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Aspectos Jurídicos da Arbitragem

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* Eveline Lima de Castro 

                    Antigamente, a arbitragem não funcionava bem, pois necessitava da homologação dos juízes de Direito, que não aceitavam os acordos entre privados por serem feitos por leigos.

                    O Brasil exigia, para homologar laudos arbitrais internacionais, que fossem homologados no país de origem. Entretanto, na maioria dos países não existia homologação de laudo arbitral, então o Supremo Tribunal Federal também não homologava, daí a ineficácia da arbitragem.

                    A Convenção comercial de Nova Iorque prescreve que o laudo não precisa ser homologado no país de origem, mas apenas no País de destino. Todavia, o Brasil não a assinou. Foi então que surgiu a Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, com dispositivos similares à referida convenção, para regular a arbitragem.

                    A arbitragem consiste na escolha, pelas partes, de um terceiro neutro para solucionar os conflitos com os poderes que a lei dá, só podendo tratar de direitos patrimoniais disponíveis.

                    As partes têm que ser capazes ou representadas/assistidas. O árbitro pode ser qualquer pessoa que tenha a confiança das partes, desde que civilmente capaz.

                    Não precisa de advogado para propor a demanda, embora não haja impedimento legal, desde que a parte consinta. A demanda pode ser proposta, inclusive, oralmente. Se já existe um processo judicial, pede-se extinção sem julgamento do mérito para, então, recorrer à arbitragem.

                    O árbitro é juiz de fato e de direito e a sentença por ele proferida produz os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário, constituindo título executivo. É necessário ressaltar que o juiz arbitral está sujeito a ação por reparação de danos e é equiparado a funcionário público, para efeitos penais, quando no exercício de suas funções ou em razão delas.

                    Da sentença arbitral não cabe recurso quanto ao mérito, mas apenas quanto à forma (impedimento, v.g.), sendo o prazo, para sua interposição, de 90 (noventa) dias após o trânsito em julgado.

                    A cláusula compromissória é uma convenção, necessária para que as partes se comprometam a resolver, através da arbitragem, litígios que possam vir a existir relativamente ao contrato, sendo autônoma em relação a este. Assim, a nulidade do contrato não implica nulidade da cláusula compromissória.

                    Surgida a controvérsia, assina-se o compromisso arbitral para que as partes escolham e contratem qualquer pessoa capaz para ser árbitro e solucionar o conflito. Se quando da assinatura do compromisso, as duas partes não assinarem, remete-se as partes ao Judiciário. Se apenas uma das partes não assina, a arbitragem corre à revelia (o árbitro pede ao juiz de direito para compelir a parte a assinar). Se uma das partes desiste no curso da arbitragem, o árbitro prossegue sem a sua presença.

                    Uma vez instaurado o procedimento arbitral, não é mais possível recorrer ao Judiciário. Todavia, este poderá intervir se surgirem incidentes no curso do processo relativos a direitos indisponíveis ou eventuais irregularidades formais da sentença arbitral, além de ser o responsável pela execução da decisão. Isto prova que o juízo arbitral não fere o princípio constitucional do art. 5º, XXXV (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”).

                    A execução ocorre no Poder Judiciário, seguindo os procedimentos do Código de Processo Civil. Caso encontre erros materiais na sentença arbitral, o juiz a devolve ao árbitro para reformar e depois ela retorna ao Judiciário.

                    A arbitragem baseia-se nos princípios da autonomia da vontade das partes, contraditório, igualdade das partes, imparcialidade e livre convencimento do árbitro.

                    As partes podem escolher as normas a serem aplicadas nas arbitragem, i.e., decidem se o árbitro julgará com base na lei ou na eqüidade. Seja qual for a forma escolhida, o juiz está adstrito aos termos do pedido e não pode ferir a lei, pois suas funções são, constitucionalmente, limitadas.

                    O procedimento da arbitragem é informal e compila vantagens que estimulam a sua utilização. A mais importante é a agilidade e celeridade processuais, que, contrapostas à morosidade da justiça, oferecem soluções rápidas, visto que o árbitro sentencia no prazo de 6 (seis) meses, se não houver estipulação em contrário, podendo, as partes, convencionarem prazo diverso.

                    Além disso, o procedimento arbitral é sigiloso, pois as informações sobre o litígio não são acessíveis a quem nele não tenha interesse, sendo resguardados os segredos comerciais e industriais. Os custos processuais são menores, pois só haverá gasto com os honorários dos árbitros.

                    Assim, fica claro que a arbitragem é um instituto útil para desafogar o Judiciário e oferecer às partes o recurso a uma justiça alternativa, que lhes garanta soluções rápidas e efetivas, afastando-as dos intermináveis conflitos instaurados na Justiça comum e dos inúmeros recursos e graus recursais existentes no nosso ordenamento, pois como bem ressalta Rui Barbosa, “a justiça atrasada não é justiça, senão injustiça, qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, e assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade” (Barbosa, Rui. Elogios Acadêmicos e Orações de Paraninfo. Edição da Revista de Língua Portuguesa, 1924, p. 381).


          

Referência Biográficas 
 
Eveline Lima de Castro
  –    Acadêmica do 7º semestre de Direito da Universidade de Fortaleza e Bolsista do Programa de Bolsas de Iniciação Científica, com o tema "Interceptação de Comunicações Telefônicas segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal", sob a orientação do professor mestre Marcus Vinícius Amorim de Oliveira. Elaboração: 07/dezembro/2002 .
 
E-mail: evelinecastro@yahoo.com.br

Violência e Cidadania

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* Maria Berenice Dias

                De todos sabido que a finalidade primordial do Estado é assegurar a paz social, para garantir a felicidade do cidadão. O cumprimento dessa função ocorre pelo estabelecimento de uma ordem, originada na Constituição Federal, que norteia a vida em sociedade, consagrando princípios e estabelecendo regras jurídicas a serem espontaneamente respeitadas por todos.

                 Na hipótese de descumprimento dessas verdadeiras pautas de conduta, como é vedada a justiça de mão própria, surge o dever do Estado de recompor a harmonia social, pois detém o monopólio da jurisdição, reservando-se a exclusividade da aplicação do Direito.

                Ainda que, em escassas hipóteses, a lei delegue ao cidadão o direito de proteger-se, não está autorizada a autotutela, e vedado é o desempenho de quaisquer outras atividades substitutivas divorciadas do aparato estatal em limitação à busca da segurança privada.

                Necessário que, na busca de soluções, não se fique comodamente apontando as dificuldades existentes no combate a esta que é a maior chaga de nossa sociedade: a violência.

                Se, dentro da clássica divisão dos Poderes, cada um deve garantir primordialmente a qualidade de vida do cidadão, é mister definir responsabilidades e identificar o que compete a cada um deles para o desempenho de seu papel.

                Inquestionável que cabe reclamar do Executivo que melhore a infra-estrutura material e humana, para assegurar um aparato de segurança apto a garantir a aplicação da lei penal. Quer mediante o aparelhamento dos órgãos policiais, quer mediante adequada estruturação dos estabelecimentos carcerários, para que possam atender à finalidade reeducativa dos apenados.

                Há que clamar, inclusive, por uma reforma legislativa, não se mostrando suficiente a mera exacerbação das penas, como forma de coibir a violência. A despropositada reação punitiva, que se verifica, por exemplo, nos chamados crimes hediondos ou na impossibilidade de concessão de fiança nos crimes contra a fauna, resta por constranger os magistrados, que, por vezes, relutam em sua aplicação e, para evitar medidas injustas, acabam por gerar decisões inclusive contrárias à lei.

                Tendo-se consciência de que a pena privativa de liberdade, como sanção principal, não leva à readaptação do delinqüente, é necessário encontrar soluções criativas, como as penas alternativas de prestação de serviços, com saliente caráter educativo, ou a generalização de medidas sócio-educativas, como a liberdade assistida, previstas exclusivamente no Estatuto da Criança e do Adolescente.

                Porém, não é com a pena de morte, com a severidade exagerada das leis penais ou por meio da supressão das garantias dos apenados que se vai exercer o controle social.

                Também se pode exigir celeridade e eficiência do Judiciário nos julgamentos, a evitar a impunidade pelo advento da prescrição. Mas não basta apontar falhas estruturais sem ver que, muitas vezes, os embaraços advêm do exacerbado formalismo da própria estrutura processual e da verdadeira sacralização do direito de defesa, como, por exemplo, na obrigatória suspensão do processo enquanto o réu se encontra foragido.

                É de atentar em que 70% dos processos que tramitam na Justiça envolvem infrações penais de gravidade mínima, o que dificulta um tratamento mais cuidadoso dos delitos de maior lesividade, impedindo a redução do prazo da instrução e a condenação em tempo mais abreviado, para tornar certa a punição.

                A ausência de uma resposta imediata leva quase à certeza da impunidade e à descrença da população na repressão dos ilícitos, perpetrados cada vez com mais freqüência e maior violência.

                Por isso, mister voltar-se a sociedade à atividade de prevenção a essa criminalidade difusa, que tem levado ao incremento assustador da violência no meio social, em todos os seus níveis.

                Para essa mais importante missão, há que apelar ao cidadão, conscientizando-o de sua indelegável tarefa de não ser um agente multiplicador da violência.

                É indispensável erradicar a violência doméstica, acabando com o sentimento de superioridade masculina, decorrente do ranço preconceituoso da hierarquização da família e do poder punitivo patriarcal, que chancela a agressão física à mulher e filhos.

                Imperioso também conscientizar a sociedade da necessidade de sua efetiva participação, seja preservando o sigilo do comunicante, seja criando mecanismos que prestem informações, dêem orientações e tomem as providências necessárias de forma imediata a toda e qualquer denúncia.

                Descabe considerar função privativa dos órgãos públicos a tutela dos valores primordiais da convivência humana, a ser levada a efeito exclusivamente pelo Estado, que se quer cada vez menos intervencionista.

               Se, por um lado, a função punitiva em face do desrespeito à lei é monopólio estatal, sua prevenção compete ao cidadão. E é nessa sede que se há de conjugar as expressões violência e cidadania e a possibilidade de vê-las como sinônimas, e não antônimas.

 


Referência Biográfica

MARIA BERENICE DIAS  –   Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam.

www.mariaberenice.com.br

Ação Monitória no Processo do Trabalho

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* Alexandre Nery de Oliveira

I – INTRODUÇÃO

          O Código de Processo Civil teve acrescido, pela Lei 9.079, de 14.07.95, no bojo da denominada reforma, capítulo composto por três artigos (de numeração repetida e distintos por letras, no sentido de preservar o texto codificado), instituindo a ação monitória, com a redação que segue:

          "Capítulo XV – Da Ação Monitória:

          Art. 1102a. A ação monitória compete a quem pretender, com base em prova escrita sem eficácia de título executivo, pagamento de soma em dinheiro, entrega de coisa fungível ou de determinado bem móvel.

          Art. 1102b. Estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá de plano a expedição do mandado de pagamento ou de entrega da coisa no prazo de 15 (quinze) dias.

          Art. 1102c. No prazo previsto no artigo anterior, poderá o réu oferecer embargos, que suspenderão a eficácia do mandado inicial. Se os embargos não forem opostos, constituir-se-á, de pleno direito, o título executivo judicial, convertendo-se o mandado inicial em mandado executivo e prosseguindo-se na forma prevista no Livro II, Título II, Capítulos II e IV [execução para a entrega de coisa e execução por quantia certa conta devedor solvente].

          § 1º. Cumprindo o réu o mandado, ficará isento de custas e honorários advocatícios.

          § 2º. Os embargos independem de prévia segurança do juízo e serão processados nos próprios autos, pelo procedimento ordinário.

          § 3º. Rejeitados os embargos, constituir-se-á, de pleno direito, o título executivo judicial, intimando-se o devedor e prosseguindo-se na forma prevista no Livro II, Título II, Capítulos II e IV."

          A ação monitória, instituída como meio de provocação jurisdicional por via procedimental especial de jurisdição contenciosa (Livro IV, Título I, do CPC), encontra-se situada, para fins da Teoria Geral do Processo, nos limites que se formam entre o Processo Cognitivo e o Processo de Execução, porquanto permitindo a instrução ampla própria daquele, caminha desde o início através de vias coercitivas próprias deste, notadamente pela aplicação inequívoca do Processo de Execução quando não opostos embargos ou rejeitados estes.

          Como inovação inconteste no campo do Processo Civil, vamos trilhar, assim, também os caminhos pertinentes a ter ou não tal rito processual como aceitável no Processo do Trabalho, ante a regra da subsidiariedade e lamentalvelmente a desatualização dos seus preceitos que tantas inovações inspiraram junto a outros ramos do Processo.

          O elemento básico da ação monitória é estar o credor, embora desvalido de título executivo próprio, munido de prova escrita à qual pretende emprestar a qualidade de título executivo.

          Neste sentido, pela ação monitória (do latim monere – advertir, lembrar, exortar) se pretende lembrar ao pretenso devedor a existência de documento reconhecedor de determinada obrigação, advertindo-o, exortando-o a cumprir o que reconheceu que faria, ainda que indiretamente, conquanto desvalido tal documento das características de título propriamente executivo, nos termos dos artigos 584, 585 e 586 do CPC. Se falhar a advertência, então, seja pela não oposição de embargos do réu, seja pela rejeição dos mesmos, aquela prova da obrigação, título paraexecutivo na conceituação de Sérgio Bermudes ("A Reforma do Código de Processo Civil", Ed. Saraiva, 1996, 2ª edição), passará a valer como inequívoco título executivo, permitindo a execução nos próprios autos já constituídos.

          Suplanta-se, assim, a necessidade de ação ordinária onde se dava todo o procedimento cognitivo para reconhecer ao autor a obrigação aparentemente reconhecida já pelo réu no documento trazido, que apenas não se podia executar diretamente por faltar-lhe todos os requisitos exigidos pelo Processo de Execução. Com a ação monitória, pois, na falta de adimplemento voluntário do réu (CPC, artigo 1.102c, § 1º), poderá o documento ser então reconhecido como título executivo, permitindo ao credor valer-se prontamente da execução do crédito documentado.

          Não há dúvidas de que o caminho adotado pelo legislador brasileiro foi o da cautela, preferindo instituir no panorama processual pátrio apenas uma das modalidades de ação monitória, a que se tem denominado por ação monitória documental, quando outras, baseadas em provas não escritas têm merecido desenvolvimento noutros Países. Mas, ainda assim, uma inegável evolução, suplantando-se toda a sistemática vigente da produção de provas no Processo Cognitivo, quando o autor colaciona prova documental de aparente reconhecimento pelo réu quanto a determinada obrigação, o que se traduzia, então, em provar o que já estava provado, num exarcebamento da forma em detrimento da eficácia do processo.

          Agora, a ação monitória permite que o autor, munido de prova documental onde haja aparente reconhecimento de obrigação pelo réu, provoque este ao adimplemento, lembrando-o do firmado, podendo o réu adimplir de imediato a obrigação, assim isentando-se dos ônus processuais de custas e honorários advocatícios, ou, seja por inválida a prova, seja por já cumprida anteriormente a obrigação, apresentar embargos, assim chamados por suspenderem a conversão do mandado monitório em mandado executivo, com isto dinamizando a prestação da tutela jurisdicional sem atentar a direitos de defesa do réu, se cabível a contestação da obrigação pretendida. 

II – CARACTERÍSTICAS DA AÇÃO MONITÓRIA (CÍVEL)

          No prosseguir do estudo, vamos analisar cada um dos dispositivos concernentes à ação monitória, em relação ao Processo Civil, num passo anterior à análise de pertinência e aplicabilidade no Processo do Trabalho.

          Como dito, a ação monitória tem por objetivo a cobrança de determinada obrigação, seja pagamento de soma em dinheiro, seja entrega de coisa fungível ou de determinado bem móvel, por quem, embora desprovido de título executivo que permitisse ação executiva direta, detém prova documental de reconhecimento da obrigação pelo réu.

          Elemento que tem sido discutido é quanto a tratar-se o procedimento especial decorrente da ação monitória de caráter obrigatório ou facultativo para o autor, de modo a poder eleger tanto a via especial quanto a via comum da ação ordinária.

          Dentre as balizadas vozes da doutrina processual civil ressai o posicionamento firme da ilustre Desembargadora Fátima Nancy Andrighi no sentido de que "ao titular de direito enquadrável no procedimento especial da ação monitória há que ser observado o princípio da disponibilidade do rito, face às suas peculiaridades; acrescentando-se que o rito imposto pela nova Lei à ação monitória não figura entre aqueles considerados irredutivelmente especiais, eis que, obedecido procedimento inicialmente especial, este converte-se em ordinário, havendo embargos ao pedido" ("Da Ação Monitória: Opção do Autor" in "Caderno de Doutrina da Tribuna da Magistratura", da APAMAGIS, julho/96). Embora possua algumas ressalvas pessoais quanto aos fundamentos que balizam tal opinião, inequivocamente que a própria característica de conversão do procedimento monitório especial em procedimento comum pela mera oposição de embargos, enquanto não julgados estes, justifica que o autor possa eleger, desde logo, o procedimento comum pela ação ordinária como modo de promover sua pretensão à cobrança de determinada obrigação instituída em prova escrita que não se constitua em título executivo, caracterizando, assim, a via especial da ação monitória como de caráter eletivo pelo autor, segundo sua discricionariedade, ainda quando isto apenas decorra da dúvida do autor em relação à consistência do documento que possua como meio de prova suficiente. Logicamente, o que não se permite de modo algum é a via do procedimento especial decorrente da ação monitória quando ausentes os requisitos próprios de tal, caso em que o Juiz poderá indeferir a petição inicial, seja por inepta, seja por falta dos pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo (CPC, artigo 267, incisos I e IV).

          Pelo contido no artigo 1102a do CPC, a prova escrita colacionada com a petição inicial da ação monitória deve ser consistente, suficiente a provar, por si própria, o reconhecimento da obrigação pelo réu, sob pena de desviar-se a prova em que baseada para forma distinta de cognição, que exigiria ação ordinária, seguindo todos os trâmites do procedimento comum. Não se veda, logicamente, a contraprova do réu, ou mesmo a do autor em contraposição a esta, de natureza não documental, mas o autor não pode valer-se de prova distinta da documental para fundar sua pretensão, podendo outras virem apenas para dar-lhe maior consistência (quando impugnado o documento pelo réu), ou para demonstrar-lhe a inconsistência (em razão dos embargos do réu).

          Inequívoca pois a afirmação de que a obrigação pretendida deve estar fundada na prova documental colacionada com a exordial, sob pena de ser decretada a impropriedade do rito eleito, podendo provas distintas virem apenas para afirmarem a consistência ou inconsistência da prova originária, mas nunca para inovarem o conteúdo daquela ou mesmo para complementar o que cabia estar plenamente inserido em seu contexto.

          No artigo 1102b exsurge o primeiro comando judicial, consistente no acolhimento da petição inicial, por devidamente instruída (ou seja, por colacionar a prova escrita consistente em que baseada a pretensão), caso em que o Juiz deferirá de plano a expedição do mandado de pagamento ou de entrega da coisa no prazo de 15 (quinze) dias, salvo embargos. Algumas críticas hão de ser tecidas quanto à redação do referido artigo. Logicamente, o mandado expedido igualmente contém a característica de citar o demandado, e também nele deve estar inscrita a possibilidade de embargos, sem prévia caução, inclusive porque distinguindo-se do mandado executivo, detém força precária, eis que não emite propriamente ordem de pagamento ou de entrega, mas apenas advertência para tanto, em não se opondo embargos, então sim podendo converter-se em mandado executivo, cuja distinção será exatamente o caráter constritivo decorrente. A tal modo, o mandado monitório acarreta apenas o caráter citatório do demandado e advertência ao mesmo para cumprir determinada obrigação, salvo embargos, sem implicar, então, qualquer ordem constritiva de direitos do réu, ainda quando este se disponha a satisfazer o crédito pretendido descrito no mandado.

          O parágrafo 1º do artigo 1102c, mais adiante, sinaliza, contudo, que reconhecida pelo réu a pretensão do autor, cumprindo assim voluntariamente o mandado monitório, no prazo assinalado no instrumento (quinze dias) ficará isento de custas e honorários advocatícios, cumprindo ao Juiz extinguir o processo com julgamento de mérito (CPC, artigo 269, II), denotando tal dispositivo legal a intenção memorável do legislador de desarmar os espíritos, invocando tanto quanto possível que demandas insustentáveis não prossigam, seja pelo estímulo ao reconhecimento voluntário da pretensão, em contrapartida oferecendo menores gravames processuais à parte ré, seja pelo estímulo à conciliação entre as partes. Não se há, pois, que falar em extinguir-se a execução, eis que sequer instaurada, à falta de resistência do devedor à satisfação da obrigação pretendida.

          O caput do artigo 1102c, por sua vez, sinaliza a possibilidade do réu oferecer embargos, distinguindo tal impugnação defensiva da contestação apenas pelo fato de imprimir caráter suspensivo ao mandado monitório expedido, embora, como antes dito, a eficácia do mesmo é relativa e condicionada, à falta de caráter constritivo primário. Não obstante isto, os embargos à monitória podem deduzir, como peça defensiva em que se constitui, todos os argumentos próprios de contestação, sendo, nos termos do parágrafo 2º do artigo 1102c, processados independemente de garantia do Juízo, nos próprios autos, passando a estimular o rito procedimental ordinário, até a sentença. Os embargos à monitória, portanto, constituem inequívoca peça contestatória, apenas se distinguindo da contestação pelo peculiar caráter suspensivo do mandado monitório expedido, sendo, como a contestação, processada nos próprios autos decorrentes da ação, sem necessidade de garantias, ocasionando a seqüencia pelo procedimento ordinário.

          Diz ainda o caput do artigo 1102c que não opostos embargos à monitória constituir-se-á, de pleno direito, o título executivo judicial, convertendo-se o mandado executivo e prosseguindo-se na foma prevista no Livro II, Título II, Capítulos II e IV do Código de Processo Civil.

          Com redação similar, diz o parágrafo 3º do artigo 1102c que, rejeitados os embargos, constituir-se-á, de pleno direito, o título executivo judicial, intimando-se o devedor e prosseguindo-se na forma prevista no Livro II, Título II, Capítulos II e IV do Código de Processo Civil.

          Não há dúvidas de que a rejeição de opostos embargos apenas ocorre pela via da sentença, de modo que por tal decisão judicial declara-se a constituição do título executivo judicial precariamente indicado no mandado monitório inicial, intimando-se da sentença o devedor para prosseguimento da execução. E veja-se: não se fala em citação do devedor, mas mera intimação, cujos meios de comunicação são menos exigentes; igualmente, há que se notar que a intimação é prévia à execução, porque se outra fosse a intenção do legislador não haveria razão para estimular a intimação do devedor se da execução ficaria logicamente ciente pela expedição do mandado executivo próprio – tal decorre da inequívoca verificação de que o mandado executivo próprio é apenas expedido quando a obrigação não seja antes cumprida pelo devedor. Isto, inclusive, porque há a possibilidade dos embargos serem parcialmente acolhidos, na hipótese em que a ação monitória pretende diversas obrigações e baseado na prova escrita colacionada se reconhecem apenas uma ou algumas delas, o que impossibilitaria a mera conversão do mandado monitório inicial, que integra a plenitude das obrigações, em mandado executivo, parte daquele; preferida, assim, a via da expedição de novo mandado, contemplando as obrigações efetivamente reconhecidas na sentença, como de regra ocorre nas execuções de título executivo judicial.

          Com relação ao caso de não oposição dos embargos, o legislador foi mais severo, eis que tal acarreta de pleno direito a constituição do título executivo judicial pela conversão do mandado monitório inicial em mandado executivo. No entanto, a conversão exige o reconhecimento judicial do fato próprio, no caso a não oposição de embargos, sendo tal decisão, ainda que sumária, inequívoca sentença.

          Difícil aceitar, por tais aspectos, que noutro momento processual concernente à ação monitória, enquanto não deflagrada a possível execução, haja a prolação de sentença judicial, ou mesmo, em maior absurdo jurídico, afronto aos princípios mínimos da Teoria Geral do Processo, possa ser aceito a inexistência de sentença ou mais de uma sentença para o mesmo processo cognitivo.

          Temos, pois, que as decisões anteriores que determinam a expedição do mandado monitório apenas evidenciam, quando muito, caráter interlocutório, dada a necessidade de prévia admissibilidade da ação pelo Juiz (CPC, artigo 1102b).

          Por sua vez, são sentenças, no processo cognitivo especial decorrente da ação monitória, as decisões que constituem o título executivo judicial, no caso de não oposição de embargos à monitória pela imediata conversão do mandado inicial em mandado executivo, e no caso de rejeição de embargos opostos pela prévia intimação do devedor constituído, com execução, em ambos os casos, na forma prevista para a execução para a entrega de coisa e execução por quantia certa conta devedor solvente, ainda quando concisos o relatório, os fundamentos e o dispositivo.

          O que se verifica como característica fundamental da ação monitória, para diferenciá-la da ação ordinária, é a expectativa depositada no reconhecimento pelo réu da obrigação elencada no mandado monitório (lembrança) ou a imediata conversão do mandado monitório em mandado executivo pela revelia do réu decorrente da falta de defesa (embargos), eis que, havendo oposição de embargos à monitória, a instrução seguir-se-á na conformidade do processo comum, apenas retornando-se à via especial por ocasião da sentença, para os efeitos próprios em caso de reconhecimento da pretensão deduzida, embora seja a sentença o inequívoco título executivo judicial a ser, eventualmente, executado, ainda quando apenas declaratório da conversão do inicial mandado monitório em mandado executivo.

          Quanto ao recurso cabível contra a sentença proferida em sede de procedimento monitório cível, logicamente é a apelação o meio de impugnação recursal próprio, detendo efeitos devolutivo e suspensivo, eis que não se encontram os embargos à monitória dentre aquelas hipóteses elencadas no artigo 520, V, do CPC, porquanto os mesmos não se podem confundir com os embargos à execução, tanto mais porque a execução apenas decorre da sentença que constituir o título executivo judicial, sendo impertinente falar-se em identidade qualquer com os embargos à execução senão pelo nome, dado o caráter suspensivo em relação ao mandado monitório. Doutro lado, contudo, os embargos à execução que se seguir pela conversão do mandado monitório em mandado executivo, ou pela própria efetivação do título executivo judicial na sentença que rejeitar os embargos à monitória, julgados constituem sentença recorrível por apelação de efeito meramente devolutivo, então sim pela aplicação do artigo 520, V, do CPC. Portanto, o recurso de apelação contra a sentença proferida no processo cognitivo decorrente da ação monitória detém duplo efeito, suspensivo e devolutivo, eis que os embargos à monitória não se encontram no elenco restrito do artigo 520, V, do Código de Processo Civil; instaurada a execução, nos próprios autos onde prolatada a sentença monitória, os embargos opostos à execução, indeferidos que sejam liminarmente, ou rejeitados ao final, propiciam, sim, apelação com efeito meramente devolutivo.

III – AÇÃO MONITÓRIA NA JUSTIÇA DO TRABALHO

          Delineados os aspectos fundamentais da ação monitória, cabe examinarmos a pertinência de tal rito procedimental especial na Justiça do Trabalho, como de regra tem, ao longo dos tempos, sido admitido, ante o disposto no artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho, que enuncia o caráter subsidiário do Processo Civil em relação ao Processo do Trabalho, nas omissões que se verificarem.

          Ao contrário do que inicialmente parece, a ação monitória instaura rito especial de processo cognitivo e não de processo executório, ainda que se adotem termos como o do mandado monitório para lembrar, advertir, exortar (monere) o pretenso devedor a cumprir a obrigação baseada em prova escrita que por si não constitua título executivo.

          Neste sentido, toda a confrontação da ação monitória com o Processo do Trabalho deve situar-se no campo das ações de competência das Juntas, eis que não há que se falar em execução ou ação incidental à execução, cuja competência se desloca, segundo a CLT, para a seara singular do Juiz Presidente ou Substituto.

          Não exsurgem dúvidas de que a ação trabalhista ordinária (denominada por reclamação trabalhista) contém como objeto, em regra, a cobrança pelo trabalhador de crédito supostamente havido em decorrência de prestação de serviços para determinado patrão, ocasionando, por vezes, instrução plena no sentido de consubstanciar a veracidade das alegações fáticas deduzidas por reclamante e reclamado quanto ao modo com que transcorrida a relação laboral, para justificar ou não o crédito pretendido ou a resistência a tal pagamento ou dação.

          Como a ação ordinária de cobrança do cível, a reclamação trabalhista detém a característica básica de falta de título executivo, embora fundado seu objeto no reconhecimento de obrigação em favor do autor pelo réu.

          Como a ação ordinária de cobrança do cível, igualmente pode haver casos em que a pretensão do reclamante para o pagamento de soma em dinheiro ou entrega de coisa fungível ou de determinado bem móvel baseie-se em prova escrita destituída da eficácia de título executivo.

          No Processo Civil, a busca da instrumentalidade acarretou a instituição da ação monitória como via especial capaz de permitir pronta satisfação à pretensão baseada em prova escrita consistente de dívida do réu, sem impedir, como antes dito, a eleição da via comum pelo autor.

          No Processo do Trabalho, à falta de vias especiais para tais casos, e tanto mais pelo caráter alimentício dos créditos em regra perseguidos na Justiça do Trabalho, ainda mais deve prevalecer o princípio da instrumentalidade processual, permitindo que vias especiais do Processo Civil sejam colacionadas ao Processo do Trabalho, pela regra de subsidiariedade ante omissão (CLT, artigo 769), como a ação monitória, tanto mais porque, dado o princípio da disponibilidade do rito, não há prejuízo algum a que o autor prefira a via ordinária da reclamação trabalhista.

          Se é certo que a doutrina e a jurisprudência trabalhista têm ainda resistido à possibilidade de execução de título extrajudicial perante a Justiça do Trabalho, mais por restrita indicação da execução meramente de sentença trabalhista do que por omissão do elenco dos títulos executivos extrajudiciais (pois doutro modo seria então o caso de invocar-se a regra do artigo 769 consolidado), mais certo ainda que tal restrição não pode de modo algum ser colacionada para repelir a ação monitória perante a Justiça do Trabalho decorre de ser a mesma via do processo cognitivo, que pretende a constituição de título executivo judicial a partir de prova escrita idônea e consistente da obrigação do réu, e não propriamente a execução direta da obrigação supostamente inserida em tal documento.

          Igualmente não se há como repelir a ação monitória no Processo do Trabalho pelo argumento de incompatibilidade de ritos, eis que outras ações não previstas na CLT têm encontrado guarida perante a Justiça do Trabalho, que nas Juntas, sobretudo, em regra adapta o procedimento cível às peculiaridades decorrentes da oralidade ocasionada pelas audiências de conciliação, instrução e julgamento. Por isto, há certo consenso em aplicar-se, nos processos de competência das Juntas, o rito próprio previsto na CLT para as reclamações trabalhistas, desviando-se para as peculiaridades dos ritos especiais trazidos do cível, sempre que necessário, de modo que a regra do Processo Civil como subsidiário do Processo do Trabalho permaneça, ao menos em tese, como válida (embora, atualmente, o Processo do Trabalho, de inspirador, passou a ter, cada vez mais, que invocar preceitos modernos transcritos para o Processo Civil).

          Menos justo que procurar tecnicalidades para afastar a possibilidade da ação monitória como via especial alternativa de perseguição de crédito pelo trabalhador (em regra), ainda quando detentor este de prova escrita do reconhecimento da obrigação pelo patrão havido por devedor, seria exigir instrução plena e demasiada, ainda quando ocorrente revelia e/ou confissão, para ao final prolatar-se sentença minuciosa, numa perda de tempo, ainda que curto, preciosa para quem busca crédito de natureza alimentar (em regra), tudo isto quando a ação monitória, se eleita como via própria pelo autor, perante a Justiça do Trabalho, poderia desde logo acarretar a expedição de mandado monitório pelo Juiz, se admitida a petição inicial (eis que tal decisão possui apenas caráter interlocutório), que tanto poderia ensejar o pagamento ou entrega da coisa pelo réu devedor, ante reconhecimento, com a Junta então extinguindo o processo com julgamento de mérito nos termos do artigo 269, II, do CPC, sem necessidade de instrução, quanto sentença da Junta, ante revelia e confissão, por não oposição de embargos à monitória, de procedência com declaração de conversão do mandado inicial expedido em mandado executivo, igualmente restando dispensada instrução plena, quanto ainda, por fim, havendo embargos à monitória, e então deflagrada instrução própria das reclamações, sentença de improcedência ou procedência, esta para constituir o título executivo perseguido pelo autor, como de regra ocorre nas reclamações trabalhistas.

          Constituído o título executivo judicial, seja com a conversão do mandado monitório inicial, seja com a expedição de mandado executivo próprio, tanto mais porque pressuposta a liqüidez da obrigação reconhecida, aplicar-se-á o Capítulo V do Título X da CLT, concernente às execuções trabalhistas.

          Quanto aos recursos, igualmente não decorrem maiores dúvidas, havendo impossibilidade de qualquer recurso contra as decisões interlocutórias do Juiz Presidente ou Substituto, ainda que referentes à expedição do mandado monitório (CLT, artigo 893, § 1º, e Enunciado 214/TST), sendo interponível apenas o recurso ordinário, de caráter meramente devolutivo, como em regra são os recursos trabalhistas, contra a sentença da Junta que extinguir o processo sem julgamento de mérito (no caso de indeferimento da petição inicial ou por outra das hipóteses elencadas no artigo 267 do CPC); que extinguir o processo com julgamento do mérito (no caso de pagamento ou entrega da coisa pelo réu no prazo assinalado no mandado monitório, ou ainda na audiência inaugural que se designar, por reconhecimento da pretensão deduzida, nos termos do artigo 269, II, do CPC, ou ainda por conciliação, conforme artigo 269, III, do CPC, c/c artigo 764, § 1º, da CLT, ou outro dos modos de extinção do processo com exame de mérito, com fulcro no artigo 269, IV e V, do CPC), ou que julgar procedente, ainda que em parte, ou improcedente a demanda, constituindo ou não o título executivo judicial perseguido pelo autor, eis que o agravo de petição apenas será cabível quando deflagrada propriamente a execução da eventual sentença constitutiva (seja a que haja determinado a conversão do mandado inicial em mandado executivo, seja a que haja determinado a intimação da parte e expedição de mandado executivo próprio), contra eventual sentença proferida pelo Juiz da Execução ante embargos opostos à execução. Os recursos de natureza extraordinária (recurso de revista, recurso de embargos e recurso extraordinário), assim como o recurso de destrancamento (agravo, de instrumento ou regimental) não permitem maiores dúvidas, eis que aplicados sem distinção da via eleita.

          Plenamente possível, pois, a via especial da ação monitória perante a Justiça do Trabalho, como procedimento próprio do processo cognitivo de competência originária das Juntas de Conciliação e Julgamento, permitindo a devida instrumentalidade do Processo do Trabalho, cujo objeto primordial circunscreve-se na perseguição de créditos de natureza alimentar, face a regra da subsidiariedade do artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho, dada a omissão verificada e a compatibilidade, pela possibilidade de eleição do procedimento ante o princípio da disponibilidade do rito, com a reclamação trabalhista e o procedimento ordinário trabalhista que dela decorre.

          Inadmissível, havemos de crer nisso, é permitir que provas escritas de pleno e inequívoco reconhecimento de obrigação de dar ou fazer por parte de patrões, consistentes per si, não sejam aceitas, sequer, como meios aptos a advertências judiciais quanto a possível execução da obrigação supostamente nelas descritas, à falta de embargos. A suplantação da necessidade de pautas, seja por ter o devedor reconhecido o crédito descrito no mandado monitório, seja por incidente a revelia e confissão decorrente da não oposição de embargos à monitória, que permitem a imediata inclusão do feito em audiência de julgamento da Junta para extinguir-se o processo com exame de mérito por ocorrência da hipótese do artigo 269, II, do CPC, ou para declaração de procedência do pedido e conversão do mandado monitório inicial em mandado executivo, com todo o implemento do princípio da celeridade tão invocado na Justiça do Trabalho, justificam, à falta de qualquer incompatibilidade, a adoção da via especial da ação monitória perante a Justiça Especializada; doutro lado, a oposição de embargos à monitória, que enseja a deflagração da instrução plena, similar em tudo à decorrente da reclamação trabalhista, demonstra não haver qualquer cerceamento de defesa às partes, embora apenas eventual procedência, ainda que parcial, em regra deva ensejar sentença líquida, que permitiria a imediata execução (transcorrido logicamente o prazo pertinente ao trânsito em julgado da sentença proferida) por desnecessária deflagração de procedimento liqüidatório, também cá prestigiando os princípios basilares do Processo do Trabalho

 


Referência Biográfica

Alexandre Nery de Oliveira:   Juiz do Trabalho na 1ª Vara do Trabalho de Brasília (DF), professor de Direito do Trabalho, pós-graduado em Teoria da Constituição
E-mail: anery@solar.com.br

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Cooperativas de Trabalho

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* Alexandre Nery de Oliveira

             As Cooperativas de Trabalho detém, como associados-cooperativados, trabalhadores que, dispensando a intervenção de terceiros qualificados como patrões, dispõem-se a contratar determinados serviços relacionados a suas profissões ou ofícios, em razão do conjunto, seja por trabalho de todos, seja por trabalho de grupos, em prol do bem comum geral.

            Neste sentido, seria efetivamente ilógico imaginarmos a caracterização dos associados-cooperativados como empregados da Cooperativa, eis que, numa caracterização social de empresa, é exatamente aquela em que os patrões são os próprios trabalhadores, em repartição dos benefícios e prejuízos da associação, em modo similar às sociedades comerciais, mas, em distinção a estas, baseando-se o produto aferido no próprio trabalho e não no trabalho de outros (empregados).

            O próprio Aurélio, limitando-se ao enfoque do verbete, salienta ser cooperativa a "sociedade ou empresa constituída por membros de determinado grupo econômico ou social, e que objetiva desempenhar, em benefício comum, determinada atividade econômica".

            No entanto, no âmbito do Direito do Trabalho, há que se estar atento à possível deformação da Cooperativa em Sociedade Comercial, quando os trabalhadores, por simulação da condição de cooperativados, em verdade mascaram a condição de empregados, dos quais subtraídos, então, direitos básicos previstos na legislação laboral, que, por descaracterização do vínculo empregatício decorrente da associação, não podem ser-lhes deferidos.

            A Cooperativa de Trabalho, em si, detém importante caráter social na permissão legal de participação direta dos trabalhadores no resultado do produto que detém — a força de trabalho — sem necessidade da intervenção de terceiros para alocar capital necessário à movimentação da empresa, enquanto, sob tal enfoque, justificam para si a obtenção de lucro pelo trabalho alheio, na caracterizada mais-valia, entendida na concepção econômica de Karl Marx como o suplemento do trabalho não remunerado, e que é, a tal modo, a fonte do lucro no sistema capitalista.

            Com a Cooperativa de Trabalho, sem adentrar-se em regimes comunistas ou socialistas, amaina-se o capitalismo, permitindo-lhe novos enfoques sociais, em que o trabalhador apropria-se do capital mais nobre existente, a própria força de trabalho, de modo a concorrer com ela na prestação de serviços, em conjunto e esforços comuns de outros trabalhadores, no diminuir a mais-valia capitalista e ensejar, com tal percepção, o próprio ganho de renda, dado nada haver que repartir do seu trabalho com o detentor do capital, no caso efetivamente inexistente.

            As Cooperativas de Trabalho englobam em seus quadros, como associados-cooperativados, trabalhadores que, dispensando a intervenção de terceiros qualificados como patrões, dispõem-se a contratar determinados serviços relacionados a suas profissões ou ofícios, em razão do conjunto, seja por trabalho de todos, seja por trabalho de grupos, em prol do bem comum geral.

            Na Cooperativa de Trabalho, o capital existente, em verdade, é a força de trabalho dos associados, sob pena de mascarar empresa comercial em que em verdade sejam sócios ou empregados e não cooperativados.

            Logicamente, no desenvolver atividades cooperativadas, pode a Cooperativa deter empregados relacionados a atividades-meio da produção de trabalho desenvolvida, tanto mais quanto maior for o número de trabalhadores agregados por identidade de ofício, necessitando, assim, em regra, empregados para atividades burocráticas relacionadas à administração e finanças de tais entidades associativas, e mesmo atividades-meio diversas, não relacionadas à atividade-fim de que decorrente a união de trabalhadores ocorrida.

            Portanto, à primeira vista não é aceitável a associação de trabalhadores não envolvidos com a atividade-fim produtiva da Cooperativa, eis que a união empreendida decorre da similitude de categoria ou ofícios empreendidos em prol comum, com repartição dos frutos obtidos a partir do similar trabalho por todos desenvolvidos.

            Tema que permeia o das Cooperativas de Trabalho é, também, a questão da inexistência de autonomia da entidade em frente a determinados tomadores de serviços.

            Não há como se admitir que a Cooperativa possa perder autonomia frente a determinados tomadores de serviço, notadamente porque tais contratam os serviços impessoalmente estabelecidos por conta do grupo envolvido, sob pena de tal permitir a descaracterização da associação para verdadeiramente mascarar contratações que, doutro modo, far-se-íam diretamente sob vínculo empregatício.

            As Cooperativas de Trabalho, no enfoque devido como meio de socialização do capital, ou de capitalização do trabalho em prol dos diretos detentores da força humana geradora de determinada atividade física ou intelectual, não podem ser admitidas como meras intermediadoras de mão-de-obra em favor de terceiros detentores de capital, tanto mais porque, em regra, as Cooperativas decorrem da união produtiva dos cooperados em prol da própria associação, e, assim, qualquer admissão de terceiros tomadores dos serviços junto a cooperativados, através da entidade associativa, deve exigir como premissa básica a inexistência de vínculo entre a atividade-fim do tomador de serviço e a da Cooperativa de Trabalho, senão quando esta se estabeleça em decorrência de excepcionalidades temporais.

            Há que se ter atenta a regra contida no artigo 9º da CLT, quando assevera que "serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação".

            Com efeito, se a adesão de trabalhadores a certas Cooperativas apenas mascara vínculos de emprego, eis que sem qualquer evidência de repartição e ajustes comuns quanto aos benefícios do trabalho comum desenvolvido, ou se apenas mascara vínculos de emprego pela prestação direta a terceiros, com atividade-fim congênere à atividade-fim da Cooperativa, sem qualquer excepcionalidade justificadora, há que se considerar, então, como nulas tais simuladas adesões a entidades cooperativas sem tal evidente norte cooperante (de cooperar: [Do lat. cooperare, por cooperari]: operar ou obrar simultaneamente; trabalhar em comum; colaborar: cooperar para o bem público; cooperar em trabalhos de equipe; ajudar, auxiliar; colaborar). A tal modo, a conseqüência lógica é configurar então tais simuladas Cooperativas de Trabalho como verdadeiros empregadores, ante a caracterização plena dos requisitos do artigo 2º da CLT, quando não caracterizados os trabalhadores associados como empregados, em verdade, dos próprios tomadores de serviços que hajam deliberadamente permitido ou incentivado a instituição fraudulenta da Cooperativa contratada, ante a regra do artigo 3º consolidado, ou seja, em casos de desqualificação da Cooperativa de Trabalho como tal, afastada a exceção prevista no parágrafo único do artigo 442 da CLT, passa o exame a envolver a análise da relação empregatícia entre o trabalhador e a simulada Cooperativa, por em verdade empresa comercial mascarada por adesões fraudulentas de empregados como cooperativados, ou entre o trabalhador e o Tomador de Serviço, por ter a simulada Cooperativa apenas agido em conluio direto ou indireto com este para mascarar a verdadeira relação empregatícia ocorrida. Caso contrário, reconhecendo a Justiça do Trabalho a regular união de trabalhadores em Cooperativa, limita-se o decreto judicial à declaração de inexistência de vínculo empregatício ante a regra do parágrafo único do artigo 442 consolidado

 


Referência Biográfica

Alexandre Nery de Oliveira  –  Juiz do Trabalho na 1ª Vara do Trabalho de Brasília (DF), professor de Direito do Trabalho, pós-graduado em Teoria da Constituição

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Direito a indenização por Danos Morais

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* Marcos Antonio Cardoso de Souza –

                    Trata-se de fato notório, o crescimento da conscientização da sociedade acerca de seus direitos. Neste processo, os meios de comunicação desempenharam papel fundamental. Freqüentemente, aborda-se na imprensa temas relacionados às garantias legais dos indivíduos e de toda a coletividade. Através da mídia, o cidadão adquire noção dos seus direitos e, com isso, passa a exigi-los. Não se pode cessar tal atividade, a qual se revela indispensável para a viabilização dos meios judiciais para toda a comunidade, a fim de que o direito não fique adstrito a alguns poucos detentores de privilégios financeiros ou intelectuais.

                    Diante do exposto, faz-se necessária a vinculação, na mídia, de uma garantia constitucional, que talvez, ainda, seja desconhecida da maioria da população: o ressarcimento por danos morais. Há de se louvar esta previsão do legislador constituinte; na medida que, faz necessária a repreensão dos atos que ferem à integridade moral do indivíduo.

                    Para a compreensão da matéria, deve-se, a princípio, traçar uma noção de dano moral, a qual será obtida em duas etapas. Primeiro, definir-se-á o termo dano, e, em seguida, a incidência do mesmo na esfera moral.

                    Entende-se por dano a lesão de direito legítimo, provocada de forma injusta por ato intencional, negligência, imprudência ou imperícia. Assim, o responsável por quaisquer destes atos fica obrigado a indenizar o titular do direito violado, na forma da lei. Existem no ordenamento jurídico duas modalidades de dano: material e moral.

                    A conceituação de dano moral continua sendo objeto de discussões doutrinárias, mas a definição mais aceita é a obtida a partir da noção de dano material. Refere-se ao conceito negativo do dano moral, que o considera com sendo toda violação de direito da qual não provocar reflexos no patrimônio da vítima. Ou seja, todo dano não-material, que, dessa forma, não produz seqüelas patrimoniais, caracteriza-se como dano moral.

                    Forçoso faz-se reconhecer que a noção acima aludida concede margem a dúvidas, que podem ser reduzidas se forem indicados alguns casos que ensejam a indenização, ora aludida.

                   Os órgãos judiciais têm acolhido os pedidos de ressarcimento por danos morais nos seguintes casos: "a) injúria, difamação, usurpação do nome, firma ou marca; b) os que produzem privação do amparo econômico e moral de que a vítima gozava; c) os que representam possível privação do incremento duma eventual sucessão; d) os que determinam grande choque moral, eqüivalendo ou excedendo a graves ofensas corporais, por serem feridas incuráveis; e) os que debilitam a resistência física ou a capacidade de trabalho, podendo acarretar abreviação da existência de quem sofreu o dano" (RT 693/188).

                    Em todas as hipóteses acima, existe a presença da dor íntima do ofendido, o desrespeito aos direitos da personalidade, como os referentes à vida, à saúde, à liberdade, à honra.

                    Protege-se, portanto, mediante a punição dos danos à esfera moral, direitos essenciais para a condução harmoniosa da existência humana. Não há como se contestar os abalos psicológicos decorrentes de uma ofensa à moral de outrem. O respeito à integridade moral deve ser assegurado a todos, sem exceção. Destarte, os indivíduos que sofreram lesão em sua esfera moral devem procurar um advogado de confiança, para que este promova a defesa, em juízo, dos seus direitos lesionados.

                    Ao autor da ação da indenização por danos morais, atribui-se a prerrogativa de exigir uma reparação condizente com a lesão suportada. Assim, com a finalidade de colocar à disposição das vítimas os meios a possibilitar uma correta apreciação do valor da reparação pecuniária; elucida-se a seguir as regras a serem obedecidas pelo juiz de direito.

                    O valor da indenização deve ser fixado de forma a coibir a prática reiterada do dano moral. Revela-se inadmissível, portanto, a estipulação de quantia inócua frente ao poder financeiro do agente da lesão. Diante disso, a reparação pecuniária deve guardar relação diretamente proporcional com a capacidade econômica do agressor. Com isso, quanto maior o patrimônio deste, maior a indenização a que se tem direito. Uma vez inobservada a função inibitória da punição, concede-se ao ofendido a possibilidade de recurso à instância superior.

                    Em contrapartida, também, deve-se vislumbrar a hipótese em que, através da decisão, onera-se abusivamente o ofensor. Não se pode conceder ressarcimento de vulto a implicar no enriquecimento ilícito do ofendido. Caso se observe tal vício, ao vencido no caso concreto, também, é facultado a interposição do recuso adequado.

                    Dessa maneira, o juiz, ao proferir a sentença nos casos de indenização por dano moral, deve nortear-se no equilíbrio entre os aspectos acima mencionados: a prevenção de novas práticas lesivas à moral e as condições econômicas dos envolvidos.

                    Ressalta-se, por fim, a relevância da matéria, ora em análise, pois através de sua moral o ser humano projeta sua imagem na sociedade. Por esta razão, demonstra-se a indeclinável necessidade da apreciação cautelosa, por parte do judiciário, de qualquer mácula em sua honra e tranqüilidade íntima, provocada de forma injusta

 


Referência Biográfica:

Marcos Antonio Cardoso de Souza  –  Bacharel em Direito em Teresina (PI), pós-graduando em Direito Empresarial em Recife
 
E-mail: souzamac@uol.com.br

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Código de Defesa do Consumidor

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* Maria Berenice Dias

     Despiciendo, para o enfrentamento do tema, é desenvolver uma ampla explanação a respeito das formas intervencionais, por institutos já de todo conhecidos. Porém, mister se faz uma rápida visualização de ao menos duas das hipóteses de intervenção de terceiros – no plano do direito material – para melhor se detectar as alterações que foram introduzidas pelo CDC, dilatando a esfera da responsabilidade civil, principalmente com referência às sociedades seguradoras. 

    Como em todas as possibilidades de ampliação da demanda, pela via intervencional, o fenômeno se detecta no âmbito do direito material, onde se flagram os pressupostos de legitimação para sua ocorrência.

    1. Da denunciação da lide

    Em face de relações jurídicas entretidas por duas pessoas produzirem reflexos em distintas relações mantidas por uma delas com terceiros, pela existência de um nexo de causalidade e dependência, flagra-se o interesse jurídico de quem, mesmo alheio à relação originária, reste por ter direito próprio atingido.

    O típico exemplo que permite a visualização de tal fato é o contrato de seguro, que se torna exigível quando ocorre o sinistro. Em um acidente de trânsito entre dois veículos, encontrando-se um deles coberto por seguro, ao se estabelecer uma relação obrigacional entre os envolvidos (art. 159 do CC), neste momento nasce a obrigação da seguradora, perante seu segurado.

    Desencadeada uma ação entre os envolvidos no acidente, a decisão reconhecendo a possibilidade do segurado faz exsurgir a obrigação da seguradora de proceder ao pagamento da indenização ao seu cliente. Vê-se, pois, que, no suporte fático – na linguagem de Pontes de Miranda, que já se tornou usual – da obrigação secundária, se encontra outra relação jurídica, desencadeante de sua exigibilidade, de forma imediata e automática.

    Induvidável que a seguradora, por não integrar a relação obrigacional decorrente do evento danoso, não dispõe de legitimação para participar da demanda na qualidade de parte. Porém, seu interesse jurídico com relação à mesma decorre da possibilidade de emergir, do deslinde da controvérsia, uma obrigação para com uma das partes. Dito interesse, revestido de juridicidade, qualifica a seguradora, tanto para, de forma espontânea, participar da demanda como assistente simples – nos precisos termos do art. 50 do estatuto processual – como autoriza a parte, que entretém o contrato de seguro, a proceder à denunciação da lide, para, no mesmo processo, estabelecendo nova ação com a seguradora, obter pelo mandado sentencial o reconhecimento do direito ao recebimento da indenização. Como não há qualquer relação jurídica entre o autor e a seguradora denunciada, não pode ser imposta a esta diretamente a condenação ao pagamento ao autor.

    Tal explanação, por meio do referido exemplo, serve para evidenciar que a existência de relação jurídica conexa e dependente entretida por uma das partes com terceiro não integra este na relação condicionante e, por conseqüência, não lhe outorga a qualidade de parte. Para participar da demanda principal.

    Quanto a esta, detém a seguradora posição de mero assistente, sendo ré somente da lide incidental, que dispõe de distinto objeto, pedido e causa, qual seja o contrato de seguro.

    É a denunciação da lide uma ação incidental de garantia, ensejadora de ação de regresso, que passa a integrar o processo de conhecimento. Instituto que, ao permitir a introdução dos garantes na causa, atende ao princípio da economia processual, para evitar que nova ação se estabeleça, em momento posterior, para a perseguição do direito regressivo.

    Segundo Ovídio Baptista da Silva, “sempre que uma das partes possa agir, em demanda regressiva”, contra seu garante, para reaver os prejuízos decorrentes da eventual sucumbência na causa, estará autorizada a chamar para a ação esse terceiro a que a mesma se liga” (grifo do autor, Curso de Processo Civil, I/237, 1987).

    2. Do chamamento ao processo

    Esta diversa forma intervencional dispõe de distinto conteúdo legitimante.

    A introdução do chamamento ao processo, como lembra Pedro Soares Muñoz, ocasionou sensível alteração na doutrina da solidariedade passiva, que não admitia, na conformidade de nosso Direito Civil, que o devedor solidário, quando citado individualmente para a causa, pudesse exigir a presença dos demais co-obrigados no processo (Intervenção de Terceiros, In Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, 1974, p. 29).

    A faculdade de o credor buscar o adimplemento da obrigação de um só dos devedores solidários (art. 904 do CC), bem como somente do fiador (art. 1.491 do CC), não multiplica o único direito – o direito de crédito. Ao credor é facultado exercitá-lo contra cada um dos obrigados, ou seja, dispõe o autor de uma ação autônoma com relação a cada um dos devedores.

    Ao permitir o CPC a possibilidade de o devedor chamar ao processo os demais co-obrigados, e ao fiador de fazer integrar a ação os outros fiadores, bem como o devedor principal, praticamente subtraiu o direito de escolha do credor.

    Ocorrendo o chamamento, acaba o autor por dirigir a ação também contra os outros obrigados, que passam a integrar o pólo passivo, na qualidade de réus, formando-se um cúmulo de ações materiais dentro do processo, a configurar um litisconsórsio passivo, nominado como unitário.

    Cabe referir que tal classificação do litisconsórsio, segundo os efeitos sentenciais, resta por mascarar uma realidade: o indispensável é que sempre venha para o âmbito da demanda a relação jurídica em sua integralidade. Quando a lei outorga a mais de um a possibilidade de a processualizar, como no caso de co-legitimação – da qual a solidariedade é um típico exemplo – vem a mesma por inteiro a juízo, merecendo uma única solução. Dita unitariedade decisional não decorre, como diz o art. 47 do CPC, da natureza da relação jurídica a merecer decisão uniforme.

    Explicitados os fenômenos ocorrentes no campo do direito material, nas duas formas de intervenção, conclui-se que, na denunciação, inexistindo vínculo jurídico entre o autor e o denunciado, estabelecem-se duas lides dentro do processo, com vínculo de prejudicialidade. No caso de procedência da demanda principal, por refletir-se seu resultado na ralação incidente, é que esta será apreciada, mas somente entre denunciante e denunciado. Já no chamamento ao processo, vê-se um alargamento do pólo passivo da demanda, figurando os chamados como réus, por entreterem vínculo jurídico com o autor, estabelecendo a sentença a obrigação de todos, nos termos do art. 80 do CPC.

    Como assevera Sydney Sanches, o chamamento ao processo envolve também exercício de ação de conhecimento, de caráter incidental, com pretensão regressiva, sendo chamante e chamado co-réus; já entre denunciante e denunciado não pode haver vínculo de solidariedade (Denunciação da Lide, RT, 1984, p. 32).

    3. A posição do Instituto de Resseguros do Brasil

    Ainda antes de compulsar o estatuto objeto do tema, necessário lembrar que o art. 68 do Dec.-Lei 73/66, nas ações movidas contra sociedade seguradora, em havendo resseguro, criou a obrigatoriedade da citação do IRB, gerando um litisconsórcio necessário, por força de lei. Tal intervenção coacta, no entanto, não cria qualquer solidariedade ou obrigação deste perante o segurado.

    O decreto regulamentador, de nº 60.460/67, no § 3º do art. 71, explicita que “o IRB não responde diretamente perante os segurados pelas responsabilidades assumidas em resseguro”, a evidenciar que o contrato de seguro é, com relação ao mesmo, res inter alios acta.

    Nestes termos, cabe a conclusão de que, apesar de tratar-se de um litisconsórsio necessário, por imposição legal, nos termos da parte inicial do art. 47 do CPC, não participa o ressegurador da relação jurídica material, dispondo da possibilidade para atuar no processo na qualidade de mero assistente, por entreter com a seguradora vínculo jurídico condicionado.

    Em face dessa obrigação do IRB, possível é sua denunciação pela seguradora, para reaver dele o valor do contrato de resseguro, em caso de sucumbência na demanda.

    4. O Código de Defesa do Consumidor

    Avivados esses conceitos, possível agora passar-se ao exame do Código de Defesa do Consumidor, que, além de estabelecer a responsabilidade objetiva do fabricante, produtor, construtor e importador pelos defeitos dos produtos (art. 12), restou por gerar uma responsabilidade solidária, de caráter subsidiário, do comerciante, nas hipóteses elencadas no art. 13. O seu parágrafo único concede ação de regresso, ao que efetivar o pagamento, contra os demais, inclusive nos mesmos autos, mas vedando a denunciação da lide, pelo seu art. 88.

    Se hígido permaneceu o instituto da solidariedade plasmada no estatuto civil, na hipótese prevista, no entanto, acabou por subtrair a faculdade outorgada pela lei processual, de ocorrer o chamamento ao processo, assim como, de modo expresso, a denunciação da lide.

    Já a ação de responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços, prevista no art. 101 do novo estatuto, introduz alterações mais profundas.

    Ao deferir ao fornecedor, que dispõe de contrato de seguro, a possibilidade de proceder ao chamamento ao processo do segurador, fez surgir uma obrigação direta deste, perante o consumidor, mesmo não tendo com ele qualquer relação jurídica contratual. Acabou por gerar a lei uma solidariedade entre o fornecedor e o segurador, perante o consumidor. Expressa a remissão ao art. 80 do estatuto processual, a evidenciar a condição de réu do chamado, sendo-lhe somente deferido, se satisfizer a dívida, um título executivo contra o fornecedor.

    Facultou o mesmo dispositivo legal, o ajuizamento da demanda, diretamente contra o segurador, em caso de ter sido declarado falido o fornecedor. Apesar de o dispositivo, nesta passagem, utilizar a expressão réu, postura que se adquire somente na relação processual em provada a qualidade do falido, antes do ajuizamento da demanda, caberá a ação, já diretamente contra o segurador. De outro lado, se comprovada a quebra, no decorrer no processo, possível é a substituição da parte, pelo segurador, sem a necessidade de ingresso de nova demanda. Essa alteração subjetiva atende ao objetivo do legislador de definir instrumento ágil para defesa do direito tutelado.

    Finalmente, vê-se que restou dispensado o litisconsórsio obrigatório com o IRB e proibida a denunciação da lide do mesmo pelo segurador, de modo expresso. Como também o dispositivo, após tais limitações, explicitamente afirma estar vedada a integração do contraditório pelo Instituto de Resseguros do Brasil, acabou por impedir sua integração para atuar como assistente simples.

    5. Conclusões

    Dessas breves observações, possível é concluir-se que:

    – gerada a responsabilidade solidária, em caráter subsidiário, do comerciante, pode ser o mesmo acionado diretamente pelo consumidor, descabendo a denunciação do fabricante, produtor, construtor ou importador, para exercício do direito de regresso, bem como o chamamento ao processo;

    – ao facultar a lei o chamamento ao processo do segurador do fornecedor de produtos e serviços, restou por criar um vínculo obrigacional daquele com o consumidor;

    – possível é a ação direta contra a sociedade seguradora no caso de falência do fornecedor segurado;

    – dispensado o litisconsórcio obrigatório do IRB, vedada a denunciação da lide, assim também sua intervenção, mesmo na qualidade de mero assistente do segurador.


Referência Biográfica

MARIA BERENICE DIAS  –   Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam.

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Lar: Lugar de Afeto e Respeito

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* Maria Berenice Dias

            O ideograma chinês, que representa o lar, é o mesmo que significa a paz e consta de um telhado abrigando um homem e uma mulher.

            Esta foi a imagem que inspirou a criação do projeto LAR: Lugar de Afeto e Respeito, lançado pelo JusMulher nesta data, 8 de março – Dia Internacional da Mulher, com o apoio do movimento de mulheres que, pela vez primeira faz uma junção de forças para obter mais ressonância à extensa pauta de reivindicações.

            O Afeto que norteia o surgimento da união não pode, quando deixa de existir o amor, se transformar em ódio. O Respeito entre homens e mulheres, tem de sempre persistir face a singela constatação de que são seres complementares, cujas poucas diferenças não os transforma em sexos opostos.

            O Lar não pode tornar-se um campo de batalha, palco de pequenez e vinganças, que acaba se traduzindo em violência física ou psicológica, manifestada por demonstrações de desprezo e menosprezo, e onde brigas e desavenças chega em muitos casos à morte.

            A paz é um dos valores mais buscados pela humanidade, não sendo uma dádiva, mas uma verdadeira conquista que em muito depende do bom uso de outro dos grandes valores – talvez só superado pelo valor vida – que é a liberdade, conceituada como o pleno uso da inteligência e da vontade, respeitando a inteligência e a vontade do outro. A liberdade também não é uma graça que nos é dada mas um estado a ser conquistado, através de um processo de construção diuturno.

            A paz tão desejada entre um homem e uma mulher, tem como pressuposto a coexistência do afeto, encontrando-se condicionada ao respeito mútuo, através do exercício da liberdade e tendo seu lugar de realização plena dentro do lar.

            Mesmo parecendo utópico, haverá um dia em que o efetivo reconhecimento da igualdade fará o Dia Internacional da Mulher perder seu significado, passando a festejar-se, quem sabe, o Dia Internacional do Lar – Lugar de Afeto e Respeito. Neste data se estará comemorando a conquista, não do maior valor da humanidade, mas da sua meta ideal: a felicidade.


Referência Biográfica

MARIA BERENICE DIAS  –   Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam. – 1999

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Foro especial por prerrogativa de função: o novo artigo 84 do Código de Processo Penal

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* Renato Flávio Marcão 

Sumário: 1. Algumas definições de competência; 2. A divisão de competências; 3. O foro especial por prerrogativa de função; 4. Os parágrafos do artigo 84 do Código de Processo Penal; 5. A inconstitucionalidade do § 1º do art. 84 do Código de Processo Penal; 6. A inconstitucionalidade do § 2º do art. 84 do Código de Processo Penal; 7. Considerações finais.

   


1. Algumas definições de competência 

            Na precisa lição de Luigi Lucchini, a competência vem a ser a medida da jurisdição distribuída entre os vários magistrados, que compõem, organicamente, o poder judiciário do Estado.[1]

            Dizia Vincenzo Manzini que “la competenza, oggettivamente considerata, è la cerchia legislativamente limitata entro la quale um giudice, avente giurisdizione ordinária o speciale, può esercitare la sua giurisdizione”. Arrematando que: “Riguardata soggettivamente, essa è il potere-dovere di um giudice di esercitare la giurisdizione, che gli è propria, in relazione a un determinato offare penale”.[2]

            Entre nós, João Mendes considerava a competência como determinação de atribuições dos tribunais e juizes[3], sendo que para Eduardo Espínola Filho, “a competência vem, pois, a ser a porção de capacidade jurisdicional, que a organização judiciária atribui a cada órgão jurisdicional, a cada juiz”.[4] 

2. A divisão de competências 

            É da tradição do Direito Processual Penal brasileiro a divisão ou distribuição de competências entre seus diversos órgãos de jurisdição, de tal sorte que o atual Código de Processo Penal[5], cuidando da matéria em seu Livro I, Título V, artigos 69/87, estabelece regras específicas, trazendo disposições gerais nos artigos 88/91, sendo certo que na sistemática adotada, a regra base de fixação de competência leva em consideração o lugar da infração, conforme disposições contidas nos artigos 69, inc. I, e 70/71. Tem-se, ainda, outras regras, sendo elas: competência pelo domicílio ou residência do réu (arts. 72/73); competência pela natureza da infração (art. 74); competência por distribuição (art. 75); competência por conexão ou continência (arts. 76/82); competência por prevenção (art. 83), e competência por prerrogativa de função (arts. 84/87).

            Justificando as razões determinantes da divisão de competências no ordenamento jurídico, Vincenzo Manzini asseverou que: “Ragioni d’interesse pubblico e d’interesse privato, motivi di economia funzionale, presunzioni di maggiore o minore capacità tecnica o attitudine psichica, necessità d’ordine, comodità di prova, criteri di garanzia e d’equa agevolazione difensiva, ecc., hanno indotto lo Stato a limitare l’esercizio della potestà di giurisdizione entro certi confini, mediante il regolamento della competenza di ciascuna categoria di giudici, di ciascuna sede giurisdizionale, di ciascun giudice impersonalmente considerato”.[6]

            Importa para o estudo que ora se pretende, a análise das regras que disciplinam a competência por prerrogativa de função, ou, como também denominado, o foro especial por prerrogativa de função.  

3. O foro especial por prerrogativa de função 

            A matéria relativa ao foro especial por prerrogativa de função não se vê regulamentada apenas no âmbito infraconstitucional, nos limites do Código de Processo Penal, sendo de relevância constitucional, tanto assim que o art. 29, inc. X, da Constituição Federal, estabelece a competência dos Tribunais de Justiça dos Estados para o julgamento de Prefeitos.

            O art. 105 da Constituição Federal cuida do rol de competências do Superior Tribunal de Justiça, passando pelo tema do foro especial por prerrogativa de função.

            De igual maneira, o artigo 102 da Constituição Federal estabelece o rol de competências do Supremo Tribunal Federal com as hipóteses em que lhe compete julgar originariamente (inc. I); julgar em cede de recurso ordinário (inc. II), e em razão de recurso extraordinário (inc. III), tratando, entre outros temas, do processo e julgamento, nas infrações penais comuns, do Presidente da República, do Vice-Presidente, dos membros do Congresso Nacional, de seus próprios Ministros[7] e do Procurador-Geral da República, ou ainda, como se vê na alínea c do inc. I do mesmo artigo 102.

            No plano infraconstitucional, dispõe o artigo 84 do Código e Processo Penal que: “A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Apelação, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns ou de responsabilidade”, arrematando, o artigo 86 do mesmo Diploma que compete ao Supremo Tribunal Federal, privativamente, processar e julgar os seus ministros, nos crimes comuns (inc. I); os ministros de Estado, salvo nos crimes conexos com os do Presidente da República (inc. II); o procurador-geral da República, os desembargadores dos Tribunais de Apelação, os ministros do Tribunal de Contas e os embaixadores e ministros diplomáticos, nos crimes comuns e de responsabilidade.  

4. Os parágrafos do artigo 84 do Código de Processo Penal 

            Como nos tempos da ditadura admitida oficialmente, sem se preocupar com outros temas que estão por exigir cuidado e pressa do legislador, em meio aos jogos finais da Copa do Mundo de Futebol de 2002 se fez tramitar no Congresso Nacional, quando as atenções da Nação e da imprensa estavam voltadas para as questões futebolísticas, o Projeto de Lei n.º 6.295/02, inteiramente lesivo ao interesse público, estendendo o benefício do foro privilegiado aos ex-ocupantes de cargos públicos e também para as ações de improbidade administrativa.

            Parte da matéria tratada já era objeto de discussão em um Projeto de Lei com contornos mais amplos, enviado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional em 1996, ao qual se convencionou chamar “Lei da Mordaça”, tendo por objetivo, entre outros, cercear a divulgação de informações relativas a procedimentos e processos envolvendo agentes políticos. Uma forma de evitar que a criminalidade e os desmandos políticos cheguem ao conhecimento público, sendo que os objetivos de tal cerceamento são evidentes. Aliás, não são de hoje os ataques oficiais contra instituições como o Ministério Público, hoje, mais do que nunca, considerado o maior guardião dos interesses da sociedade. Tentativas as mais variadas de tolher as atividades do Ministério Público que incomodam a classe política fluem sem remorso e sem assombro pelos Gabinetes e Comissões do Congresso Nacional, como se fosse esse o desejo do Povo brasileiro. Fala-se, ainda, em democracia representativa, fazendo bater no peito a pancada heróica…

            Como advertiu Roberto Delmanto, “os maiorais da República nunca aceitaram a autonomia do Ministério Público, pois ela assegura que todos os prevaricadores serão punidos”.[8]

            Com celeridade incomum nos casos em que há interesse público, aprovado na Câmara dos Deputados[9], o Projeto 6.295/02 chegou ao Senado no dia seguinte e, no mesmo dia, o plenário aprovou requerimento dando urgência à tramitação, apresentado pelo vice-líder do governo, o Senador Romero Jucá.

            Toda eficiência e celeridade demonstradas pelo Congresso Nacional visou apenas preservar interesses do então presidente da república, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, cujas idéias um dia expostas a título de sua formação universitária[10] não condizem com grande parte dos atos que patrocinou em seu governo, o que realmente não impressiona, pois o mesmo já havia advertido no início de seu primeiro mandato junto ao comando supremo da Nação que era preciso esquecer o que ele havia escrito…

            Rosa Costa noticiou em seu artigo publicado no jornal Estado de São Paulo[11] que o líder do PMDB à época, Senador Renan Calheiros, ex-chefe da campanha de Fernando Collor de Melo à Presidência da República e ex-Ministro da Justiça, orientou toda a bancada a aprovar a proposta.

            É necessário dizer que no tocante a competência para as ações de improbidade o Ministro Nelson Jobim, ex-Ministro da Justiça nomeado por Fernando Henrique Cardoso, já havia concedido liminar suspendendo a eficácia da sentença condenatória proferida na ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público Federal contra o Ministro Ronaldo Sardenberg, ao argumento de que os agentes políticos não podem ser responsabilizados por improbidade, com base na Lei 8.429/92, porquanto a mesma teria por destinatários unicamente os agentes administrativos. De acordo com a decisão, a responsabilidade do agente político, quando ao mesmo é imputado ato de improbidade, deve ser apurada pelo meio próprio, que é a ação por crime de responsabilidade, promovida no foro especial fixado constitucionalmente.[12]

            Como já era de se esperar, o Projeto 6.295/02 foi convertido em Lei, que recebeu o n.º 10.628, de 24 de dezembro de 2002, acrescentando dois parágrafos ao art. 84 do Código de Processo Penal. O § 1º estabelece a prorrogação do foro especial após a cessação do exercício da função pública e o § 2º determina que: “a ação de improbidade, de que trata a Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º”.  

5. A inconstitucionalidade do § 1º do art. 84 do Código de Processo Penal. 

            A matéria atinente ao foro especial após a cessação do exercício da função pública já fora objeto de longa discussão que terminou com o cancelamento da Súmula 394[13] pelo Colendo Supremo Tribunal Federal em 1999, ficando soberanamente decidida a questão, porquanto manifesto o pensamento da mais Alta Corte de Justiça da Nação.

             Revigorada a discussão, da forma como veio ao mundo jurídico a fixação do foro especial aos ex-exercentes de funções públicas padece de inconstitucionalidade.

            Aliás, referindo-se ao Projeto 6.295/02 ao tempo de sua tramitação, Dalmo de Abreu Dallari já advertia que “embora seja escandalosamente inconstitucional esse projeto foi estranhamente aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados, onde se supõe que haja conhecedores da Constituição”.[14]

            Na mesma ocasião o Ilustre Jurista apontava, ainda, a existência de enorme incongruência na proposta, pois, dizia ele referindo-se ao projeto: “ao mesmo tempo em que se fala que a competência privilegiada é ‘por prerrogativa de função’ acrescenta-se que tal privilégio permanece ‘após a cessação daquele exercício funcional’, ou seja, quando a pessoa já não está mais exercendo a função, não havendo, portanto, qualquer interesse público na concessão do privilégio”.[15]

            A inconstitucionalidade decorre evidente, já que nos precisos termos do art. 5º, caput, da Constituição Federal, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…”, e a ampliação decorrente do disposto no § 1º do art. 84 do CPP cria aos ex-exercentes de funções públicas tratamento diferenciado em relação aos demais cidadãos, cumprindo anotar que as razões que justificam e legitimam o foro especial por prerrogativa de função aos que estão no exercício de determinadas funções públicas visam o interesse público, pois, conforme lembra Dalmo de Abreu Dallari, referindo-se à competência delimitada pelo art. 102 da CF: “Esse privilégio de somente ser processado perante o Supremo Tribunal Federal impede que os que estejam no exercício daquelas funções sofram processos em diferentes pontos do país, o que poderia ser contrário ao interesse público, uma vez que todos esses personagens estão sediados na Capital da República e a necessidade de irem a outros pontos do País para se defenderem em processos poderia prejudicar o bom exercício da função. O artigo 84 do Código de Processo Penal reafirma esse privilégio, que denomina prerrogativa de função, pois, como dispõe a Constituição, só beneficia pessoas por estarem no exercício de certas funções, concedendo-lhes foro privilegiado”.[16]

            Não é por outra razão a lição de Luiz Flávio Gomes no sentido de que “esse foro especial só tem sentido, portanto, enquanto o autor do crime está no exercício da função pública. Cessado tal exercício (não importa o motivo: fim do mandato, perda do cargo, exoneração, renúncia etc.), perde todo o sentido o foro funcional, que se transformaria (em caso contrário) em odioso privilégio pessoal, que não condiz com a vida republicana ou com o Estado Democrático de Direito”.[17]

            Os malipuladores da Lei se esqueceram que o privilégio é em razão do exercício da função pública e não do cidadão. Deturparam o fundamento de base da regra, em benefício próprio. Advogaram em causa própria. Usaram das funções para estabelecer em benefício próprio privilégios injustificados, inconstitucionais, o que por si só resvala no art. 37 da Constituição Federal, ferindo de morte princípios como o da legalidade, impessoalidade e moralidade, estando tal conduta a reclamar as conseqüências jurídicas decorrentes.

            Na feliz expressão de Roberto Delmanto, a nova regra “desmoraliza a igualdade cidadã”.[18]

            Deixando as funções públicas, as ex-autoridades voltam a ser cidadãos comuns, devendo, em razão da igualdade constitucional, se submeterem a processo e julgamento como qualquer outro cidadão comum. Trata-se de ex-exercente de função pública, não havendo qualquer interesse público legitimador de modificação da regra.

            Note-se, por derradeiro, que a competência dos Tribunais vem delimitada no texto constitucional e a norma infraconstitucional não pode ampliar o rol de competências dos Tribunais conforme estabelecido, inclusive em razão de princípios como os da hierarquia e verticalidade das normas.

            A título de exemplo, frise-se que a Constituição Federal estabelece a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, o Presidente da República e o Vice-Presidente,[19] não mencionando qualquer possibilidade de processar e julgar ex-Presidente ou ex-Vice.

            Diante de tais circunstâncias, é flagrante a inconstitucionalidade do § 1º do art. 84 do Código de Processo Penal, decorrente da Lei 10.628, de 24 de dezembro de 2002.  

6. A inconstitucionalidade do § 2º do art. 84 do Código de Processo Penal. 

             Conforme dispõe o art. 37, § 4º, da Constituição Federal, “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

            É de todo perceptível, ante a literalidade e clareza do texto constitucional, que as sanções decorrentes da prática de atos de improbidade não se confundem com as de natureza penal. Evidentemente, e por conseqüência, não há que se confundir improbidade administrativa com ilícito penal. O inverso constitui erro grosseiro, data maxima venia.[20]

            A doutrina é tranqüila a respeito do tema; nesta seara não reinam disceptações.

            Bem por isso autores de nomeada[21] e os Tribunais sempre entenderam que, sendo a ação de improbidade administrativa cuidada na Lei 8.429/92 de natureza civil, ainda que proposta contra autoridades que gozem de foro especial por prerrogativa de função para efeitos penais, “deve ser processada e julgada em primeira instância, por não caber o deslocamento de foro para o Supremo Tribunal Federal sem expressa previsão constitucional”.[22]

            Por ser a competência originária do Supremo Tribunal Federal de direito estrito, não se admite o foro especial por prerrogativa de função para as ações civis de improbidade administrativa.

            Nesse sentido Wallace Paiva Martins Júnior traz à colação em sua preciosa obra o entendimento do Supremo Tribunal Federal, conforme segue: “A competência do Supremo Tribunal Federal é de direito estrito e decorre da constituição, que a restringe aos casos enumerados no art. 102 e incisos. A circunstâncias de o Presidente da República estar sujeito à jurisdição da corte, para os efeitos criminais e mandados de segurança, não desloca para esta o exercício da competência originária em relação às demais ações propostas contra ato da referida autoridade” (STF, TP, AgRg em Petição 693-4-SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, 12-8-1993, DJU, 1º mar. 1996, p. 5013)”.[23]

            Em sua conhecida obra, Marino Pazzaglini Filho destaca o voto do Min. Celso de Mello, que com clareza solar elucida a matéria nos seguintes termos: “Com efeito, não se pode perder de perspectiva, neste ponto, que a competência originária do Supremo Tribunal Federal, por qualificar-se como um complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional – e ante o regime de direito estrito a que se acha submetida – não comporta a possibilidade de ser estendida a situações que extravasem os rígidos limites fixados, em numerus clausus, pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da Carta Política, consoante adverte a doutrina (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição Brasileira de 1998, vol. 2/217, 1992, Saraiva) e proclama a jurisprudência desta própria Corte (RTJ 43/129 – RTJ 44/563 – RTJ 50/72 – RTJ 53/776)”.[24]

            Diante de tal quadro, resta evidente que não pode o legislador ordinário ampliar o âmbito estrito de competências da Suprema Corte.

            Como se vê, distinguindo a Constituição Federal os âmbitos de incidência da improbidade administrativa e do direito penal, não pode o intérprete, o juiz, e tampouco o legislador, confundi-los impunemente, e para a lei que não observa tais limites a sanção inevitável é o reconhecimento de sua inconstitucionalidade.

            Não é por outra razão que após a edição da Lei 10.628/02 a Egrégia Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo expediu recomendação[25] aos Membros do Ministério Público, em caráter normativo, para que arguam, “nos processos de sua atribuição porventura alcançados pela nova lei, a inconstitucionalidade do § 2º do art. 84 do Código de Processo Penal, a fim de possibilitar o exercício do controle difuso de constitucionalidade, pelos órgãos do Poder Judiciário”, e no texto da referida recomendação se fez constar o entendimento jurisprudencial a respeito do tema, no sentido de que “A competência do STF é de direito estrito e decorre da Constituição, que a restringe aos casos enumerados no art. 102 e incisos. A circunstância de o Presidente da República estar sujeito à jurisdição da Corte, para os efeitos criminais e mandados de segurança, não desloca para esta o exercício da competência originária em relação às demais ações propostas contra ato da referida autoridade” (STF, Pleno, RJ 159/28, rel. Min. Ilmar Galvão).

             Também consta da referida recomendação: “O mesmo raciocínio vale para os demais Tribunais Superiores (com a única exceção do TST – CF, art. 111, § 3º, o que obviamente não interfere no raciocínio aqui exposto, dada a absoluta especificidade da jurisdição trabalhista). Nesse contexto, o STF julgou inconstitucional artigo do Código Eleitoral (lei ordinária) que pretendia atribuir competência ao TSE para conhecer de mandado de segurança contra ato do Presidente da República, em matéria eleitoral (RTJ 109/909)”. E segue: “Também os Tribunais Regionais Federais (e bem assim os próprios juízes federais) têm prevista na Constituição, de forma taxativa, a sua competência, que ‘somente pode ser ampliada ou reduzida por emenda constitucional, contra ela não prevalecendo dispositivo legal hierarquicamente inferior’”. “Quanto aos Tribunais de Justiça, é também expressa a Constituição Federal, ao estatuir que sua competência ‘será definida na Constituição do Estado’ (art. 125, § 1º). Não pode esta ser ampliada pelo legislador ordinário. Tanto é assim que o STF considerou revogados os dispositivos da Lei Orgânica da Magistratura que dispunham sobre competência dos tribunais estaduais (HC 77.583-1-PR, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 18.9.98, p. 7)”.

            Ao cuidar da competência do Supremo Tribunal Federal o art. 102, inc. I, alínea a, da Constituição Federal, não incluiu em seu rol as ações civis públicas por ato de improbidade administrativa, não sendo demais relembrar que o art. 37, § 4º, da Constituição Federal cuidou de expressar a impossibilidade de confusão das jurisdições civil e penal, para os atos de improbidade e para os ilícitos penais, respectivamente. De tal sorte, a confusão proposta não se justifica dentro de um raciocínio lógico e inteligente, fazendo concluir que razões outras, diversas da técnica jurídica, e distantes do interesse público, é que empolgaram a malfadada disposição legal ora combatida.

             Historicamente, as hipóteses de foro privilegiado sempre foram objeto de previsão constitucional, não se deixando a regulamentação da matéria para a legislação de menor envergadura.  

7. Considerações finais 

             Comentando o tema sob análise Hugo Nigro Mazzili asseverou, com a inteligência de sempre, que: “Não se pode esconder que o objetivo desse jogo de força é tentar jogar para o Procurador-Geral da República e as maiores Cortes, de investidura política (indicação do Presidente da República e aprovação do Senado), a decisão sobre o processo e julgamento das mais altas autoridades… Acresce que, em vista da notória incapacidade material dessas Cortes de processarem e julgarem os milhares de casos de improbidade neste País, estariam assim, até involuntariamente, contribuindo para a ineficácia da lei”.[26]

            Trata-se, a bem da verdade, de um duro golpe contra os princípios republicanos de igualdade; fomento à criminalidade política, à corrupção, e é sabido que muitos têm se valido de prerrogativas asseguradas pelas funções para delinqüir impunemente.

            A Lei 10.628/02 contraria a Constituição Federal; todo e qualquer senso de Justiça; princípios constitucionais basilares; o interesse social, e não corresponde, em absoluto, com as idéias e ideais da sociedade brasileira contemporânea, representando, sem sombra de dúvida, ranço primitivo e ditatorial, e os homens primitivos, conforme Lucien Lévy-Bruhl, “vivem, pensam, sentem, se movem e agem num mundo que em numerosos pontos não coincide com o nosso”.[27]

            Não se deve esquecer a lição de Niklas Luhmann no sentido de que “apesar de toda a autonomia e do desenvolvimento continuado das diferentes noções jurídicas, as mudanças fundamentais do estilo do direito permanecem condicionadas pela mudança estrutural da sociedade, ou seja: são por ela incentivadas e possibilitadas”.[28]

            É preciso estar atento à vontade coletiva, de que falava Hans Kelsen.[29]

            Como escreveu Jean-Jacques Rousseau: “Enfim, quando o Estado, próximo de sua ruína, subsiste apenas por uma fórmula ilusória e vã, quando o liame social está rompido em todos os corações, quando o mais vil interesse se apossa afrontosamente do nome sagrado do bem público, então a vontade geral torna-se muda, todos, guiados por motivos secretos, não mais opinam como cidadãos, como se o Estado jamais tivesse existido, e são aprovados, falsamente sob o nome de leis, decretos iníquos que apenas visam o interesse particular”.[30]

            No Brasil, é cada vez mais acertada a afirmação de John Kenneth Galbraith no sentido de que a mudança socialmente desejável é regularmente negada devido a interesses pessoais bem conhecidos.[31]

 
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[1] Elementi di procedura penale, 3ª ed., Florença, 1908, p. 209.

[2] Trattato di Diritto Processuale Penale Italiano, 6ª ed., Torino: UTET, v. II, 1968, p. 37.

[3] Processo Criminal Brazileiro, Livro III, p.163

[4] Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, 5ª ed., Rio de Janeiro: Borsoi, v. II, p. 51.

[5] Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941.

[6] Trattato di Diritto Processuale Penale Italiano, 6ª ed., Torino: UTET, v. II, 1968, p. 37.

[7] Do Supremo Tribunal Federal.

[8] Desaforo privilegiado, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 29.

[9] “A tramitação do foro privilegiado na Câmara foi beneficiada por um acordo firmado entre o PT – que tinha interesse na aprovação da Medida Provisória 66 – e o governo, que pretendia evitar futuros problemas políticos para o presidente Fernando Henrique Cardoso”, conforme escreveu Paulo de Tarso Lyra em artigo publicado no “Jornal do Brasil”, em 13.13.02, p. A-4.

[10] Embora difíceis de se encontrar.

[11] Senadores aprovam urgência para votação do foro privilegiado, 13.12.02, p. A-12.

[12] Cf. A Mobilização contra o foro privilegiado, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 24.

[13] “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.

[14] Privilégios Antidemocráticos, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 26.

[15] Privilégios Antidemocráticos, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 27.

[16] Privilégios Antidemocráticos, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 27.

[17] Reformas penais : foro por prerrogativa de função. Disponível na internet: http://www.ibccrim.org.br, 24.12.2002.

[18] Desaforo privilegiado, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 29.

[19] Art. 102, inc. I, alínea b, da CF.

[20] Mesmo assim o Ministro Nelson Jobim, ex-Ministro da Justiça no Governo Fernando Henrique Cardoso, concedeu a liminar acima mencionada, suspendendo a eficácia da sentença condenatória proferida na ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público Federal contra o Ministro Ronaldo Sardenberg, abrindo o caminho para o infeliz Projeto[20] que deu origem à Lei 10.628/02, que inseriu o § 2º no art. 84 do Código de Processo Penal.

[21] Cf. Marino Pazzaglini Filho, Lei de improbidade administrativa comentada, São Paulo: Atlas, 2002, p. 173-175.

[22] TRF – 1ª Região, Ag. 01000132274-DF, DJ 4-5-2001, p. 640.

[23] Probidade administrativa, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 369.

[24] Lei de improbidade administrativa comentada, São Paulo: Atlas, 2002, p. 174.

[25] D.O.E. 03 de janeiro de 2003, p. 22.

[26] Privilégio para julgar corruptos, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 32.

[27] La mentalité primitive, 14ª ed., Paris, 1947, p. 47.

[28] Sociologia do Direito I, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, trad. de Gustavo Bayer, 1983, p. 225.

[29]Problemas capitales de la teoria jurídica del Estado, trad. de Wenceslao Roces, México: Porrúa, 1987, p. 139.

[30] Do contrato social, trad. de Márcio Pugliesi e Norberto de Paula Lima, 7ª ed., São Paulo: Hemus, s/d., p. 112.

[31] Sociedade justa, trad. de Ivo Korytowski, Rio de Janeiro: Campus, 1996, p. 5.

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Referência Biográfica

Renato Flávio Marcão  –  Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo, Mestre em Direito Penal, Especialista em Direito Constitucional, Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal, Coordenador Cultural da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, Núcleo de São José do Rio Preto-SP, Sócio-fundador da AREJ – Academia Riopretense de Estudos Jurídicos e Coordenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia, Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP)

Autor do livro: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001)

A produção antecipada de prova no art. 366 do Código de Processo Penal

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* Renato Flávio Marcão 

Sumário:  1. A previsão legal;  2. Sobre a resistência à produção antecipada de provas;  3.  Doutrina e jurisprudência a respeito do tema;   4.   Anulação do processo, de ofício, em decorrência da produção antecipada de prova;  5.  Nossa posição a respeito do tema;  6.  Conclusão. 

 

 

1. A previsão legal

                        Nos precisos termos do art. 366 do Código de Processo Penal, com a redação da Lei 9.271/96, se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.

                        Na precisa lição de Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly: “A nova redação do art. 366 do CPP condicionou o prosseguimento da instrução probatória a um evento futuro. No entanto, esse mesmo dispositivo admitiu a produção antecipada de provas, desde que consideradas urgentes e acompanhadas pelo Ministério Público e pelo defensor dativo”.[1]

2. Sobre a resistência à produção antecipada de prova

                     Não obstante a redação acima transcrita, é reincidente a resistência à produção antecipada de prova na prática forense.

                        Muitos Juízes de 1º grau e Instâncias recursais, aos olhos muitas vezes conformado do Ministério Público, têm feito tabula rasa da necessidade inquestionável de se providenciar a produção antecipada de prova visando evitar o perecimento da mesma e em homenagem ao princípio processual penal que determina a busca da verdade real como fundamento do provimento jurisdicional, seja qual for o resultado do processo.

                        O debate doutrinário e jurisprudencial está posto desde o advento da nova redação do dispositivo processual penal que alberga a matéria discutida.

3. Doutrina e jurisprudência a respeito do tema

                       Convém ressaltar, aqui, o entendimento jurisprudencial que entendemos deva prevalecer, no sentido de que:

                        “O art. 366 do CPP, ao determinar que ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional quando o réu, citado por éditos, não atender ao chamamento da Justiça, nem constituir advogado, facultou ao Magistrado ordenar a produção antecipada das provas consideradas urgentes. Regulamentada pelo art. 225 do referido diploma, a produção antecipada da prova testemunhal está sujeita ao princípio da urgência, que se entende pelo fundado receio de que, ao tempo da instrução processual, as testemunhas já não existam ou se tenham mudado do território da comarca. Nesta matéria, como no mais, o prudente arbítrio do Juiz é que haverá de ditar a forma de proceder” (TACRIM-SP. – 6ª C. – HC 312.098/3 – rel. Almeida Braga – j. 01.10.97).

                        “Consideram-se urgentes, para os efeitos do art. 366 do CPP, as provas que, em razão do decurso do tempo – consumidor de todas as coisas (tempus edax rerum) -, poderiam perecer, tornando impossível sua realização quando acaso comparecesse o réu a Juízo, sendo forçoso preservá-las ‘ad perpetuam rei memoriam’” (TACRIM-SP. – 1a C. – HC 312.226/8 – rel. Eduardo Goulart – j. 9.10.97).

                        Portanto, é inconteste que, em se tratando de provas urgentes, o juiz pode, e deve, a teor do disposto no artigo 366 do Código de Processo Penal, determinar sua produção antecipada.

                        Para tanto, necessária a conceituação de provas urgentes, vez que a suspensão do processo, por prazo ad infinitum, induz à incerteza quanto a retomada do curso processual.

                        Elucidando tal conceito, a lição de Tourinho Filho[2]:

                        “Que provas são estas? Depende do caso concreto. Todavia, em se tratando de perícias, busca e apreensão, e até mesmo de audiência de testemunhas, não se lhes pode negar o caráter de urgência, à semelhança do que ocorre com o art. 92 do CPP, ao dispor que, sendo suscitada questão prejudicial, séria e fundada, a respeito do estado civil das pessoas, o curso da ação penal ficará suspenso até que no juízo cível seja a controvérsia dirimida por sentença passada em julgado, sem prejuízo, entretanto, da inquirição das testemunhas e de outras provas de natureza urgente”.

                        “Ora, se o pronome adjetivo ‘outras’, num discurso, retoma sempre a idéia ou conceito dado anteriormente, parece claro que o legislador reputou o testemunho como prova de natureza urgente. E, com efeito, considerando a imprevisibilidade da morte, a inquirição de testemunha é providência que deve ser tomada com certa urgência. Não são apenas os testemunhos das pessoas elencadas no art. 225 deste Código que apresentam a marca da urgência. É claro que a testemunha pode mudar de endereço, sem que se saiba onde foi morar, pode ausentar-se do Estado ou do País, ficar gravemente enferma, de molde a nem poder comunicar-se com o mundo exterior, falecer. Tais circunstâncias já indicam que, suspenso o processo, na hipótese de o Juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes, uma destas será a testemunhal. Na verdade, se com a simples suspensão do processo, em face de uma questão prejudicial, cuja solução no cível não dura mais que três ou quatro anos, o legislador determinou a ‘ouvida das testemunhas e de outras provas de natureza urgente’, é sinal de que considerou a prova testemunhal como urgente. De se concluir, pois, a nosso juízo, que, em se tratando de réu que não atendeu à citação editalícia nem constituiu Advogado, não deve o Juiz limitar-se a inquirir as testemunhas que estejam enfermas ou idosas. E se o réu comparecer dez ou quinze anos depois? As testemunhas seriam capazes de relatar pormenores? Não poderiam morrer nesse espaço-tempo? Mudar de endereço sem que se possa localizá-las? Evidente que o Juiz, em hipóteses dessa natureza, deve não só colher antecipadamente os depoimentos, como, inclusive, determinar perícias e busca e apreensão, se for o caso”.[3]

                        Por oportuno, vale ressaltar entendimento jurisprudencial no sentido de que:

                        “Na hipótese de suspensão do processo em face da revelia do réu, a memória testemunhal deve ser colhida no tempo mais próximo do fato, em face do fenômeno humano do esquecimento, sendo de rigor a sua produção antecipada. Exegese dos arts. 82 e 366 do Código de Processo Penal” (STJ – 6ª T. – RESP nº 169.324/SP – Rel. Min. Vicente Leal – DJU nº 195, de 9.10.2000, p.207).

                        “Tratando-se do art. 366 do CPP, é lícita a produção antecipada da prova testemunhal, por estar presente o caráter de urgência, em face da incerteza quanto à prorrogação na retomada do curso processual, uma vez que eventual demora pode vir a apagar da memória das vítimas e testemunhas o fato criminoso, bem como dar ensejo às mudanças de endereços, falecimentos etc” (TACRIM – SP – 14ª Câmara – Mandado de Segurança – Rel. Oldemar Azevedo, v. u., j. em 14.12.1999).

                        “Em se tratando de suspensão do processo por prazo indeterminado, nos termos do artigo 366 do CPP, é possível que o Juiz se valha do seu poder geral de cautela, com base na lei, para autorizar a produção antecipada de prova testemunhal, em face da imprevisibilidade do momento em que o feito retomará seu curso, com a ressalva de sua eventual repetição, a pedido do réu, pois é previsível a impossibilidade de sua produção em razão do decurso do tempo, quer pela fatalidade da morte, quer pelo esquecimento dos fatos distanciados do tempo de sua prática, como também por causa do fenômeno de desgastes ou de reforçamento, e ainda por motivo das várias doenças da memória, assegurando, assim, a perquirição da verdade” (TACrimSP – MS nº 354.540/4 – São Paulo – 7ª Câm. – Rel. Corrêa de Moraes – J. 20.01.2000 – v.u).

                         “Inocorre cerceamento por afronta ao princípio constitucional da ampla defesa na determinação da produção antecipada de provas, uma vez suspenso o processo nos termos do artigo 366 do CPP, pois é providência de interesse comum, tanto do réu quanto do Órgão Acusatório, e bem assim do Juiz, que não é mais um espectador inerte da produção das provas, podendo até mesmo determinar, no exercício do poder cautelar que lhe é ínsito, a realização das que lhe parecerem úteis, velando para que não se diluam ou se percam, porque no processo penal o que se busca é a verdade real” (TACrimSP – HC nº 317.248/0 – 5ª Câm. – Rel. Nogueira Filho – J. 11.02.98 – RJTACRIM 37/410).

                        “A produção antecipada de provas (C. P. P., artigo 366) é medida que a sensatez abona e a prudência recomenda, em face da imprevisibilidade do momento em que o processo retomará seu curso. Se próximo, caberá na ocasião deferir à Defesa a renovação da prova. Se distante, ter-se-á acertadamente obviado à eventualidade de apresentar-se dificuldade intransponível na produção longamente protelada. Em ambos os casos, ver-se-á assegurada a perquirição da verdade, objetivo último do esforço processual” (TACrimSP – RSE nº 1.102.971/7 – 7ª Câmara – Rel. Corrêa de Moraes – J. 30.07.98 – RJTACRIM 41/400).  

4. Anulação do processo, de ofício, em decorrência da produção antecipada de prova

                        A 10ª Câmara do Egrégio Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo julgou a apelação n.º 1.312.505/9[4], de que foi relator o Excelentíssimo Juiz Vico Mañas, apontada em processo por crimes de furto qualificado, praticados em continuidade delitiva, onde o Insigne Magistrado João Alexandre Sanches Batagelo determinou a produção antecipada da prova testemunhal com supedâneo no art. 366 do Código de Processo Penal, fundamentando sua decisão de forma a justificar a providência que se revelou imprescindível aos olhos do Juízo, considerando a suspensão do processo por tempo indeterminado, a colocar em sério e grave risco a busca da verdade real.

                        Julgado o processo, que seguiu depois de certo tempo, após a prisão preventiva do réu, a Douta Defesa recorreu da sentença condenatória sustentando insuficiência probatória.

                        O processo foi anulado em grau de recurso, ex officio, em razão da realizada produção antecipada da prova oral.

                        Eis as razões invocadas na fundamentação do v. Acórdão, as quais pedimos vênia para transcrever em parte:

                        “A nova redação do art. 366 do Código de Processo Penal procura dar validade ao preceito constitucional que assegura aos acusados o exercício da ampla defesa e do contraditório. A primeira pressupõe defesa técnica e autodefesa. Esta, por sua vez, consiste no direito de audiência e no direito de presença, inconciliáveis, à toda evidência, com a revelia decorrente de citação ficta.

                        A lei nada exclui da apreciação do Poder Judiciário, mas apenas condicionou a sua atuação à estrita obediência de garantia fundamental, com assento constitucional.

                        Com efeito, a autodefesa significa a participação pessoal do acusado no contraditório, mediante sua contribuição para a função defensiva. Divide-se, como visto, no direito de audiência e no direito de presença. Este último representa a possibilidade de o réu tomar posição a todo momento sobre o material probatório produzido, comparecendo aos atos da instrução.

                        Por tal motivo, afirma-se que a participação do acusado nos atos de processo-crime a que responde ‘é uma conseqüência dos princípios constitucionais que ao acusado garantem o direito de ampla defesa e o de contrariedade na instrução criminal, pois é certo que, presente o réu no ato de inquirição da testemunha, poderá ele esclarecer o seu defensor acerca de um ou outro ponto do depoimento, ensejando, assim, a formulação de reperguntas explicativas’ (RTJ 80/4).

                        Assim, suspenso o processo pela revelia do acusado, a produção antecipada da prova testemunhal só será cabível, respeitada a garantia constitucional da ampla defesa, prestigiada com a recente alteração legislativa, em caráter excepcional, traduzido na exigência da medida, que se configura nas hipóteses do art. 225 do mesmo diploma legal, em nenhum momento ventiladas no caso em tela.

                        A prevalecer o procedimento adotado neste feito, a colheita antecipada da prova testemunhal sempre seria possível, o que não se concilia com o espírito que norteou a reforma processual introduzida pela Lei 9.271/96, desvirtuando-o por completo”.

                        Com tais fundamentos anulou-se o processo por cerceamento de defesa, entendendo-se que a r. sentença encontrava-se fundada em provas colhidas com ofensa a garantias constitucionais básicas.

5. Nossa posição a respeito do tema

                         A busca da verdade real é princípio fundamental do Direito Processual Penal brasileiro.

                         Conforme ensina Mirabete, “com o princípio da verdade real se procura estabelecer que o jus puniendi somente seja exercido contra aquele que praticou a infração penal e nos exatos limites de sua culpa numa investigação que não encontra limites na forma ou na iniciativa das partes. Com ele se excluem os limites artificiais da verdade formal, eventualmente criados por atos ou omissões das partes, presunções, ficções, transações etc., tão comuns no direito processual civil. Decorre desse princípio o dever do juiz de dar seguimento à relação processual quando da inércia da parte e mesmo de determinar, ex officio, provas necessárias à instrução do processo, a fim de que possa, tanto quanto possível, descobrir a verdade dos fatos objetos da ação penal”.[5]

                         Segundo Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly, na Justiça Penal “o juiz não é mero espectador das provas produzidas pelas partes. Tem o dever de investigar a fundo a realidade do fato. Tão largo é o alcance desse princípio que até mesmo a confissão, no processo penal, tem valor relativo (art. 197) e deve ser valorada de acordo com as demais provas coligidas, enquanto, no processo civil, esse mesmo ato, quando não se cuidar de direitos indisponíveis, tem importância definitiva e absoluta (art. 341, § 1º, CPC), autorizando desde logo o julgamento da lide”.[6]

                        Após a prática do crime, conhecedor de sua real situação frente a Justiça Penal, não raras vezes o réu se põe em fuga, indo à lugar incerto e não sabido, daí a necessidade de sua citação ficta, conforme determina o artigo 361 do Código de Processo Penal.

                         Ausenta-se do distrito da culpa por opção, e assim procede no mais das vezes acreditando estar se furtando à aplicação da lei penal, e caso assim não fosse, buscaria informar o Juízo processante sobre seu atual paradeiro, o que sabemos quase nunca ocorrer, e se ocorresse não seria citado por edital e nem haveria, de conseqüência, a necessidade de se produzir prova antecipadamente.

                        É inegável que, por assim dizer, age o réu maliciosamente, buscando ludibriar a Justiça.

                        Aliás, em tais casos seu proceder está por autorizar, sem sombra de dúvida, a decretação de sua prisão preventiva, pois é cediço que a custódia preventiva para assegurar a aplicação da lei penal é a que tem encontrado maior acolhida na doutrina, sustentando alguns que essa é a principal finalidade da medida. O perigo de fuga do acusado justifica por si só a cautela, como decorre do artigo 312 do Código de Processo Penal.

                        De regra, os processos suspensos com fundamento no art. 366 do Código de Processo Penal só retomam seu curso após a prisão do réu, quando decretada a prisão preventiva, o que também não tem sido comum na prática forense na hipótese de que cuidamos.

                        Muitas vezes as implicações protelatórias decorrentes do artigo citado são “comemoradas”, e a partir de então é como se o processo deixasse de existir; de merecer atenção, cuidados e lugar em pauta de audiência. Sai do mundo dos vivos e cai no imenso vazio do descaso e do esquecimento, contribuindo sensivelmente para o descrédito da Justiça Penal; constituindo verdadeiro estímulo à criminalidade alimentada pela sensação de impunidade. É como se seu resultado deixasse de interessar à sociedade. Passa a ser um “não-processo”.

                        Entendemos que, suspenso o processo, a regra deve ser a produção antecipada das provas disponíveis, visando a busca da verdade real, o que não quer dizer, exatamente, prova para a condenação do réu, como muitas vezes se tem entendido de forma equivocada.

                        “A verdade é a concordância entre um fato real e a idéia que dele forma o espírito”, na exata conceituação de Mittermaier.[7]

                        A busca da verdade real interessa tanto ao Ministério Público quanto ao Poder Judiciário e ao próprio réu. Interessa à segurança das decisões judiciais. Não se pode concluir num juízo apriorístico que a produção antecipada de prova seja instrumento de violação da ampla defesa, notadamente em casos onde sequer houve alegação de prejuízo por parte do réu em seu desconformismo.

                        De se ressaltar, ainda, que o réu, mesmo na produção antecipada de prova sempre estará amparado por defesa técnica. Ocorrendo o contrário a nulidade do processo será absoluta, evidentemente.

                        A busca da verdade real, garantia constitucional e processual que é, não pode ser considerada, sob tal enfoque, instrumento gerador de nulidade por cerceamento de defesa.

                        O Douto entendimento esposado no v. Acórdão que anulou o processo, conforme acima indicado, permite concluir que a produção antecipada de prova nos termos em que regulada no art. 366 do Código de Processo Penal sempre acarretará a nulidade do processo por quebra da ampla defesa e conseqüente inconstitucionalidade, e não há como se sustentar o entendimento contrário.

                        Com efeito, se acolhidos os fundamentos do decisum em destaque, é forçoso concluir que, sendo a ampla defesa um princípio constitucional, não é possível encontrar qualquer razão justificadora para a produção antecipada de prova, baseada em preceitos infraconstitucionais, resultando inaplicável, por flagrante incompatibilidade com a Carta Magna, qualquer preceito que a autorize.

                        Se a ausência voluntária e injustificada do réu à audiência de instrução viola sua amplitude defensória de plano, a ponto de justificar a anulação do processo ex officio pelo E. Tribunal, não se pode invocar qualquer justificação jurídica para a colheita da prova exposta à indefinição do processo, qualquer que seja a situação.

                        O que se dizer, então, da hipótese em que o réu é citado pessoalmente e opta pela revelia, quando é cediço que toda a prova será colhida normalmente, sem a sua presença, e sabidamente os Tribunais não reconhecem em tal proceder qualquer violação à ampla defesa?

                        Dir-se-á que a nova redação do artigo 366 do Código de Processo Penal determina a suspensão do processo nas hipóteses em que regula exatamente para preservar o réu que está ausente, inclusive em razão do princípio nemo inauditus damnari potest, segundo o qual ninguém pode ser julgado sem ser ouvido.

                        Ocorre, entretanto, que a nosso ver e sentir, a ausência de possibilidade para a oitiva e participação do réu na colheita da prova em processo penal é que faz incidir o raciocínio exato que envolve o princípio acima indicado, o que não se confunde com a hipótese de permitir ao réu que se apresente em Juízo para se ver processar, sendo a chance por ele desprezada.

                        O réu ausente, citado por edital, submete-se a tal condição por deliberação própria, e por assim dizer não está por merecer benefícios; ser premiado pela malícia com a paralisação indefinida do processo e perecimento da prova que no mais das vezes lhe é desfavorável.

                        O que se falar, ainda, da possibilidade de colheita de prova por precatória quando ausente o réu, cuja defesa só precisa ser intimada da expedição da carta?[8]

                        Como se justificar a possibilidade inconteste do réu ser retirado da sala de audiências quando da oitiva de vítima(s) e/ou testemunha(s) que se sintam constrangidas ou temerosas de depor na presença do mesmo, conforme autoriza o artigo 217 do Código de Processo Penal?[9]

                        Por fim, o que se dizer das hipóteses de julgamento no Tribunal do Júri sem a presença do réu, conforme autoriza o art. 451, § 1º, do Código de Processo Penal, nos crimes de infanticídio e de aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento, onde inegavelmente ocorrerá ampla produção probatória?

                        Em tais hipóteses também ocorrerá violação à ampla defesa?

                        Claro que não.

6. Conclusão

                        Pelas razões acima expostas, e reconhecendo a complexidade da matéria, não podemos concordar, data máxima vênia, com a r. decisão a que chegou a 10ª Câmara do Egrégio Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo no que diz respeito ao instigante tema ora colocado em debate.

                        A produção antecipada de prova é uma necessidade inafastável nos casos em que se verificar a suspensão do processo com fundamento no artigo 366 do Código de Processo Penal.

                        Tal proceder, em homenagem à verdade real, revela-se instrumento vigoroso de salvaguarda dos direitos da sociedade e do cidadão-réu, que em razão do passar dos tempos e do inevitável esquecimento que apaga da memória fatos pretéritos relevantes, não raras vezes se vê submetido ao constrangimento de uma sentença judicial absolutória por falta de provas suficientes para a condenação, a imprimir em sua história muitas vezes honrada a pergunta que provavelmente jamais se apagará perante todos:

                         Cometeu ou não o delito?

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 [1] Curso de Processo Penal. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 335.

 [2] TACRIM – SP –  9ª Câm. – D.J. 13.08.1997 – Rel. Moacir Peres.

 [3] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado, vol. 1, 2.ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, págs. 628/629.

 [4] Em 14 de agosto de 2002.

 [5] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, 13ª ed., São Paulo: Atlas, 2002, p. 44.

 [6] Curso de Processo Penal. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 28.

 [7] Mittermaier, C.J.A. Tratado da prova em matéria criminal; trad. Herbert Wüntzel Heinrich, São Paulo: Bookseller, 3ª ed., 1996, p. 59.

 [8] Conforme anotações de Damásio E. de Jesus (Código de processo penal anotado. São Paulo: Saraiva, 17ª ed., 2000, p. 170): “Intimada a defesa da expedição de precatória, desnecessária nova intimação da data designada para a realização da audiência no juízo deprecado. Essa providência não é tida por lei como essencial ao exercício da defesa, por considerar que, primordialmente, cabe ao defensor inteirar-se naquele juízo sobre a data escolhida para a realização da prova (TJSP, RT 525/352)”.

 [9] “Se o juiz verificar que a presença do réu, pela sua atitude, poderá influir no ânimo da testemunha, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará retirá-lo, prosseguindo na inquirição, com a presença de seu defensor”.

 


 

Referência Biográfica

Renato Flávio Marcão  –  Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Penal Especialista em Direito Constitucional. Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal Coordenador Cultural da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo – Núcleo de São José do Rio Preto-SP. Sócio-fundador da AREJ – Academia Riopretense de Estudos Jurídicos e Coordenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP) Autor do livro: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001)

rmarcao@terra.com.br


Exceção de pré-executividade ou não executividade

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*Clovis Brasil Pereira

1. Generalidades  2. Posição da doutrina  3. Entendimento da jurisprudência      4. Conclusão     5.  Bibliografia  

 
Generalidades  

O presente trabalho visa, de forma sucinta, examinar o instituto processual denominado de exceção de pré-executividade, e que vem ganhando força no dia a dia em no direito pátrio, embora não tenha definição legal definida em nosso ordenamento jurídico.

Preliminarmente, é de se ressaltar que por força de nossa lei adjetiva, o processo de execução, independente da modalidade de execução, exige do credor, como pressuposto de admissibilidade, a exibição de título executivo, judicial ou extrajudicial – art. 583, do CPC   – devendo   este,  ser revestido das  características de certeza, liquidez e exigibilidade, conforme norma inserta no artigo 586 do Estatuto Processual.

Assim, se o título executivo não exibir essas três características, não pode o credor manusear o processo executivo para exigir o cumprimento da obrigação pecuniária.

Por sua vez, o mesmo Código de Processo Civil, coloca como pressuposto indispensável para acolhimento da defesa do devedor, mediante a oposição de embargos à execução, a garantia do juízo, que deve ser,  pela penhora de bens, na execução por quantia certa, (art. 737, inciso I), ou pelo depósito da execução para entrega de coisa (art. 737, II).

Assim, se infere da disposição contida no Código de Processo Civil, que o devedor só pode se defender no processo executivo, se dispuser de bens passíveis de constrição.

Existem todavia algumas hipóteses, em que a execução não está assentada em título executivo que preenche todos os requisitos tidos como indispensáveis, notadamente o da exigibilidade.  Por exemplo, pode faltar a memória do cálculo, na liquidação de sentença, em desalinho com o art. 604, ou a via original do título, quando este for extrajudicial, dentre outras hipóteses. Nesse caso, tratando-se por vezes até de nulidade da execução, se for levado ao extremo a exigência prevista no Código de processo Civil, não pode o devedor oferecer defesa, sem que constitua previamente a penhora.

Por outro lado, todos sabem que a penhora trás conseqüências imediatas ao executado, uma vez que constituído em depósito judicial,  torna o bem indisponível para alienação ou nova oneração pelo  executado, penalizando-o, inclusive, por vezes,  com a medida extrema da prisão civil, quando o mesmo for o  depositário do bem, e houver por qualquer modo, desvio da garantia.

No mais, temos ainda o executado que não dispõe de patrimônio disponível e desembaraçado para ser oferecido à penhora.

Aí nos deparamos com o choque entre dois interesses, que parecem intransponíveis, à luz da análise fria do Código de Processo Civil, entre o autor da execução – o exeqüente – , e o réu na execução –  o executado, quais sejam:  de um lado, a execução exige título executivo certo, líquido e exigível. E se eventualmente uma execução é aparelhada com documento que não preenche tais requisitos?  de outro lado, o devedor, mesmo sofrendo uma execução injusta, alicerçada em documento não dotado de executividade, portanto, tratando-se de  execução nula, só pode se defender se disponibilizar bens à penhora.  Nesse caso não pode ele se defender?

Reportemo-nos ainda, que a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LV, trás como um princípio constitucional básico, o direito à ampla defesa e ao contraditório, que vêm em socorro dos réus em geral, para assegurar a efetiva prestação jurisdicional, dentro do devido processo legal. E obstaculizar a defesa do executado, numa execução injusta, somente porque não dispõe de bens para  penhora, certamente não se coaduna com a essência de tais princípios.

É certo ainda, que tal exceção, encontra muitas resistências na própria doutrina. Tais doutrinadores vêm na medida, mais uma forma de retardamento do resultado no processo de execução, sem portando desnecessária, uma vez que os devedores já tem os embargos à execução à  socorrê-los.

Assim, no dizer de José Ysnaldo Alves Paulo, “na prática, a exceção de pré-executividade tem sido mais uma arma engendrada para a procrastinação do feito. Tal qual os embargos, dormita nas prateleiras tanto quanto estes até que seja apreciada”.  Parece-nos uma posição por demais extrema, uma vez que na prática, nem sempre a medida é utilizada com tal finalidade.

Por outro lado, é de todos sabido os reflexos imediatos que o ajuizamento de uma execução traz aos executados, que figuram no pólo passivo das demandas. A globalização das informações, levam a notícia à todos os bancos de dados, atualizando os cadastros de inadimplentes, tais como SPC, SERASA, etc., com reflexos imediatos junto aos estabelecimentos bancários, administradores de cartões de créditos, e operações de crediário em geral.  Conseqüentemente, o executado deve procurar um meio idôneo para protegê-lo, desde que, a execução se mostre inapropriada ao pretenso credor.

É para preencher essa lacuna, que ao longo do tempo, ao desamparo da lei, a  doutrina construiu a hipótese da chamada exceção de pré-executividade, o que veio depois, a encontrar amparo na jurisprudência pátria, que passou a admitir em casos excepcionais, a nova medida sem exigência da prévia segurança do juízo, preconizada literalmente no aludido artigo 737, e seus incisos, como pressuposto para defesa do executado.

Discute-se, aliás, a respeito da propriedade ou impropriedade da utilização da medida como exceção de pré-executividade. Parece-nos que a expressão mais adequada, seria mesmo exceção de não executividade, uma vez que é a falta de executividade do título,  que torna inviável a ação executiva. No mais, muitas vezes, um título  era executável, pois preenchia os requisitos legais, e ao longo do tempo perdeu tal característica (pela prescrição, por exemplo), e nesse caso a expressão pré-executividade não nos parece a mais aconselhável. Todavia, essa é uma discussão doutrinária que não merece destaque neste trabalho, que tem pretensão e caráter mais práticos.

Posição da Doutrina  

Examinaremos a seguir, alguns posicionamentos na doutrina, a respeito da viabilidade da exceção de pré-executividade, como meio de defesa do devedor, independentemente da garantia do juízo, onde destacamos:

Araken de Assis, que trata do assunto, às páginas 425 a 428, de seu Manual, 3ª edição, da Editora Revista dos Tribunais,  1996, onde vaticina:

“Embora não haja previsão legal explícita, tolerando o órgão judiciário, por lapso, a falta de algum pressuposto, é possível o executado requerer seu exame, quiçá promovendo a extinção da demanda executória, a partir do lapso de 24 hs. assinado pelo art. 652. Tal provocação de matéria passível de conhecimento de oficio pelo juiz independe de penhora, e, a fortiori, do oferecimento de embargos”.

Cássio Scarpinella Bueno, in Atualidades sobre Liquidação de Sentença, coordenação de Teresa Arruda Alvim Wambier, Ed. Revista dos Tribunais,  1997, p. 111,  destaca, ao admitir a medida no caso de erro de cálculo na liquidação de sentença:

 “Com efeito, a exemplo do que a doutrina identifica para as hipóteses de cabimento das objeções de pré-executividade, toda a vez que para identificação do extravasamento do valor efetivamente reconhecido no título judicial ou constante no título extrajudicial (ver infra), não houver a necessidade da produção de prova ou de manifestação das partes, tem cabimento a atuação ex officio do magistrado e, portanto, a manifestação do  executado nos autos do processo de execução, independentemente do depósito de qualquer bem, seja para fins liberatórios, seja para fins de garantia do juízo, para discussão do indevido (abusivo) excesso de execução”.

Humberto Theodoro Júnior, in Curso de Direito Processual Civil, vol. II, 1998, página 95, nº 720, diz:

“Se, eventualmente, o executado não aceitar o cálculo do credor, terá que impugná-los em seus embargos, invocando excesso de execução”.

Mais adiante, página 146, nº 774, ao tratar da argüição de nulidade no processo de execução, assevera:

“… nulidade é vício fundamental e, assim, priva o processo de toda e qualquer eficácia. Sua declaração, no curso da execução, não exige forma ou procedimento especial. A todo momento o juiz poderá declarar a nulidade do feito tanto a requerimento da parte como ex officio. Não é preciso, portanto, que o devedor utilize dos embargos à execução. Poderá argüir a nulidade em simples petição, nos próprios autos da execução”.

J.J. Calmon de Passos, no livro Inovações do CPC, 2ª edição, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1995, página 137, ao comentar sobre a falta da “memória do cálculo”, diz:

"Caso passe despercebido pelo juiz a irregularidade, citado o réu, pode ele objetar, independentemente de seguro o juízo, pois a  a matéria escapa ao objeto dos embargos do devedor, dizendo respeito à relação processual da execução, denunciando a irregularidade, para que seja corrigida, só após o que correrá seu prazo para pagar ou nomear bens à penhora". 

Nelson Nery Júnior trata da questão em sua obra Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 6ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1997, página 139 a 140, afirmando:

“No entanto, mesmo antes de opor embargos do devedor, o que somente pode ocorrer depois de seguro o juízo pela penhora, o devedor pode utilizar-se de outros instrumentos destinados à impugnação no processo de execução, notadamente no que respeita às questões de ordem pública por meio da impropriamente denominada exceção de pré-executividade.

A expressão é imprópria porque “exceção” traz ínsita a idéia de disponibilidade do direito, razão porque não oposta a exceção ocorre a preclusão. O correto seria denominar esse expediente de objeção de pré-executividade, porque seu objeto é matéria de ordem pública decretável ex officio pelo juiz e, por isso mesmo, insuscetível de preclusão.

Assim, a possibilidade de o devedor, sem oferecer bens à penhora ou embargar, poder apontar a irregularidade formal do título que aparelha a execução, a falta de citação, a incompetência absoluta do juízo, o impedimento do juiz e outras questões de ordem pública, é manifestação do princípio do contraditório no processo de execução”.                            

No mesmo caminho, em sólida construção doutrinária, a admitir a exceção de pré-executividade, denominada também de não executividade, ou objeção de pré-executividade, destacam-se dentre outros, Pontes de Miranda – o primeiro doutrinador a discutir a matéria,  Ovídio Baptista da Silva, José Rogério Cruz e Tucci e Galeno Lacerda.

Entendimento da Jurisprudência 

O entendimento de nossos Tribunais, a nível de 2ª Instância ou Instância Superior (STJ), já se pacificou no acatamento da exceção ou objeção de pré ou não executividade, como meio de defesa do devedor, em determinadas situações, prescindindo da garantia do juízo.

Assim, para ilustração, passaremos a examinar alguns casos concretos, em que a exceção teve acatamento.                           

1º exemplo: Exceção de pré-executividade – cabimento: julgamento do REsp 221.202-MT, rel. Ministro Sálvio de Figueiredo, em 09.10.2001, STJ:

“A objeção de pré-executividade pressupõe que o vício seja aferível de plano e que se trate de matéria ligada à admissibilidade da execução, e seja, portanto, conhecível de ofício e a qualquer tempo”.

2º Exemplo: Nulidade da execução – RT 671/187 – REsp 3.264–PR,  3ª turma, rel. Ministro Eduardo Ribeiro,  j. 28.6.90,  STJ:

Ementa oficial:  “Execução. A nulidade do título em que se embasa a execução pode ser argüida por simples petição, uma vez que suscetível de exame, ex offício, pelo juiz. O inadimplemento do contrato, a que se vincula o título, entretanto, constitui matéria que, para ser conhecida, requer seja alegada pela via de embargos.”

3º Exemplo: No mesmo sentido, conforme jurisprudência constante no Código de Processo Civil, de Theotônio Negrão e José Roberto Ferreira Gouvêa, 35ª edição, Editora Saraiva:

“A nulidade da execução pode ser alegada a todo tempo, desde que ausentes os requisitos do art. 586 (RT 717/187)”.

4º Exemplo:  Segurança do juízo – dispensa:  julgamento do Resp 7.410-MT, publicado no Bol. AASP 1.746/187, com citação encontrada no voto do Ministro Athos Carneiro:

“A segurança do juízo não pode ser imposta naqueles casos em que o título em execução não se reveste das características de título executivo, porque, destarte, a própria execução estaria sendo ajuizada com abuso de direito por parte do credor, utilizando uma via processual que a lei, em tese, lhe não concede, Outra hipótese, em que creio não ser o caso de se exigir a segurança do juízo, é aquele caso em que o executado, pobre, não dispõe de bens para oferecer à penhora. Não é possível, dentro do sistema jurídico constitucional brasileiro, em que se assegura o pleno contraditório, limitá-lo, desta maneira, contra pessoas economicamente carentes.”

5º Exemplo: Alegação de Prescrição, independente de embargos – possibilidade: julgamento do Resp. 59.351-4-PR, 1ª TURMA, J. 11.04.1996, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, RT 732/203 – STJ, onde se lê na ementa oficial:

“Inexistindo bens penhoráveis, circunstância certificada pelo meirinho (e, em conseqüência, suspenso o processo de execução), desnecessária e prejudicial à economia processual, a indefinida espera para que o Juiz se manifeste sobre a extinção do crédito, em face da prescrição, cuja decretação foi requerida pelo executado, se este se encontra em absoluta impossibilidade de oferecer embargos.

A execução forçada se ultima com a satisfação do seu objeto, que é o pagamento ao credor. Pode, porém, estancar diante de empeços inarredáveis, como, adexemplum, nos casos de extinção do próprio direito do crédito exeqüendo, podendo em hipóteses excepcionais, o juiz extinguir o processo executório, antes mesmo de seguro o juízo com a penhora…”.

Embora para determinadas questões processuais no processo de execução, a jurisprudência, e mesmo a doutrina, exijam a oposição de embargos pelo devedor,  para  tais  questões serem discutidas, é certo que ao longo do tempo, a tendência em nossos Tribunais, tem sido a de dar maior alcance à objeção ou exceção de pré-executividade, embora de maneira não unânime, em algumas situações.

6º Exemplo:   trata da alegação de que a dívida foi paga.  Nesse passo, temos um Acórdão,  proferido no STJ, 1ª Turma, no Resp. 371,460-RS, cujo rel. foi o Ministro José Delgado, em 05.02.02, cuja ementa afirma que:

“a exceção de pré-executividade está limitada a questões relativas aos pressupostos processuais e às condições da ação, incluindo-se a alegação de que a dívida foi paga”.

7º Exemplo: quanto a oportunidade para alegação da exceção de pré-executividade, temos manifestação do STJ, 4ª Turma, REsp. 220.100-RJ, que teve como rel. o Ministro Ruy Rosado, j. em 02.09.99, que assim deliberou:

“ … a defesa que nega a executividade do título apresentado pode ser formulada nos próprios autos do processo de execução e independe de o prazo fixado para os embargos de devedor”.

8º Exemplo:  Finalmente, e ainda sobre a oportunidade de ser alegada a exceção, temos decisão do mesmo STJ, 4ª Turma, REsp. 419.376-MS, rel. Min. Aldir Passarinho Jr., j. 16.05.02, que assim decidiu:

“Em se tratando de matéria conhecível de ofício, como é o caso da alegada falta de higidez do título cobrado, pode ela ser objeto de exceção de pré-executividade, ainda que não suscitada, antes, em sede de embargos à execução. Coisa julgada inexistente”.

Conclusão 

Temos que, regularmente, à luz do que dispõe o Estatuto Processual vigente, no processo de execução forçada, em que o credor é detentor de título de crédito judicial ou extrajudicial, o meio de defesa oponível pelo devedor, é o de embargos à execução.  E para oposição de embargos, é de rigor  a prévia segurança do juízo, conforme disposição expressa no artigo 737, incisos, do mesmo codex.

Situações existem, no entanto, relacionadas à falta de atendimento, por parte do credor, em seu pedido inicial, no tocante aos pressupostos processuais e as condições da ação, tidos como de ordem pública, em que o próprio juiz, responsável pela efetivação da prestação jurisdicional,  jurisdição, pode declarar ex officio, a impossibilidade de prosseguimento da execução.

Nessas hipóteses, e quando o juiz não observar de plano tais irregularidades, cabe ao devedor, independente da garantia do juízo, e conseqüentemente, de embargos,  alegar tais questões por meio de exceção de pré-executividade ou como preferimos, de exceção de não executividade. Tal possibilidade, embora não conste expressamente na legislação adjetiva, foi construída ao longo do tempo pela melhor doutrina, e recepcionada pela jurisprudência, notadamente no Superior Tribunal de Justiça, Instância maior para analisar questões dessa natureza.

Certamente, não se pode estimular a utilização de tal incidente, como medida procrastinatória, apta à mitigar o direito líquido e certo do credor regularmente habilitado ao processo de execução. Mas, em determinadas situações, se mostra o meio hábil e adequado, para estancar um verdadeiro abuso de direito, ensaiado por pretensos credores, que inabilitados ao processo de execução, tentam receber seus crédito, pelo meio mais rápido, qual seja, o processo executivo, obrigando o devedor à constrição de bens, que os torna por um bom tempo  indisponíveis, ou ainda, impossibilitando ao devedor pobre, que não dispõe de patrimônio penhorável, de se defender.

Negar-se, por fim, em situações específicas, a possibilidade de defesa ao  devedor, por meio do incidente denominado exceção de pré-executividade ou não executividade, ou outro meio processual qualquer, porque este é pobre e não tem bens à penhorar, contraria princípios constitucionais basilares em países democráticos e civilizados,  e certamente, não será essa  a melhor forma de se distribuir justiça.

BIBLIOGRAFIA
 

1.      ASSIS, Araken  de,  Manual do Processo de Execução, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1996.

2.      LACERDA, Galeno, “Execução de Título Extrajudicial e Segurança do Juízo”, in Estudos  de Direito Processual, Ed. Saraiva, São Paulo, 1982.

3.     MOREIRA, José Carlos Barbosa, Novo Processo Civil Brasileiro, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1998.

4.      NERY JR., Nelson, Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 6ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2000.

5.      OLIVEIRA NETO, Olavo de Oliveira, A defesa do executado e dos terceiros na execução forçada, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo,  2000.

6.      PASSOS, J.J. Calmon de, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. III, 8ª ed., Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1998.

7.      PAULO, José Ysnaldo Alves, Pré-Executividade Contagiante no Processo Civil Brasileiro, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2000.

8.      THEODORO JR.,  Humberto, Curso de Direito Processo Civil – Processo de Execução e Processo Cautelar, vols. I e II, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1998.

 

Referências Bibliográficas

CLOVIS BRASIL PEREIRA  –  Advogado, Especialista em Processo Civil e Mestre em Direito, Professor Universitário, Editor e Coordenador do Site Jurídico www.prolegis.com.br.   2003.

Contato: prof.clovis@terra.com.br