Cessação", publicado na Revista Brasileira de Direito de Família, nº 5, p. 142-154.

Novo Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

O mencionado art 258, § único, incisos I a IV do Código Civil de 1916, foi abrandado pela Súmula 377 do STF, pela qual: "No regime de separação legal de bens comunicam-se os adquiridos na constância do casamento". Na prática, como bem esclarece Rolf Madaleno ("Regime de bens entre os cônjuges", na obra coletiva Direito de Família e o novo Código Civil), a Súmula 377 do STF elimina o regime obrigatório da separação de bens, subsistindo apenas o regime convencional da separação de bens. Nessa direção, registra o autor gaúcho, pode ser consultado o Recurso Especial nº 208.640 – RS, do STJ, da 3ª Turma, j. 15.02.01, sendo Relator o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito e com essa ementa: "Casamento. Separação obrigatória. Súmula nº 377 do Supremo Tribunal Federal. Precedentes da Corte. 1. Não violenta regra jurídica federal o julgado que admite a comunhão dos aqüestos, mesmo em regime de separação obrigatória, na linha de precedentes desta Turma. 2. Recurso especial não conhecido." Por outro lado – e ainda é Rolf Madaleno quem completa – a jurisprudência também vinha abrandando o rigor do inciso II, deste art. 258, § único, quando impõe a adoção cogente do regime da separação de bens em casamentos de homem maior de 60 e mulher maior de 50 anos de idade. Aresto nesse sentido pode ser conferido na Apelação Cível nº 007.512-4/2-00 da 2ª Câmara de Direito Privado do TJSP, j. 18.8.1998, sendo Relator o Desembargador Cezar Peluso e publicado na Revista de Direito de Família do IBDFAM, da Editora Síntese, Porto Alegre, vol. 1, 1999, p. 98 e seguintes.

Arnaldo Rizzardo. Direito de Família, vol. I, p. 275-276.

Conforme Rolf Madaleno, ao referir-se à lição de José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz.

Entenda-se aqui, como já muito bem explica Rolf Madaleno no capítulo que escreveu para pertencer à obra coletiva publicada em 2001 (1ª edição) pela Editora Del Rey e nomeada Direito de Família e o novo Código Civil, que ‘a expressão concubina não respeita à convivência estável, mas sim à figura da amante, uma relação concomitante ao casamento e portanto, típica de infidelidade ou de adultério conjugal.’

Idem, ibdem.

Idem, ibdem, p. 158 (1ª edição).

Segismundo Gontijo. "Do regime de bens na separação de fato". RT, n° 735, p. 131-160.

TJSP, 3ª C., AC 188.670-1/4, J.11.05.1993, v.u., conforme mencionado por Euclides de Oliveira, no ótimo artigo sobre o assunto, já mencionado em nota anterior (n. 7).

Confira-se, ainda com Euclides de Oliveira, no mesmo artigo já mencionado.

Rolf Madaleno. idem, ibdem.

Eduardo Oliveira Leite. "Aquisição de bens durante a separação de fato". Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, vol. 59, p. 139-149.

O regime jurídico brasileiro aceita, no entanto, e desde 1977, uma especialíssima possibilidade de alteração do regime de bens da relação matrimonial. Trata-se da hipótese aventada no § 5º do art. 7° da Lei de Introdução ao Código Civil, com a redação que lhe foi dado pela mesma Lei do Divórcio atrás referida. Este parágrafo autoriza o estrangeiro que adquirir a nacionalidade brasileira pelo processo da naturalização e sendo ele casado sob um regime de bens que se diferencie do regime da comunhão parcial, que requeira a adoção deste último regime, no momento da entrega do decreto de naturalização, mediante expressa autorização do cônjuge e respeitados os direitos de terceiro, procedendo-se ao registro de tal modificação.

Na exposição de motivos de seu Anteprojeto ao Código Civil, Orlando Gomes já havia defendido: Tão inconveniente é a imutabilidade absoluta como a variabilidade incondicionada. Inadmissível seria a permissão para modificar o regime de bens pelo simples acordo de vontade dos interessados. O Anteprojeto aceita uma solução eqüidistante de extremos, ao permitir a modificação do regime matrimonial a requerimento dos cônjuges, havendo a decisão judicial que a defira, o que implica a necessidade de justificar a pretensão e retira do arbítrio dos cônjuges a mudança.

Orlando Gomes. O novo Direito de Família, p. 19-20.

Rolf Madaleno. Idem, ibdem.

Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil, Direito de Família, vol. V, p. 150.

Rolf Madaleno. Idem, ibdem.

Também registrada por Rolf Madaleno, no precioso capítulo de livro já citado.

Débora Gozzo. Pacto antenupcial, p. 126-127.

Art. 45 da Lei do Divórcio: Quando o casamento se seguir a uma comunhão de vida entre os nubentes, existente antes de 28 de junho de 1977, que haja perdurado por dez anos consecutivos ou da qual tenham perdurados filhos, o regime matrimonial de bens será estabelecido livremente, não se lhe aplicando o disposto no art. 258, § único, II, do Código Civil.

Rolf Madaleno. Idem, ibdem.

As anotações que alinhavo, a respeito dos diversos regimes de bens, à luz da nova legislação civil brasileira, para os contornos deste estudo, retiro-as, principalmente da excelente análise já realizada por Rolf Madaleno – ilustre colega de IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) – a quem rendo minha especialíssima homenagem (Vide o capítulo – já tantas vezes referido – que ele escreveu na obra coletiva já referida – e da qual igualmente participo –, denominada Direito de Família e o novo Código Civil Brasileiro, capítulo esse intitulado "O regime de bens entre os cônjuges").

Rolf Madaleno. Idem, ibdem.

Conf. Maria Helena Diniz. Código Civil anotado, p. 244.

Idem, ibdem.

Este item é tomado – quase que integralmente – da referida construção capitular de Rolf Madaleno inserida na obra coletiva já mencionada, denominada Direito de Família e o novo Código civil Brasileiro, Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 2001, da qual esta autora também faz parte.

O Projeto de Lei nº 6.960/2002, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza, que visa dar nova redação a inúmeros artigos do Código Civil de 2002, propõe aumentar de 60 para 70 anos esse limite etário para os efeitos da proibição de livre adoção de regime de bens.

Súmula 377 do STF: "No regime da separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento".

Rolf Madaleno. Idem, ibdem.

Idem, ibdem.

Rolf Madaleno. Idem, p. 173.

Referências Bibliografias

          CARBONERA, Silvana Maria. "O papel jurídico do afeto nas relações de família". Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Coord. Luiz Edson Fachin, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1998.

          DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 1995.

          GOMES, Orlando. O novo Direito de Família. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1984.

          GONTIJO, Segismundo. "Do regime de bens na separação de fato". RT, n° 735, jan/1997, p. 131-160.

          GOZZO, Débora. Pacto antenupcial. São Paulo: Saraiva, 1992.

          LEITE, Eduardo Oliveira. "Aquisição de bens durante a separação de fato". Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, vol. 59, jan-mar/1992, p. 139-149.

          MADALENO, Rolf. "Regime de bens entre os cônjuges". Direito de Família e o novo Código Civil. Coord. Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2001.

          MORSELLO, Daniela Maria Cilento. "O regime de bens entre os cônjuges, no Projeto de Código Civil". Revista do Advogado, nº 58, mar/2000, p. 91-95.

          OLIVEIRA, Euclides de. "Separação de fato – Comunhão de bens – Cessação". Revista Brasileira de Direito de Família, nº 5, abr-jun/2000, p. 142-154.

          RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família, vol. I, Rio de Janeiro: AIDE, 1994.

          TEPEDINO, Gustavo. "Novas formas de entidades familiares: efeitos do casamento e da família não fundada no matrimônio". Temas de Direito Civil. Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1999.

          VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: vol. V, Direito de Família. São Paulo: Atlas, 2001.

   


 REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka   –   Procuradora Federal em São Paulo (SP); Doutora em Direito pela USP; Professora de Direito Civil da USP e Diretora da Região Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam)

 


Diferenças entre as sentenças de pronúncia e de condenação no Júri Popular

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* Felipe Luiz Machado Barros

1. INTRODUÇÃO

        O presente trabalho tem a finalidade de expor de maneira prática e didática o conteúdo semântico e formal dos institutos de Direito Processual Penal acima mencionados, de forma que ao final sejam elencadas as principais diferenças entre as sentenças de pronúncia e condenatória no âmbito do Tribunal do Júri.

2. BREVES COMENTÁRIOS ACERCA DO TRIBUNAL DO JÚRI

        Antes de estudarmos as sentenças de pronúncia e de condenação no Tribunal do Júri, vejamos qual o conceito deste que é o mais popular e famoso instituto de nosso ordenamento jurídico-processual penal, pois, afinal de contas, qual o estudante de Direito que nunca ouviu falar, desde os primeiros passos em uma faculdade, das audiências do Júri Popular? Passemos, então, a uma análise conceitual deste instituto.

        Sem dúvida alguma, o Tribunal do Júri é o mais romântico e democrático dos institutos de Direito Processual Penal, tendo sido criado para proteger os cidadãos contra tiranias e perseguições, de forma que prevalecesse a democracia pelo julgamento do homem pelos seus próprios pares. Não obstante estarmos de acordo com ideais tão essenciais à feitura da justiça, verificamos que hoje em dia há uma subversão à essência do Júri, pela total falta de um justo julgamento dos acusados. Ao dizermos justo julgamento, não estamos nos referindo ao júri popular como se este fosse um tribunal de exceção; estamos falando, sim, que existe um grande despreparo, até mesmo psicológico, daquelas pessoas que são escolhidas para compor a tribuna popular, de forma que, ao serem abordadas por advogados ou promotores que utilizam-se de artifícios de ordem "sentimental", são levadas a julgar de acordo com suas emoções, revelando uma total atecnia, que, na maioria das vezes, acarreta absolvição de um acusado o qual, ao acaso fosse processado dentro de critérios estritamente técnicos, sem sombra de dúvidas, restaria condenado. Outro fator de fundamental importância para o impedimento de um justo julgamento por parte dos acusados em um júri popular é o fator político. Principalmente nas comarcas do interior de nosso Brasil verificamos que as decisões políticas interferem de sobremaneira no pesar de todas aquelas pessoas imbuídas da tarefa de compor o corpo de jurados, de tal forma a ser escolhido "a dedo" o conselho de sentença, a fim de que aquele que procura a via da corrupção do sistema, pelo uso da "politicagem" (parodiando os dizeres do eminente Prof. Paulo Lopo Saraiva), tenha um "justo julgamento". Enfim, verificamos, até mesmo pela maior profissionalização do juiz de direito, ser dispensável o Tribunal do Júri, pelo menos nas comarcas do interior, de forma que esperamos que algum dia prevaleça a técnica sobre o emocional, caso o júri popular não seja modificado, a fim de que os culpados paguem aqui pelos seus atos ilícitos.

        Mas, e qual o conceito de Tribunal do Júri? LEIB SOIBELMAN, em sua Enciclopédia Jurídica (Vol. II, Ed. Rio) nos fornece um conceito geral e bastante técnico: "Tribunal composto de jurados sob a presidência de um juiz togado, cabendo àquele decidir da responsabilidade do réu (questões de fato) e a este a fixação da pena em função das respostas". Conforme os ensinamentos dos FÜHRER, em Resumo de Direito Processual Penal (Vol. VI, Ed. Malheiros, 1999), é o Tribunal do Júri "um órgão de 1ª instância, ou 1º grau, da Justiça Comum", podendo ser da esfera estadual ou federal. É composto de 1 juiz de direito, que é o seu presidente, e de 21 jurados, sorteados entre os alistados. Apenas 7 destes 21 formam o conselho de sentença, em cada sessão. E a competência do Júri, qual seria? Bem, esta nos é fornecida pela CF/88, em seu art. 5º, XXXVIII, sendo competente para julgar os casos que versem sobre crimes dolosos contra a vida, podendo lei ordinária ampliar eventualmente esta competência.

        Enfim, neste trecho do trabalho expomos de maneira bem efêmera o que seria o Tribunal do Júri, sua organização e sua competência, apenas para fornecer subsídios introdutórios à matéria central do trabalho, dependente que é do tema já abordado, qual sejam, as sentenças de pronúncia e condenatória prolatadas em sede de júri popular. É o passo seguinte a se tomar em nosso breve estudo.

3. A SENTENÇA DE PRONÚNCIA. CONCEITO. MOMENTO EM QUE É PROFERIDA. NATUREZA JURÍDICA. PRESSUPOSTOS. A FORMA DA PRONÚNCIA.

        Conceito. Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná (RT 544/425), é a sentença de pronúncia mero juízo de admissibilidade, cujo objetivo é submeter o acusado ao julgamento popular.

        Momento em que é proferida. A pronúncia encontra-se, doutrinariamente falando, na fase denominada "sumário de culpa", que é a primeira fase do procedimento do Júri, indo do recebimento da denúncia até a sentença pronunciativa. Aí se dá o exame da admissibilidade da acusação, partindo-se ou não para um julgamento popular. Outro aspecto importante a ser analisado é que na oportunidade da pronúncia outras providências pode o juiz tomar, preterindo-se o pronunciamento. É o caso da ocorrência da impronúncia (quando há negativa de admissibilidade), absolvição sumária (quando existir alguma excludente de ilicitude) ou desclassificação (quando o crime sub examine não for considerado doloso contra a vida, fugindo da competência do júri popular e indo para a álea do Juiz singular).

        Natureza jurídica. A natureza jurídica desta pronúncia é discutida entre os doutrinadores, devido ao fato de uns acharem que se trata de sentença, e outros a denominarem de decisão interlocutória. Os que defendem a idéia de que a pronúncia é sentença dizem que esta se trata de uma sentença "processual", vez que trata de matéria procedimental, sem conteúdo material, não produzindo res judicata; é o entendimento de MIRABETE (Código de Processo Penal Interpretado, Ed. Atlas, 5ª edição, 1997). Já para os que argüem ser a pronúncia decisão interlocutória, defendem sê-la uma decisão interlocutória "não-terminativa", ou seja, que não põe fim ao processo, mesmo sendo uma forma de despacho judicial, cabendo aí recurso em sentido estrito; é o que nos ensina os FÜHRER (Ob. e v. acima cits.). Aderimos à segunda opinião, apesar de o instituto levar o nomen juris de "sentença de pronúncia", vez que, em sentença, analisamos o mérito do feito (CPC, art. 162, § 1º), o que não é o caso da pronúncia, em que o juiz apenas analisa a admissibilidade de se levar o caso ao julgamento popular, e, aí sim, proferir-se uma sentença de mérito, seja condenatória, ou de absolvição.

        Pressupostos. Já vimos então, que no momento da conclusão da 1ª fase do procedimento do Júri, ou seja, a fase "sumário de culpa", o juiz proferirá a sentença pronunciativa, a qual carrega em seu conteúdo a admissibilidade de julgamento de determinado fato perante o povo. Mas e quais os pressupostos legais determinadores de tal admissibilidade? Tais nos são revelados pelo CPP em seu art. 408, caput: "Se o juiz se convencer da existência do crime e de indício de que o réu seja o seu autor, pronunciá-lo-á, dando os motivos do seu convencimento". São, então, pressupostos para a pronúncia: a) existência do delito e b) convencimento de que o réu seja o autor. Deverá o julgador, ao pronunciar-se, motivar o seu entendimento acerca da admissibilidade, de acordo com o princípio do livre convencimento do juiz, podendo este buscar nos autos, ou através de diligências, as provas necessárias para a formação dos pressupostos para a sua decisão de pronunciar ou não o acusado. Assim não fosse, estaríamos incorrendo em grave erro de justiça.

        A forma da pronúncia. A função da pronúncia, como já vimos, é admitir que há possibilidade de o acusado ser levado ao Júri, de forma que o juiz, para que não haja injustiça com o pronunciado, e sob pena de nulidade do ato em comento, deverá fundamentar as razões pelas quais criou seu juízo de admissibilidade. Mas não é só isso. Deve também o julgador observar a classificação do crime e suas qualificadoras, também sob pena de nulidade caso não o faça, ou o fazendo, não fundamente as razões que o motivaram a tal. Assim deve o juiz tipificar o delito e suas qualificadoras, a fim de que o acusado saiba pelo o quê está sendo levado a julgamento popular.

4. SENTENÇA CONDENATÓRIA

        A sentença condenatória no Processo de Júri é diferençada da homônima que se passa em sede de Processo Criminal comum. No Processo Criminal comum há apenas um órgão encarregado de julgar e delimitar o quantum da pena a ser aplicada ao acusado: é o juiz ou o tribunal. Já no Processo de Júri a sentença condenatória é ato jurisdicional complexo, na lição de MIRABETE (Ob. cit.), em que os jurados decidem sobre o crime (fato principal, ilicitude, culpabilidade, circunstâncias) e o juiz presidente sobre a aplicação das sanções penais. Fica desta forma a sentença condenatória dividida em duas partes, quando em processos da álea do Júri Popular: a 1ª parte correspondendo à condenação ou não do acusado (ou acusados), de acordo com os quesitos apresentados ao jurados pelo juiz-presidente do tribunal, e a 2ª parte dizendo respeito à dosimetria da pena em caso de condenação, devendo o juiz-presidente obedecer, para tanto, o que foi respondido nos quesitos, de forma que assim estar-se-á respeitando uma prerrogativa constitucional conferida aos jurados, que é a soberania de seus veredictos (CF, art. 5º, XXXVIII, c), de maneira que demonstra-se inconstitucional o disposto no CPP, art. 492, § 1º, que diz: Se, pela resposta a quesito formulado aos jurados, for reconhecida a existência de causa que faculte diminuição de pena, em quantidade fixa ou dentro de determinados limites, ao juiz ficará reservado o uso dessa faculdade. Aí, ao nosso ver, não há o que se discutir. A CF/88 revogou por total este parágrafo do art. 492 do CPP, vez que não há que se falar em faculdade conferida ao juiz, e sim obrigatoriedade em seguir as respostas aos quesitos formulados aos jurados e por estes respondidos. E assim é o que pensa o STJ:

        Dosimetria da pena. Negativa de vigência ao art. 492, I, do CPP. Caracterização. Acórdão que, em caso de tentativa de homicídio simples, sem que o Júri tenha reconhecido qualquer circunstância agravante ou causa de aumento, fixa a pena final da tentativa em oito anos de reclusão, montante superior ao mínimo legal do homicídio consumado. Dosimetria que se afasta das respostas aos quesitos e se apresenta injustificadamente exarcebada. Recurso especial conhecido e provido para cassar o acórdão e restabelecer a sentença (RSTJ 71/247-8).

CONCLUSÃO

        Após uma breve exposição dos institutos sob comento passemos agora a uma conclusão que apenas se justifica pelo objetivo do presente trabalho que é uma comparação entre as sentenças de pronúncia e de condenação no âmbito do Tribunal do Júri.

        Quanto à natureza conceitual, é a sentença de pronúncia instituto pelo qual o juiz submete o acusado ao julgamento popular, devendo tal pronunciamento ser fundamentado pelas razões que levaram o julgador a tal convencimento, até mesmo para que o pronunciado saiba por que crimes, e em que circunstâncias, será levado ao Tribunal do Júri. Já a sentença condenatória, como o próprio nome nos informa, refere-se ao resultado de todo o Procedimento no Júri, ou seja, ocorre no final do processo, de maneira a declarar culpado o réu, o que é feito pelos jurados, devendo o juiz apenas, e de maneira fundamentada, aplicar a dosimetria penal, conforme acima verificamos mais detalhadamente.

        Quanto ao momento em que são proferidas as sentenças de pronúncia e de condenação, ocorre a primeira na fase denominada "sumário de culpa", que vai do recebimento da denúncia até a sentença pronunciativa. Seria a "porta de entrada" do procedimento no júri popular. Já quanto à segunda (sentença de condenação), ocorre na 2ª fase que transcorre do libelo até o julgamento em plenário, onde ocorre o julgamento de mérito. Seria, ao contrário da fase "sumário de culpa", onde aí encaixa-se a pronúncia, a "porta de saída" do procedimento do júri.

        Em relação à natureza jurídica da sentença de pronúncia, apesar de haver discussão doutrinária acerca do assunto (sé é sentença propriamente dita ou decisão interlocutória), somos favoráveis à idéia, com a devida venia dos que pensam em contrário, de que trata-se a pronúncia, não obstante levar o prenome de "sentença", de decisão interlocutória, por tratar-se de mero juízo de admissibilidade e não entrar no mérito da questão, conforme acima já discorremos, mais detalhadamente. Em contraponto, pacífica e mansa é a doutrina quanto à natureza jurídica da sentença condenatória, sendo esta sentença propriamente dita, na acepção da palavra, vez que, aí sim, analisa-se o mérito da questão, de forma que cabível é o recurso de apelação contra a mesma.

        Os pressupostos para a pronúncia são a existência do delito e o convencimento de que o réu seja o autor, apenas pelo juiz. Já para a prolatação da sentença condenatória é necessário que seja o réu condenado pelas respostas apresentadas pelos jurados nos quesitos que lhes são apresentados e que o juiz-presidente apresente o quantum da pena a ser cumprida pelo condenado.

        Assim, encerramos, com esta comparação didática entre SENTENÇA DE PRONÚNCIA E DE CONDENAÇÃO, no âmbito do Tribunal do Júri, o presente trabalho, de forma que esperamos que de algo sirvam estas poucas e humildes palavras, tanto para o nosso aprendizado, como para o de quem conosco o queira compartilhar.

       


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Felipe Luiz Machado Barros:  Assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte

felipe1207@hotmail.com

http://www.qjuris.adv.br

A Lei nº 10.695/03 e seu Impacto no Direito Autoral Brasileiro

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* Guilherme C. Carboni 

No dia 2 de agosto de 2003 entrou em vigor a Lei nº 10.695, que altera dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal em questões relativas à tipificação do crime de violação de direito autoral e às medidas processuais correspondentes. A seguir, examinaremos alguns aspectos da Lei 10.695/03 que entendemos causarem maior impacto no direito autoral brasileiro.

 Anteriormente à entrada em vigor da Lei 10.695/03, o artigo 184 do Código Penal tipificava como crime apenas a violação a direito de autor. Com a nova redação, foram incluídos na tipificação penal os direitos conexos aos de autor, os quais, de acordo com o artigo 89 da Lei nº 9.610/98 (“Lei de Direitos Autorais”), são aqueles pertencentes aos artistas intérpretes ou executantes, aos produtores fonográficos e às empresas de radiodifusão.

 No entanto, a referida lei cometeu um deslize nos parágrafos 1º, 2º e 3º do artigo 184 ao fazer menção apenas aos artistas intérpretes ou executantes e aos produtores fonográficos, deixando assim de incluir as empresas de radiodifusão na tipificação legal. Portanto, a rigor, apenas a regra geral estabelecida pelo caput do artigo 184 seria aplicável à violação de direitos conexos detidos por empresas de radiodifusão.

 Apesar de o artigo 184, caput, do Código Penal, tipificar o crime de violação de direito de autor e direitos conexos sem intuito de lucro, parece-nos que a tônica da Lei 10.695/03 é penalizar, principalmente, a prática que tenha intuito de lucro direto ou indireto, conforme expressamente estabelecem os parágrafos 1º, 2º e 3º desse mesmo artigo. Para esses casos, o legislador aumentou a pena, com o claro intuito de combater a prática da pirataria de obras protegidas por direitos autorais, inclusive nas novas tecnologias, como a Internet, cujo tipo penal foi definido pelo parágrafo 3º do artigo 184.

 Além disso, a Lei 10.695/03 resolve definitivamente a polêmica questão acerca da cópia única para uso privado do copista, sem intuito de lucro, ao inserir o parágrafo 4º no artigo 184, que exclui tal prática, de forma expressa, da incidência das penas previstas nos parágrafos precedentes. Portanto, copiar obra integral, em um só exemplar, para uso exclusivamente privado, sem intuito de lucro, não é tipificado como crime.

 Essa, porém, não era a regra do nosso ordenamento jurídico até a entrada em vigor da Lei 10.695/03, razão pela qual tal alteração é muito bem vinda. De fato, o artigo 46, inciso II, da Lei de Direitos Autorais, diz que não constitui ofensa aos direitos de autor “a reprodução, em um só exemplar, de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro”. Portanto, a limitação ao direito de autor contida no referido artigo legal seria aplicada apenas à reprodução de pequenos trechos e não de obra integral. É por essa razão que a cópia integral de uma obra qualquer, como um livro, por exemplo, até a entrada em vigor da Lei 10.695/03, era tipificada como crime de violação de direito de autor.

No entanto, apesar de a Lei 10.695/03 ter expressamente excluído da tipificação penal a reprodução privada da obra para uso particular do copista, em um único exemplar, sem intuito de lucro, o fato é que continua em vigor a regra do artigo 46, inciso II, da Lei de Direitos Autorais. Portanto, o titular dos direitos autorais ainda pode ingressar com uma ação na esfera cível, visando a apreensão das obras reproduzidas ou a suspensão da prática, além do pagamento de uma indenização pela reprodução integral não autorizada. Por essa razão, já existem diversos estudos em andamento visando alterar a redação do artigo 46, inciso II, da Lei de Direitos Autorais, de forma a permitir a cópia integral nos mesmos termos estabelecidos pela Lei 10.695/03.

Assim, podemos dizer que uma das características mais louváveis da Lei 10.695/03 foi a de ter estabelecido pesos diferentes para as penas aplicáveis à reprodução com e sem intuito de lucro, além de ter excluído da tipificação penal a cópia única para uso privado do copista, sem intuito de lucro, uma vez que cada uma dessas práticas tem diferentes impactos na esfera social e econômica.

Apesar disso, ainda perduram algumas dúvidas acerca da tipificação penal da troca de arquivos de música na Internet, através da tecnologia peer-to-peer, que hoje é uma das formas mais discutidas de aquisição de obras intelectuais. Para tanto, é necessário, num primeiro momento, verificar se a disponibilização da obra na Internet ocorreu com o consentimento do titular dos direitos autorais. Em caso afirmativo, decorre que a cópia única dessa obra, para uso particular, sem intuito de lucro, realizada posteriormente à sua disponibilização na Internet, não tipificaria o crime de violação de direitos autorais e conexos. No entanto, se a obra foi disponibilizada na Internet sem a autorização do titular dos direitos autorais, a pessoa que a disponibilizou e os respectivos copiadores privados incidiriam no tipo penal previsto no caput do artigo 184 do Código Penal. Caso haja intuito de lucro, ainda que indireto, da parte de quem a disponibilizou sem autorização, o tipo penal a ser aplicado é o estabelecido pelo parágrafo 3º do referido artigo legal.

Finalmente, outra novidade da Lei 10.695/03 que merece atenção é a revogação do artigo 185 do Código Penal, que, em linhas gerais, tipificava como crime a atribuição de falsa autoria a obra literária artística e científica. Sabemos que o direito autoral vem sofrendo uma profunda transformação no sentido de privilegiar o seu aspecto patrimonial, o que pode ser verificado pela própria regulamentação internacional da matéria no âmbito da OMC-TRIPS. Também contribuíram para essa transformação os novos valores trazidos pela Internet e pela tecnologia digital que acabam por revestir de certa “moralidade” alguns atos que, nas obras analógicas, seriam considerados “imorais” ao autor. A produção de obras digitais derivadas, através de recombinações de obras preexistentes, muitas vezes sem autorização do autor primígeno, é apenas um dos exemplos da prática que vem ganhando aceitação social, apesar das restrições legais.

Porém, se há um direito moral de autor que necessariamente tem de ser preservado, inclusive com a manutenção do tipo penal específico para incriminar a respectiva violação, é o direito de o autor ser reconhecido como o criador de uma determinada obra. A preservação desse direito não mais tem como fundamento apenas o interesse individual do autor, mas de toda a coletividade, de forma a garantir às pessoas a correta informação acerca da procedência das informações e das obras intelectuais disponibilizadas.

Dessa forma, não vemos razão para a Lei 10.695/03 ter suprimido o artigo 185 do Código Penal. Na verdade, a criação de uma tipificação criminal com pena específica para a falsa atribuição de autoria, na redação anterior do Código Penal, justificava-se pelo valor relevante que esse direito moral de autor representa para a nossa sociedade.

Podemos assim concluir que o impacto da Lei 10.695/03 sobre o sistema do direito de autor brasileiro foi positivo, pois, de um lado, atende aos interesses da indústria e do governo no combate à pirataria e, de outro, o dos usuários de obras intelectuais, que não mais são penalizados criminalmente pela realização de cópias privadas de obras intelectuais, sem intuito de lucro.

           


Referência  Biográfica

Guilherme C. Carboni:   Advogado responsável pela área de Propriedade Intelectual do Escritório Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados.

Honorários advocatícios e demais despesas processuais

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* Irene Sayuri Ito

Ao Estado cabem as despesas gerais com a administração da justiça; os litigantes respondem pelas despesas com os serviços que o Estado lhes presta, ou seja, pelas despesas inerentes aos processos de que são partes; aos litigantes necessitados, como tais considerados aqueles que não se acharem em condições de pagar as despesas do processo, sem prejuízo do sustento próprio ou da família, se assegura a gratuidade da justiça.

Despesas envolvem os gastos promovidos para a prática de atos processuais das partes processuais, abrangendo as custas dos atos do processo, como também a indenização de viagem, diária de testemunha e remuneração do perito e do assistente técnico.

Por custas processuais se compreendem todos os gastos que se fazem com e para o processo, desde a petição inicial até a sua extinção. São despesas inerentes ao processo, correspondentes aos atos do processo, e devidas ao Estado, aos sujeitos da relação processual, enfim todas às pessoas que colaboram no desenvolvimento do processo.

Por custas se entendem aquela parte das despesas relativas à expedição e movimentação dos feitos, taxadas por lei, destinada aos cofres públicos.

Dá- se o nome de honorários, a remuneração devida ao advogado que servindo à justiça, aconselha, auxilia e representa as partes em juízo.

Três são os tipos de honorários: convencionados, arbitrados judicialmente e de sucumbência.

Os convencionados são aqueles contratados por escrito ou verbalmente entre o advogado e o cliente. É aconselhável que os serviços prestados pelo advogado sejam previamente estipulados por escrito, conforme prevê o art. 35 do Código de Ética e Disciplina, contendo as especificações e a forma de pagamento, inclusive no caso de acordo.

Como forma de evitar a desvalorização da profissão, os Conselhos Seccionais da OAB fixam valores mínimos de honorários a serem cobrados pelos profissionais. Muito embora, o art. 36 do Código de Ética e Disciplina disponha que os honorários devam ser fixados de acordo com: “ I- a relevância, o vulto, a complexidade e a dificuldade das questões versadas; II- o trabalho e o tempo necessários; III- a possibilidade de ficar o advogado impedido de intervir em outros casos, ou de se desavir com outros clientes ou terceiros; IV- o valor da causa, a condição econômica do cliente e o proveito para ele resultante do serviço profissional; V- o caráter da intervenção, conforme se trate de serviço a cliente avulso, habitual ou permanente; VI- o lugar da prestação dos serviços, fora ou não do domicílio do advogado; VII- a competência e o renome do profissional; VIII- a praxe do foro sobre trabalhos análogos”, nada impede que o valor correspondente aos honorários sejam superiores ao fixado na tabela.

Os honorários quando não convencionados previamente, serão fixados por arbitramento judicial, através de ação própria a ser movida pelo advogado, endereçado ao juiz da causa, que não poderá fixar valor inferior ao estabelecido na tabela. Nos casos de substabelecimento durante o curso do processo, o advogado substabelecido deverá ajustar previamente os seus honorários com o advogado que o substabeleceu.

Já os de sucumbência são aqueles em que a parte vencida deve pagar a parte vencedora, podendo ser acumulado com os honorários contratados.

Dispõe o artigo 20 do Código de Processo Civil que o vencido pagará ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios. Estabelece-se que a parte vencida será condenada a reembolsar a vencedora das custas e despesas processuais, antecipadas pelo vencedor, se o caso, e os honorários. A sentença, seja declaratória, constitutiva ou condenatória, condenará o vencido, ainda que não haja pedido formulado nesse sentido.

Nas sentenças condenatórias procedentes, os honorários serão fixados entre o mínimo de 10% e o máximo de 20%, sobre o valor da condenação; nas condenatórias julgadas improcedentes, os honorários terão por base, dentro dos limites, o valor da causa. Já nas sentenças constitutivas e declaratórias, sejam procedentes ou improcedentes, os honorários serão fixados mediante avaliação equitativa do juiz.

De um modo geral, a fixação dos honorários se assemelham às despesas, de acordo com o princípio da sucumbência: se os litigantes forem vencedores e vencidos em parte, serão entre eles recíproca e proporcionalmente distribuídos os honorários; havendo litisconsórcio, seja ele, ativo ou passivo, os vencidos responderão proporcionalmente; em caso de processo julgado extinto sem julgamento de mérito (art. 267, inciso III), fica o autor responsável pelos honorários; àquele que desistir ou reconhecer do pedido, arcará com os honorários; e, ainda, o réu que de alguma forma dilatar o julgamento da lide, não alegando fato impeditivo, modificativo ou extintivo do pedido do autor, ainda que for vencedor na causa, arcará com os honorários.   

Assim, o advogado, além de receber os honorários convencionados com o cliente, receberá os de sucumbência da parte vencida.

O Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil- Lei nº 8.906/94, dispõe em seu art. 24 “ A decisão judicial que fixar ou arbitrar honorários e o contrato escrito que os estipular são títulos executivos e constituem crédito privilegiado na falência, concordata, concurso de credores, insolvência civil e liquidação extrajudicial.”

A execução de honorários poderá ser nos próprios autos; o advogado substabelecido com reserva de poderes, no entanto, não poderá cobrar honorários sem a intervenção daquele que o substabeleceu.  

Multas não se confundem com despesas processuais nem com reparação de danos processuais. São penalidades, sanções, impostas àqueles que, no processo, agem de má-fé, exercem atividades ilícitas em prejuízo da parte contrária ou da finalidade do processo.    


Referência  Biográfica

Irene Sayuri Ito –  Advogada e Especialista em Direito Civil e Processo Civil.  – 2004

irene.ito@ig.com.br