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Filhos, bens e amor não combinam!

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* Maria Berenice Dias –

Sumário: 1. Novidades; 2. Perplexidades; 3. Regime de bens e meação; 4. Regime de bens e sucessão; 5. Direito de concorrência; 6. Concorrência e regime de bens; 7. Possibilidades interpretativas; 8. Outros questionamentos; 9. A única saída.


1. Novidades

O novo Código Civil, como tudo o que é novo, gerou resistências e despertou desconfianças. Também como toda a novidade, não correspondeu à expectativa geral e ensejou muitos desapontamentos, sendo lido com precipitação por alguns que pretenderam ser os pioneiros em interpretá-lo.

Mas não se pode tirar alguns méritos da nova codificação civil, e os exemplos são vários. Conseguiu sepultar todos aqueles dispositivos que eram letra morta no velho Código, como as referências desigualitárias entre o homem e a mulher, as adjetivações da filiação, o regime dotal.

Alguns avanços foram significativos. Corrigiu equívocos e incorporou orientações pacificadas pela jurisprudência, ao, por exemplo, afastar o desvirginamento da mulher como causa para a anulação do casamento. Assegurou o direito de alimentos mesmo ao cônjuge culpado pela separação, banindo, em boa hora, a única hipótese de pena de morte fora das exceções constitucionais. Como o responsável pelo fim do casamento não fazia jus a alimentos, se não tivesse condições de prover a própria subsistência, era condenado, quiçá, a morrer de fome.

No entanto, perdeu-se uma bela oportunidade de obter alguns ganhos. Era a vez e a hora de serem incorporados institutos já reconhecidos pelos tribunais. Não trouxe o Código Civil a guarda compartilhada, não consagrou a posse de estado de filho ou a filiação socioafetiva. Nem mesmo previu as relações de pessoas do mesmo sexo, agora nominadas como uniões homoafetivas. A mantença da culpa na separação também é um dos grandes exemplos da falta de sensibilidade do legislador.

O mais grave é que desgraçadamente o legislador cometeu inconstitucionalidades. Tratou desigualmente as entidades familiares decorrentes do casamento e da união estável, gerando diferenciações que não se coadunam com o princípio da isonomia. Manteve uma capitis diminutio contra o idoso, subtraindo-lhe a capacidade para, após os 60 anos, escolher o regime de bens. Essa previsão existente na lei anterior já era reconhecida pela jurisprudência como não recepcionada pelo sistema jurídico instituído em 1988. 

2. Perplexidades

Talvez as mais significativas alterações tenham ocorrido no âmbito do Direito Sucessório, sede em que estão sendo travadas as mais acirradas discussões. A inclusão do cônjuge, mas não do companheiro, como herdeiro necessário tem levado ao questionamento sobre a constitucionalidade da diferenciação, que não constava da legislação pretérita nem é desejada por ninguém. Trata-se de odioso retrocesso. Mas a novidade maior é a introdução de um novo instituto: o direito do cônjuge e do companheiro, ainda que em situações díspares, de concorrerem com os herdeiros descendentes ou ascendentes. Exsurge um estado condominial do cônjuge e do companheiro sobreviventes com os herdeiros de graus anteriores, figura até então inexistente e que tem gerado dúvidas e inseguranças.

Em um primeiro momento, o que vem causando perplexidade maior é o fato de o direito de concorrência, assegurado ao cônjuge sobrevivente no âmbito do Direito Sucessório, estar condicionado ao regime de bens do casamento. Igualmente não se encontra justificativa para o tratamento diferenciado dispensado ao cônjuge sobrevivente quando o regime de bens é o da comunhão parcial, a depender do fato de o de cujus ter ou não bens particulares.

Mas os motivos de inquietações não terminam aí. Causa surpresa a circunstância de o direito de concorrer ser deferido também na união estável, cujo regime de bens, por força do art. 1.725 do Código Civil, é o da comunhão parcial de bens. No entanto, não é feita qualquer diferenciação quanto à existência ou não de bens pretéritos, a condicionar o direito do parceiro de dividir o patrimônio com os herdeiros, como ocorre quando o de cujus era casado.

Afora tudo isso, a difícil redação do inciso I do art. 1.829 do Código Civil, que, além da falta de clareza, traz uma aparente duplicidade de negações, gera enormes dificuldades para a exata compreensão de seu conteúdo.

Surgiram opiniões absolutamente díspares apontando para soluções diametralmente opostas e até contraditórias. Afloraram tantas dúvidas, que a perplexidade tomou conta de todos, não só dos lidadores do Direito (1). Disseminou-se no seio da própria sociedade tal sentimento de insegurança, que o tema vem sendo trazido a debate até nos meios de comunicação. 

3. Regime de bens e meação

O instituto do regime de bens pertence ao âmbito do Direito de Família e serve para aclarar a origem, a titularidade e o destino dos bens conjugais.(2)

A diferença é bem posta por Zeno Veloso:

            Não se deve confundir meação com direito hereditário. A meação decorre de uma relação patrimonial – condomínio, comunhão – existente em vida dos interessados, e é estabelecida por lei ou pela vontade das partes. A sucessão hereditária tem origem na morte, e a herança é transmitida aos sucessores conforme as previsões legais (sucessão legítima) ou a vontade do hereditando (sucessão testamentária).(3)

A escolha do regime de bens feita por ocasião do casamento rege a situação patrimonial do casal durante a vigência do matrimônio e quando de sua dissolução, pela separação, divórcio ou falecimento de um dos consortes. Ocorrendo a morte de um, a identificação do regime de bens serve para sinalar se o cônjuge sobrevivente tem ou não direito à meação. A depender do regime eleito, o viúvo faz ou não jus à meação; é considerado condômino de todo o patrimônio ou dos bens que foram adquiridos durante o casamento. Assim, não se pode falar em herança sem antes apartar a meação do sobrevivo, o que não se confunde com direito hereditário.

Silentes os noivos, ou seja, não havendo eles firmado pacto antenupcial por ocasião do casamento, vigora, por determinação legal, o regime da comunhão parcial. Quando do falecimento de um dos cônjuges, o sobrevivente tem direito à meação, que se compõe da metade dos bens adquiridos durante o período da vida em comum. Portanto, primeiro há que se apartar os bens que pertencem ao cônjuge, isto é, a metade do que foi adquirido onerosamente durante a vigência da união, independente de quem o tenha adquirido. Desimporta a parcela individual de contribuição na formação do acervo patrimonial para estremar as meações. A divisão igualitária dos aqüestos é levada a efeito sem questionar-se a efetiva participação de cada um dos cônjuges na constituição do patrimônio comum. O chamado estado de mancomunhão gera o reconhecimento da co-propriedade em regime condominial dos bens amealhados a partir da celebração do casamento.

            Hipóteses há em que é irrelevante a vontade dos nubentes. Impõe a lei o regime da separação obrigatória (art. 1.641 do CC), quando o casamento se realiza contra a recomendação do legislador de que “não devem casar”. Tais interditos estão elencados no art. 1.523 do Código Civil. São limitações injustificáveis e inconstitucionais. Mas certamente a mais cruel das sanções de incomunicabilidade de patrimônio é quando um dos nubentes é maior de 60 anos (inciso II do art. 1.641 do CC). Além de flagrante afronta à Lei nº 10.741/03, conhecida como Estatuto do Idoso, inexiste a possibilidade de afastar a imposição legal por se tratar de hipótese não excepcionada no parágrafo único do art. 1.523 do Código Civil. Nesses casos, pode ser afastada a incomunicabilidade por decisão judicial, possibilidade que inexiste quando um dos noivos for um idoso. Sequer é admitida a comunhão de aqüestos. Porém, ainda que o legislador vede a comunicabilidade dos bens adquiridos durante o casamento, é imperioso que se reconheça que permaneçe em vigor a Súmula nº 377 do STF, (4) que presume o estado condominial dos bens amealhados na vigência da união. Assim, mesmo diante da imposição legal, para impedir o locupletamento injustificado de um dos cônjuges em detrimento do outro, mister afirmar a existência do direito à meação sobre o patrimônio amealhado durante o casamento, a ser atribuído ao cônjuge sobrevivente.

Quando o regime de bens é eleito pelos nubentes, por pacto antenupcial, a identificação da existência e da extensão da meação estará condicionada ao regime escolhido.

Em se tratando do regime de comunhão universal, todo o patrimônio se comunica e a meação é garantida sobre a integralidade do patrimônio, independente de haver sido adquirido antes ou na constância do casamento. Não há bens particulares ou patrimônio próprio na hora de definir a meação.

Em situação oposta, quando o pacto é pela separação total de bens, não há comunicação de patrimônio, única hipótese em que não há direito à meação.

No recém introduzido regime da participação final de aqüestos, a divisão patrimonial, quanto aos bens existentes antes do casamento, não difere do regime da comunhão parcial, ou seja, não se comunicam e constituem o patrimônio próprio de cada um. Os bens adquiridos em comum e durante a vida em comum pertencem ao casal e são repartidos por metade no fim do casamento. Até aí, não há divergência entre os dois regimes. A diferença diz tão-só com a identificação do que é patrimônio próprio e o que deve ser considerado como aqüesto para fins de divisão. Integram o conceito de patrimônio próprio, não sendo alvo da partição, os bens que cada cônjuge adquire, em seu nome e a qualquer título, na constância do casamento. Tais bens particulares não se dividem quando do fim do casamento, quer pela separação, quer pela morte.

Diante de tal panorama, imperioso concluir que somente no regime convencional de separação de bens é que não cabe falar em meação. Eleito o regime da comunhão universal, a meação incide sobre a integralidade do acervo patrimonial. No regime da comunhão parcial, bem como no regime de separação legal (por força da Súmula nº 377) a meação corresponde à metade dos bens adquiridos durante a vigência do casamento. Já no regime da participação final dos aqüestos, são excluídos da meação não só os bens existentes antes das núpcias, mas também os bens próprios de cada cônjuge adquiridos enquanto casados.

Falecido um dos cônjuges, a primeira providência é separar a meação do sobrevivente, a depender do respectivo regime de bens. A herança que se transmite aos herdeiros se constitui da meação do de cujus, seus bens próprios e os bens excluídos da comunhão (arts. 1.659 e 1.668 do CC).

Até o advento do atual Código Civil, quando da abertura da sucessão, o regime de bens servia somente para a identificação da existência e extensão do direito à meação. 

4. Regime de bens e sucessão

A correlação entre regime de bens e direito de meação não sofreu qualquer alteração no novo Código Civil. O que aflorou foi um direito novo, no âmbito do direito sucessório: o direito de concorrência. Sua existência e extensão estão condicionadas ao regime de bens que rege o casamento.

Na sucessão de pessoa casada, a inovação não foi só essa. O legislador promoveu o cônjuge à condição de herdeiro necessário, inserindo-o em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, depois dos descendentes e ascendentes. Assegurou-lhe direito a parte da herança, ainda que existam herdeiros de grau anterior. Mesmo havendo filhos, mesmo remanescendo ascendentes, o cônjuge, em algumas hipóteses, também herda, concorrendo com os demais herdeiros. Surge um estado condominial dos bens integrantes da herança entre o cônjuge e os herdeiros, em proporções diferenciadas, a depender da origem da filiação e do grau de parentalidade dos ascendentes.

No entanto, em sede de união estável, houve um significativo, perverso e inconstitucional retrocesso. Zeno Veloso é contundente quando afirma ter havido um recuo notável. O panorama foi alterado, radicalmente. Deu-se um grande salto para trás. Colocou-se o companheiro em posição infinitamente inferior com relação à que ostenta o cônjuge (5). O Código Civil, contrariando o comando constitucional e as leis que regulamentavam o instituto, não assegurou direito sucessório ao convivente nem o inseriu na ordem de vocação hereditária. O direito de concorrência concedido ao parceiro apresenta limite bem mais acanhado se comparado ao mesmo direito deferido ao cônjuge. Excluída a meação do sobrevivente, tão-só sobre a meação do companheiro falecido, ou seja, sobre a metade dos bens comuns é que ele concorre com os herdeiros. Os demais bens que compõem o acervo hereditário, que são os bens particulares existentes antes da união, se destinam exclusivamente aos herdeiros, sem qualquer participação do convivente. Como ele não integra a ordem de vocação hereditária, somente se pode falar em direito sucessório quando inexistirem herdeiros sucessíveis, isto é, parentes até o quarto grau. Portanto, na união estável, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da herança somente na ausência de filhos, pais, primos, sobrinhos-netos ou tios-avôs.

Mais uma vez é de se fazer eco a Zeno Veloso:

Haverá alguma pessoa, neste país, jurista ou leigo, que assegure que tal solução é boa e justa? Por que privilegiar a este extremo vínculos biológicos, ainda que remotos, em prejuízo dos vínculos do amor, da afetividade? Por que os membros da família parental, em grau tão longínquo, devem ter preferência sobre a família afetiva (que em tudo é comparável à família conjugal) do hereditando?(6)

5. Direito de concorrência

Quando se está frente a um texto legal novo, em havendo significativas mudanças, procurar identificar a intenção do codificador é o primeiro recurso hermenêutico que se deve utilizar.

Inquestionavelmente é de reconhecer que o legislador quis privilegiar o casamento. Além de elevar o cônjuge à condição de herdeiro necessário, assegurando-lhe direito à herança, concorre ele com os herdeiros que lhe antecedem na ordem de vocação hereditária. Concorre com filhos, comuns ou não, e concorre com os ascendentes. Com relação à união estável, faltou generosidade ao legislador, pois nem de direito de concorrência se pode chamar o que lhe deferiu o texto legal, uma vez que lhe é destinado somente singelo percentual dos bens comuns.

Também nítido o tratamento privilegiado deferido ao cônjuge ao ser brindado com uma quota mínima, em fração não inferior a um quarto do acervo hereditário, se todos os herdeiros forem filhos seus. Não perceberá menos de uma terça parte se os herdeiros forem os ascendentes do de cujus. Tal beneficiamento do cônjuge frente aos herdeiros que o antecedem parece provar que a intenção da lei foi favorecer quem compartilhou vidas, assumiu o dever de mútua assistência e participou na formação do patrimônio.

6. Concorrência e regime de bens

O direito de concorrência nada tem a ver com o direito à meação. Aqui se está na seara do direito sucessório, fora da órbita do Direito de Família, em que se situa o direito à meação, a depender do regime de bens do casamento. No entanto, as limitações impostas ao direito de concorrência estão condicionadas exclusivamente ao regime de bens do casamento, vinculação cuja razão de ser não se consegue atinar. Essa, aliás, é a primeira fonte geradora de perplexidades frente à redação do inciso I do art. 1.829 do Código Civil que reconhece o direito de o cônjuge concorrer com os descendentes.

Estabelece o art. 1.845 do Código Civil a ordem de sucessão legítima, reconhecendo como herdeiros os descendentes, os ascendentes, o cônjuge e os colaterais. A relação é excludente, pois a existência de um herdeiro antecedente afasta os demais da herança. O art. 1.829 repete o mesmo rol, mas defere ao cônjuge supérstite um direito a mais. Deixa ele de ser herdeiro eventual, condicionado à inexistência de herdeiros das categorias anteriores, para se transformar em co-herdeiro juntamente com os demais beneficiários. A depender do regime de bens do casamento, assegura a lei ao cônjuge supérstite parte dos bens da herança, fazendo surgir um estado condominial com os descendentes ou, na falta deles, com os ascendentes.

O inciso I do artigo 1.829 do Código Civil consagra o direito de concorrência que, no entanto, está sujeito a algumas exceções. Como as exceções são restritivas e excludentes do direito, merecem interpretação limitativa. Portanto, afora as hipóteses elencadas pelo legislador, prevalece o direito do cônjuge.(7) O critério escolhido para afastar a benesse é o regime de bens escolhido pelos noivos antes do casamento. Aponta a lei determinados regimes de bens frente aos quais é subtraído o direito de concorrer. Não há como deixar de reconhecer que, em todas as hipóteses não expressamente declinadas, prevalece a regra da concorrência. Assim, se a lei só exclui o direito nos regimes de comunhão universal, separação legal de bens e em uma modalidade da comunhão parcial – a depender da existência ou não de bens particulares do de cujus – ,  outra não pode ser a conclusão: nos demais regimes, quais sejam o da separação convencional de bens, o da participação final de aqüestos e em uma modalidade do regime da comunhão parcial, o cônjuge sobrevivente concorre com os herdeiros na herança do falecido. 

7. Possibilidades interpretativas

Sem qualquer dúvida, o direito de concorrência no regime da comunhão parcial de bens é o ponto mais debatido do novo Código Civil, podendo-se afirmar, sem medo de errar, que esse é o tema que tem gerado as maiores divergências na doutrina.

A primeira dúvida que suscita o indigitado dispositivo legal diz com sua intrincada construção gramatical. Primeiro traz, em uma mesma sentença, uma hipótese e três exceções, sendo que, com relação a uma delas, há um desdobramento. Se tudo isso não bastasse, usou o legislador uma dupla negação. As duas primeiras hipóteses excludentes são introduzidas pela locução conjuntiva “salvo se” e a última previsão vem depois de um ponto e vírgula e inicia com a expressão “ou se”. Indiscutivelmente essa espécie de construção só poderia gerar controvérsias e interpretações dissonantes.

A leitura que a doutrina tem feito de forma mais reiterada do inciso I do art. 1.829 do Código Civil – e  justificativas gramáticas, sintáticas e filológicas não faltam – é considerar que a lei exclui o direito de concorrência não só nos regimes da comunhão universal de bens e da separação obrigatória, mas também no regime da comunhão parcial de bens, contanto que o autor da herança não tenha deixado bens particulares. Por conseqüência, a preexistência de qualquer bem ao casamento garante ao cônjuge o direito a concorrer com os herdeiros sobre os bens da herança. Os exemplos que surgiram foram muitos, havendo-se tornado conhecido o da bicicleta.(8) Se, ao casar, o noivo não tivesse nenhum bem, o cônjuge, quando de sua morte, perceberia a sua meação, correspondente à metade dos bens amealhados durante a vida em comum, isto é, a metade de todo o a patrimônio existente. O restante, os bens integrantes da meação do falecido, comporia o acervo hereditário a ser dividido exclusivamente entre os seus herdeiros descendentes ou ascendentes. No entanto, se, ao casar, fosse o noivo proprietário de uma bicicleta, o consorte sobrevivente, além da sua meação sobre os bens adquiridos depois do casamento, concorreria com os herdeiros sobre a totalidade da herança, constituída não só da bicicleta, mas também da meação do finado. A identificação do percentual a ser transmitido ao sobrevivente dependeria do fato de concorrer com os filhos que teve com o de cujus ou somente com os filhos dele, havidos antes ou fora do casamento. Assim, segundo esse pensamento, que se tornou majoritário em sede doutrinária, o fato de o de cujus possuir bens particulares – ainda que seja somente uma bicicleta – garante ao cônjuge sobrevivente uma parcela do patrimônio individual. A resistência em aceitar esse raciocínio é por que a herança percebida pelo cônjuge sobrevivente, constituída por bens individuais do consorte falecido (normalmente havidos por esforço pessoal ou com a colaboração dos filhos de leito anterior), não mais retorna aos sucessores de quem era o seu titular. Quando da morte do cônjuge sobrevivente, tais bens seriam outorgados aos herdeiros seus: novo cônjuge, novos filhos ou ainda seus parentes colaterais. Eles perceberiam acervo patrimonial que sequer era de propriedade do parente morto, pois o titular era o cônjuge pré-morto. Não há como deixar de visualizar injustificável quebra do próprio princípio norteador do direito sucessório que orienta a transmissão patrimonial seguindo os vínculos de consangüinidade.

Mas surgiram interpretações outras ao indigitado dispositivo legal. Zeno Veloso(9) foi o primeiro a sustentar que, nessa hipótese, o direito de concorrência do cônjuge incide exclusivamente sobre os bens particulares do finado. Quanto ao patrimônio adquirido durante a vida em comum, como o cônjuge tem direito à meação, não concorreria com os herdeiros. Porém, essa construção, que busca contornar, ao menos em parte, a incongruência da norma legal, não pode subsistir. É ressalva que não está na lei. Seria estabelecer limitação ao direito de cônjuge sobrevivente sem que haja expressa previsão do legislador. Certamente a tentativa de excluir direitos sem permissão legal não resistiria ao ser questionada perante o Poder Judiciário.

Para os adeptos de qualquer dessas correntes interpretativas, pretendendo os nubentes simplesmente preservar seus patrimônios particulares, não há regime de bens que possam adotar. Quem tiver filhos e bens e pretender que o cônjuge não participe desse acervo, recebendo somente a meação do que venha a ser adquirido depois das núpcias, não tem saída. Simplesmente não pode casar! Pelo fato de existirem bens individuais, necessariamente – ao menos para quem assim lê o inciso I do art. 1.829 do CC – o cônjuge concorrerá com a prole preexistente sobre todo o acervo hereditário. Não dá para deixar de concluir que esse absoluto cerceamento à possibilidade de escolha sobre a forma de disposição do patrimônio configura limitação que afronta o direito à liberdade, princípio que goza de assento constitucional. A solução que se afigura a essa restrição é reconhecer a inconstitucionalidade de tal injustificável limitação.

Escasso o número de quem extrai dessa regra solução diametralmente oposta. Ao se atribuir ao ponto-e-vírgula que separa as duas exceções a função própria desse sinal gráfico, a forma de interpretar o dispositivo legal é bem diversa. Admite o afastamento do direito de concorrência se o de cujus possuía patrimônio particular. Assim, aquele que casa com quem possui bens particulares, quando da sua morte, perceberá somente a sua meação. Os herdeiros ficam com a titularidade exclusiva do acervo hereditário, composto pela meação do morto e pelo patrimônio preexistente ao casamento.(10) Apesar de todas as críticas a esse raciocínio, que, como dizem, afronta a letra da lei, ele certamente está em consonância com a lógica da vida, pois se harmoniza com a lógica da cadeia sucessória. O sistema legal sempre priorizou os vínculos de parentesco em sede de direito sucessório.

8. Outros questionamentos

Mas há outros pontos que geram questionamentos. Tanto no regime da comunhão parcial como no da participação final dos aqüestos, inexistem diferenças sobre o destino dos bens adquiridos antes do casamento: não integram a meação do consorte. Em ambas as hipóteses, o acervo partilhável é constituído pelos bens comuns adquiridos durante o casamento. Como o regime da participação final de aqüestos não está referido entre as exceções que afastam o direito de concorrência, mister reconhecer que ao cônjuge sobrevivente é sempre assegurada parcela da herança. Havendo ou não bens particulares, concorre com os herdeiros.

Cabe buscar uma justificativa para o tratamento diferenciado entre os dois regimes de bens. Por que, entre dois regimes que tratam igualmente os bens particulares, é feita distinção quanto à concorrência? Por que, em se tratando do regime de participação final nos aqüestos, independente da preexistência de patrimônio, é sempre assegurado ao cônjuge o direito de concorrer? Por que, no regime da comunhão parcial, o fato de o autor da herança possuir ou não bens particulares gera tratamento diferenciado quanto à concorrência do cônjuge?

Também não se atina por que, no regime legal da separação de bens (art. 1.641 do CC), não há direito à concorrência, limitação que inexiste em havendo a opção pela separação de bens por pacto antenupcial, uma vez que tal regime não foi inserido entre as exceções legais. Em ambas as hipóteses, não há falar em direito sucessório do cônjuge sobrevivente. Se a incomunicabilidade decorre da manifestação de vontade dos cônjuges, é assegurado ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrer com os herdeiros sobre todo o acervo hereditário. No entanto, se o mesmo regime de separação de bens decorre de imposição legal, ainda que injustificável a postura do legislador, não existe direito de concorrência. A menos que se vislumbre uma tentativa de punir quem casa com mais de 60 anos, nada autoriza tratamento desigualitário ante situações absolutamente idênticas. Aqui se avizinha também afronta ao princípio da igualdade, que dispõe de proteção constitucional.

Afora a incontornável ausência de respostas a essas interrogações, talvez mais desafiador seja identificar os critérios utilizados pelo legislador para excluir o direito à concorrência em algumas hipóteses, introduzindo limitações ao direito do cônjuge.

Subtrair o direito de concorrência no regime da comunhão universal de bens parece ser uma tentativa de impedir o excessivo beneficiamento do cônjuge sobrevivente. Como a totalidade do patrimônio do autor da herança pertence ao casal, receberá o cônjuge supérstite, a título de meação, a metade de todo o acervo hereditário. Tanto os bens particulares como os adquiridos durante a vida em comum serão partilhados por metade. Logo, no regime de comunhão universal de bens, o cônjuge sobrevivente fica com cinqüenta por cento de tudo. O restante, a meação do de cujus, é dividido entre os filhos do autor da herança, nada recebendo o sobrevivente sobre essa parcela.

Parece, pelo que diz a maioria, não ser outra a justificativa quanto ao regime da comunhão parcial, em que todo o patrimônio existente foi adquirido na constância do casamento. Como, ao casar, não possuía o de cujus patrimônio particular, o acervo hereditário é composto exclusivamente dos bens comuns amealhados durante a vigência do casamento. Nessa hipótese, igualmente, se divide a totalidade do patrimônio. O sobrevivente fica com a sua metade e não concorre com os descendentes quanto à outra metade dos bens. Mas talvez se deva fazer questionamento de outra ordem: se a intenção do legislador foi beneficiar o cônjuge, por que lhe deferir exclusivamente a meação, nada lhe dando de herança, ainda que todo o patrimônio tenha sido adquirido presumivelmente pelo esforço comum?

Sem perder de vista que a finalidade da instituição do direito de concorrência foi melhor aquinhoar o cônjuge, perplexidade maior advém ao se visualizar hipótese outra. Tudo indica que a intenção do legislador, ao introduzir as exceções excludentes do direito de concorrer, foi afastar a benesse quando o sobrevivente recebe a metade de todo o acervo patrimonial do de cujus. No regime da comunhão universal, a meação se constitui sobre os bens pretéritos de cada um dos consortes e sobre os adquiridos durante a vida em comum. No regime da comunhão parcial, segundo a doutrina majoritária, inexistindo bens anteriores ao casamento, igualmente haverá a partição igualitária do patrimônio. Ora, se o desejo foi só excluir a concorrência quando o cônjuge sobrevivo ficar com a metade da totalidade do patrimônio, cabe perguntar: por que excluir esse benefício de quem casou pelo regime da separação obrigatória de bens? Na dicção fria da lei, o consorte sobrevivente nada recebe, sequer a meação dos bens adquiridos durante a vida em comum. O viúvo, simplesmente por ser ou haver se casado com um sexagenário, fica sem nada, independentemente de existir bens particulares ou de haver contribuído na aquisição de patrimônio durante a constância do casamento.

A falta de congruência da lei torna-se mais evidente ao se atentar que, no regime convencional da separação, em que um cônjuge não é herdeiro do outro, o sobrevivente é brindado com o direito de concorrer com os sucessores.

Tratamentos tão antagônicos e paradoxais não permitem identificar a lógica que norteou a casuística limitação levada a efeito pelo legislador. Quando se depara com situações que refogem à razão, não se conseguindo chegar a uma interpretação que se conforme com a justiça, há que reconhecer que deixou o codificador de atender ao princípio da razoabilidade, diretriz constitucional que cada vez mais vem sendo invocada para subtrair eficácia a leis que afrontam os princípios prevalentes do sistema jurídico. São a igualdade e a liberdade, que sustentam o dogma maior de respeito à dignidade humana. E nada, absolutamente nada autoriza infringência ao princípio da igualdade, ao se darem soluções díspares a hipóteses idênticas e tratamento idêntico a situações diametralmente distintas. Também nítida é a afronta ao princípio da liberdade ao se facultar a escolha do regime de bens e introduzir modificações que desconfiguram a natureza do instituto e alteram a vontade dos cônjuges. Desarrazoado não disponibilizar a alguém qualquer possibilidade de definir o destino que quer dar a seus bens.

Imperioso concluir que são insustentáveis as distorções levadas a efeito pela lei, estabelecendo distinções ante situações rigorosamente iguais. É o que ocorre com o tratamento diferenciado entre o regime da comunhão parcial e o de participação final nos aqüestos, bem como entre o regime legal e o convencional de separação de bens. Além disso, é incongruente excluir o benefício frente a circunstâncias diametralmente opostas, como no regime da comunhão universal e no da separação obrigatória de bens. Em um se extirpa a concorrência pelo fato de o sobrevivente receber a metade de todo o acervo patrimonial. Já na outra hipótese é excluído o benefício de quem nada irá receber sequer a título de meação. Aqui também se vê ferido o princípio da razoabilidade. Cabe repetir: situações idênticas não podem receber tratamento diferenciado, assim como situações diversas não devem ser tratadas de forma igual. A única solução que se avizinha é simplesmente reconhecer a inconstitucionalidade das exceções estabelecidas no inciso I do art. 1.829 do Código Civil e estender o direito de concorrência ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens. 

9. A única saída

Frente ao que até aqui foi posto, e diante da diversidade de interpretações que o mesmo texto legal tem ensejado, cabe fazer uma pergunta: qual o regime de bens que deve adotar quem quer casar e, tendo filhos e bens, não pretende que, no caso de seu falecimento, o cônjuge receba parte do patrimônio amealhado antes do casamento?

Impositivo raciocinar por exclusão.

Às claras, não deve eleger o regime da comunhão universal, pois nessa hipótese o cônjuge receberia a metade do seu patrimônio particular a título de meação. Igualmente descabe optar pelo regime da separação de bens, já que, por não incluído esse regime nas exceções do inciso I do art. 1.829, o cônjuge sobrevivente teria direito à concorrência sobre todos os bens, inclusive os particulares. O mesmo se diga com referência ao regime da participação final de aqüestos, pois igualmente não foi excepcionado pela lei, persistindo o direito do sobrevivente de concorrer também sobre os bens individuais.

Não havendo regime de bens a eleger por pacto antenupcial, igualmente não pode o casal silenciar para que se instale o regime da comunhão parcial. Nessa hipótese, em face da existência de bens particulares  (para quem assim lê a lei), o viúvo concorrerá com os descendentes.

Qual a solução? O jeito é não casar? É viver em união estável? É esperar que um dos cônjuges complete 60 anos para casar pelo regime da separação legal? Como deixar os bens particulares só para os filhos?

A única conclusão a que se pode chegar é que está cerceada a vontade de quem quer casar, mas quer preservar seu patrimônio pessoal em favor de seus filhos. Pelo jeito, quem possui filhos e bens não pode casar! Conclusão: o novo Código Civil, que se dedicou com tanto empenho a regular o casamento (dedicou-lhe 202 artigos), impõe o celibato a quem possui filhos e patrimônio, ainda que seja somente uma bicicleta. Cabe lembrar que a própria Constituição Federal parece preferir o casamento ao impor empenho em casar os conviventes, mas a lei não está atentando a essa recomendação.

Como emprestou o legislador constituinte especial relevo ao direito à liberdade, além de assegurar irrestrita proteção à família, não dá para aceitar que alguém não tenha o direito de casar e dispor da forma que lhe aprouver sobre o destino de seu patrimônio após o seu falecimento.

A saída é uma só: reconhecer a inconstitucionalidade das exceções postas no inciso I do art. 1.829 do Código Civil, quiçá de todo o artigo 1.829.

Falando em inconstitucionalidade, era bom inserir no rol o tratamento discriminatório concedido à união estável não só no âmbito sucessório, mas em incontáveis dispositivos espraiados na lei. Desrespeitam a diretriz traçada pela Constituição Federal, que não estabeleceu qualquer hierarquização entre as entidades familiares e as elencou de forma exemplificativa.

Ao sugerir-se a eliminação de dispositivos legais, era de se aproveitar e revogar também a parte final do art. 1.845 do Código Civil, afastando o cônjuge da condição de herdeiro necessário.

Não se visualizando a necessidade social de modificar a lei, as mudanças introduzidas se revelam despiciendas, não se justificando as alterações levadas a efeito. Geram tantas e tão absurdas conseqüências, que a única solução que se avizinha é abstrair as novidades do contexto normatizado.

Enquanto o legislador se queda silente, mister que o Poder Judiciário assuma essa tarefa. De todo descabido que se curvem os juízes às aberrações legais e se esqueçam de que lhes incumbe a missão de fazer justiça. O novo Código Civil não foi feliz. A lei não está imitando a vida.(11). E, quando ocorre esse desrespeito, é necessário olvidar o que a lei diz, pois, quando o direito ignora a realidade, a realidade se volta contra o direito, ignorando o direito, conforme sempre vaticinou Ripert.

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[1] Cabe referir o sem-número de manifestações, sugestões e opiniões que recebi de atentos estudiosos, quando da publicação dos artigos anteriores sobre o tema intitulados: “Ponto e Vírgula” e “Ponto Final”. Merecem ser citadas as ponderações manifestadas por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Jamil Bannura, Mario Delgado, Enéas Castilho Chiarini Júnior, Eduardo Franceschetto Junqueira, Fernando Nogueira, André Sarda, Antônio Sérgio Dias Leal e Sidney Martins.

[2] MADALENO, Rolf. Do regime de bens entre os cônjuges. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 193.

[3] VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 286.

[4] Súmula nº 377 do STF: No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.

[5] VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 286.

[6] VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 293.

[7] Não é possível concordar com Miguel Reale em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 12 de abril de 2003, quando afirma a possibilidade de excluir o direito de concorrência por analogia.

[8] O exemplo é trazido pelo Des. Luiz Felipe Brasil Santos, em artigo disponibilizado no site do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM (www.ibdfam.com.br) intitulado “A sucessão dos cônjuges no novo Código Civil”.

[9] Esta é a posição de Zeno Veloso. (VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 281).

[10] Esta forma de interpretação é a que sustento em dois artigos em que abordo o tema intitulados “Ponto e vírgula” e “Ponto final”, disponíveis em meu site www.mariaberenice.com.br .

[11] VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 294.

 


Referência  Biográfica

Maria Berenice Dias  –  Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS e Vice-Presidente Nacional do IBDFAM.

www.mariaberenice.com.br

Alguns benefícios concedidos para que empresas se instalem nos municipios utilizando-se o ICMS

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* Jomar Luiz Bellini 

INTRODUÇÃO

           A idéia deste trabalho é levantar algumas questões que se relacionam com os incentivos fiscais oferecidos pelos Municípios, nesta guerra fiscal, em que todos estão participando, e que com a justificativa de criar empregos, esquecem-se de normas legais.

           Uma das engenhosidades criadas pelos Municípios está a devolução do icms, por um prazo determinado, de parte do produto arrecadado pelo Estado e repartido para os Municípios, na chamada quota-parte, de um percentual sobre a participação individual da empresa contemplada por este incentivo.

            Buscando o esclarecimento do leitor, levantamos algumas controvérsias em torno da questão, as quais serão abordadas à luz das normas constitucionais tributárias, bem como dos principais conceitos e princípios de Direito Tributário, visando, um posicionamento balizado acerca da constitucionalidade do referido incentivo. 

 DA INCOMPETÊNCIA PARA LEGISLAR SOBRE A MATÉRIA 

            A primeira e fulminante inconstitucionalidade neste incentivo é falta de competência para o Município legislar sobre a matéria, ou seja, restituir parte do valor que seria recolhido aos cofres do governo estadual.

            Importante a transcrição do artigo 155 e seu inciso II:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

            Não pode o Município legislar sobre uma matéria a qual esta proibida.

           Em nome da unidade federativa insculpida na Constituição, não pode haver invasão dessa competência, mesmo não sendo utilizada por quem de direito, uma vez que é indelegável.

          Geraldo Ataliba[i] conceitua competência tributária com sendo a regra geral, no direito constitucional tributário brasileiro, em matéria de impostos, é a privaticidade – ou exclusividade – da competência das pessoas políticas, para instituí-los e arrecadá-los.

            Continua, em outro trecho que por isso, cada pessoa política (União, Estados e Municípios) dispõe de uma faixa privativa de impostos a exigir. Quem diz privativa, diz exclusiva, quer dizer: excludente de tôdas as demais pessoas; que priva de seu uso tôdas as demais pessoas. A exclusividade da competência implica na proibição peremptória, erga omnes, para a exploração desse campo.[ii] (destaques não originais)

            Leciona Paulo de Barros Carvalho que o não-aproveitamento da faculdade legislativa, a pessoa competente estará impedida de transferi-la a qualquer outra. Trata-se do princípio da indelegabilidade da competência tributária.[iii]

             Diferente não é o culto mestre Hugo de Brito Machado que nos informa que o princípio da competência é aquele pelo qual a entidade tributante há de restringir sua atividade tributacional àquela área que lhe foi constitucionalmente destinada. Já sabemos que competência tributária é o poder impositivo juridicamente delimitado, e, sendo dividido. O princípio da competência obriga a que cada entidade tributante se comporte nos limites da parcela de poder impositivo que lhe foi atribuída.[iv]

              Para selar de vez a questão de competência tributária o professor Roque Antônio Carraza diz com clareza solar eliminando qualquer dúvida que a delimitação das competências da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal é reclamo impostergável dos princípios federativo e da autonomia municipal e distrital, que nosso ordenamento jurídico consagrou e que (…) de fato, entre nós, a força tributante estatal não atua livremente, mas dentro dos imites do direito positivo. ( … ), cada uma das pessoas políticas não possui, em nosso País, poder tributário (manifestação ius imperium do Estado), mas competência tributária (manifestação da autonomia da pessoas política e, assim, sujeita ao ordenamento jurídico-constitucional). A competência tributária subordina-se às normas constitucionais, que, como é pacífico, são de grau superior às de nível legal, que prevêem as concretas obrigações tributárias.[v]

              Ao deliberar sobre a possibilidade de restituir (algo que não foi indevidamente pago), estar-se-ia isentando por via indireta a empresa que preenchesse os requisitos ali constantes.

              A isenção faz parte do exercício da competência tributária atribuída a cada ente federado, não podendo, por via obliqua, ser concedido tal benefício por pessoa incapaz.

DA IMPOSSIBILIDADE DE RESTITUIR ALGUMA RECEITA PÚBLICA 

            Primeiramente tem-se por obrigatório dizer que esse tipo de incentivo normalmente traz a restituição de um percentual do valor arrecadado pela empresa beneficiada com relação à sua participação na composição do índice municipal de arrecadação.

            No entanto, a única forma de se restituir alguma receita pública, que no sentido largo ou estrito, será quando a Administração Pública, receber, por erro, dinheiro que quem não deveria, ou se devido receber a mais.

            Por receita pública no sentido largo temos que é a totalidade de ingresso de dinheiro nos cofres públicos, sem se considerar a origem ou a finalidade da entrada do dinheiro no erário[vi] e no sentido estrito é a totalidade de entradas de dinheiro que aumentem o patrimônio do Estado ou entidade de direito público, sem qualquer correspondência no passivo.[vii]

            Pela classificação alemã, existem duas formas de receitas: a originária e a derivada.

            A originária também conhecida como de economia privada ou de direito privado é a proveniente de rendas ou proventos de bens e serviços das atividades de empresas industriais ou comerciais do Estado ou de outras entidades públicas estatais sem exercício do poder público e, sem a utilização da força constitucional para transferir a Administração Público, parte do patrimônio da pessoa.

            Já a derivada, ou de economia pública ou de direito público é a entrada ou ingresso obtidos compulsória ou coercitivamente, por arrecadação de direito público como, por exemplo, os tributos e as transferências constitucionais.

            Como se verifica o valor repassado pelo Estado ao Município pode ser considerado como receita pública derivada, pelo fato de ser obrigatório o envio de sua cota parte, sob pena de extinguir o princípio federativo, conforme posto em nossa Constituição.

            Sendo certo que qualquer proposta reformadora desse princípio, não poderá sequer ser motivo de apreciação pelo Congresso Nacional, conforme dispõe o inciso I, do § 4º do artigo 60 da CF.

            O artigo 155, inciso I, diz que compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

            No artigo 158, inciso IV, diz que pertence aos Municípios vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.

            Portanto, essa receita é derivada do pacto federativo existente no Brasil, onde para que permaneça a autonomia dos Municípios o Estado transfere parte do produto arrecadado, assim como a União.

            As pessoas (físicas ou jurídicas) são obrigadas a contribuir para com os gastos do Estado e o artigo 3º do Código Tributário Nacional, define o que seja tributo:

“Art. 3º. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.” [viii]

             Se a Constituição Federal atribui aos Estados, competência para a instituição e cobrança do imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços, a sua exigência é legal e deve ser paga, não podendo o contribuinte a se recusar a pagar, sob pena de ser compelido a pagar no Judiciário, podendo ser despojado de seu patrimônio, para cumprir essa obrigação.

             Pois bem, se legal e constitucional esse pagamento não há que se falar em restituir nenhum valor pago.

             Ao buscarmos os significados das palavras verificamos que restituir é:

 (lat. restituere). 1. Fazer a restituição de; entregar (o que se tornou ou se possuía indevidamente): Restituíram as mercadorias furtadas. Restituir a seu dono o que lhe foi tomado. vtd 2. Restabelecer ao estado anterior: restituíram–lhe a liberdade. Este regime lhe restituíra a saúde. vpr 3. Recuperar o perdido; indenizar-se: restituir-se alguém daquilo que perdeu ou que lhe tiraram. Vtd 4. Indenizar de : restituir um prejuízo. “Restituir alguém de perdas e danos”(constâncio) vtd. vti. e vpr 5. Reempossar (-se), reintegrar(-se), restabelecer (-se): Depuseram o tirano e restituíram o presidente. Restituiriam o príncipe ao reino. Restituir à (ou na) posse e direitos de que o privam” (Morais). Restituir-se no seu reino, em sua graça (idem). Vtd 6. Fazer voltar: Restituíram-no no antigo cargo. Vpr 7 Abastecer-se, prover-se (do que faltava).[ix]

             Tem-se que restituir está sempre condicionado a ter de devolver algo que tinha posse indevidamente, e no caso presente isso não ocorre. A empresa recolheu aos cofres públicos, que não é municipal, um determinado valor devido e, portanto legal.

              Se recolhido a maior deverá buscar a restituição ou juridicamente, repetir o indébito. (art. 165 CTN), de quem recebeu a mais.

              Portanto, não há que se falar em restituir algo que foi recolhido por erro, mesmo porque o Município sequer recebeu esse dinheiro, pois não é de sua competência a instituição e recebimento, sendo privativamente do Estado-membro.

              Iêdo Batista Neves[x], escreve restituição como sendo a devolução, ou a entrega, ao legítimo dono, da coisa havida ou possuída indevidamente ou a reintegração ou da reposição no estado de fato anterior.

              Dúvida nenhuma existe quanto a impossibilidade da restituição por parte do Município de qualquer valor, uma vez que não recebeu nenhum imposto denominado de ICMS da empresa que seria beneficiada pela lei ora comento. 

DA VEDAÇÃO DE AJUDAR FINANCEIRAMENTE EMPRESA COM FINS LUCRATIVOS

            Se não bastasse todo exposto anteriormente, dispõe o artigo 19 da lei 4320 de 07 de março de 1964:

Art. 19. A Lei de Orçamento não consignará ajuda financeira a qualquer título, a empresa de fins lucrativos, salvo quando se tratar de subvenções cuja concessão tenha sido expressamente autorizada em lei especial.[xi]

             Uma rápida análise do que dispõe o artigo 19, nasce como a fonte pura de água, que é terminantemente vedado a concessão de qualquer ajuda financeira à empresa que tenha finalidade lucrativa.

              Finalidade lucrativa tem de se entender como sendo aquela que remunera seus diretores, e que ao final de um determinado período faz a apuração do resultado e sendo positivo, transfere parte para seus dirigentes e/ou cotistas ou acionista.

              Sem medo errar, a lei que cria incentivos a instalação de empresas na cidade, não contempla as entidades sem fins lucrativos.

              A lei incentivadora busca investimentos, criar empregos, dar melhores condições de vida aos residentes no município, sem no entanto criar problemas político-jurídicos para os seus dirigentes e via de conseqüência aos próprios beneficiados.

              O Estado tem que concentrar seus esforços no atendimento mínimo indispensável para que se dê vida digna atendendo aos princípios constitucionais (art. 5º, 196, 201, 203, 205, 215 da CF.).

              Diante de tudo isso é vedado a Administração subvencionar a atividade privada na qual não esteja diretamente ligada com suas obrigações.

              Outra limitação consta no artigo 21 da mesma lei:

 Art. 21. A Lei de Orçamento não consignará auxílio para investimentos que se devam incorporar ao patrimônio das empresas privadas de fins lucrativos.

              Ora, com o “incentivo” que se pretende criar, o valor repassado será incorporado diretamente ao patrimônio da empresa beneficiada.

              Não se discute aqui o que seria patrimônio da empresa e tão somente que esse passaria para a empresa sem qualquer contrapartida para a Municipalidade.

              Considerando que o incentivo venha a ser aprovado, necessário se fará constituir um fundo para que fizesse em face de essa despesa, ou seja, seria uma maneira de vincular a receita oriunda do repasse do Estado.

              Dispõe o artigo 71, da lei 4320/64:

Art. 71. Constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que, por leis, se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação.

              A lei instituidora desse incentivo obrigatoriamente deverá dispor sobre o fundo, uma vez que irá vincular a receita ao pagamento ou a restituição à empresa beneficiada.

              Poder-se-ia dizer que seria desnecessário a criação de fundo e que essa restituição seria feita diretamente do orçamento municipal. Estaríamos então diante de uma despesa.

              Dispõe o artigo 167, inciso IV, da Constituição Federal:

Art. 167. São vedados:

IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para manutenção e desenvolvimento do ensino, como determinado pelo art. 212, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem assim o disposto no § 4º deste artigo;[xii]

              Nenhum texto, muito menos jurídico, se prescinde de uma interpretação, por mais claro que seja.

              No entanto, jamais se conseguirá modificar a essência do que escrito: Não se pode vincular receitas à fundo ou despesa.

              Não param aí as inconstitucionalidades.

              A Constituição visando impor ao Administrador Público um planejamento sério e compatível com suas condições veda o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual (inciso. I, art. 167) e a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais (inciso. II, art. 167).

              Deverá constar no Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias além do Orçamento Anual. Caso contrário, descumprido está toda a Seção II, do Capitulo II do Título VI da Constituição Federal.

ISENÇÃO: LEI ESPECÍFICA 

              O artigo 150 dispõe sobre as vedações, quando da elaboração do orçamento e no seu parágrafo 6º é claro ao dizer que qualquer subsídio ou isenção somente poderá ser concedido por meio de lei específica. Diz o parágrafo 6º:

§ 6.º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão relativos a impostos, taxas ou contribuições só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, letra “g”. [xiii]

             Portanto a lei que venha conter uma isenção ou qualquer incentivo deverá ser específica e não genérica. [xiv]

              Somente pode isentar quem tem a competência para isentar, excetuando o Imposto Sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços, uma vez que o artigo 155, § 2º, inciso XII, letra “g”, disponha que cabe a lei complementar regular a forma como, mediante deliberações dos Estados e do Distrito federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.

DO MOMENTO PARA ESSA CONCESSÃO 

            Como é consabido está em trâmite no Congresso Nacional e em ampla discussão junto à sociedade, uma reforma tributária, onde entre outras questões, está a unificação dos impostos sobre circulação, produtos e sobre serviços, transformando-os em Imposto sobre Valor Agregado, de competência da União e de arrecadação dos Estados.

            Por mais que se crie emprego é de fundamental importância que seja criado com o devido suporte social, sob pena que causar um colapso nos serviços públicos municipais, tais com na área da saúde e de educação com o aumento de demanda em desproporção as condições da Municipalidade de satisfaze-las.

            A sistemática de devolução ou de retorno dos benefícios financeiros auferidos somente se daria em 2 anos após o início de funcionamento da empresa.

CONCLUSÃO 

           A receita da transferência por parte do Estado Membro para o Município é derivada a partir do momento da existência da coercitividade do seu repasse sob pena de responsabilidade de que descumpre o mandamento constitucional;

            Não há que se falar em restituição de qualquer valor a qualquer empresa, uma vez que não houve recebimento indevido por parte da Municipalidade, carecendo, portanto, de fundamento jurídico essa proposta;

           Peca por inconstitucionalidade o incentivo que se pretende criar para as empresas que venham a se instalar no Município de Araçariguama, uma vez que cria uma isenção de forma indireta ao ICMS de competência do Estado e não do Município.

            Inconstitucional também, pois vincula receita a fundo ou mesmo despesa com a lei, uma vez que não limita ou mesmo explicita o limite que poderá ser gasto dentro de um determinado período.

            É vedada pela lei 4.320/64, a ajuda financeira para empresa particular, salvo no caso por ela excepcionada, o que não se aplica no presente caso;

            De igual forma veda a consignação de auxilio para investimento que incorporará diretamente ao seu patrimônio da empresa beneficiada;

            A lei, se constitucional fosse, deve especificar critérios objetivos para o enquadramento das empresas que venham a ser beneficiadas, obedecendo ao artigo 195, § 3º da Constituição Federal;.

            Contraria o § 6º do artigo 150 da Constituição Federal ao não propor a presente isenção ou incentivo em lei específica;

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[i] Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. pg. 106. Ed. RT. 06-68.

[ii] Ob. cit. p. 107.

[iii] Curso de Direito Tributário. 7ª ed. pg. 143. Ed. Saraiva. 1995.

[iv] Curso de Direito Tributário. 11ª ed., pg 29. Ed. Malheiros. 01-96.

[v] Curso de Direito Constitucional Tributário. 10ª ed. pg. 285/287. 08-97.

[vi] Júlio Mariano Júnior. Lições de Direito Tributário – Parte Geral – Copola Editora. pg. 31. 1994.

[vii] Ob. cit. p. 31.

[viii] destaque não original.

[ix] Michaelis – Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Ed. Melhoramentos. 1998.

[x] Vocabulário Prático de Tecnologia Jurídica e de Brocardos Latinos. Ed. Fase. 1991.

[xi] destaque não original.

[xii] destaques não originais.

[xiii] destaques não originais.

[xiv] TRF 4ª R. – AMS 1999.70.00.028811-0 – PR – 1ª T. – Rel. Juiz Amir Sarti – DJU 22.11.2000 – p. 125; TRF 4ª R. – AMS 1999.70.09.003962-0 – PR – 1ª T. – Rel. Juiz Amir Sarti – DJU 22.11.2000 – p. 109; TJRJ – AC 2383/1993 – (26082000) – 2ª C.Cív. – Relª Desª Leila Mariano – J. 25.04.2000.

  


Referência  Biográfica

Jomar Luiz Bellini  –  Professor de Direito Processual Civil, Teoria Geral do Processo, na Universidade de Sorocaba e Faculdade  de Direito de Itapetininga.; Doutorando em Direito Processual Civil na PUC-SP; Mestre em Direito político e Econômico pela Universidade Mackenzie-SP; Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP e Especialista em Comércio Exterior pela FECAP-SP.

Críticas às críticas ao modelo de arbitragem no Brasil

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* Enéas Castilho Chiarini Júnior 

1.0 – Introdução

O ilustre magistrado e professor, Júlio César Ballerini Silva, em magnífico artigo intitulado “Críticas ao modelo de arbitragem no Brasil”, publicado através de CD-Rom Jurídico pela editora Dominus Legis, faz severas críticas à Lei 9307/96 – Lei da Arbitragem –, e ao próprio instituto da arbitragem.

Tal artigo, por ser tão completo, conciso e bem argumentado, pode ser considerado como uma síntese dos argumentos contrários à difusão da arbitragem no Brasil.

Porém, por fazer parte de uma instituição arbitral; por ter participado de um curso de formação de árbitros, promovido pela SBDA – Sociedade Brasileira para Difusão da Arbitragem – e, finalmente, por ser advogado, comprometido, segundo parágrafo único do artigo 2º do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, com “o aprimoramento das instituições, do Direito e das leis”, devendo “pugnar pela solução dos problemas da cidadania e pela efetivação dos seus direitos individuais, coletivos e difusos…”, além de “estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo sempre que possível, a instauração de litígios”, julgo meu dever de advogado, membro de estabelecimento arbitral, e de cidadão, fazer divulgar as características positivas da arbitragem, além de desmascarar o engano daqueles que diuturnamente lutam contra a efetivação deste meio extrajudicial de solução de controvérsias.

O presente estudo visa, portanto, desfazer alguns equívocos cometidos pelo eminente jurista, e esclarecer que, ao contrário do que muitos – infelizmente – pensam, a sociedade brasileira deu, ao aprovar a referida lei, um grande e importante passo na busca da completa efetivação do texto constitucional, principalmente no que tange à cidadania e aos direitos sociais.

Júlio César Ballerini Silva, logo no início de seu texto afirma que se enganam os juristas ao “…entenderem o instituto da arbitragem como uma das soluções mais eficazes para o fenômeno denominado ‘crise do Poder Judiciário’…”, porém, tentaremos mostrar, com o presente estudo, que isso, ao contrário do que o eminente jurista pensa, é verdadeiro, além de demonstrar, também, que não faz sentido a afirmação de que a adoção da arbitragem “…trará sérios problemas sócio-políticos, econômicos e jurídicos, se aceita sem sérias reservas em nossa ordem jurídica.”

2.0 – Imposição da Globalização

O eminente jurista, faz crer – e neste particular não discordamos – que a promulgação da lei em questão é conseqüência de uma imposição do fenômeno que se convencionou chamar de Globalização.

Concordamos com ele quando afirma que:

“…não se poderá desconhecer fatores como a flexibilidade do conceito de soberania que vem sendo imposto, em sede macrofatorial, pelo FMI e outros organismos internacionais de crédito, aos governos de países da América Latina e do Sudeste Asiático…”

Em outra passagem, ele afirma, ainda, que:

“…parece claro que não se pode esquecer das considerações acima a respeito da necessidade de enfraquecimento do Poder Judiciário nacional para atender interesses de organismos financeiros internacionais, organismos esses não contentes com a existência de Constituições resguardando a dignidade humana em detrimento do capital nos chamados países emergentes…”

Nossa discórdia, referente à este tema, reside apenas no tocante aos efeitos da submissão aos interesses supra-nacionais dos “organismos internacionais de crédito”.

No momento, cabe apenas – pois esta afirmação será clareada no conjunto do texto – a alegação de que, ao contrário do que acredita nosso “adversário”, a adoção da arbitragem trará benefícios, não apenas aos “organismos internacionais de crédito”, mas também, e principalmente, a todo o povo brasileiro.

3.0 – Jurisdição para minorias

Segundo nosso douto opositor, estar-se-ia, com a adoção da arbitragem, criando uma ordem jurídica paralela, ágil e funcional, a qual somente interessaria aos “grandes conglomerados econômicos”, e da qual se excluiria parcela significativa do povo brasileiro, o qual estaria condenado a se socorrer do “falido” sistema judiciário estatal brasileiro.

Em suas próprias palavras:

“De nada adianta, portanto, um instituto que deixe à margem um grande número de cidadãos, implicando numa distribuição de Justiça célere para alguns privilegiados, e, a partir do momento que a crise do Poder Judiciário deixar de tornar um problema para os grandes conglomerados econômicos, que dispõem de grande influência junto aos Poderes Executivo e Legislativo, obviamente não mais ocorrerão, com a mesma intensidade verificada atualmente […], investimentos necessários ao Judiciário convencional, repetindo-se o fenômeno já vivenciado por outros setores estratégicos do governo […] não se pode esquecer que, embora para o governo de matiz axiológica neoliberal possa parecer sedutora a tese de resolução do problema do Poder Judiciário a custo zero, ou seja, favorecendo a criação de uma ordem jurisdicional particular e paralela, que interessará a uma minoria, estará deixando de atentar para a missão constitucional do Poder Judiciário, expressamente assegurada no mister da garantia de análise de lesões e ameaças de lesões aos direitos das pessoas residentes e domiciliadas no Brasil.”

O equívoco do eminente Júlio César Ballerini Silva, reside no fato de que, esquece-se ele que, ao difundir-se e fortalecer-se o instituto da arbitragem em âmbito nacional, estar-se-á, indiretamente, contribuindo para a diminuição da instauração de processos judiciais, reduzindo-se, assim, o volume de processos para serem julgados, o que, por um lado contribuirá para uma menor demora nos julgamentos, além de, por outro lado, possibilitar aos julgadores estatais um maior tempo para estudo de cada processo que tiver sob sua jurisdição. O resultado não poderá ser outro senão uma justiça estatal mais célere e de melhor qualidade, principal anseio da população no tocante ao Poder Judiciário.

Assim, mesmo que a arbitragem seja uma jurisdição para minorias – o que não é verdade, pois os custos do procedimento arbitral não são tão elevados como nosso opositor tenta fazer crer, principalmente se levarmos em conta que, pela velocidade de julgamento, o “mais barato”, as vezes, pode acabar sendo o “mais caro” –, ela acabará por beneficiar também aqueles que não possuem recursos para se socorrer da arbitragem, uma vez que, conforme colocado, estes terão a possibilidade de ver seus processos julgados de forma mais ágil e com melhor qualidade.

4.0 – Cidadania

Ballerini Silva afirma, também, que “…com a criação de ordens jurídicas paralelas, será cada vez mais difícil conferir efetividade aos direitos fundamentais dos cidadãos (cláusulas pétreas dentro do estabelecido no artigo 60, § 4º, inciso IV da Carta Política de 05.10.1988).”

Porém, ser cidadão não é – conforme reconhecido no trecho acima – apenas ter direitos políticos. O termo cidadão implica muito mais que isso. Implica, sobretudo, ser reconhecido como ser humano, portador de valores e dignidade próprios.

Para que se possa dizer que um indivíduo é um cidadão, é necessário que sejam efetivados direitos básicos, como na área da saúde, educação, segurança, liberdade…

É neste sentido que, em 1988, o então presidente do Congresso Nacional Constituinte, Ulisses Guimarães, se referiu à Constituição Federal como sendo a “Constituição Cidadã”, pois esta declara vários direitos individuais e coletivos que, em conformidade com a mais moderna concepção de Direitos Humanos, são indispensáveis para que o indivíduo seja considerado cidadão (para maior aprofundamento no tema, ler João Baptista Herkenhoff, “Como funciona a cidadania” da editora Valer, ou “Ética, educação e cidadania” da Livraria do Advogado, ou, ainda, “Cidadania para todos” da Thex Editora).

Sendo assim, não concordamos com o autor quando ele se preocupa com a arbitragem, fazendo crer que sua adoção seria uma afronta à cidadania, uma vez que, conforme dito, ela contribuirá para uma justiça mais célere e de melhor qualidade – o que por si só já é um avanço em termos de cidadania –, além de, conforme o próprio autor afirmou, seu fortalecimento possibilitará ao Governo Federal que, ao invés de investir maciçamente no Poder Judiciário, possa investir maior quantidade de recursos em outras áreas como a saúde, educação, segurança, lazer, meio-ambiente, etc… (não que o Judiciário não precise de investimentos, mas, ao contrário, existem outras áreas, como as citadas, que precisam, mais que o Poder Judiciário, de investimentos), o que, certamente – e ao contrário do que o autor acredita – representará um grande avanço em termos de cidadania.

5.0 – A inconstitucionalidade

5.1 – O duplo grau de jurisdição

Este autor ataca a constitucionalidade do instituto, afirmando que o mesmo não observa o duplo grau de jurisdição, que, segundo sua visão, decorreria da ampla defesa, que, por sua vez, ao lado do contraditório, seriam os pilares básicos do devido processo legal.

Nas suas próprias palavras:

“…o legislador parece ter se esquecido da existência de prerrogativas constitucionais básicas.

Veja-se, por exemplo, o disposto no artigo 5º, inciso LIV da Magna Carta, que estabelece que aos litigantes serão sempre assegurados o contraditório e ampla defesa, bem como os meios e recursos a ela inerentes.

Ora, a ampla defesa pressupõe o acesso a recursos (o texto constitucional é claro a esse respeito), que, no caso, estão sendo negados pela legislação pátria a respeito do tema.”

Porém, sobre a questão de ser, ou não, o duplo grau de jurisdição um direito assegurado pela Constituição Federal de 1988, o Eminente Relator, Ministro Sepúlveda Pertence do STF, no RHC 79785-7 – RJ, concluiu que a Constituição “…efetivamente não erigiu o duplo grau de jurisdição em garantia fundamental.”

Assim –  sob o ponto de vista jurisprudencial – não está correto o entendimento de nosso opositor, o que nos leva a conclusão de que, sob este argumento, a lei 9307/96 é constitucional.

A referida lei é também constitucional sob o enfoque doutrinário se analisarmos a exigência do duplo grau de jurisdição em conjunto com o princípio da autonomia da vontade, o qual será analisado a seguir.

5.2 – A inafastabilidade de apreciação pelo Poder Judiciário de lesão ou ameaça a Direito

O autor também ataca a constitucionalidade da referida lei ao afirmar que:

“Do mesmo modo, o inciso XXXV do mesmo artigo 5º da Magna Carta, estabelece que a lei não excluirá de apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão, de modo que norma infraconstitucional, de forma alguma, poderia impedir o acesso ao Poder Judiciário, mas, no entanto, tal não foi o pensamento do legislador pátrio, que obstou tal acesso, limitando a atuação do Poder Judiciário, aos termos do artigo 7º da lei em estudo, quando o Juiz deverá atuar apenas para conduzir a parte resistente, que tenha firmado cláusula compromissória, à instituição da arbitragem.”

Porém, a constitucionalidade do impedimento ao acesso ao Judiciário é decorrente da autonomia da vontade das partes.

É o que se depreende da leitura do artigo 1º da lei da arbitragem que afirma que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios…”

Uma vez que a lei afirma que as partes “poderão” recorrer à arbitragem, ela torna este procedimento não obrigatório, e, sendo, portanto, facultativo, ambas as partes devem estar de acordo com a instauração do procedimento arbitral.

A razão para que o procedimento arbitral deva ser convencionado pelas partes reside, justamente, no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Por este dispositivo constitucional poder-se-ia – como fez Ballerini Silva – pugnar-se pela inconstitucionalidade da Lei de Arbitragem, no sentido de que a decisão da controvérsia deveria ser tomada, exclusivamente, pelo Poder Judiciário.

Tal raciocínio, porém, utiliza o que os estudiosos da lógica chamam de argumento a contrário, o que, do ponto de vista lógico, é inconcebível.

Se a Constituição diz que o acesso ao Judiciário não será excluído, não está dizendo – como quer o referido autor – que a resolução do conflito passe, obrigatoriamente, por este Poder.

O que a Constituição afirma é que, caso seja de interesse da parte, esta poderá recorrer ao judiciário, afirmação esta que não é, de forma alguma, incompatível com a Lei nº 9307/96, uma vez que esta condiciona a instauração do procedimento arbitral à anuência de ambas as partes, ao dizer que: “as partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem…” (artigo 3º).

A autorização para se evitar o Poder Judiciário explica-se pelo fato de que somente poderão ser dirigidos ao procedimento arbitral os litígios que tratem de direito patrimonial disponível, conforme expresso no artigo 1º da Lei.

Assim, quanto a este argumento, também se chega a conclusão de que a lei em questão é, com base no princípio da autonomia da vontade, perfeitamente constitucional.

5.3 – Proibição de criação de Tribunal de exceção

O eminente jurista Ballerini Silva tenta, ainda, pugnar pela inconstitucionalidade da referida lei, ao apontar o dispositivo constitucional que proíbe a instauração de tribunal de exceção (artigo 5º, inciso XXXVII da CF/88).

Porém, o que nosso opositor se esquece desta vez é que para se fazer uma boa interpretação constitucional deve-se levar em conta o momento histórico em que a mesma foi elaborada (os diversos autores que tratam de hermenêutica – quer seja geral, quer seja constitucional – são uníssonos a respeito).

Pois bem, a Constituição foi promulgada ao fim de um regime ditatorial militar, onde eram comuns os julgamentos sumários em tribunais suspeitos, o que – por si só – justifica a presença em sede constitucional de tal garantia (além é claro de se tratar de exigência feita em decorrência dos artigos IX e X da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU).

Porém, uma boa hermenêutica não se finaliza apenas apreciando-se o momento histórico em que a Constituição foi promulgada (aqui também os autores são unânimes), mas sim ao se examinar o sistema como um todo, e, principalmente, qual a intenção do legislador ao elaborar a lei que se quer interpretar.

Assim, a intenção do Congresso Constituinte, ao inserir no corpo constitucional o referido dispositivo, foi de impedir que os futuros governos pudessem ter meios de cassar – ou caçar – seus adversários políticos – prática que era comum no antigo regime.

Nada impede, portanto, que, respeitando-se princípio da autonomia da vontade das partes, elas possam abrir mão da referida garantia constitucional, principalmente por que, segundo a lei 9307/96, somente poderá ser árbitro quem tiver a confiança das partes (artigo 13).

Ora, o conceito de tribunal de exceção é absolutamente incompatível com a presença de julgador de confiança das partes que serão julgadas.

Assim, mais uma vez, chega-se a conclusão de que a lei da arbitragem é constitucional.

5.4 – Publicidade dos atos processuais

Como se não bastasse, nosso opositor tenta, mais uma vez, pugnar pela inconstitucionalidade da lei em voga, agora apontando a obrigatoriedade de publicidade dos atos processuais estabelecida pelo inciso LX do artigo 5º da Constituição Federal.

Mais uma vez, cabe lembrar que a referida garantia de publicidade dos atos processuais foi estabelecida para se evitar os erros cometidos no passado, e que sua intenção foi, portanto, de proibir os julgamentos secretos que também eram comuns no regime militar.

O que se busca com tal dispositivo é resguardar às partes que serão julgadas a garantia de que a lei e o devido processo legal serão sempre seguidos.

Nada impede que as partes, por vontade própria, desejem, ao utilizar a arbitragem, manter em segredo toda a matéria referente ao processo, e, inclusive, o próprio processo em si.

Existem duas explicações para isso. A primeira é que o julgador, conforme dito a pouco, é pessoa de inteira confiança das partes, de forma que estas sabem que o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e outros princípios serão observados.

A segunda explicação é que, se por erro, ou má-fé de qualquer dos envolvidos, os princípios (que segundo Alexy deveriam ser chamados de regras) acima expostos não forem observados no julgamento arbitral, será possível, através do Judiciário, pedir a nulidade do julgamento, com base no artigo 32, inciso VIII da lei arbitral.

Assim, conclui-se que a lei 9307/96 é plenamente constitucional, conforme bem se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, fato este que é de conhecimento do eminente Ballerini Silva, o qual chega a afirmar:

“É bem verdade que, em recente julgamento, o Supremo Tribunal Federal, em decisão histórica não muito divulgada e difundida nos meios judiciais, a despeito de sua magnitude, reconheceu, por maioria de votos (e não pela totalidade) que a Lei nº 9.307/96 seria constitucional, a despeito das falhas apontadas…”

6.0 – Poderes do árbitro

Ballerini Silva levanta dúvidas a respeito dos poderes conferidos à figura do árbitro, afirmando que:

“…a lei adota uma postura dúbia a respeito da figura do árbitro, posto que, tal como mencionado acima, a lei equiparou-o a Juiz de Direito (artigo 18), conferindo-lhe amplos poderes instrutórios (artigo 22), atribuindo-lhe o poder de prolatar sentenças, inclusive em atendimento ao seu livre convencimento (artigo 21, § 2º), atribuindo a possibilidade de formação de coisa julgada a tais decisões (artigo 31).

E deve ser destacado que o único fundamento político da existência de um terceiro com função de julgar é, justamente, sua imparcialidade, o que deve é obtido [sic] através de uma fundamentação (com tal fundamentação permite-se conhecer o raciocínio lógico e coerente que levou à prolação da decisão, restringindo-se sobremaneira as possibilidades de arbítrio e corrupção).

Mas, mesmo a par de pretender conferir ao árbitro tais prerrogativas institucionais, a todo momento se refere o legislador à necessidade de utilização do Poder Judiciário para conferir-se efetividade ao texto legal, como se observa, v.g., no artigo 7º e seus consectários e no artigo 22, §§ 2º e 4º.

Ora, se o árbitro é Juiz de Direito, revestido de inúmeras prerrogativas de Magistrado, porque a postura dúbia de se prever a necessidade do mesmo recorrer ao Poder Judiciário tradicional para a imposição de seus atos e deliberações ? O escopo da lei, ‘a priori’ não teria sido o de promover a agilidade de julgamento, sem necessidade de se acionar um moroso e complexo Poder Judiciário ?”

Vamos por partes.

Primeiro, com relação ao “livre convencimento” do árbitro, a lei não está dizendo – conforme crê o eminente jurista – que o árbitro é livre para decidir e ponto.

A lei diz apenas que sua decisão é livre, sem dever de observar o entendimento alheio, mesmo que este entendimento não compartilhado pelo árbitro seja o do Supremo Tribunal Federal.

O árbitro, assim como todo magistrado, possui o dever de fundamentar sua sentença (se não pelo dever constitucional de fundamentação de toda decisão – artigo 93, IX –, ao menos pelo artigo 26 da lei arbitral que estabelece, explicitamente, o dever de fundamentar sua sentença).

Assim, não houve qualquer irregularidade com a expressão “livre convencimento”, apesar de que pela melhor técnica deveria ter sido expresso “livre convencimento fundamentado”. Porém, por uma hermenêutica sistemática da lei, chega-se à conclusão de que é exatamente isto que é indicado pelo citado artigo 21, § 2º.

Quanto aos poderes instrutórios, estes são indispensáveis para o julgamento.

Quanto ao efeito de coisa julgada das decisões arbitrais, estas são necessidades lógicas decorrentes da própria lei, pois não faria sentido socorrer-se da arbitragem se sua sentença pudesse ser alterada pelo Poder Judiciário.

Quanto à necessidade de socorro ao Poder Judiciário, a explicação é que o árbitro possui apenas o poder de dizer o direito das partes, nada mais. O árbitro não possui – e, por sua natureza, não pode possuir – o direito/poder de mando, principalmente com relação à terceiros sobre os quais não possui qualquer relação jurídica.

Com isto explica-se a necessidade de pedir ao Judiciário a condução sobre varas de testemunhas que se recusam a comparecer perante o tribunal arbitral (artigo 22, § 2º), ou de se pedir ao Judiciário que conceda medidas coercitivas ou cautelares (artigo 22, § 4º).

Quanto à necessidade de se recorrer ao judiciário para instauração do tribunal arbitral (artigo 7º), isto se explica, justamente, pelo fato de que o tribunal arbitral ainda não foi instaurado.

Como um árbitro, que ainda não é árbitro – pois só se torna árbitro após a instauração do tribunal arbitral –, e que, portanto, ainda não tem qualquer poder sobre as partes, poderia dar início ao procedimento arbitral?

A solução é uma só: dar início ao procedimento arbitral via Poder Judiciário.

Assim, não fazem sentido as preocupações referentes a pretensa falta de coerência com relação aos poderes dos árbitros, pois como visto, existe sim uma coerência d lei a este respeito, e, diga-se, o tratamento dispensado aos árbitros não poderia ter sido diferente. Bem andou o legislador no tocante à matéria em questão.

7.0 – Da possibilidade do julgamento por eqüidade.

A lei no seu artigo 2º, abre a possibilidade expressa das partes escolherem quais as leis que regerão a decisão da controvérsia, ou, até mesmo, se a decisão a ser tomada deverá ser exclusivamente por critérios de eqüidade.

Nosso opositor acredita que tal abertura estabelecida seria perigosa, merecendo “cuidado”, uma vez que tal possibilidade, sob seu ponto de vista, revelaria “…o aspecto puramente econômico que serviu de propulsor da edição da lei.”

Primeiramente, é bom esclarecer que o objetivo da lei é, realmente dar um tratamento diferenciado aos “direitos patrimoniais disponíveis”, conforme expresso logo em seu artigo 1º.

Segundo, cumpre lembrar que não são, portanto, passíveis de julgamento por via arbitral os direitos indisponíveis, tais como os direitos de matéria penal, tributária, família, sucessão ou direitos fundamentais.

Assim, não existe qualquer problema no aspecto – positivo – de as partes poderem escolher livremente quais as regras que deverão ser aplicadas ao julgamento.

Quanto, mais especificamente, à eqüidade, esta é, conforme definição clássica, uma lei perfeita, estabelecida apenas para um único caso concreto, e que amolda-se perfeitamente às características do caso sob julgamento.

Mais precisamente, nas palavras de Celso Ribeiro Bastos, a eqüidade “..é uma apreciação subjetiva, cujo critério reside no senso de justiça. O Código de Processo Civil de 1939, no seu art. 114, conceituava a eqüidade nos seguintes termos: ‘Quando autorizado a decidir por eqüidade, o juiz aplicará a norma que estabeleceria se fosse legislador.’" (in Curso de direito financeiro e de direito tributário, pág. 189).

Assim, não existe qualquer preocupação plausível para afirmar-se que o julgamento por eqüidade seja digno de “cuidado”, como afirmou Ballerini Silva, principalmente porque o julgamento só será por via da eqüidade se ambas as partes acordarem neste sentido, não havendo óbice para afastar a aplicação do princípio da autonomia da vontade – o qual, diga-se, é o fundamento e sustentáculo do instituto da arbitragem.

8.0 – Grande conglomerados internacionais X pequenos contratantes nacionais

Um preocupação correta do referido autor é de que:

“Seria muito difícil a uma pequena empresa nacional, como por exemplo, uma padaria, contratar um grande escritório de advocacia, com profissionais especializados em usos e costumes internacionais para enfrentar uma grande empresa multinacional que rotineiramente dispõe de grupos de escritórios de grandes internacionalistas, especializados neste tipo de pendências, como por exemplo, as grandes companhias produtoras de refrigerante, que, muitas vezes, através de suas distribuidoras, em virtude de seu nome no mercado, já impõem as vendas casadas de seus produtos, e não terão maiores obstáculos em impor cláusulas compromissórias prevalecendo-se de seu poder econômico.

Acabou-se, portanto, por legitimar o darwinismo econômico na ordem jurídica pátria…”

Porém, esqueceu-se o autor de que a lei em seu artigo 21, § 2º ordena, de forma clara, que “serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento.” (note-se que o advérbio temporal “sempre” está colocado entre vírgulas, o que aponta para uma preocupação do legislador em dar ênfase ao referido ordenamento de “sempre” se respeitar tais princípios).

Além de que, por força do artigo 32 da lei em questão, se estes princípios não forem observados, estar-se-á diante de uma sentença nula.

Assim, não existem motivos para tão grande preocupação com as desproporções econômicas existentes entre os “grandes conglomerados internacionais” e os “pequenos contratantes nacionais”, pois, apesar de, realmente, ser possível que os pequenos contratantes nacionais sejam pressionados para aderirem “…a contratos que contenham em seu bojo cláusulas compromissórias”, se houverem problemas que devam ser resolvidos por via arbitral, esta desproporção econômica não deverá dar ensejo a prejuízos no tocante a parcialidade da solução da controvérsia.

É claro que sempre existirá o problema apontado pelo autor de que os grandes conglomerados econômicos serem representados por um “grande escritório de advocacia, com profissionais especializados em usos e costumes internacionais”, enquanto que os pequenos contratantes nacionais não teriam recursos para serem representados por escritórios de advocacia de igual capacidade.

Porém, será que se este procedimento arbitral – onde exista desproporção econômica entre as partes, e, em que uma delas contrata um escritório de advocacia altamente especializado, enquanto que a outra parte contrata apenas um escritório de advocacia sem qualquer especialização – fosse julgado pelo Poder Judiciário o problema central da questão – a desigualdade entre os advogados – seria resolvido? Claro que não, este problema continuaria existindo mesmo perante o Poder Judiciário. Então, porquê se impedir a arbitragem apenas por isso?

9.0 – “Relação de consumo” & “contrato de adesão”

Afirma nosso opositor que:

“…não se desconhece a argumentação dos defensores da arbitragem no sentido de que a legislação vedaria a imposição da arbitragem, ao menos no que tange às relações de consumo.

Mas cuida-se de proteção pífia, aparente, sem maior efetividade, posto que, em primeiro lugar, e sobretudo entre empresas, se torna difícil caracterizar uma relação como sendo de consumo, e, portanto, de acordo com as regras previstas pela Lei nº 8.078/90.

[…]

Assim, uma primeira dificuldade já surgiria daí, posto que, nem sempre será possível caracterizar uma relação envolvendo um grande grupo econômico, como uma relação de consumo, e com isso não se poderia ensejar a aplicação da norma contida no artigo 4º da Lei nº 9.307/96, que, supostamente, resguardaria as relações de consumo em matéria de arbitragem.”

Porém, ao contrário do que afirma Ballerini Silva, a lei 9307/96 não veda a arbitragem em contrato de relação de consumo.

O § 2º do artigo 4º da lei é expresso no sentido de que, no tocante aos contratos de adesão – e aqui está o equívoco de acreditar-se que “contrato de adesão” seja sinônimo de “relação de consumo” – “…a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa  de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.”

Antes de mais nada, cumpre esclarecer que quando a lei fala em “instituir a arbitragem” trata-se de efetivamente instaurar o tribunal arbitral e dar início ao procedimento da arbitragem, e não de fazer constar no contrato a possibilidade futura de se utilizar de procedimento arbitral para solucionar problemas ainda não existentes, como parece ter sido o entendimento do eminente jurista.

Assim, a primeira conseqüência deste dispositivo é que, quando tratar-se de contrato de adesão, aquele que elaborou o contrato não poderá utilizar-se de sua torpeza a seu favor, alegando que a lei veda a arbitragem em contrato de adesão.

É o que se depreende da primeira parte do dispositivo, quando ele afirma que “…só terá validade se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem…”.

Assim, perfeitamente válida a arbitragem se é do aderente a iniciativa de instaurar o procedimento arbitral.

Outra conseqüência do mesmo dispositivo, é que somente poderá o elaborador do contrato de adesão se socorrer do procedimento arbitral se aquele que aderiu ao contrato tiver, “expressamente”, concordado com sua instituição. É o que decorre da parte final do dispositivo em análise.

Assim, cumpre deixar claro que não existe, ao contrário do que afirma Ballerini Silva, óbice à arbitragem em relações de consumo.

O que existe é uma preocupação, por motivos óbvios, do legislador em proteger aquele que assina um contrato de adesão.

Uma preocupação válida é a afirmação de que:

“…de nada adianta o estabelecimento formal de uma garantia em favor do consumidor, no gênero de exigir-se que a arbitragem seja instituída de forma clara e destacada do texto de um contrato, posto que, do ponto de vista da efetividade, ou o consumidor aderirá para obter o produto, ou, se discordar, não realizará o contrato (a experiência bancária esta aí para que todos possam verificar como ocorre do ponto de vista empírico).”

Realmente, esta possibilidade existe, e, certamente ocorrerá na prática, mas, se isso acontecer, poderá o aderente se recusar a instaurar o procedimento arbitral, fazendo com que a outra parte precise se socorrer do Poder Judiciário para a instauração do tribunal arbitral – aqui está mais um motivo para a possibilidade aberta pelo artigo 7º da lei –, sendo que o Poder Judiciário, após ouvir as alegações de ambas as partes, decidirá se deverá ser instituído o tribunal arbitral para solucionar a controvérsia, ou se, por outro lado, houve algum tipo de coerção por parte daquele que exigiu a anuência contratual do aderente que justifique a não instauração do procedimento arbitral.

Porém, continuando-se na leitura do artigo de Ballerini Silva, esta parece não ter sido sua preocupação, pois ele afirma que:

“Pense-se, por exemplo, no caso de um grande banco que, para efetuar o refinanciamento de uma dívida já vencida, com o devedor, imponha um contrato com uma cláusula de convenção de arbitragem, o fazendo de forma expressa e clara, com destaques e negrito para a cláusula, e através da qual se estabeleça que o árbitro seja o gerente de um outro banco, também associado à FEBRABAN, ou jurista que já tenha publicado teses justificando a cobrança de juros onzenários por instituições financeiras.

E, por mais que o consumidor saiba o que ocorre, não conseguirá obter a repactuação se não firmar a convenção, nada podendo fazer em relação ao árbitro, posto que, formalmente, não se encontram presentes quaisquer das hipóteses de impedimento ou suspeição que poderiam ser alegadas em face de um Juiz estatal (isso sem que se mencione que o critério de decisão pode ser, como já mencionado limhas atrás, o da equidade, ainda mais amplo, permitindo uma margem de discricionariedade cada vez maior, agravando-se a questão formulada).

[…]

E não que os árbitros não venham a ser imparciais, como exige a lei que o sejam, mas corre-se o sério risco de que, em contratos de adesão, se escolham representantes de classes setoriais, ideologicamente comprometidos com o desfecho da lide, o que não se pode conceber, por razões óbvias.”

Assim, mais uma vez, demonstra o autor que sua preocupação principal – mesmo que tente camuflar em forma de comprometimentos ideológicos – é com relação à imparcialidade do árbitro, esquecendo-se de que, somente poderá ser árbitro aquele que tiver confiança das partes (artigo 13), e do disposto nos, já citados, artigos 21, § 2º e 32 da lei 9307/96, sobre a nulidade da sentença que não observar, entre outros princípios, a imparcialidade do árbitro.

Por outro lado, com relação ao fato de o árbitro ser – ou poder ser – uma pessoa ideologicamente comprometida, cumpre lembrar que o magistrado aposentado João Baptista Herkenhoff, em um de seus trabalhos (Como aplicar o Direito – à luz de uma perspectiva axiológica, fenomenológica e sociológico-política – da editora Forense) demonstra que todo magistrado, como ser humano que é, possui valores pessoais os quais estão contidos em cada uma de suas sentenças.

Assim, porque se preocupar com a ideologia do árbitro quando os juízes também possuem – em maior, ou em menor grau – um comprometimento ideológico?

Mais, se ambos possuem um certo grau de comprometimento ideológico, o árbitro é escolhido de livre vontade pelas partes, enquanto que o juiz é imposto, ou por questões de jurisdição, ou por sorteio.

10.0 – Considerações finais

Com o presente estudo, o qual não pretende exaurir o tema, fica demonstrado que a arbitragem é perfeitamente constitucional, e mais, que sua difusão e aplicação prática, ao contrário do que pensam alguns, possibilitará uma relativa melhora – quantitativa e qualitativa, como visto –  do Poder Judiciário, além de propiciar que os escassos recursos econômicos das três esferas de governo possam ser direcionados para áreas de maior urgência, ampliando-se, assim, o leque de direitos sociais efetivados no mundo real, e não apenas em sede constitucional.

Assim, o fortalecimento da arbitragem no Brasil servirá para garantir uma maior cidadania, principalmente aos economicamente desfavorecidos.

Deve-se, de uma vez por todas, deixar-se de lado os aspectos de interesse de classe com que, sobretudo os magistrados – na tentativa de conservar seu Poder Social (cuja existência foi comprovada em forma de pesquisa desenvolvida por João Baptista Herkenhoff que culminou em seu livro intitulado “O Direito dos Códigos e o Direito da Vida” editado por Sérgio Antônio Fabris) – buscam combater a arbitragem, atribuindo-lhe características que não são, nem de longe, verdadeiras.

Divulgar a arbitragem, e lutar pelo seu fortalecimento no plano nacional é, portanto, dever de cidadania, com o qual todos devem contribuir para que o Poder Judiciário possa cumprir com seu dever constitucional de distribuir justiça aos que dela têm fome e sede.

  

 

Referência  Biográfica

Enéas Castilho Chiarini Júnior  –  Advogado em Pouso Alegre/MG; Pós-graduando em Direito Constitucional pelo IBDC (Inst. Bras. de Dir. Constitucional) em parceria com a FDSM (Fac. de Dir. do Sul de Minas); Capacitado para exercer as funções de Árbitro/Mediador pela SBDA (Soc. Bras. para Difusão da Mediação e Arbitragem); e Membro, desde a fundação, do Quadro de Árbitros da CAMASUL – Câmara de Mediação e Arbitragem do Sul de Minas –, é, ainda, autor de diversas matérias jurídicas publicadas em revistas do Brasil e do exterior, e em diversos sites jurídicos.

chiarinijunior@adv.oabmg.org.br


“A arbitrabilidade de controvérsias nos contratos com o Estado e empresas estatais”

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* José Emilio Nunes Pinto 

1.         As recentes decisões administrativas e judiciais envolvendo a arbitragem como mecanismo de solução de controvérsias em contratos celebrados por empresas estatais indicam uma tendência de repúdio à utilização do instituto naqueles casos.  Essa posição coloca em risco não apenas a construção correta dos princípios gerais de Direito Administrativo, dos princípios a que se sujeita a Administração Pública, os diversos dispositivos legais aplicáveis assim como a estruturação de parcerias e associações entre o Estado, suas entidades da Administração Indireta e o Setor Privado.

2.         A realidade nos mostra que, a par de suas funções típicas, o Estado, a cada momento, está mais presente na vida econômica e social, em muito como decorrência de princípios constitucionais.  O surgimento e fortalecimento do Estado empresário, mediante a inclusão da atuação na área econômica dentre as suas diversas funções, não teve por efeito diminuir o papel atribuído à iniciativa privada, mas o de criar um ambiente de atuação paralela e, mais recentemente, de interação e conjugação de esforços para superar desafios e arregimentar recursos e capacitação empresarial.

3.         Na perspectiva de atuação, o Estado se defronta com uma realidade insofismável – a escassez de dotações orçamentárias para a implantação de projetos de grande porte e a magnitude de recursos necessários à satisfação das necessidades dos cidadãos e das comunidades.  Em países como o Brasil, há uma urgência premente em se desenvolver a área de infraestrutura, condição essencial para que se propicie o desenvolvimento econômico e, por conseqüência, o atendimento adequado das necessidades sociais.  O desenvolvimento industrial e comercial dependem de uma infraestrutura adequada; a criação de empregos dependerá de que se evolua para a plenitude da atividade econômica.

4.            Instrumentos como a concessão de serviços públicos e privatização exerceram, na década de 90, importante papel na aceleração do processo de atendimento das necessidades de infraestrutura, mediante a exploração pelo setor privado de recursos de propriedade do Estado e prestação de serviços públicos essenciais.  A partir de agora, no entanto, o Estado se aproxima do setor privado para, em conjunto, desenvolverem projetos essenciais ao desenvolvimento do País.  Essas associações são conhecidas como parcerias público-privadas, identificadas pelo acrônimo PPP, e haverão de conviver com as concessões outorgadas pelo Estado e com as empresas privatizadas, exerçam elas atividades econômicas ou se dediquem à prestação de serviços públicos.

5.         Em qualquer dessas circunstâncias, assim como nos casos em que o Estado, diretamente ou por meio de sua Administração Indireta, figure como contratante, certo é que cresce o volume de negócios entre este e o setor privado, propiciando uma vasta gama de arranjos contratuais, desenhados especialmente para regular as relações entre as partes.  Exemplos desses contratos encontramos nos contratos de concessão, estes tipicamente contratos administrativos, nos contratos de construção de obras de grande porte, nos instrumentos relativos à compra e venda de bens e serviços, assim como nos arranjos contratuais destinados a regular as relações das partes no capital de empresas e sociedades de propósito específico relativas a projetos de grande porte.

6.         Basta que existam interesses em confronto para que se possa admitir o surgimento de controvérsias da mais variada natureza, desde questões relativas à interpretação de textos contratuais à ocorrência de eventos de inadimplemento; isso sem falarmos no impacto de fatos e circunstâncias em cadeias contratuais complexas, dando lugar a efeitos patrimoniais decorrentes de contratos que se situem a montante e a jusante da relação contratual controversa, dada a complexidade e integração da respectiva cadeia contratual.

7.         A arbitragem se revela, portanto, como o mecanismo adequado para a solução de controvérsias em relações contratuais da natureza das anteriormente mencionadas.

8.         Por outro lado, é importante que se tenha em mente que projetos dessa natureza não se implantam exclusivamente com o aporte de recursos próprios.  Aos recursos aportados pelo grupo empreendedor se juntam os recursos de terceiros, sejam os decorrentes de empréstimos de longo prazo tradicionais, sejam os que decorram da emissões de títulos de dívida.  Sob essa modalidade de operações estruturadas, as denominadas garantias corporativas do grupo empreendedor são substituídas pela integridade e estabilidade do fluxo de caixa que o projeto seja capaz de gerar, permitindo que o próprio projeto, em sua fase operacional, seja capaz de liquidar os empréstimos e demais obrigações financeiras incorridos para a sua implementação.  Na perspectiva dessa forma de estruturação, o surgimento de controvérsias é fator que poderá afetar a estabilidade e integridade do fluxo de caixa do projeto assim considerado, razão pela qual os financiadores desejam ver presente, em todos os contratos destinados a instrumentar o projeto em todas as suas fases, denominados genericamente de contratos do projeto, cláusula compromissória que permita que se venha a decidir por arbitragem qualquer controvérsia surgida entre as diversas partes contratantes.

9.         Ocorre, no entanto, que, neste momento, questiona-se mais e mais se a arbitragem pode ser legalmente prevista em contratos em que o Estado e/ou as empresas estatais sejam parte.  Até então, ainda que sujeitas a julgamento de recursos interpostos, as decisões administrativas e judiciais se posicionam pela ilegalidade da arbitragem nesses casos.  O que pretendemos com este Artigo é analisar as razões alegadas para ilegalidade da utilização da arbitragem nesses contratos e, em sendo possível, apresentar uma construção capaz de permitir que se superem as dúvidas e questionamentos e, consequentemente, que se traga à discussão um conjunto de argumentos fundados na lei e nos princípios de Direito Administrativo que sirvam de suporte.

10.       Em linhas gerais, as decisões que negam validade às cláusulas compromissórias se fundam (i) na violação do princípio da legalidade, (ii) na violação do princípio da publicidade e (iii) na violação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular.  Por todos esses argumentos, as decisões existentes inquinam de nulidade a cláusula compromissória e, como conseqüência, determinam a substituição da arbitragem pela submissão aos tribunais estatais ou determinam a suspensão de procedimentos arbitrais instaurados com base em cláusula compromissória com efeito vinculante.

11.            Questão paralela à discutida anteriormente, mas sempre inserida no âmbito da violação do princípio da legalidade, é o cabimento ou não da arbitragem em contratos oriundos de procedimentos licitatórios em face da linguagem contida no artigo 55, § 2º da Lei de Licitações, o qual analisaremos a seu tempo.

12.            Costuma-se afirmar, nas relações entre partes privadas, que o que não for proibido por lei, seja expressamente, seja em decorrência da análise do conjunto de normas legais e regulamentares aplicáveis, será permitido e lícito praticar.  No campo do Direito Administrativo, no entanto, essa afirmação perde sentido por aplicação do princípio da legalidade.  Segundo esse princípio, a Administração somente poderá atuar se o fizer em estrita observância às disposições legais a ela aplicáveis e às quais deve se sujeitar.  Do ponto de vista doutrinário, há vários significados atribuídos ao princípio da legalidade, mas, no que tange à questão objeto deste Artigo, entendemos que nos bastará enfocar a noção de habilitação legal.  Assim sendo, para que o Estado ou empresas estatais prevejam a arbitragem em seus contratos, necessário será que sejam detentores de habilitação legal, ou seja, que a lei os permita utilizar a arbitragem como meio de solução de controvérsias contratuais.

13.       Muito se tem dito que, a despeito de inexistir uma autorização legal genérica, inclusive que permitisse a adoção da arbitragem em contratos oriundos de procedimentos licitatórios, há leis especiais que contêm essa autorização, como é o caso das regras relativas a cláusulas essenciais de contratos de concessão nas áreas de energia elétrica, gás e petróleo, telecomunicações, transporte aquaviário e rodoviário que dispõem, ainda que utilizando linguagem diferente, sobre a utilização da arbitragem na solução de controvérsias decorrentes dos contratos de concessão.  No início deste Artigo, nos referimos a ser o contrato de concessão o contrato administrativo típico no universo de contratos tidos como desse tipo.  Por isso mesmo, nos questionamos quais as razões que determinariam que o Estado, enquanto Poder Concedente, pudesse prever a arbitragem para solução de controvérsias, enquanto ele ou qualquer de suas empresas, no desempenho de relações comerciais típicas do setor privado, não o poderiam fazer.  Parece existir nisso uma inconsistência, pois na concessão de seus direitos a terceiros pode o Estado ajustar que as controvérsias sejam solucionadas por arbitragem, enquanto que em contratos comerciais esse direito não encontraria suporte.  Esta questão intrigante deverá ser analisada sob o prisma da arbitrabilidade.

14.              A arbitrabilidade comporta dois aspectos: a arbitrabilidade subjetiva, ou seja, quem poderá ser parte num procedimento arbitral, e a arbitrabilidade objetiva, equivalendo dizer quais as questões e matérias que possam ser objeto de solução por arbitragem.

15.       As decisões administrativa e judicial a que nos referimos no início deste Artigo se fundamentam em argumentos relacionados, a um só tempo, à falta de cumprimento de requisitos necessários a assegurar a arbitrabilidade subjetiva e objetiva, decidindo-se pela ilegalidade nos casos examinados, chegando-se à suspensão de procedimentos existentes.  Na medida em que inexista lei que autorize expressamente o Estado e as empresas estatais a se utilizar da arbitragem, estes não poderiam ser legítima e legalmente partes em procedimentos dessa natureza – inarbitrabilidade subjetiva – enquanto que a predominância do interesse público sobre o particular, elemento típico do Estado e inerente à natureza das sociedades que controla, acarretaria a indisponibilidade dos direitos – inarbitrabilidade objetiva.

16.       Será realmente que é correto se afirmar que, salvo os casos mencionados nas leis relativas a setores de infraestrutura e de gás e petróleo, o Estado e suas empresas não dispõem de autorização legal para submeter litígios e controvérsias à arbitragem?  São o Estado e, em nível hierárquico inferior a ele, as empresas por ele controladas, detentores de status tal que os impeça de ser parte num procedimento arbitral?  Qual seria o fundamento do dispositivo legal contido em cada uma das leis mencionadas que permitiria a arbitragem nos contratos de concessão?  Parece-nos evidente que a questão relativa à inarbitrabilidade subjetiva nos contratos com o Estado não seja de natureza a permitir que se possa superá-la para determinadas áreas em detrimento de outras.  A prevalecer o entendimento corrente, somos obrigados a admitir a inconsistência lógica, já que o sujeito da arbitragem seria o mesmo Estado ou qualquer de suas empresas controladas.  Além disso, se impossibilidade existe à luz dos argumentos discutidos, essa impossibilidade decorre de princípios estruturais de Direito Administrativo e que não podem ser resolvidos por uma disposição legal autorizativa.  A lei administrativa se baseia em princípios consagrados pelo Direito Administrativo e não poderá ela permitir, por seu texto, o que com eles seja incompatível e não possa subsistir, já que esses princípios desempenham importante papel no desenvolvimento e sedimentação dos respectivos institutos.  Os princípios gerais, e é sempre útil que se relembre, exercem influência quando da elaboração das leis e são elemento valioso para a integração do direito.

17.            Portanto, entendemos que, a despeito de respeitáveis opiniões, não se possa tratar como exceção a matéria da arbitrabilidade subjetiva nos contratos com o Estado.  Assim sendo, somos de opinião que inexiste qualquer princípio geral que, per se, impeça o Estado e suas empresas de participar de procedimentos arbitrais.  Superado este obstáculo, entendemos, entretanto, que, por força do princípio da legalidade, a arbitrabilidade subjetiva esteja a depender de autorização legal.  Finalmente, entendemos que essa autorização geral existe e está presente no texto do artigo 1º da Lei de Arbitragem.

18.              O artigo 1º antes mencionado estatui que:

 

“Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.”

Na verdade, a Lei de Arbitragem optou por cingir a arbitrabilidade subjetiva às pessoas capazes de contratar.  Inexiste, a nosso ver, no texto de lei, qualquer traço ou sinal que permita excluir do conceito de arbitrabilidade subjetiva o Estado e as empresas por ele controladas e que integram a Administração Indireta.  O sentido da palavra “pessoas”, na forma utilizada pela lei, abrange, com recurso às disposições contidas no Código Civil, inclusive e além das pessoas físicas e jurídicas de direito privado, as pessoas jurídicas de direito público interno e, em especial, o Estado (União, Estados e Municípios), as autarquias, assim como as empresas estatais.  Portanto, o Estado e empresas por ele controladas estão devidamente autorizados a utilizar-se da arbitragem, sendo que essa autorização tem caráter geral e está inserida no texto legal que regula, no Brasil, o instituto da arbitragem.

19.       É justamente por essa razão que entendemos que as disposições relativas à arbitragem e inseridas nas leis especiais que regulamentam determinados setores e atividades não se constituem em exceção a um princípio que teoricamente impediria que o Estado e suas empresas se sujeitassem à arbitragem.  Essas leis, por não serem específicas em relação à arbitragem, estão alinhadas com a autorização geral contida na Lei de Arbitragem.  Se examinarmos o conteúdo dessas disposições, constataremos que não têm elas o objetivo precípuo de autorizar que as controvérsias surgidas nos contratos por elas regulados sejam dirimidas por arbitragem.  O foco central dessas disposições é determinar as cláusulas contratuais que são tidas como essenciais em contratos da natureza daqueles por ela regulados para assegurar a validade e legalidade dos mesmos.  Assim sendo, baseadas na autorização geral contida na Lei de Arbitragem e requerida pelo princípio da legalidade, outorgam elas à cláusula que regule a utilização da arbitragem nesses contratos o caráter de essencialidade.  É claro que, por serem leis de mesma hierarquia, a declaração do caráter de essencialidade reitera (mas, sublinhe-se, não cria) qualquer tipo de autorização legal, até porque esta já existe.

20.       No entanto, o fato de haver autorização legal para que se assegure a arbitrabilidade subjetiva nos contratos com o Estado e empresas por ele controladas não é suficiente para que se afirme que, em todos os casos, a arbitragem será aplicável.  Resta-nos, portanto, examinar a questão da arbitrabilidade objetiva nos contratos com o Estado.  A Lei de Arbitragem limitou o escopo de sua aplicação a litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.  Se, a exemplo das pessoas físicas e pessoas jurídicas de direito privado, onde nem todos os direitos em relação aos quais possam surgir controvérsias são passíveis de solução por arbitragem, o mesmo acontece com o Estado e com empresas por ele controladas.  Em vários e valiosos estudos doutrinários recentes, afirma-se que a arbitragem em contratos com o Estado e suas empresas é cabível, mas conclui-se afirmando que isso somente será verdadeiro em relação a direitos patrimoniais disponíveis.  E, em geral, para-se nessa afirmação.  A preocupação deste Artigo, a partir de então, é determinar que direitos estão sob a titularidade do Estado e das empresas por ele controladas que são, por sua natureza mesma, indisponíveis e que, consequentemente, não dariam lugar à instauração de procedimento arbitral caso surgissem controvérsias em relação aos mesmos.

21.       No encaminhamento da discussão da questão central deste Artigo, vimos insistindo na importância da arbitragem para a solução de controvérsias decorrentes de arranjos contratuais em que o Estado e suas empresas controladas são parte.  Estamos focando no campo contratual.  Se olharmos para o período em que ocorreu o desenvolvimento da teoria do contrato administrativo, constataremos que logo se concluiu que as regras de direito aplicáveis aos contratos privados, se tomadas em sua integralidade, não atenderiam aos pressupostos do Direito Administrativo.  Cotejando as regras aplicáveis àqueles contratos com as peculiaridades do papel desempenhado pelo Estado, essas regras deixavam de acomodar a questão relativa à preponderância do interesse público sobre o particular.  O papel do Estado deve ser desempenhado em prol da coletividade e essa regra se sobreporá a qualquer interesse particular.  Dessa forma, o equilíbrio das partes ao longo de toda a relação contratual e a imutabilidade dos ajustes contratuais seriam incompatíveis com a prevalência do interesse público.  Assim sendo, muito embora se tenham tomado de empréstimo regras aplicáveis aos contratos entre particulares, criou-se em favor do Estado, e porque não dizer, da Administração Pública, determinadas regras que refletem a prevalência do interesse público sobre o particular colocando-a em situação privilegiada sobre o contratante particular o que, numa relação contratual exclusivamente entre partes privadas, seria considerado ilícito.  A essas regras ou, melhor dizendo, a essas peculiaridades do contrato administrativo que o diferem do contrato entre particulares denominamos de cláusulas exorbitantes.  E quais são essas cláusulas exorbitantes?

22.       Em grande parte, as cláusulas exorbitantes foram elevadas à categoria legal e se encontram elencadas no artigo 58 da Lei de Licitações.  O texto legal as trata como prerrogativas conferidas à Administração, o que expressa a posição de supremacia da Administração sobre o particular contratado.  Dentre as cláusulas exorbitantes, podemos citar: o direito de alteração unilateral do contrato, de sua rescisão unilateral, de fiscalização de sua execução, de ocupação provisória dos bens, pessoal e serviços objeto do contrato, do acréscimo e supressão limitado a 25% do objeto do contrato, a imposição de penalidades e a inaplicabilidade da exceção de contrato não cumprido (“exceptio non adimpleti contractus”).  Evidentemente, em se tratando de cláusulas dessa natureza, certo é que a aplicação das mesmas deverá estar motivada e, em muitos dos casos, a própria lei indica as condições de aplicação ou caberá à Administração demonstrar a existência de um interesse público a proteger.

23.            Aspecto interessante é o relativo ao tratamento das conseqüências patrimoniais da aplicação das cláusulas exorbitantes pela Administração.  Constitui esse tratamento um direito indisponível?  Tomemos, por exemplo, o caso da alteração unilateral do contrato pela Administração.  Ao permitir que a Administração assim proceda, a lei, no entanto, estabelece que isso será possível para adequação do contrato às finalidades do interesse público e ressalva que os direitos do contratado deverão ser preservados.  O texto legal indica, ainda, que, nesse caso, deve-se proceder à revisão das cláusulas econômico-financeiras para a manutenção do equilíbrio contratual (art. 58, § 2º da Lei de Licitações).  Estamos diante do denominado equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, elevado à categoria de garantia constitucional, na forma do art. 37 (xxi) da Constituição Federal, o qual está regulado no art. 65, § 6º da lei de Licitações.  De uma forma ou de outra, podemos incluir o equilíbrio econômico-financeiro juntamente com o fato do príncipe e o fato da Administração dentre os eventos que determinam a mutabilidade da relação contratual, expressos em cláusulas exorbitantes e caracterizando-se, portanto, como direitos indisponíveis.  Pois bem, somos de opinião que a determinação da existência ou não do direito de invocar o equilíbrio econômico-financeiro se enquadra na categoria de direitos indisponíveis não sujeitos à arbitragem, mas, ao mesmo tempo, entendemos que a definição do mecanismo para que se restaure a equação inicial é direito disponível e, portanto, quaisquer controvérsias a ele relativa são passíveis de arbitragem, o que equivale dizer que o tratamento das conseqüências patrimoniais é matéria, a nosso ver, arbitrável.

24.       Em síntese, entendemos que, nos contratos com o Estado e suas empresas, estes dispõem de autorização legal para submeter as respectivas controvérsias à arbitragem, nos termos do art. 1º da Lei de Arbitragem (arbitrabilidade subjetiva), mas as controvérsias relativas a cláusulas exorbitantes não darão lugar à arbitragem por se caracterizarem como direitos indisponíveis, estando excluídas, portanto, do escopo da arbitrabilidade objetiva.

25.            Esclarecidos esses aspectos fundamentais, certamente questionará o leitor como essa construção se coaduna com a disposição contida no art. 55, § 2º da Lei de Licitações que é, em geral, interpretada como vedando a utilização da arbitragem e determinando o recurso ao foro estatal.  Somos forçados a concordar que, inexistindo uma forma de harmonização desses dois entendimentos contraditórios, a construção desenvolvida estará prejudicada.  Mas não nos parece ser este o caso.  Senão vejamos.

26.       Toda a celeuma em torno desse artigo decorre do uso da expressão “…que declare competente o foro da sede da Administração para dirimir qualquer questão contratual…”  Com base nessa linguagem, entendeu-se que a lei optara pelo recurso aos tribunais estatais, vedando, consequentemente, o recurso à arbitragem.  Se desvincularmos essa parte do texto do que se lhe segue, certamente seremos levados a essa conclusão.  No entanto, o texto legal continua estabelecendo que “…salvo o disposto no § 6º do art. 32 desta Lei.”  O mencionado parágrafo, por sua vez, menciona outras disposições da mesma lei que são excepcionadas de sua aplicação.  O que é importante reter, entretanto, é que todas essas disposições se referem a licitações internacionais com características excepcionais (tais como, aquelas com recursos de financiamento outorgado por organismo internacional, por agência de cooperação, para entrega de bens no exterior, assim como nos casos de licitação para aquisição de bens por unidade administrativa com sede no exterior), caso em que a aplicação obrigatória da regra do foro da sede da Administração estaria dispensada.  Ora, se analisarmos a disposição em sua integralidade, somos forçados a concluir que o uso da expressão “foro da sede da Administração” é tomado em sua acepção geográfica, ou seja, do local onde a entidade licitadora está localizada, e não no sentido de tribunal estatal.  Não faria o menor sentido a legislação permitir que, no exterior, as controvérsias se dirimissem até mesmo por arbitragem, enquanto que, no Brasil, o recurso aos tribunais estatais seria regra mandatória e inderrogável.  Por essa razão, entendemos inexistir, na Lei de Licitações, qualquer empecilho ou obstáculo à utilização da arbitragem para a solução de controvérsias oriundas dos respectivos contratos, sendo esta possível sempre e quando a controvérsia se refira a direitos patrimoniais disponíveis não decorrentes de cláusulas exorbitantes.

27.       Muito embora a construção apresentada elimina os demais argumentos que fundamentam as decisões referidas no início deste Artigo, entendemos que devamos analisar a questão relativa ao interesse público como inerente à natureza do papel desempenhado pelo Estado e por suas empresas controladas.  Reiteramos que, a nosso ver, a questão da supremacia do interesse público sobre o particular é a razão mesma de ser da existência das cláusulas exorbitantes e que, neste caso, desapareceria a razão para a sua análise em separado.  Entretanto, é importante que se examine a questão.  Somos de opinião que o interesse público é muito mais inerente à natureza da atividade desenvolvida do que da natureza jurídica de quem a desenvolve.  Se assim não fosse, estaríamos diante de uma enorme contradição.  Tomemos, por exemplo, o segmento de geração de energia elétrica.  No modelo hoje existente, esse segmento é desenvolvido, na maior parte dos casos, por sociedades de economia mista federais e estaduais, sendo que parcela minoritária está em mãos de empresas privadas decorrentes de privatização.  Por expressa disposição constitucional, os serviços de energia elétrica, em qualquer de seus segmentos, são considerados serviço público.  Em assim sendo, há neles o componente da supremacia do interesse público sobre o particular.  Portanto, se vincularmos o interesse público à natureza do capital social da empresa geradora, em nosso exemplo, chegaremos à conclusão de que as que estejam sob o controle privado poderão se utilizar da arbitragem para dirimir as respectivas controvérsias contratuais enquanto que as empresas estatais estariam impedidas de fazê-lo.  Ora, a questão é lógica antes de ser jurídica.  Como é que uma atividade idêntica poderá ser tratada de forma distinta a depender da natureza do capital social de quem a desenvolve?  Portanto, invocar, nos casos de empresas sob controle estatal no exercício de atividades de concessão igualmente desempenhadas por empresas privadas, a impossibilidade de recurso à arbitragem para solução de controvérsias, parece ser descabido e sem fundamento legal que a suporte.

28.       Outro aspecto levantado como obstáculo à utilização da arbitragem é que esta representaria uma violação ao princípio da publicidade, já que uma das características da arbitragem é ser um procedimento sigiloso.  Esta afirmação não é absoluta.  É certo que as partes podem optar por dar um tratamento sigiloso à arbitragem, mas isso dependerá do caso específico.  A Lei de Arbitragem, e a exemplo dela os regulamentos de entidades arbitrais, é silente quanto a este ponto, deixando a definição às partes.  Logo, à vista do princípio da publicidade a que o Estado e suas empresas estão sujeitos, nada impede que se elimine esse elemento dos respectivos procedimentos, razão pela qual essa argumentação não procederia.  Mas resta a questão de como se proceder nas arbitragens em que o Estado e suas empresas sejam parte, ou melhor dizendo, qual seria a extensão de aplicação do princípio da publicidade.  Certamente, o respeito a esse princípio não irá desaguar na abertura de audiências realizadas no contexto da arbitragem a todo e qualquer cidadão.  Não é isso, até porque a Lei de Arbitragem designa o árbitro como o juiz de fato e de direito, estando ele dotado dos poderes necessários para restringir o acesso à audiência às partes, seus advogados e terceiros a eles vinculados e de interesse do procedimento, em especial a reunião dos árbitros para decidir a questão e elaboração da sentença arbitral, de cujo ato nem mesmo as partes participam.  A Administração e seus agentes, por expressa disposição constitucional (art. 70 e seu § único da Constituição Federal), estão submetidos à obrigação de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, seja do Poder Legislativo, por meio dos Tribunais de Contas, seja pelo sistema de controle interno de cada Poder.  Entendemos que a aplicação do princípio da publicidade estará satisfeita na medida em que as partes sujeitas a tal obrigação reportem a esses órgãos de controle o andamento e resultados da arbitragem.  No entanto, somos de opinião, e vale ressaltar, que o fato da arbitragem em contratos com o Estado e suas empresas não se beneficiar do sigilo não exime os árbitros do cumprimento de seu dever de discrição, estando impedidos de revelar quaisquer detalhes do procedimento arbitral, salvo para os órgãos de controle externo e interno a que está sujeita a Administração e sempre que por estes solicitado.  Nos demais casos, prevalecerá o dever legal de discrição do árbitro, que contempla o sigilo.

29.       Um ponto relevante a se determinar é se a arbitragem que envolva o Estado e suas empresas controladas poderá ser fundada na equidade.  Neste ponto, somos definitivos.  Na medida em que o Estado e suas empresas estão sujeitos ao princípio da legalidade, entendemos que somente poderão prever na cláusula compromissória que a arbitragem será baseada na lei, e jamais na equidade.  A arbitragem fundada na equidade seria uma violação flagrante, a nosso ver, ao princípio da legalidade.

30.       A última questão relevante neste tema se refere à escolha do árbitro por parte do Estado e de suas empresas controladas.  Pode o Estado ou qualquer de suas empresas controladas nomear como árbitro um funcionário ou empregado público?  Entendemos que isso não será possível.  A Lei de Arbitragem, em seu artigo 13, § 6º, estabelece que o árbitro deverá, ao longo de todo o procedimento arbitral, desempenhar suas funções, dentre outras características, com imparcialidade e independência, razão porque criou declarações de independência quando de sua nomeação e criou o dever de revelar fatos e circunstâncias que possam de qualquer forma afetá-la.  Seja regido pelo regime estatutário ou CLT, o funcionário ou empregado público, conforme o caso, está adstrito ao dever de lealdade ou fidelidade à Administração e ao dever de obediência às determinações hierárquicas.  Entendemos que essa sujeição é incompatível com a condição exigida por lei do árbitro de ser independente e imparcial.  Logo, nossa posição é a de não admitir o funcionário ou empregado público como árbitro.  No entanto, essa conclusão não afeta o direito do Estado de eleger livremente o árbitro.  Poderá a escolha recair em qualquer terceiro que reúna as condições necessárias para integrar o Tribunal Arbitral, desde que não seja ele funcionário ou empregado público, da mesma forma que o particular poderá ver impugnado árbitro que indicar por não demonstrar independência ou imparcialidade.

Estamos cientes de que as conclusões contidas neste Artigo representam uma posição ousada e inovadora.  Nossa intenção é, apenas e tão somente, a de oferecer ao debate um conjunto de argumentos coerentes e que decorrem da interpretação das leis vigentes e dos princípios fundamentais de Direito Administrativo.  Acreditamos estar trazendo à discussão argumentos novos quanto à determinação dos direitos indisponíveis do Estado e de suas empresas controladas.  No mais, caberá a nós esperar que a questão seja dirimida, em caráter definitivo, por quem de direito e a quem a Constituição Federal atribui essa competência.  


Referência  Biográfica

José Emilio Nunes Pinto  –  Sócio responsável pela área de Arbitragem de Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados
jpinto@tozzini.com.br

Responsabilidade do sócio por dívida tributária

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* Marco Aurélio Bicalho de Abreu Chagas 

                     Os bens do sócio de uma pessoa jurídica comercial não respondem, em caráter solidário, pelas dívidas fiscais assumidas pela sociedade. 

                      Entretanto, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, através da de sua Primeira Seção, em decisão recente, entendeu que a responsabilidade pelas dívidas tributárias de uma empresa só pode ser imposta ao sócio-gerente, ao administrador, diretor ou equivalente, quando houver dissolução irregular da sociedade ou ficar comprovada infração à lei penal praticada pelo dirigente, ou este agir com excesso de poderes.   

                      O ministro José Delgado, definiu que – acompanhando o voto do relator do processo – de acordo com o nosso ordenamento jurídico-tributário, como está determinado no art. 135 do CTN, os sócios, ou seja, os diretores, gerentes ou representantes de pessoa jurídica são responsáveis, por substituição, pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias somente quando resultantes da prática de ato ou fato eivado de excesso de poderes ou com infração de lei, contrato social ou dos estatutos. Para José Delgado, o simples inadimplemento não caracteriza infração legal, mesmo porque, como já decidiu o próprio STJ, quem está obrigado a recolher os tributos devidos pela empresa é a própria pessoa jurídica, e sempre que deixe de recolher o tributo na data do respectivo vencimento, a impontualidade ou a inadimplência é da pessoa jurídica, não do sócio-gerente ou do diretor.
                      Logo, a solidariedade do sócio pela dívida da sociedade só se manifesta quando comprovado que, no exercício de sua administração, praticou os atos eivados das irregularidades enumeradas no caput do art. 135, do CTN. Até porque aqueles que representam a sociedade e agem de má-fé merecem, por inteiro, o peso da responsabilidade tributária decorrente de atos praticados sob essas circunstâncias, e a pessoa jurídica, com responsabilidade própria, não pode ser confundida com a pessoa de seus sócios.
                      Considera-se que essa decisão da Primeira Seção do STJ, na prática, uniformiza o entendimento das Primeira e Segunda Turmas do Tribunal, às quais incumbe o julgamento dos processos que versem sobre matéria tributária. 

                      Concluindo, essa decisão reforça a distinção que deve existir entre as duas pessoas, a jurídica e a dos sócios, que não se confundem, pois a pessoa jurídica tem vida própria, acompanhada de suas responsabilidades, sendo uma delas, in casu, a de recolher os tributos devidos nas datas aprazadas. 

                      Por conseguinte, no campo do direito tributário, no entender do professor IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, somente diretores, gerentes ou procuradores que tenham praticado atos lesivos ao Erário, por excesso de poderes ou infringência à lei, contrato social ou estatutos, podem ser responsabilizados tributariamente. (in Questões Atuais de Direito Tributário, Editora Del Rey, 1999, do autor citado, p.153).

 


Referência  Biográfica

Marco Aurélio Bicalho de Abreu Chagas  –  Advogado com especialidade nas áreas comercial e tributária.

marcoaureliochagas@hotmail.com

A reforma tributária para um novo século

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* Leon Frejda Szklarowsky 

          Há dois milênios, o economista hindu, Ratuya, já ensinava que a base de todo empreendimento são as finanças, ligando-se indelevelmente ao destino do Estado a despesa e a receita. (1)

          Sem embargo de o Estado Moderno abeberar-se noutras receitas, não menos relevantes para os países em desenvolvimento, como os empréstimos externos e outras receitas, indubitavelmente os créditos tributários constituem fonte de suma importância, para a satisfação das necessidades públicas, sujeitos, contudo, à rigidez do primado da legalidade que, desde o Rei João Sem Terra, alicerça-se no princípio básico: "no taxation without representation", do qual o Estado Moderno não deve absolutamente afastar-se.

            Ives Gandra da Silva Martins cataloga-o como o terceiro elemento do tributo. (2)

            Na Roma antiga, acha-se incrustada a experiência multissecular de um sistema tributário, que ofertou inúmeros tributos, ainda hoje destacados por muitos países. (3)

            O sistema fiscal é, na lúcida observação de L. Reboud, a. projeção da estrutura econômica e social, (4) pressupondo um sistema impositivo ideal uma combinação de impostos que assegure a satisfação das necessidades, tendo em vista os princípios fiscais fundamentais, na ensinança de Ricardo Calle Sáiz e Adolfo Wagner. (5)

            Günter Schmolders concebe um sistema fiscal preciso, matemático, calçado na inter-relação e interdependência entre os diversos impostos, isto é, na coordenação dos diferentes impostos com o sistema, econômico dominante e com os fins fiscais e extrafiscais do tributo. (6)

            Pierre Beltrame assevera que a tipologia dos sistemas fiscais pode assentar-se ou sobre critérios aparentes ou externos (v.g., carga fiscal, natureza dos impostos cobrados), ou sobre critérios internos (v.g., fundamentos sócio-políticos ou sócio-econômicos destes sistemas) (7), de sorte que o legislador deve ser extremamente cuidadoso, porque o imposto é, para G. Ardant, o índice e o guardião da liberdade. (8)

SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

            O atual Sistema Tributário Nacional nasceu com a Emenda Constitucional n. 18, de 1º de dezembro de 1965, porquanto o sistema anterior pecava pela ausência de harmonia entre as diversas tendências, aspirações e necessidades dos vários entes político-constitucionais (9), tendo a Constituição de 1967, no dizer de Bernardo Ribeiro de Moraes, estruturado o poder fiscal com a discriminação das rendas tributárias; demarcado, com muita precisão, a limitação desse poder fiscal outorgado às entidades impositivas, e, finalmente, encravado as garantias individuais que servem de suporte a esse mesmo poder fiscal (10).

            A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, abrigou os princípios fundamentais da Emenda n. 18, de 1965, consolidando os impostos de idêntica natureza, em figuras unitárias, definidas por via de referência às suas bases econômicas, antes que a uma das modalidades jurídicas que pudessem revestir, e concebendo um sistema tributário como integrante do plano econômico e jurídico. (11) A discriminação de rendas é inflexível e exaustiva, conquanto não seja incomunicável.

            O Código Tributário Nacional, editado em 1966, como lei ordinária, mas erigida posteriormente em lei complementar, por força da Constituição de 1967 e da Emenda n. 1/69, e ainda do Ato Complementar n. 36, de 13 de março de 1967, passou a ser o elemento consolidador do ideário de um sistema definido, iniciado em 1965, com a Emenda nº 18. (12)

            A Carta Política, de 1988 (13), dedica ao sistema tributário o Capítulo I do Título VI e desenha, na Seção I, os princípios gerais, atribuindo à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o poder de instituir os impostos, as taxas e as contribuições de melhoria; entretanto, só à União compete a instituição de contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de atuação nas respectivas áreas

            Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios somente poderão criar contribuições, cobradas de seus servidores, para o custeio, em seu benefício, de sistemas previdenciários e de assistência social.

            O artigo 149 é bastante incisivo e foi modificado pela Emenda Constitucional 33, de 2001, que transformou o parágrafo único em § 1º e acrescentou-lhe três parágrafos.

            A União, mediante lei complementar, pode instituir, empréstimos compulsórios para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou de sua iminência, bem como no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional. Neste último caso, deverá obediência ao princípio inserto no inciso III, b, do artigo 150, ou seja, fica vedada a cobrança de tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou.

            A permissão para instituir os tributos e as contribuições está jungida aos princípios e às limitações impostas nesse Título e a outras garantias asseguradas, implícita ou explicitamente, ao contribuinte.

            O princípio fundamental da legalidade tributária, que é estrita no Direito Tributário, vem hospedado, solenemente, pelo inciso I do art. 150, verbi gratia:

            "Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

            I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça."

            O artigo 150 sofreu alterações impostas pela Emenda Constitucional, nº 3, de 1993.

            A Constituição vigente é mais rigorosa que a anterior, porque exige lei complementar para estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente, sobre a definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados na Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes, e sobre obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários, (14) tratando de forma enérgica e induvidosa a matéria. (15)

            Estanca, de vez, possíveis indagações quanto à área de sua incidência, sem, entretanto, fechar as comportas para outras hipóteses, vez que o advérbio especialmente foi editado pela Subcomissão da Constituinte para não tornar exaustivo o elenco proposto no inciso III do art. 146.

            É a consagração plena e solidificada do princípio da legalidade, que ficou sumamente fortalecido (artigos 150, I; 49, V; 68, § 1º; etc.). (16)

            A lei complementar prevista, na Lei Máxima anterior (17), era por demais genérica, quando mandava estabelecer normas gerais de direito tributário, dispor sobre os conflitos de competência nessa matéria entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e regular as limitações constitucionais do poder de tributar. (18)

            O Texto atual introduziu sérias e profundas alterações no sistema até então vigente e contribuiu, com perdas notáveis na receita da União, em favor dos Estados e dos Municípios, com o que, efetivamente, deverá ocorrer, no mais breve tempo, a transferência de encargos e compactação da estrutura federal, sob pena de se inviabilizar essa reformulação produzida pela Constituição. (19)

            O sistema tributário brasileiro atual é uma colcha de retalho, quase um farrapo do que era, e que a poucos é dado compreender, dada a diversidade e extrema dificuldade de sua aplicação, bastante onerosa e burocratizada, provocando brutal injustiça tributária e, por via de conseqüência, a sonegação e a corrupção desenfreada que devem ser combatidas a todo custo. Não existem milagres. É preciso, todavia, a vontade política para iniciar, de vez, essa reforma.

            A verdadeira reforma tributária ainda está por vir (20), para marcar, definitivamente, os pontos cardeais do sistema tributário. Oxalá, ela se realize, brevemente, ultrapassando os entraves burocráticos e políticos em que se esbarra.

            A Constituição vigente foi alterada 44 vezes, por 38 emendas comuns e 6 de revisão, tendo sido remexida, na parte que diz respeito ao sistema tributário, 10 vezes, projetando, sem dúvida, a fragilidade de nossa Carta, que se pensava duradoira, sem retoques.

            Dez Emendas à Constituição, desde a promulgação da Carta de 88, alteraram o sistema tributário desenhado, de sorte que este, na verdade, não passa atualmente de arremedo do que foi ou pretendera ser. (21)

            O que se fez, por meio dessas mudanças, nada mais foi do que onerar cada vez mais o contribuinte e vergar a espinha dorsal do Sistema que, por si só, já não era o ideal.

            A Emenda de Revisão nº 1/94 instituiu o Fundo Social de Emergência, visando sanear financeiramente a Fazenda Pública e a estabilização econômica. Permaneceu por dois exercícios. A EC 3/93 alterou os artigos 155 e 156 da CF. A EC 12/96 criou a célebre CPMF, que poderia ter sido o início de uma verdadeira reforma tributária, mas não o foi. Constitui-se, isto sim, em mais um tributo. A EC 17/97 reinstituiu, para os exercícios de 96, 97 a 99, o Fundo Social de Emergência. EC 21/99 prorroga a CPMF e altera a alíquota desse tributo. A EC 31/2000 cria o Fundo de Erradicação de Combate e Erradicação à Pobreza.

            Enquanto isto, vaga no Congresso Nacional a PEC 175, de 1995 (Mensagem 888/95), que altera o capítulo do sistema tributário, sem qualquer perspectiva de aprovação visando o aprimoramento da instituição e a cobrança de tributos, além da Proposta de Emenda à Constituição do Deputado Marcos Cintra e outros, instituindo o Imposto sobre Movimentação Financeira, para substituir os demais tributos de natureza predominantemente arrecadatória e ampliar a proteção do contribuinte contra inovações tributárias e tem em vista aperfeiçoar o sistema tributário nacional e estabelecer normas de transição. (22)

            Por outro lado, atentando-se para o Plano do novo Governo, ao tratar da reforma tributária, este acena com perspectiva otimista e efetivamente razoável, ao declarar que a primeira das reformas que se fará, ainda no primeiro ano de mandato, é a tributária e tem como meta o aumento da eficiência econômica e a redução das desigualdades sociais através de distorções na área tributária, (23), o que não deve significar taxar uns em detrimento de outros, sob a falsa medida de igualar os desiguais, prosseguindo, assim, na linha da injustiça fiscal.

            Pois bem, pretende a simplificação do sistema tributário nacional, pondo fim à cumulatividade das contribuições e a redução da carga tributária incidente sobre a produção dos assalariados de baixa e média renda, além da modernização e profissionalização da Receita Federal e a simplificação da legislação infra-constitucional, para combater a sonegação e a elisão fiscal.

            Esta é a grande oportunidade para por fim à injustiça fiscal e, por via de conseqüência, barrar de vez a sonegação e a corrupção.

            Todos os projetos apresentados esbarram na mesma tecla. Ao invés de simplificar e desonerar o contribuinte, cada vez, mais se torna ele prisioneiro do emaranhado de complexas normas tributárias e encargos ascendentes e multiplicadores, produzindo a mais nefasta e absurda colisão de interesses da sociedade.

            O plano do Governo que se está instalando, no que diz respeito à reforma tributária, apresenta, como filosofia, um progresso, sem dúvida, muito grande, em relação ao que até agora foi proposto e dorme nos corredores do mais elevado Poder Legislativo da República.

            Não obstante, é preciso aparar as arestas, fruto, naturalmente, de preconceitos que, atualmente, não têm mais sentido, num universo que está a desafiar o estadista, em busca de novas fórmulas que se adaptem à sociedade em constante e veloz transformação.

            O que prestava, há menos de uma década, já hoje se mostra completamente inadequado, ultrapassado e fossilizado. O mundo atual é bem diverso daquele em vivêramos. Estados que se mostravam sólidos desmoronaram, por completo, sem uma gota de sangue e as ideologias que, no século passado, incendiavam o cérebro e as mentes de milhões não têm mais nenhum significado, a não ser como reminiscência histórica.

            A Medida Provisória 66, de 29 de agosto de 2002 (PLCv 31/2002), em vigor desde sua edição, até que o PLCv se converta em lei, ex vi, do § 12 do artigo 62 da Constituição, em nada minora a situação do contribuinte. Muito ao contrário.

REFORMA TRIBUTÁRIA ATRAVÉS DO IMPOSTO ÚNICO

            A idéia de se implantar o imposto único encontra cada vez mais adeptos em vista da simplicidade e facilidade de sua implantação e arrecadação, evitando-se desta feita as conseqüências nefastas de um sistema carregado e oneroso. Que não seja, porém, mais um imposto, entre tantos, que existem e sobrecarregam o súdito, como o é a CPMF.

            A carga tributária no Brasil é brutal: uma das mais elevadas dentre todos os países. O rol de impostos, contribuições e taxas é assustador, na órbita federal. Os custos e a burocratização na arrecadação constituem o problema quase insolúvel.

            Como afirmava Roberto Campos, os projetos apresentados conseguem apenas aprimorar o obsoleto e Ives Gandra da Silva Martins lamenta que, em quarenta anos de atividade, deparou-se com o que há de pior. (24)

            Marcos Cintra, no voto em separado, à PEC 175-B, DE 1995, sustenta que a sociedade não tolera mais a deterioração, a irracionalidade e a ineficiência a que chegou o sistema tributário, sem falar na iniqüidade e sobrecarga a que estão sujeitos os contribuintes. (25)

            Contudo, a idéia do imposto único não estará completa se não atingir as esferas estaduais, do Distrito Federal e dos Municípios, sem embargo da dificuldade de sua imposição, devido ao sistema federativo brasileiro. Cabe, pois, ao legislador engendrar uma fórmula capaz de, sem quebrar a espinha dorsal do molde institucional da Federação, realizar, por fim, a redenção do sacrificado contribuinte brasileiro.

            Não é crível se resolvam os problemas no âmbito federal, mas se deixe a brecha nas outras esferas. É como dar com uma mão e tirar com a outra. (26)

            Vivemos o momento exato, para operar-se essa reforma. Não há como procrastinar, sob pena de, mais uma vez, o País se debruçar em berço esplendido e sofrer profunda frustração e nada mais!

            A citada PEC, sem embargo dos bons propósitos do Deputado Marcos Cintra, digna de todos os encômios, merece uma reformulação total.

            Vale dizer, a reforma do sistema deve abranger todo o Capítulo I do Título VI da Constituição e não apenas parte dele, para dar-lhe perfeita unidade e harmonia e cerrar as comportas autorizadoras de novos impostos ou contribuições que se pretende extirpar de vez, sob pena de não ser atingido o alvo pretendido.

            É preciso, pois, aproveitar o afã do novo Governo que pretende simplificar o perverso sistema tributário vigente e considerar propostas revolucionárias, como a do imposto único, devidamente aperfeiçoada.

            As reformas devem acontecer, sem dúvida, preservando-se os direitos e garantias fundamentais, conquistados a duras penas, em séculos de civilização, tendo os governantes a obrigação de zelar por eles e não destruí-los. Nada justifica seu esmagamento em nome da boa causa ou por razões de Estado, tão comum nos Estados totalitários, de saudosa memória.

            A verdadeira justiça tributária consiste em cobrar tributos de todos, não apenas de alguns, sempre com moderação e respeito às citadas diretrizes.

            Um sistema que se preze deve fundar-se na simplicidade. Este é um princípio de fundamental significação, com a redução do ônus administrativo do governo e do custo administrativo do contribuinte. (27)

Notas

            01. Cf, Goffredo da Silva Telles Jr., "Discriminação constitucional de fontes da receita", RDP 4/125; cf., também, Leon Frejda Szklarowsky, in Curso de Direito Tributário, p. 15.

            02. Cf. Comentários ao Código Tributário Nacional, v. 3, p. 256. Sobre o "princípio da legalidade", consultem-se, ainda, os trabalhos de Ayres F. Barreto, Anna Emilia Cordelli Alves, Antônio José da Costa, Aurélio P. Seixas, Carlos Celso da Costa, Cecília Maria Marcondes, Célio Batalha, Dejalma de Campos, Dirceu Pastorello, Edda Maffei, Fábio de S. Coutinho, Ulhôa Canto, Hugo Machado, Ives Gandra Martins, José E. Soares de Melo, Ricardo M. de Oliveira, Vittorio Cassone, Wagner Balera, Ylves J. Guimarães, Yonne D. de Oliveira e Yoshiaky Ichihara, nos Cadernos de Pesquisas Tributárias, n. 6, coordenado pelo Prof. Ives Gandra da Silva Martins. Ainda, de Alberto Xavier, Os princípios da legalidade e da tipicidade tributária; e, de Víctor Uckmar, Princípios comuns de Direito constitucional tributário cit.

            03. Cf. Sílvio Meira, Direito Tributário Romano, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1978.

            04. Cf. Système fiscaux et marché commun. Cf., ainda, H. Brochière P. Tabatoni, Economie financière.

            05. Cf. Sistemas fiscales contemporaneos.

            06. Cf: Teoria general de impuesto, p. 221, e En torno a un sistema fiscal nacional, Finanzarchiv, trad. espan., Tomo 2, 3º. cuaderno, 1949. Consultem-se, entre outros, Política Fiscal em América Latina, compilado por Arturo C. Porzecanski, e textos de Carlos A. Aguirre, Hessel J. Boas, Richard M. Bird, Milka Casanegra, Raja J. Chelliah, Cyril Enweze, Michel Guerard, Albert G. Hart, Teruo Hirao, Margaret R. Kelly, George E. Lent, Richard A. Musgrave, Vito Tanzi e Luc De Wulf; de René David, Los grandes sistemas jurídicos contemporáneos; Théorie économique de finances publiques, 1946, de Maison; Manual de ciência das finanças, de A!berto Deodato, 12ª. ed.

            07. Cf. Os sistemas fiscais, traduzido por J. L. da Cruz Villaça, com o apêndice "Perfil do sistema constitucional tributário brasileiro" elaborado por Marco Aurélio Greco, pp. 14 e ss.

            08. Cf. Théorie sociologique de l´impôt. Consultem-se, também, os Cahiers de droit fiscal international, relatórios anuais dos Congressos da IFA.

            09. Cf. Bernardo Ribeiro de Moraes, in "Sistema Tributário Constitucional de 1969", Curso de Direito Tributário, v. I; Ives Gandra da Silva Martins, in Comentários à Constituição do Brasil, cit., v. 6, t. 1, pp. 16 e ss.; Leon Frejda Szklarowsky, in Curso cit., p. 20. Historicamente, o Ato Adicional de 1834 foi a fonte primária das diretrizes fundamentais da discriminação de rendas ao ofertar às Assembléias Legislativas Provinciais o poder de decretar impostos. Vide, também, Waldemar M. Ferreira, História do Direito e Martins Júnior, História do Direito Nacional, 2ª. Ed.

            10. Cf. RDP 2/80 e ss. Consultem-se: "O Relatório e a Anteprojeto da Comissão de Reforma da Discriminação Constitucional de Rendas Tributárias", publ. da Fundação Getúlio Vargas, in Reforma da Discriminação Constitucional de Rendas, lª. ed., v. 6; de Geraldo Ataliba, Sistema constitucional brasileiro, 1ª ed.; de Rubens Gomes de Sousa, "O sistema tributário federal", RDA 72/122; de Yonne Dolácio de Oliveira, o ´Sistema constitucional tributário", in Curso de Direito Tributário, cit., pp. I e ss.; de Aliomar Baleeiro, Curso de Direito Tributário brasileiro, l0ª ed., atualizada por Flávio Bauer Novelli; Aliomar Baleeiro, Limitações constitucionais ao poder de tributar, 2.a ed., 1960; de Amílcar de Araújo Falcão, Sistema tributário brasileiro, 1ª. ed.; de Ruy Barbosa Nogueira, Curso de Direito Tributário,5ª ed.; de Clóvis de Andrade Veiga, Sistema tributário na Constituição de 1967; de J. Motta Maia, Novo Sistema tributário nacional, 2ª ed.; de Dejalma de Campos e Vittorio Cassone, "Limitações ao poder de tributar", em obra publicada pela Academia Brasileira de Direito Tributário, em co-edição com a Ed. Resenha Tributária, 1968, contendo teses apresentadas no I Congresso Nacional de Estudos Tributários, pp. 85 e ss.; Anais do Simp6sio sobre o Sistema Tributário Nacional, realizado pela Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados, 1981, Brasília.

            11. Cf. Ruy Barbosa Nogueira, in ob. cit.; Fábio Fanucchi, in Curso de Direito Tributário Brasileiro, 4º ed., v. 1, p. 44.

            12. Cf. Hamilton Dias de Souza, in Direito Tributário, coordenado pelo autor, Henry Tilbery, e Ives Gandra da Silva Martins, v. 3.

            13. Cf. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, 19ºª edição, com as alterações adotadas pelas emendas constitucionais de nº 1, de 1992, a 38, de 2002, e pelas Emendas de Revisão de nºs 1 a 6, de 1994, Centro de Documentação e Informação – Coordenação de Publicações – Brasília – 2002 – Câmara dos Deputados.

            14. Cf. art. 146. III, a e b.

            15. Ives Gandra da Silva Martins confessa seu desalento pela atual redação, porquanto, aduz, o texto anterior "não estabelecia qual seria o campo pertinente As normas gerais, estalajando o princípio de que as normas gerais são – não por força de sua essência, mais do que por força de sua exteriorização" in Comentários cit., v. VI, p. 84.

            16. Neste sentido, Hugo de Brito Machado, in Os princípios jurídicos dá tributação na Constituição de 1988, p. 19.

            17. Cf. artigo 18, § 1°, da CF de 1967, alterada pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969.

            18. A lei complementar é lei nacional, produzida pelo Congresso Nacional, não como poder federal (local), mas de toda a Nação. Neste sentido, a doutrina pátria. Sobre o sistema tributário nacional, na atual Constituição, examinem-se, por oportuno, de Ives Gandra da Silva Martins, o Sistema tributário nacional, 2.ª ed.; de Vittorio Cassone, o Sistema tributário nacional na nova Constituição; de Roberto Piscitelli, Mário Tinoco da Silva, Francisco Giffoni e José Rui Gonçalves Rosa, O sistema tributário na nova Constituição; de Sacha Calmon Navarro Coelho, Comentários à Constituição de 1988. Sistema Tributário, 2ª. ed.

            19. Cf. os trabalhos de Mário Tinoco da Silva e Roberto Piscitelli, in Sistema cit.

            20. Cf., entre outros, nosso trabalho na Revista dos Procuradores da Fazenda Nacional, 2/98, Editora Forense, p. 78; e no Correio Brazilienze, Suplemento Direito & Justiça, de 4.8.97 e no Suplemento Tributário LTR 75/97.

            21. Cf. ECs 3/93, 12/96, 17/97, 21/99, 27/2000, 29/2000. 31/2000, 33/2001 e 37/2002.

            22. Cf. PEC 474/2001. Na Comissão Especial, foi, até o momento (10de dezembro de 2002), aprovado o parecer do relator pela admissibilidade das emendas 1, 2 e 3/02; no mérito, pela aprovação da PEC 474-A, de 2001, e, pela rejeição das emendas 1,2 e 3/002, e da Proposta de Emenda à Constituição 183-A, de 1999. Fonte: site da Câmara dos Deputados – http://www.camara.gov.br/.

            23. Cf. Plano de Governo Lula, no site http://www.pt.org.br/. e http://www.estadao.com.br/

            24. Apud A Reforma Tributária como farsa, de Marcos Cintra, in Folha de São Paulo, de 6 de junho de 2000.

            25. Cf. volume VI, publicação, em separado, da Secretaria Especial de Editoração e Publicação do Senado Federal.

            26. Cf. nosso Imposto Único, in Revista Jurídica Consulex nº 120, de 15 de janeiro de 2002.

            27. Cf. nossa Reforma Tributária, na Revista Jurídica Consulex n° 142, de 15 de dezembro de 2002. 

  


Referência  Biográfica

Leon Frejda Szklarowsky  –  é mestre e especialista em Direito do Estado, juiz arbitral da American Association’s Commercial Pannel, de Nova York; membro da membro do IBAD, IAB, IASP e IADF, da Academia Brasileira de Direito Tributário, do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, da International Fiscal Association, da Associação Brasileira de Direito Financeiro e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Integra o Conselho Editorial dos Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, da Editora Revista dos Tribunais, e o Conselho de Orientação das Publicações dos Boletins de Licitações e Contratos, de Direito Administrativo e Direito Municipal, da Editora NDJ Ltda. É co-autor do anteprojeto da Lei de Execução Fiscal, que se transformou na Lei 6830/80 (secretário e relator); dos anteprojetos de lei de falências e concordatas (no Congresso Nacional) e autor do anteprojeto sobre a penhora administrativa (Projeto de Lei do Senado 174/96). Dentre suas obras, destacam-se: Execução Fiscal, Responsabilidade Tributária e Medidas Provisórias, ensaios, artigos, pareceres e estudos sobre contratos e licitações, temas de direito administrativo, constitucional, tributário, civil, comercial e econômico.

leonfs@solar.com.br

Cláusulas que autoriza desconto em conta-corrente para pagamento de empréstimo: sua abusividade quando ilimitada

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* Demócrito Reinaldo Filho

Tem se tornado comum o ajuizamento de ações (cautelares ou ações ordinárias com pedido de tutela antecipada), perante as varas cíveis da Justiça dos Estados, para impedir o desconto em conta-salarial relativo a empréstimo tomado por servidor público. Os autores dessas ações (consumidores de serviços bancários) argumentam que a cláusula contratual que permite o desconto (como pagamento das parcelas de empréstimo) em conta-corrente é flagrantemente abusiva, além de que viola o art. 649, IV, do CPC, que proíbe a penhora de vencimentos de servidor público, uma vez que possuem conteúdo alimentar. Com fundamento nessa argumentação, em geral requerem liminar para impedir que o banco por onde recebem sua remuneração (através da conta-salarial) proceda aos descontos relativos a empréstimo antes contraído. Por seu turno, as instituições bancárias redargúem com a alegação de que essa forma de pagamento (quando prevista em cláusula contratual) não apresenta nenhuma abusividade, na medida em que traz vantagens ao consumidor (contratante), já que se beneficia de taxas de juros bem inferiores àquelas que são usualmente praticadas no mercado financeiro, taxas essas que somente são possíveis face à garantia ofertada ao banco quanto aos pagamentos a serem realizados, ou seja, através de desconto em conta-corrente.

O que temos verificado é que ainda não há uma orientação firme sobre essa questão, existindo uma acentuada divergência jurisprudencial sobre a natureza da cláusula que permite o pagamento das parcelas de empréstimo bancário mediante o desconto direto (automático) em conta-corrente. Essa situação de indefinição de rumo jurisprudencial é que me anima a tecer algumas considerações sobre o problema, na esperança de poder contribuir para a dissipação do impasse.

Antes, todavia, de passar aos meus próprios argumentos, permito-me fazer o cotejo de alguns arestos – e não são muitos – já publicados sobre o tema. Limito-me a citar acórdãos do STJ, já que ele é que tem a missão institucional de uniformizar a jurisprudência nacional em matéria legal, não tendo sentido prático analisar o dissenso jurisprudencial em cortes inferiores quando esse já se instalou na corte superior. 

Na posição de defesa da legalidade da cláusula autorizadora do desconto, encontramos registro de apenas um acórdão, da relatoria do Min. Sálvio de Figuerêdo Teixeira, assim ementado: 

“DIREITO DO CONSUMIDOR. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PRECEDENTES. CLÁUSULA ABUSIVA. ART. 51, IV, CDC. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. RECURSO DESACOLHIDO.

I – Na linha da jurisprudência desta Corte, aplicam-se às instituições financeiras as disposições do Código de Defesa do Consumidor.

II – Não é abusiva a cláusula inserida no contrato de empréstimo bancário que versa autorização para o banco debitar da conta-corrente ou resgatar de aplicação em nome do contratante ou coobrigado valor suficiente para quitar o saldo devedor, seja por não ofender o princípio da autonomia da vontade, que norteia a liberdade de contratar, seja por não atingir o equilíbrio contratual ou a boa-fé, uma vez que a cláusula se traduz em mero expediente para facilitar a satisfação do crédito, seja, ainda, por não revelar ônus para o consumidor.

III – Segundo o magistério de Caio Mário, "dizem-se […] potestativas, quando a eventualidade decorre da vontade humana, que tem a faculdade de orientar-se em um ou outro sentido; a maior ou menor participação da vontade obriga distinguir a condição simplesmente potestativa daquela outra que se diz potestativa pura, que põe inteiramente ao arbítrio de uma das partes o próprio negócio jurídico". [….] "É preciso não confundir: a ‘potestativa pura’ anula o ato, porque o deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes. O mesmo não ocorre com a condição ‘simplesmente potestativa’". (STJ, Recurso Especial nº 258103, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 23/03/2003, DJ 07/04/2003 .

Em sentido contrário a esse posicionamento, pode ser citado acórdão da relatoria do Min. Ruy Rosado de Aguiar, em cuja ementa se assentou:

“CONTA CORRENTE. APROPRIAÇÃO DO SALDO PELO BANCO CREDOR. NUMERÁRIO DESTINADO AO PAGAMENTO DE SALÁRIOS. ABUSO DE DIREITO. BOA-FÉ.

Age com abuso de direito e viola a boa-fé o banco que, invocando clásula contratual constante do contrato de financiamento, cobra-se lançando mão do numerário depositado pelo correntista em conta destinada ao pagamento dos salários de seus empregados, cujo numerário teria sido obtido junto ao BNDES.

A cláusula que permite esse procedimento é mais abusiva do que a cláusula mandato, pois, enquanto esta autoriza apenas a constituição do título, aquela permite a cobrança pelos próprios meios do credor, nos valores e no momento por ele escolhidos” (STJ-4a. Turma, REsp 250523-SP, rel. Ruy Rosado de Aguiar, j. 19.10.00, DJ 18.12.00).

No mesmo sentido:

“BANCO. COBRANÇA. APROPRIAÇÃO DE DEPÓSITOS DO DEVEDOR.  O banco não pode apropriar-se da integralidade dos depósitos feitos a título de salários, na conta do seu cliente, para cobrar-se de débito decorrente de contrato bancário, ainda que para isso haja cláusula permissiva no contrato de adesão” (REsp 492777-RS, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 05.06.03, DJ 01.09.03)

Também no mesmo sentido, da relatoria do Min. Aldir Passarinho: 

“CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. APROPRIAÇÃO, PELO BANCO DEPOSITÁRIO, DE SALÁRIO DO CORRENTISTA, A TÍTULO DE COMPENSAÇÃO DE DÍVIDA. IMPOSSIBILIDADE. CPC, ART. 649, IV. RECURSO ESPECIAL. MATÉRIA DE FATO E INTERPRETAÇÃO DE CONTRATO DE EMPRÉSTIMO. SÚMULAS n. 05 e 07 – STJ.

(…)

Não pode o banco se valer da apropriação do salário do cliente depositado em sua conta corrente, como forma de compensar-se da dívida deste em face de contrato de empréstimo inadimplido, eis que a remuneração, por ter caráter alimentar, é imune a constrições dessa espécie, ao teor do disposto no art. 649, IV, da lei adjetiva civil, por analogia corretamente aplicado à espécie pelo Tribunal a quo” (STJ-4a. Turma, AGA 353291-RS, rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, j. 28.06.01, DJ 19.11.01).

Como se observa, há um verdadeiro dissenso no seio do próprio STJ quanto à questão em causa, ou seja, se a cláusula que admite o desconto em conta-corrente é abusiva ou não. Isso pode ser explicado pela circunstância de que o conceito de abusividade extrai-se de norma do tipo aberta, onde o legislador apenas enuncia elementos que auxiliam o seu aplicador na tarefa de, diante de um caso concreto, diagnosticar a natureza da cláusula contratual. Com efeito, o legislador consumerista, ao estabelecer a lista de cláusulas abusivas do art. 51, enumerou os tipos de maneira apenas indicativa ou exemplificativa, estabelecendo uma disposição geral (inc. IV do art. 51 c/c o parágrafo 1o. do mesmo artigo) que serve na definição das hipóteses não previstas expressamente. A técnica utilizada foi a de criar uma lista composta de tipos perfeitamente explicitados e de um tipo geral, que serve de parâmetro ao juiz na apreciação do caráter abusivo das condições gerais. Localiza-se no inciso IV do art. 51 e no seu parágrafo 1o., estando assim redigida:

“IV- (são nulas de pleno direito as cláusulas que) estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé e a eqüidade.

(…)

Parágrafo 1o. Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:

I-   ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;

II- restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual;

III- se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso” (grifos nossos).

 Pois bem, não se subsumindo uma determinada cláusula àquelas outras hipóteses expressamente identificadas como abusivas, o Juiz tem que se valer do inc. IV do art. 51, que, como se disse, constituiu uma tipicidade aberta.

Foi valendo-se dessa norma aberta que o Min. Sálvio de Figueiredo, chegou à conclusão de que a cláusula que permite o desconto em conta corrente não é abusiva. Ele não considerou presentes os elementos do par. 1o. do art. 51, que delineiam o que vem a ser “vantagem exagerada”. Disse o Ministro: “Primeiro, autorizar o débito em conta corrente não ofende o princípio da autonomia da vontade, que norteia a liberdade de contratar. Segundo, a cláusula não atinge o equilíbrio contratual ou a boa-fé do consumidor, uma vez que se traduz em mero expediente para facilitar a satisfação da dívida perante o credor. Terceiro, a autorização constante do contrato, por si só, não revela ônus para o consumidor, muito menos ônus excessivo”.

Já os Ministros Ruy Rosado de Aguiar e Aldir Passarinho Júnior, realizando a mesma operação, adotaram conclusão diferente – de que a dita cláusula é realmente abusiva. O Min. Aldir Passarinho, como visto na ementa do acórdão por ele relatado, ainda acrescenta o argumento de que “o banco não pode se valer da apropriação do salário do cliente depositado em sua conta corrente, como forma de compensar-se da dívida deste em face de contrato de empréstimo inadimplido, eis que a remuneração, por ter caráter alimentar, é imune a constrições dessa espécie, ao teor do disposto no art. 649, IV, da lei adjetiva civil”.

Pessoalmente, adoto uma posição intermediária, no sentido de que a autorização de desconto em conta-corrente dada contratualmente não é em si abusiva; a abusividade reside na falta de limites para o desconto, quando absorve toda ou parte substancial da verba salarial do correntista (consumidor). Explico:

Não me parece consistente o argumento de que a preexistência da regra do art. 649, IV, do CPC, impede esse tipo de pacto. Ela não obsta que o contraente (devedor), por ato voluntário, aceite em facilitar a forma de pagamento do empréstimo contraído. Quando o legislador tornou impenhorável a verba salarial, que tem caráter alimentar, o fez no intuito de proteger a sobrevivência material da pessoa, impedindo que o pagamento das dívidas recaia sobre essa parcela de seu patrimônio, destinada (em teoria) à sua alimentação e sobrevivência. Isso não quer dizer, no entanto, que o titular da conta salarial não possa, por ato voluntário, dispor de parte dela, como expediente para facilitar a satisfação de uma dívida, desde que isso importe em vantagem para ele próprio.

É o caso justamente do contrato de crédito em conta-corrente, que tem taxas de juros abaixo das que são cobradas usualmente no mercado financeiro. Para obter taxas mais vantajosas, o consumidor (correntista) permite que o credor possa satisfazer eventual saldo devedor mediante simples desconto na conta-corrente (salarial). Esse tipo de garantia concedida ao fornecedor (instituição financeira) funciona diminuindo o custo do crédito. Como se sabe, são oferecidas várias taxas de juros no mercado financeiro, que refletem a multiplicidade de fatores de risco. Cada uma delas está associada a mecanismos específicos de recuperação dos recursos emprestados, caso os tomadores de crédito se tornem inadimplentes. Em regra, quanto melhor o tipo de garantia oferecida, maior a possibilidade de ser menor a taxa de juros. Se ao oferecer a garantia de desconto automático em conta-corrente, o consumidor recebe por outro lado o benefício de uma taxa de juros menos elevada, não se pode afirmar que cláusula dessa natureza o coloque em situação de “desvantagem exagerada”. Impor que a recuperação dos recursos emprestados pelo financiador só se faça pelos meios executivos tradicionais, perante o Poder Judiciário, pode resultar, aí sim, em desvantagem para o próprio tomador do crédito (consumidor).   

De certa forma, a permissão para o comprometimento, por ato voluntário, de parte (não substancial) da verba salarial já está prevista em lei. Em relação aos empregados do setor privado (regidos pela CLT), a Lei n. 10.820, de 17 de dezembro de 2003, dispôs sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento. Estabelece esta Lei que os empregados podem autorizar o desconto em folha de pagamento dos valores referentes a empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil (art. 1o.). O desconto pode, inclusive, incidir sobre verbas rescisórias, desde que limitado a 30% (par. 1o. do mesmo artigo). Os inativos (aposentados e pensionistas) que recebem benefícios pelo INSS também estão autorizados pela Lei a contratar empréstimos mediante desconto em folha (art. 6o.). Já em relação aos servidores públicos civis (da União), o Decreto n. 4.961, de 20 de janeiro de 2004, que regulamenta o art. 45 da Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, também permite que eles autorizem consignações em suas folhas de pagamento, para cobertura de certos tipos de empréstimo (a exemplo de financiamentos para aquisição de imóveis residenciais e empréstimo concedido por entidade de previdência privada) – art. 4o., incs. VI e VII.

Essas situações (legais), embora não idênticas ao caso de desconto direto em conta-corrente, guardam uma certa relação com ele, podendo ser tomadas por analogia. Elas evidenciam que é possível, sim, que o titular das verbas salariais, seja ele empregado da iniciativa privada ou servidor público, comprometa parte delas com o pagamento de empréstimos, autorizando a imediata apreensão e repasse dos valores ao credor, sem que este seja obrigado a cobrá-los junto ao Poder Judiciário, em meio a um processo de execução. As verbas salariais, embora tendo o caráter da impenhorabilidade, podem ser disponibilizadas livremente pelos titulares, até um determinado limite, sem que isso configure violação ao art. art. 649, IV, do CPC.

Cláusula contratual que autoriza o desconto em conta-corrente, por analogia às situações de consignações em folha de pagamento, não padece de uma abusividade inerente. O débito automático de parcelas de financiamento em conta-corrente pode atender interesses de ambos os contratantes e, por essa razão, não desequilibra a equação contratual. Não ofende princípios fundamentais do sistema jurídico e nem restringe direitos do consumidor, não podendo ser considerada como excessivamente onerosa para ele. Não me parece suficiente forte de modo a caracterizar a abusividade a alegação de que “a autorização para desconto dá margem a abusos, pois facilita que o financiador (credor) inclua encargos abusivos e taxas que somente instituições bancárias sabem manipular”. Isso se resolve pela obrigação (que já consta da Lei, art. 52 do CDC) de o financiador ter de informar, prévia e adequadamente (por ocasião da assinatura do contrato), sobre taxa de juros, acréscimos legais, número e periodicidade das prestações e soma total a pagar. Já durante a fase de execução do contrato, tem ele que informar, no demonstrativo de movimentação da conta-corrente, de forma discriminada, o valor do desconto mensal decorrente da operação de empréstimo, bem como os custos operacionais e quaisquer encargos incidentes. Plenamente informado dos valores descontados, e não concordando com eles, o consumidor terá sempre a via do Judiciário para questionar eventuais abusos (art. 5o., XXXV, da CF).

A abusividade nasce quando se permite que o desconto se faça de forma ilimitada, sem atender à preservação de um mínimo suficiente ao sustento do contraente (consumidor). Se a cláusula permite ou traduz uma apropriação de todo o salário do contratante (ou de parte considerável) aí, sim, ela é dotada ou adquire abusividade, porque passa a infringir princípios fundamentais do sistema jurídico brasileiro, que busca preservar o salário da pessoa (empregado ou servidor público) para o seu sustento e de sua família.     

Por isso, na ausência de uma limitação ao desconto, o Judiciário pode (e deve) intervir na relação contratual, de modo a restabelecer o equilíbrio entre as partes, modificando a cláusula contratual que estabelecera a prestação desproporcional (art. 6o, V, do CDC). Por analogia às Leis que regulamentam as consignações em folha de pagamento, a autorização para desconto em conta-corrente não deve comprometer mais que 30% do salário creditado mensalmente – o inc. I, do par. 2o. do art. 2o., da Lei n. 10.820, estabelece que a soma dos descontos em folha do empregado não pode exceder a 30% da remuneração disponível; o art. 11 do Dec. 4.961/04 também limita a soma mensal das consignações facultativas do servidor a 30% dos seus vencimentos.

Diga-se, aliás, que é exatamente isso o que já vem fazendo certos tribunais e juízos inferiores, limitando o percentual do desconto ao patamar de 30% sobre os créditos em conta-salário do devedor (consumidor). Por oportuno, reproduzo acórdãos que expressam essa tendência jurisprudencial:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. MÚTUO BANCÁRIO. DESCONTO EM CONTA CORRENTE. 30% DO VENCIMENTO LÍQUIDO.

Não há nulidade na cláusula que permite o desconto em conta corrente para adimplemento de mútuo bancário. Se a conta corrente foi aberta somente para recebimento dos vencimentos, é de se limitar os descontos a 30% do vencimento líquido mensalmente depositado” (TJDF-4a. Turma Cível, AGI 2003002009363-9, rel. Dês. Silvânio Barbosa dos Santos, j. 04.12.03)

 Ainda:

 “EMBARGOS INFRINGENTES – AÇÃO ORDINÁRIA – EMPRÉSTIMO BANCÁRIO – PAGAMENTO EM PARCELAS MENSAIS E SUCESSIVAS – DÉBITO EM CONTA CORRENTE – LEGALIDADE

Não se vislumbra qualquer ilegalidade no pacto que autoriza o desconto do empréstimo bancário contraído, mediante desconto mensal das prestações na conta corrente do devedor.

Isso só não seria possível se a quantia fosse equivalente ao total dos vencimentos do devedor, de forma a impedir o sustento do devedor e de sua família” (TJDF, 2a. Câm. Cív., EIC n. 1998011060170-0, rel. designado Des. Haydevalda Sampaio).

A solução justa e que atende à eqüidade contratual e os princípios fundamentais do sistema jurídico brasileiro está em limitar o comprometimento da verba salarial a patamar razoável. O Juiz deve intervir no contrato de consumo para garantir a razoabilidade da cláusula, preservando o pacto e afastando prejuízo (alimentar) para a parte devedora (consumidor).

 


Referência  Biográfica

Demócrito Reinaldo Filho  –  Juiz de Direito

demo@infojus.com.br

Microempresa e os Juizados Especiais Cíveis

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* Maurício Cozer Dias 

     Numa rápida pesquisa pelos Juizados Especiais de nossa comarca e de comarcas próximas, constata-se a pouquíssima propositura pelas microempresas de ações perante os Juizados Especiais, não sendo utilizado esse tão importante mecanismo de tutela jurisdicional.

    A Lei nº 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, adotou como regra a admissão apenas de pessoas físicas como partes legítimas ativas, por força de seu artigo 8º, §1º. Tal regra justifica-se uma vez que os Juizados Especiais Cíveis foram criados para agilizar a prestação jurisdicional aos cidadãos, dando solução ágil a demandas de menor complexidade.

    Essa foi a regra que se generalizou entre os operadores de Direito, da admissão apenas de pessoas físicas como partes legítimas nos Juizados Especiais. Porém, posteriormente, a Lei nº 9.099/95, o legislador houve por bem estender o benefício do acesso aos Juizados Especiais às microempresas, em razão de sua grande importância na economia de qualquer país.

    Assim, o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, dispôs sobre o tratamento diferenciado, simplificado e favorecido, conforme mandamento constitucional previsto nos artigos 170 e 179 da Constituição Federal.

    O Estatuto, Lei nº 9.841/99, possibilitou em seu artigo 38, que tão somente as microempresas gozem do benefício de acesso aos Juizados Especiais, conforme abaixo transcrito:

“Art. 38. Aplica-se às microempresas o disposto no §1º do art. 8º da Lei nº 9.099/95, de 26 de setembro de 1995, passando essas empresas, assim como as pessoas físicas capazes, a ser admitidas a propor ação perante o Juizado Especial, excluídos os cessionários de direito de pessoas jurídicas.”

    Para que as microempresas possam se utilizar do permissivo legal, basta que demonstrem seu enquadramento juntando documentação expedida pela Junta Comercial do respectivo Estado, passando a ter todos os direitos atribuídos ao cidadão pela lei dos Juizados Especiais, tais como: pedido contraposto, representação por preposto, falcutatividade de assistência por advogado nas causas até 20 (vinte) salários mínimos.

    Caso ocorra posteriormente ao ajuizamento de ação perante o Juizado Especial, desenquadramento da pessoa jurídica como microempresa, o feito deverá ser extinto sem julgamento do mérito, em face da perda superveniente de capacidade de ser parte no Juizado Especial.

    Infelizmente, essa facilitação jurídica vem sendo muito pouco utilizada como já constatado por estatísticas oficiais do Poder Judiciário carioca, bem como, por uma rápida pesquisa em nossa comarca e comarca vizinhas.

    Essa permissão legal deve ser mais explorada pelas microempresas, que são as grandes responsáveis pela maior parcela de geração de empregos e riquezas em nosso país. Cumpre porém advertir, que os Juizados Especiais não podem ser transformados em balcões de cobrança dos microempresários, prejudicando o cidadão comum que também faz jus a uma Justiça célere para suas pequenas demandas.

    Com certeza, esse permissivo legal veio para possibilitar um acesso ao Judiciário maior aos microempresários. Soluções mais ágeis e menos custosas facilitarão a atividade empresarial que é fundamental para o bem estar de uma sociedade. Deve ser frisado ainda, que diante da nova lei de custas a utilização dessa via ficou muito mais atraente.

    Estimular a iniciativa privada, o empreendedorismo, a geração de empresários responsáveis e conscientes de sua importante missão na sociedade moderna é um dever de todos. O Estado, através das normas supra comentadas proporcionou aos microempresários uma importante ferramenta que não vem sendo utilizada como poderia.

    Assim, diante da permissão legal e da observação prática, necessária se faz a informação dos microempresários desse importante recurso legal colocado à disposição pela Lei nº 9.841/99, possibilitando um novo horizonte para soluções ágeis e menos custosas de demandas de menor complexidade no âmbito das microempresas, preservando empregos, geração de impostos, geração de riqueza e preservando o crédito.

    Com o advento do novo Código Civil, uma nova gama de normas relativas ao direito de empresa foram colocadas em uso, a Teoria da Empresa como atividade econômica organizada foi acolhida. Os empresários diante desse novo contexto legal, devem se organizar e se informar sobre todas as alterações legais, novas possibilidades, implicações das alterações em suas sociedades empresariais, agindo de forma preventiva de demandas, buscando o incremento de suas empresas.

 


Referência  Biográfica

Maurício Cozer Dias  –  Advogado; Professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito de Itapetininga e do Curso Preparatório Anglo Triumphus; Mestrando em Propriedade Intelectual na UNIMEP ; Autor das Obras: Utilização Musical e Direito Autoral; Direito Autoral: Jurisprudência e Prática Forense; Direito Autoral de Música (no prelo). – 2004

“Os Dois “C” das PPPs”

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* José Emilio Nunes Pinto

Muito embora o título deste Artigo possa parecer, à primeira vista, uma daquelas “sopas de letrinhas”, daquelas que, na infância, junto a irmãos e primos nos faziam saborear, buscando-se sempre encontrar as mais exóticas, como o “k”, o “w” e o “y”, trata-se, na realidade, de questão central na discussão das parcerias público-privadas, já conhecidas entre nós, a exemplo do que ocorre em outros países, como as PPPs.

E os dois “C” das PPPs, a que se referem eles?  Falamos de dois elementos essenciais para a implementação bem sucedida das PPPs.  “C” de Cultura e “C”  de Criatividade.  A consolidação de cada um desses “C” irá nortear o caminho de sucesso das PPPs.

Ao longo da História, várias têm sido as posturas do agente privado e do cidadão nas suas relações com o Estado e, no dia a dia, com a Administração Pública.

Do “pai patrão”, temido e respeitado, ao “pai protetor”, assumindo o lugar do privado no processo de tomada de decisões, o Estado vem incorporando uma nova face, reservando para si atitudes que visam ao interesse público, retirando-se de cena e cessando a interferência nas decisões de caráter individual.

A relação entre o Estado e o cidadão beneficia-se do processo de maturidade mútua.  O Estado dota a Sociedade dos meios legais destinados à preservação de direitos, criando um sistema jurídico-legal bastante complexo, sancionando, inclusive, os desvios de comportamento que afrontam padrões éticos e morais.

O Direito não se destina a criar, nem cria, na realidade, fatos sociais.  Se assim pensarmos, estaremos invertendo o que ocorre no mundo real.  Na verdade, da observação meticulosa dos fatos sociais, cuja ocorrência constante demonstre tendência comportamental de grupos sociais, surge um complexo jurídico-legal para regulá-los.

Assim ocorre o mesmo com as PPPs.  A normatização de operações complexas dessa natureza responde a uma tendência verificada nas sociedades modernas.  Trata-se de fenômeno que podemos chamar de compartilhamento de responsabilidades entre o estado e o particular.

O Estado e a Administração Pública têm demonstrado falta de fôlego para cumprir, a contento, sua função de investimento.  As despesas correntes da Administração Pública, oneradas pela necessidade de manutenção de uma máquina pesada, de custo muito elevado e, nem sempre com padrão adequado de eficiência, tragam com voracidade as receitas arrecadadas.

Ao administrador público impõe-se o dever de satisfazer, em primeiro lugar, as necessidades de caráter social, sobrando-lhe muito pouco para investir.  Ocorre, no entanto, que, muitas vezes, esse investimento se destinaria a projetos estruturantes, capazes de contribuir para a satisfação das necessidades de caráter social.

Essa realidade encontra eco no mundo jurídico, refletindo uma nova ordem vigente na Sociedade.

O privado começa a reconhecer que não só o Estado, mas ele também, tem responsabilidade; responsabilidade que passa a compartilhar com o Estado e que se reflete nas suas relações com o ambiente em que atua, em seu relacionamento com comunidades onde esteja presente, com vistas a incluí-los no processo de desenvolvimento em curso, garantindo os direitos fundamentais da cidadania.  Em suma, estamos hoje diante dessa realidade que se baseia e se fundamenta na denominada Responsabilidade Social.

Fatos como esse não passam ao largo do mundo jurídico e dos sistemas legais.

No Brasil, foi a Constituição de 1988 a precursora de princípios fundamentais da responsabilidade social.  A legislação que se seguiu, em nível infra-constitucional, consolidou essa nova situação e essa nova realidade.  Exemplo inequívoco disso é o Código Civil de 2002, que passou a conter as denominadas cláusulas abertas, onde os direitos individuais somente poderão ser legitimamente exercidos se estiverem matizados pelo interesse público.  A “santidade” dos contratos continua preservada em nossa lei civil; não se revogou (e nem seria cabível assim proceder) o princípio latino da “pacta sunt servanda”, que permanece inalterado, consagrado, na sistemática do Código, como a liberdade de contratar e ver preservados os ajustes aceitos pelas partes.  No entanto, essa “santidade”, expressão adotada para refletir a segurança e primazia do que as partes deliberaram quando da celebração do contrato, somente será assegurada se a vontade das partes se pautou pelos limites impostos pela vontade coletiva, expressa nos direitos reconhecidos à coletividade, sintetizada no interesse público.

Daí se poder afirmar que, no mundo das leis, a divisão tradicional entre direito público e direito privado é bem menos radical ou melhor dizendo mais tênue do que costumava ser.

Fala-se muito na constitucionalização do direito civil, já que a Constituição de 1988 contém princípios fundamentais e normas de aplicação geral em matéria de direitos individuais.  Pode-se falar, e não sem razão, na privatização do direito público, visto que determinadas entidades, criadas e mantidas, em sua existência, pelo Poder Público, pautam suas atividades fundamentalmente por normas de direito privado.

Testemunhamos, dessa forma, a convergência de ramos tradicionais do direito, da mesma maneira que convergem as ações da Administração Pública e dos agentes privados, e, quanto a estes, no exercício, inclusive, de ações de Responsabilidade Social.

As PPPs podem ser, portanto, encaradas como manifestação dessa convergência de ações.  O que pretende o estado com as PPPs nada mais é do que assegurar a implementação de projetos cujo efeito estruturante há de ter um impacto positivo na satisfação das necessidades dos cidadãos.  Projetos de PPPs serão aqueles que o Estado, por suas restrições orçamentárias e esgotamento de sua capacidade de endividamento, não será capaz de implementar.  Projetos de PPPs serão aqueles que o particular, dado o grau do risco a eles inerente, não está disposto a implementar sem que possa contar com garantias adequadas.  Para casos como esses, desenvolveu-se, no Reino Unido, espalhando-se daí para outras partes do mundo as parcerias público-privadas.

O surgimento, no Brasil, das PPPs somente foi possível graças à mudança de postura nas relações entre o particular com o Estado e a Administração Pública, assumindo aquele o papel que lhe cabe no contexto da Responsabilidade Social.

Essa mudança de postura representa uma manifestação inequívoca de surgimento de uma nova Cultura nas relações entre o setor público e o setor privado, justificando a importância do “C” que quer exprimir Cultura.  Mas a pergunta que resta é saber se essa mudança cultural é suficiente para assegurar a trilha de sucesso das PPPs no Brasil.  Parece-nos que ainda falta a ambas as partes dar passos adicionais, mais concretos, no processo de desenvolvimento e consolidação de uma nova Cultura negocial.

Desde sempre a Administração Pública e o particular negociaram.  Grandes obras de infra-estrutura são realizadas pelos particulares contratados pela Administração.  Licitações são realizadas para a escolha da proposta mais atrativa para a Administração e os termos desses negócios estão refletidos em contratos administrativos, cujas características diferem substancialmente dos contratos em geral entre partes privadas, já que naqueles reconhecem-se ao Estado direitos que, se inseridos em contratos entre particulares, tangenciariam a ilegalidade.  Esses direitos estão presentes nas denominadas cláusulas exorbitantes dos contratos administrativos e refletidos em disposições contidas na Lei de Licitações.

No entanto, a relação entre a Administração e o particular, no âmbito da contratação pura e simples, padece de um traço de desconfiança.  Desconfiança de que a Administração não honre seus compromissos, na forma e época devidas, já que esta é vista como uma má pagadora.  Desconfiança de que o privado não cumpra as suas obrigações contratuais, deixando de entregar o objeto da contratação, na época devida, ainda que a custos superiores que embutem um risco inerente à contratação com a Administração.

Vale lembrar que essa circunstância não é um traço desse tipo de contratação no Brasil.  O surgimento e estabelecimento, na França, pelo Conselho de Estado da teoria do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo foram influenciados pelo traço de ser a contratação com a Administração ser percebida como de risco.  Ao se garantir a manutenção da equação inicial de equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo assegurou-se que os preços ofertados pelo particular deixassem de embutir uma remuneração pelo risco, risco esse que poderia, inclusive, não se materializar, mas cuja taxa cobrada seria paga inexoravelmente.

As PPPs exigem uma postura negocial de confiança mútua, de parceria e de envolvimento contratual de longo prazo, desde a negociação dos termos contratuais até o cumprimento integral de todas as obrigações ao final do termo do contrato.  Ser parceiro significa compartilhar os resultados do investimento, buscar soluções negociadas, fundadas num comportamento pautado pela boa fé.

A magnitude dos investimentos e o longo prazo de sua maturação exigem, mais do que a segurança contratual, a convicção de que os interesses entre a Administração e o particular são convergentes.  O balanço equilibrado entre os direitos individuais e a supremacia do interesse público é um grande desafio na busca do sucesso nas PPPs.

A Cultura contém em si mesma um outro “C” que é a ela inerente.  Referimo-nos à Confiança.  A relação contratual deve ser baseada na confiança que uma das partes deposita na outra, confiança essa que está vinculada à boa fé e expressa no dever lateral de cooperação.  A boa fé deve estar presente em todas as fases do contrato, de sua negociação ao período de desempenho das funções atribuídas a cada uma das partes e, até mesmo, no período pós-contratual.  Essa confiança recomenda que as partes estejam imbuídas de boa fé (boa fé subjetiva) e a materializem durante todo o período contratual (boa fé objetiva), inclusive para resolver controvérsias que venham a surgir entre elas.  É nesse momento que a arbitragem, prevista nos textos legais relativos às PPPs, assume grande importância.  Mesmo com as limitações decorrentes da presença do Estado, a arbitragem se revela legal e de grande valia para as partes, já que permite solucionar as controvérsias de forma célere, segura, ética e por árbitros que sejam conhecedores das características específicas de cada projeto conjunto.

Por tudo isso e por tudo aquilo que se pudesse listar e dizer, o “C” é peça fundamental.  Se os parceiros, envolvendo nisso a Administração e o particular, não forem capazes de criar uma nova Cultura de relacionamento, os resultados pretendidos com as PPPs estarão ameaçados.  Essa nova Cultura, no entanto, não basta ser explicitada.  Há de ser praticada e o tempo é fator fundamental para que ela se desenvolva e se consolide definitivamente.  Mais do que atender aos interesses individuais das partes em parceria, essa nova Cultura é fundamental para que se atenda ao interesse público, interesse da coletividade, função do Estado e expressão eloqüente da Responsabilidade Social, essa função do particular.

Entretanto, uma nova Cultura não será, por si só, suficiente para assegurar a trilha de sucesso das PPPs.  Daí insistirmos que esse sucesso depende de dois “C”, e o segundo “C”, não menos importante que o primeiro, se refere à Criatividade.

Quando examinamos o trajeto das PPPs no mundo, dissemos que estas surgiram no Reino Unido e daí se espalharam para outros países, principalmente os do leste da Europa.  No Brasil, muito se tem ouvido falar das experiências inglesas, tendo estas tido uma influência capital na elaboração das chamadas leis das PPPs, seja a federal, seja a nível dos Estados.  Desde já, ressaltamos que a existência de experiências similares em outros países há de ser uma fonte importante de informação.  Casos vividos, lições aprendidas, erros minimizados.  Esse trinômio nos ajuda a evitar que nos lancemos à tarefa inglória de tentarmos “reinventar a roda”.

No entanto, muito embora saibamos que a “roda há de assumir a forma do círculo”, teremos que analisar os caminhos e estradas por onde essa roda irá passar.  Portanto, seja quanto à escolha do material para sua fabricação, seja quanto ao aro mais adequado, seja, enfim, quanto a materiais acessórios – tudo isso resta a ser definido.  E essa definição há de se basear em decisões criativas.

Nas PPPs, a história não se passa de forma distinta.  Sabemos que as PPPs são estruturas operacionais destinadas a assegurar a implantação de um projeto, seja construção ou mera remodelação, mas que se faz acompanhar da prestação de um serviço, manifestada essa na gestão do empreendimento.  Essa é nossa roda em forma de círculo, complementada pelas lições aprendidas por todos os que a puseram para rodar antes de nós.

As experiências anteriores de que se tem notícia, não necessariamente atendem integralmente a nossas necessidades.  As características de nossa economia, o perfil de nossas necessidades e os reclamos da Sociedade podem fazer com que venhamos a proceder a ajustes na modelagem das operações de PPPs.

Por essa razão, defendemos que o segundo “C” – o da Criatividade – há de ser amplamente exercido por todos os participantes dessas operações.  Mantidas as características fundamentais dessa modalidade, devemos deixar que a Criatividade nos guie na modelagem de cada caso.  Portanto, nada mais sábio do que resistir à tentação de definir por lei modelos operacionais ou traços operacionais, deixando que cada uma das leis das PPPs se limite a cuidar de questões e aspectos estruturais, deixando às partes a escolha da melhor forma de implementação, sabendo-se, de antemão, que os parâmetros internacionais existem, mas que devemos “tropicalizá-los”.

A tropicalização é função do exercício da Criatividade e será capaz de assegurar os melhores resultados pretendidos, posto que adequada à nossa realidade.

Se às PPPs, portanto, agregarmos e exercitarmos os dois “C”, teremos andado boa parte da trilha que nos levará à bem sucedida implementação de operações solidamente estruturadas, ficando o saldo à conta da boa fé, que deverá estar presente em toda a fase de cumprimento das obrigações contratuais até a extinção do prazo ajustado.           

  


Referência  Biográfica

José Emilio Nunes Pinto:   Sócio de Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados.

Novos tempos, novos termos

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* Maria Berenice Dias

     Raras vezes uma constituição consegue produzir tão significativas transformações na sociedade e na própria vida das pessoas como o fez a Constituição Brasileira de 1988. Certamente não se consegue elencar a série de modificações produzidas, mas algumas por terem realce maior despontam com exuberância. A supremacia da dignidade da pessoa humana, lastreada no princípio da igualdade e da liberdade, é o grande artífice do novo Estado Democrático de Direito, que foi implantado no país. Houve o resgate do ser humano como sujeito de direito e se lhe assegurou de forma ampliada a consciência da cidadania.

    A constitucionalização das relações familiares – outro vértice da nova ordem jurídica – também acabou ocasionando mudanças na própria estrutura da sociedade. Mudou significativamente o conceito de família, afastando injustificáveis diferenciações e discriminações, que não mais se justificavam em uma sociedade que se quer democrática, moderna e livre. O alargamento conceitual das relações interpessoais acabou deitando reflexos na própria conformação da família, palavra que não mais pode ser utilizada no singular. A mudança da sociedade e a evolução dos costumes levaram a uma a verdadeira reconfiguração, quer da conjugalidade, quer da parentalidade. Assim, expressões, como “ilegítima”, “espúria”, “adulterina”, “informal”, “impura”, estão banidas do vocabulário jurídico. Não podem ser utilizadas na esfera da juridicidade, tanto com referência às relações afetivas, como no tocante aos vínculos de parentesco. Quer o conceito de família, quer o reconhecimento dos filhos, não mais admitem qualquer adjetivação.

    Do conceito unívoco de família do início do século passado, que a identificava exclusivamente pela existência do casamento, chegou-se às mais diversas estruturas relacionais, o que levou ao surgimento de novas expressões, como “entidade familiar”, “união estável”, “família monoparental”, “desbioligização”, “reprodução assistida”, “concepção homóloga”, “heteróloga”, “homoafetividade”, “filiação socioafetiva”, etc. Tais vocábulos buscam adequar a linguagem às mudanças nas conformações sociais, que decorreram da evolução da sociedade e da redefinição do conceito de moralidade, bem como dos avanços da engenharia genética. Essas alterações acabaram por redefinir a família, que passou a ter um espectro multifacetário.

    Agora o que identifica a família não é nem a celebração do casamento, nem a diferença de sexo do par ou o envolvimento de caráter sexual. O elemento distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a identificação de um vínculo afetivo, a unir as pessoas, gerando comprometimento mútuo, solidariedade, identidade de projetos de vida e  propósitos comuns.

    Enfim, a busca da felicidade, a supremacia do amor, a vitória da solidariedade ensejaram o reconhecimento do afeto como único modo eficaz de definição da família e de preservação da vida. Este certamente é, dos novos vértices sociais, o mais inovador dentre quantos a Constituição Federal abrigou.           

 


Referência  Biográfica

Maria  Berenice Dias  –  Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, onde é  Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetiva do Órgão Especial do TJ; Professora da Escola Superior da Magistratura e Vice-Presidente Nacional do IBDFam.  

www.mariaberenice.com.br