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Interpretação Jurídica

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* Clovis Brasil Pereira

INTRODUÇÃO

O presente trabalho sobre a Interpretação Jurídica, aborda o estudo do tema tratado pelo  Professor Dr.  Rizzatto Nunes, em sua obra Manual de Introdução ao Estudo do Direito, editado pela Editora Saraiva, e foi objeto de análise no curso de Mestrado, que trago à discussão, dada a relevância para o estudo do Direito, entre os acadêmicos.

Segundo a doutrina corrente, interpretar é extrair do objeto tudo aquilo que ele tem de essencial. Assim,  quando se fala em interpretar a norma jurídica, significa  fixar o seu sentido, e  quando se trata da norma jurídica, necessário é que se fixe o  seu alcance.

A norma precisa de fixação de seu sentido e de seu alcance, embora essa questão não se apresente  uníssona na doutrina. Para interpretar a norma jurídica, se faz importante  interpretar-se também o sistema jurídico em que ela se encontra, ao qual ela pertence.

Hermenêutica e Interpretação Jurídica, se encontram muito próximas, sendo certo que ambas são muitas vezes utilizadas  como sinônimas, conforme adverte Carlos Maximiliano, em sua obra Hermenêutica e aplicação do direito.

A doutrina, de forma geral  preocupa-se em separá-las, distinguí-las. Assim, a interpretação é um trabalho prático elaborado pelo operador do Direito, através do qual ele busca fixar o sentido e o alcance das normas jurídicas ou das “expressões do Direito”. Já a Hermenêutica é a Teoria Cientifica da Interpretação, que busca construir   um sistema que propicie a fixação do sentido e alcance das normas jurídicas.

Tem-se assim, que ambas não se confundem: a primeira fixa o sentido e o alcance da norma, enquanto a  segunda é a teoria científica da interpretação, que busca construir um sistema jurídico  que possibilita a fixação do sentido e o alcance da norma.

 O PROBLEMA DA LINGUAGEM 

Para o conhecimento jurídico,  é importante o domínio da linguagem, já que é por esta, na forma escrita,  que a Doutrina se expressa, a jurisprudência se torna conhecida; e pela linguagem    escrita e falada que os operadores do direito (advogados, procuradores, promotores defendem e debatem suas teses e os juizes as decidem; e da mesma forma os professores ensinam o Direito e os estudantes o aprendem.

Assim, a linguagem se constitui num componente importante de qualquer escola ou ciência, e cada ramo científico se utiliza de uma linguagem própria, técnica,  construída com o propósito de eliminar as ambugüidades que essa linguagem natural, de uso comum, acaba provocando  na sociedade em que se propaga.

Por meio de uma linguagem adequada e precisa, é que a ciência constrói suas leis, verifica suas hipóteses, elabora seus sistemas, sendo imprescindível   que o cientista adquira o domínio da terminologia científica, para alcançar o conhecimento.

A finalidade básica da linguagem escrita e falada é para  se conhecer as normas jurídicas. Assim,  é importante para o  aluno de direito, se familiarizar com a linguagem técnica, porque não é a mesma usada pela sociedade (senso comum), já que ela é  criada para que uma  comunidade específica, dos cientistas do direito, propaguem seu conhecimento.

Percebemos, muitas vezes,  pessoas não preparadas tecnicamente, inclusive nos meios de comunicação, que tem grande alcance na transmissão de conceitos para a sociedade em geral,  utilizando “linguagem técnica”, com significados diferentes, o que não se pode admitir de um operador ou conhecedor do Direito.  O autor enumera vários, exemplificando o “sequestro” por “rapto”, “decisão judicial” por parecer”, etc..

O Direito é uma ciência dogmática, é por isso deve ter a sua própria linguagem, e  o objeto da ciência do direito é a norma jurídica. A ciência do direito se utiliza de métodos de interpretação, como  o instrumental, para que o resultado forme um  padrão a ser seguido pelo corpo social.

     
“IN CLARIS CESSAT INTERPETATIO”? 
 

Embora o brocardo jurídico referido disponha que não há necessidade de interpretação quando a norma jurídica é clara, é certo que a doutrina jurídica se insurge contra isso, exigindo a interpretação, ainda que a norma jurídica seja clara.

O autor, no entanto, afirma que nem sempre  há o trabalho típico de interpretação, notadamente quando o texto é claro, compreensível e não necessita de tradução.

Acaba concluindo  que normas jurídicas claras são compreendidas como linguagem natural, que, pela evidência, dispensam fixação de sentido e alcance, e as que não são claras, estas sim, necessitam de  interpretação.

 

“MENS LEGIS”  OU  “MENS LEGISLATORIS”
 

Na área da interpretação jurídica, outra dúvida muito frequente,  é se precisamos saber se o intérprete precisa buscar o sentido prescrito na lei, mens legis, ou o sentido querido e pretendido pelo legislador, mens legislatoris.

Observa o autor, que a vontade dos homens, enquanto legisladores, somente tem validade jurídica, enquanto estão exercendo suas funções. Fora dessa circunstância, a vontade e o pensamento desses  homens é apenas mais uma opinião, tal qual a de qualquer um.

Ao contrário, a norma jurídica tem vida, e uma vez editada, ganha seu poder de império e passa a submeter a todos, governantes e governados.

Por outro lado, as vontades dos  homens são difíceis de ser captadas. São obscuras e mudam com facilidade, não se tendo como buscar a certeza e a segurança  jurídicas necessárias ao Direito, nessas condições.

Assim, acaba concluindo que cabe ao  interprete  se preocupar com o sentido pretendido pela norma jurídica – a mens legis e não com o querido pelo  legislador – a mens legislatoris –  até porque, ele também será um cidadão que será atingido por essa mesma lei que editou.

 
O SISTEMA JURÍDICO
 

A noção de Sistema é de suma importância para uma adequada interpretação da norma jurídica. A maneira pela qual o sistema jurídico é encarado, suas qualidade e características, são fundamentais para a elaboração de uma interpretação.

Segundo o autor, a noção de sistema é uma condição a priori  do trabalho intelectual do operador do Direito, embora muitas vezes não aparece explicitamente no trabalho desse operador.

É uma construção científica que tem como função explicar a realidade do que se refere, é um  modelo da realidade, que funciona como intermediário entre o intérprete e o objeto.

No sistema jurídico, qual o modelo a ser adotado de realidade? A da hierarquia das leis, pela coesão pela unidade, com a hierarquia temos a norma fundamental (Constituição Federal), dando validade para as demais de hierarquia inferior.

A coesão demonstra a união íntima dos elementos (normas jurídicas), e a unidade dá um fechamento do sistema jurídico como um todo, para ampla harmonia e com coerência.

 
AS REGRAS DE INTERPRETAÇÃO
 

Na interpretação das normas jurídicas destacam-se as seguintes regras:

a)  Interpretação gramatical: feitas através das palavras, das funções da semântica e da sintática. Corresponde a redação dos textos, para que não de ambiguidade, imprecisão etc.

b) Interpretação lógica: deve levar em consideração os instrumentos fornecidos pela lógica para o ato de intelecção, que, naturalmente, estão presentes no trabalho interpretativo.

c) Interpretação sistemática: cabe levar em conta a norma jurídica inserida no contexto maior de ordenamento jurídico, avalia-se a norma dentro do sistema jurídico.

d) Interpretação teleológica: se faz quando se considera os fins aos quais a norma jurídica se dirige (telos=fim).

e) Interpretação histórica: se preocupa em verificar os antecedentes da norma.

Quanto aos efeitos, a interpretação  ainda pode ser:

–  declarativa ou especificadora: aquela em que o intérprete se limita a declarar o sentido da norma;

–  restritiva: aquela que restringe o sentido da norma;

–   extensiva: quando se amplia o sentido e o alcance da norma.

 

OS PROBLEMAS DAS LACUNAS E OS MEIOS DE INTEGRAÇÃO

Diante da complexidade social e de problemas enfrentados no dia a dia pelos operadores do direito, é natural que surjam situações que não foram previstas pelas normas jurídicas. Nesse caso, estamos diante de “vazios” ou “lacunas” nas normas jurídicas.

Observe-se que essas lacunas e vazios, não estão   dentro  no sistema jurídico, mas sim nas normas, e através do chamado sistema de integração, essas lacunas acabam sendo preenchidas,  de modo que o sistema jurídico reste também preenchido.

A  integração,  é o meio através do qual o intérprete integra a lacuna, pelos costumes, analogia, equidade e princípios gerais do direito.

No nosso sistema jurídico brasileiro, a Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo 4º, dispõe que, “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”, prevendo expressamente a forma de preenchimento de eventuais lacunas ou vazios deixadas na  norma jurídica.  

Assim,  a integração é   o meio através do qual o intérprete colmata a lacuna encontrada. Ela pressupõe, portanto, que  o intérprete haja lançado mão de todas as regas de interpretação à sua disposição, e ainda assim não tenha conseguido detectar norma  jurídica aplicável ao caso sob exame.

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

* O autor é advogado, professor universitário, especialista em processo civil, mestre em direito,  coordenador e editor do site jurídico www.prolegis.com.br,  2004.

 E-mail:  prof.clovis@54.70.182.189

 


Processo Cautelar: generalidades, pressupostos e sua utilidade, inclusive na fase recursal

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* Clovis Brasil Pereira  –

1.   Generalidades do processo cautelar. 2. Pressupostos de admissibilidade do procedimento cautelar. 2.1. Fumus boni iuris. 2.2. Periculum in mora. 3. A  concessão de Liminares. 3.1. A  importância da urgência na concessão de liminar.  3.2. A oportunidades de seu deferimento. a. In “limine litis”.  b. Audiência de justificação prévia. 3.3. A constituição de caução.  4. A possibilidade de revogação da ordem liminar. 5. Cabimento da medida cautelar para atribuir efeito suspensivo a recurso  especial e extraordinário.  5.1.   Admissibilidade.  5.2. Comprovação dos pressupostos.  6.  Conclusão

1.   Generalidades do processo cautelar

Encontramos na Europa, mais precisamente na Alemanha, as primeiras linhas doutrinárias do processo cautelar. Mas foi na Itália, logo a seguir,  que surgiram  os maiores doutrinadores que discorreram sobre o tema, implementando-o como um novo instrumento processual autônomo, ao lado dos processos de conhecimento e de execução.

Assim, para CHIOVENDA, “a medida provisória corresponde à necessidade efetiva e atual de afastar o temor  de dano jurídico”, isto é, “a iminência de um possível dano a um direito ou a um possível direito”.[1] Tais medidas são vistas como ação com o fim de “ação asseguradora”.

Na visão de  CALAMANDREI, conforme anotou CASTRO VILLAR, “as providências cautelares nunca constituem um fim em sí mesmas, pois estão preordenadas à emanação de uma ulterior providência definitiva, cujo resultado prático asseguram preventivamente”.[2]

Segundo o festejado doutrinador italiano, ainda referido pelo mesmo autor,  as medidas cautelares têm “a finalidade imediata de assegurar a eficácia prática da providência definitiva, que por sua vez, servirá para atuar o direito. A tutela cautelar é, em relação ao direito substancial, uma tutela mediata; mais que a fazer justiça, contribui para garantir o eficaz pronunciamento da Justiça”.[3]

Para CARNELUTTI,  a tutela cautelar destina-se  a “evitar no limite do possível, qualquer alteração no equilíbrio inicial das partes, que possa derivar da duração do processo”[4].  Conforme lembra  HUMBERTO THEODORO JÚNIOR,  para o referido doutrinador, referida tutela cautelar existe “não para assegurar antecipadamente um suposto e problemático direito da parte, mas para tornar realmente útil e eficaz o processo como remédio adequado à justa composição da lide”.[5]

No direito italiano  o poder geral de cautela e as medidas cautelares vem expresso no  Código de Processo Civil naquele país, de 1942, como menciona PINTO FERREIRA[6], e cujo texto é do seguinte teor:

“Art. 700. Fora dos casos regulados na Seção anterior deste Capítulo, aquele que tem fundado motivo de temer que durante o tempo necessário para valer o seu direito em via ordinária, este seja ameaçado por um prejuízo iminente e irreparável, pode pedir ao juiz os provimentos de urgência, que pareçam, segundo as circunstâncias, mais idôneos e assegurem, provisoriamente, os efeitos da decisão sobre o mérito”. 

Ensina PINTO FERREIRA, que as palavras provimentos de urgência, no italiano “provedimenti d’urgenza”, são o equivalente das medidas cautelares.

Os provimentos de urgência aplicam-se apenas aos direitos postulados em via ordinária, não se aplicam eles no campo da execução nem dos procedimentos especiais. De outro lado, ainda no campo do processo ordinário não podem ser pedidos nos casos em que é possível uma medida nominada.

Segundo o mestre , o poder geral de cautela, no direito italiano, é limitado, não tem a amplitude do § 378 do  CPC Austríaco, nem tampouco do Art. 342 do Projeto do CPC italiano, de Carnelutti.

No Brasil,  tivemos no Código de Processo Civil de 1939, a previsão de medidas preventivas [7], que equivalem às atuais ações cautelares inominadas ou atípicas, previstas para determinadas situações de urgência, mas que tiveram pouca aplicação, pela ausência de provocação das partes interessadas.

As medidas cautelares nominadas, típicas, correspondiam a uma situação preordenada e especificamente prevista  em lei (arresto, seqüestro da coisa móvel ou imóvel, etc.)[8]

A  partir do novo Código de Processo Civil de 1973, é que  o processo cautelar ganhou notável  importância em nosso país. Na  lição de OVIDIO   A. BAPTISTA DA SILVA, com a promulgação do novo Código,  “houve uma verdadeira “descoberta” da tutela cautelar, que provocou um movimento de constante expansão de sua aplicabilidade prática, cujo limite, ao que parece, ainda não foi atingido”.[9]

O atual estatuto processual, em seu artigo 270, trouxe a previsão e disciplinou a existência de três processos, a saber: o de conhecimento (Livro I),  de execução (livro II), e o processo  cautelar (Livro III), objeto de nosso estudo, além dos chamados procedimentos especiais (Livro IV), que envolvem características de processo de cognição, mediante procedimentos específicos previsto pelo legislador.

Assim, o processo de conhecimento, através do procedimento comum ordinário ou sumário, busca no conflito de interesses, a pacificação social, mediante a prolação de uma Sentença, que tem por objeto  “verificar a efetiva situação jurídica das partes”[10].

O processo de execução, está alicerçado na pré-existência de um título executivo (judicial ou extrajudicial), onde se busca fazer valer o direito já reconhecido, e tem tutela jurisdicional de caráter definitivo e satisfativo.

Por sua vez, o processo cautelar, pauta-se pela sua provisoriedade, tendo caráter preventivo à resguardar a realização plena, no futuro, de um direito material da parte. Não busca a solução do conflito, mediante a formação da lide, mas sim, a preservação de meios que assegurem, no processo principal, de conhecimento ou de execução, a ser ajuizado – medida preparatória -, ou já em curso  – medida incidental – a efetivação e o alcance do chamado “bem de vida”, ou seja, a efetiva realização do  direito do interessado.

É ilustrativa a lição de LUIZ GUILHERME MARINONI, referendado por REIS FRIEDE, que comenta a respeito do caráter provisório do processo cautelar: “É imprescindível que a tutela não satisfaça a pretensão própria do processo principal para que possa a mesma adquirir o perfil cautelar”.[11]

É certo que o legislador, acabou inserindo no Código de Processo Civil vigente, através da Lei  nº  8.952/94, instrumento hábil para satisfação com urgência,  do interesse das partes, através da chamada Tutela Antecipada. [12]

Esta porém, embora guarde determinadas características singulares às medidas cautelares, tem pressupostos diversos, próprios e mais rígidos, e por esse instituto, não se busca apenas a preservação de direitos ameaçados, como no processo cautelar, mas sim, a efetiva realização do direito material, de forma antecipada, parcialmente ou no seu todo, conforme o caso.

No processo cautelar, ao contrário, no dizer de CARLOS ALBERTO ÁLVARO DE OLIVEIRA,  a prevenção da dano dá-se sem interferência do plano do direito material, a ordem cautelar tem caráter puramente conservatório, destinada a garantir o resultado útil da função de conhecimento ou de execução[13]

Têm o processo cautelar características próprias, que o identificam e diferenciam em alguns aspectos, dos  demais processos arrolados no Código de Processo Civil, destacando-se:  a instrumentalidade, a provisoriedade, a revogabilidade e a sua autonomia.

Quanto ao  seu objetivo principal, é o de resguardar a ordem e os interesses geral e público, o próprio processo, o direito das partes, bem como prevenir danos irreparáveis e de difícil reparação assim como a efetividade da prestação jurisdicional, quando do ajuizamento do processo principal, quando de caráter preparatório, ou do processo já em curso quando de caráter incidental.

2.   Pressupostos de admissibilidade do procedimento cautelar

O processo cautelar prevê a possibilidade de medidas cautelares inominadas ou atípicas, fundadas no artigo 798 (Capítulo I), bem como de medidas cautelares nominadas, típicas, específicas, alinhadas  do artigo 813 ao 889  (Capítulo II), do Código de Processo Civil.

Para a concessão de tais medidas provisórias e urgentes, preservadoras de situações de fato e de direitos, para realização futura, se faz necessário que dois pressupostos sejam efetivamente comprovados pela parte, para que a prestação jurisdicional venha corresponder ao interesse do autos.

Tais pressupostos são identificados como o fumus boni iuris e o perículum in mora, e devem se fazer presentes tanto nas medidas cautelares inominadas, como  nas nominadas ou típicas.

2.1.     Fumus boni iuris

O pressuposto do  fumus boni iuris é de fundamental importância para alicerçar o pedido de medida liminar, em processo cautelar. Significa fumaça do bom direito, ou seja, a probabilidade de exercício presente ou futuro do direito de ação, pela ocorrência da plausividade, verossimilhança do direito material a ser discutido.

Para que o pressuposto reste comprovado, basta apenas que a fumaça do bom direito seja apenas verossímil, provável e possível, não havendo necessidade, por obviedade, de ser provado que o direito existe, mas sim, da probabilidade de sua existência.

É necessário porém, que o autor do pedido cautelar demonstre os indícios daquilo que está alegando, e no qual  se funda seu alegado direito, para que o pressuposto reste comprovado, não bastando simples alegações  ou meras ilações, para demonstrar o referido pressuposto.

Na lição de VICTOR BOMFIM, “o juízo de probabilidade ou verossimilhança que o juiz deve fazer para a constatação do direito aparente é suficiente para o deferimento ou não do pedido de cautela. Havendo, portanto, a aparência do direito afirmado e que será discutido no processo principal, mesmo que os elementos comprobatórios apontem na direção da existência de direito líquido e certo, eles não poderão ultrapassar, na formação da convicção do juiz, o limite da aparência. Ao juiz é vedado ultrapassar de seu campo de atuação no processo cautelar, limitado, no particular, à verificação do fumus boni iuris”.[14]

Para o Prof. RONALDO CUNHA CAMPOS, que é acatado por HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, o fumus boni iuris deve, na verdade, corresponder, não propriamente a probabilidade de existência do direito material – pois qualquer exame a respeito, só é próprio da ação principal -, mas sim a verificação efetiva de que, realmente, a parte dispõe do direito de ação, direito ao processo principal a ser tutelado.[15]                 

Não há como se fugir, em nosso entendimento, por mais superficial que seja a avaliação do juiz, na apreciação do fumus boni iuris, que faça uma avaliação sumária do direito material a ser tutelado, para o deferimento da liminar pretendida.

Embora o procedimento  cautelar vise tutelar o direito ao processo, não pode passar em branco, ao magistrado, ao nosso ver,  a conveniência de apreciar o pedido do autor, sem que  aviste, pelo menos ao longe, o direito material  perseguido pelo  interessado, sob pena de uma prestação jurisdicional inócua e sem resultado profícuo.

Assim, para a concessão de medida liminar, assentada no pressuposto do fumus boni iuris, obrigatoriamente, deve se proceder a análise, ao menos superficial, da probabilidade do direito material, sob pena de se ver caracterizada a exigência da fumaça do bom direito, para assegurar apenas o direito a ação, e não o bem de vida, a ser buscado na ação principal a ser intentada, para análise em profundidade do mérito do direito material  perseguido pela parte.

Na lição de GALEANO LACERDA, se o autor satisfaz as três condições e se sua pretensão apresenta-se revestida de aparência de direito, o pedido merece provimento. Trata-se porém de juízo provisório, que não representa prejulgamento definitivo da demanda principal. E nisto reside, precisamente, a característica do mérito da sentença cautelar: em ser juízo de mera verossimilhança dos fatos. Nesse sentido, distingue-se da sentença de conhecimento, que é juízo de realidade e certeza.[16]

No mesmo passo, OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA considera a simples verossimilhança, de relevância mais profunda, relativamente à tutela cautelar e, de um modo geral, com relação a todo o fenômeno jurisdicional. Diz o autor “que o juízo de probabilidade do direito para cuja proteção se invoca a tutela assegurativa (cautelar) é não apenas pressuposto, mas igualmente exigência desta espécie de atividade jurisdicional. Com efeito, a proteção não apenas pressupõe a simples aparência do direito a ser protegido, mas exige que ele não se mostre ao julgador como uma realidade evidente e indiscutível. Quer dizer, a tutela cautelar justifica-se porque o juiz não tem meios de averiguar, na premência de tempo determinada pela urgência, se o direito realmente existe”.[17]

Não significa, porém, que o juiz, ao proceder a análise do fumus boni iuris, que garante a ação cautelar no plano processual, não procure descortinar, ao menos em tese, a existência do direito material a ser alcançado pelo autor.

2.2.     Periculum in mora

O segundo pressuposto a ser analisado pelo juiz, ao apreciar o pedido de tutela cautelar, é o periculum in mora, que significa o fundado receio de prejuízo sofrido pelo autor, no caso da demora da prestação jurisdicional. 

Na doutrina pátria, LOPES DA COSTA assevera que o dano deve ser provável, não basta a possibilidade, a eventualidade. Possível é tudo na contingência das coisas criadas, sujeitas a interferência das forças naturais e da vontade dos homens. O possível abrange até mesmo o que rarissimamente acontece. Dentro dele cabem as mais abstratas e longínquas hipóteses. A probabilidade é o que, de regra, se consegue alcançar na previsão. Já não é um estado de consciência, vago, indeciso, entre afirmar e negar indiferentemente. Já caminha na direção da certeza. Já para ela propende, apoiado nas regras de experiência comum ou de experiência técnica.”[18]

Para REIS FRIEDE, é ponto tranqüilo na doutrina, “que o risco de dano deve corresponder sempre a  fatos que venham a desequilibrar efetivamente uma situação pré-estabelecida entre as partes, de modo que o perigo preexistente ou coexistente com o nascimento da pretensão realmente justifique a tutela cautelar, em forma de medida liminar”.[19]

Já OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA assegura que “não é propriamente, como pensava Chiovenda, o perigo de retardamento da prestação jurisdicional que justifica a ação cautelar. É o perigo em si mesmo, referindo à possibilidade de uma perda, sacrifício ou privação de um interesse juridicamente relevante e não o perigo de um retardamento na prestação jurisdicional”.[20]

É certo pois, que o perigo de dano, repetindo HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, “refere-se, portanto ao interesse processual em obter uma justa composição do litígio, seja em favor de uma ou de outra parte, o que não  poderá ser alcançado  caso se concretize o dano temido”.[21]

Temos assim, que o perículum in mora está intimamente ligado à possibilidade de perigo iminente de dano. Se o interessado, tivesse que aguardar a solução do litígio – o bem de vida – no processo de cognição plena, certamente não teria a possibilidade de alcançar o direito material almejado. Nesse caso, o provimento liminar a ser concedido, evitará lesão grave,  de difícil ou improvável reparação, e lhe propiciará a possibilidade de alcançar o resultado útil almejado no processo principal a ser ajuizado – no caso de medida preparatória –, ou processo já em curso – no caso de medida cautelar incidente.

3.      A  concessão de Liminares

A obtenção de ordem liminar pelo interessado, no provimento cautelar, por ser um procedimento de urgência, se reveste de primordial importância no processo cautelar.

O deferimento de liminar pelo juiz, por outro lado, está diretamente relacionado à comprovação, simultaneamente, dos dois pressupostos de admissibilidade do processo cautelar, já referidos, ou seja, a comprovação da fumaça do bom direito e o perigo da demora.

Por outro lado, na lição de REIS FRIEDE, o objetivo particular da medida liminar é acautelar um direito que pode ou não ser reconhecido ao final da sentença. Não é, de modo algum, constituir uma antecipação da decisão meritória, que, embora com ela se relacione, a ela de nenhuma forma se encontra diretamente vinculado, em razão de sua própria e específica referembilidade ao processo (e não ao direito material posto em julgamento).[22]

A obtenção da liminar, é assim, de fundamental importância,  para que o autor do procedimento cautelar tenha a preservação do direito ameaçado, à garantir o direito material  num futuro exame de mérito em processo de cognição plena a ser ajuizado.

3.1.   A importância da  urgência na concessão de liminar

Se é verdade que a concessão de liminar, é uma pretensão mediata, não é menos verdade,  que a urgência na obtenção da ordem provisória e preventiva, se faz urgente ao autor. Aliás, entendimento diverso, significaria a negativa do próprio instituto cautelar, que por sua natureza, e objetivo, induz necessidade de pronto provimento, para que o direito  ameaçado, não venha sofrer dano irreparável ou de difícil reparação.

Assim, desde que o autor comprove com o pedido inicial, concomitantemente, através de prova documental, os dois pressupostos exigidos ao provimento cautelar – fumus boni iuris e periculum in mora – , poderá o Juiz, no uso do  Poder Discricionário do qual é investido, determinar de plano, sem ouvir a parte adversa, via ordem liminar, as medidas cautelares de urgência, hábeis a lhe assegurar a realização futura, do direito material a ser objeto de instigação judicial em processo próprio e autônomo, o chamado processo principal.

3.2.   As oportunidades de seu deferimento

As liminares, no procedimento cautelar, podem ser concedidas em vários momentos do processo, sempre por provocação da parte, e desde que um fato novo, modifique ou crie uma  nova situação fática, a justificar a tutela urgente.

a.  In “limine litis”

Conforme a previsão legal, inserta no Código de Processo Civil, “poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação”.[23]

Observe-se ainda, que o mesmo Código, em seu artigo 804, autoriza o juiz a proferir decisão interlocutória, liminarmente, sem ouvir a parte contrária, com ou sem audiência de justificação prévia, o que equivale dizer, que o autor pode obter a ordem concessiva de liminar, para preservação de seu pretenso direito ameaçado, “in limine litis”, ou seja, no início da lide, e “inaudita altera parte”, ou seja, de plano, sem ouvir a parte contrária, no caso o requerido contra o qual é obtida a medida de urgência.

Na prática forense, as medidas cautelares que alcançam o objetivo almejado, são as que possibilitam a obtenção imediata, de pronto, da ordem liminar perseguida, no início da lide, desde que restem comprovados os dois pressupostos,  pela via documental.

b.     A audiência de justificação prévia

Na hipótese do juiz não se convencer da prova feita pelo autor, quando da distribuição do pedido inicial, para justificar o fumus boni iuris e o periculum in mora, pode ser oferecida a oportunidade de produção de prova oral ao requerente da tutela cautelar, para que comprove através de testemunhas, o pressuposto não provado.

Nesta oportunidade, via de regra,  o autor produz a prova para comprovação do  periculum in mora, notadamente, o risco de dano iminente ou de difícil reparação, já que o “fumus boni iuris”, normalmente é comprovado pela via documental, sem o que, raramente o juiz acatará o pedido de tutela de urgência, uma vez que sem documento, dificilmente poderá avistar o pretenso o bem de vida perseguido pelo requerente.

A audiência de justificação prévia, tem amparo na legislação processual, e pode ser realizada sem a presença do requerido, quando este possa inviabilizar ou obstaculizar a sua efetivação, desde que concedida liminarmente a ordem cautelar pretendida.[24]

Pode ainda o juiz, conceder a ordem liminar anteriormente negada, no curso do processo cautelar, ou mesmo por ocasião da prolação da Sentença, desde que no decorrer da lide, ou na audiência de instrução e julgamento eventualmente realizada, surjam fatos novos, devidamente comprovados, que justifique o pressuposto de admissibilidade não comprovado “in limine litis”, ou por ocasião da audiência de justificação (fumus boni iuris ou periculum in mora).

3.3.       Constituição de caução

Ao apreciar o pedido liminar de tutela cautelar, pode o juiz exigir ex-ofício, que o autor  preste caução, que pode ser real ou fidejussória[25], e tem por finalidade servir de garantia para ressarcir os danos que o requerido possa vir a ter.

Trata-se, no dizer de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, do instituto que a doutrina chama de contracautela,  que assume, feição de cautela ex-ofício, porque realizada por iniciativa do órgão jurisdicional, sem provocação do interessado e que se exige sem forma de ação ou processo, mas como simples incidente do outro processo cautelar inicialmente acionado[26].

A caução exigida como contracautela, normalmente será em dinheiro, podendo em casos especiais, ser substituída por bens móveis ou mesmo imóveis, cujo valor se mostre suficiente para garantir eventual prejuízo que venha sofrer  o requerido.

Embora a lei processual admita a prestação de caução fudejussória, esta se aplica mais ao caso específico de medida cautelar nominada de caução[27] e não propriamente as situações de contracautela, quando a garantia se faz urgente para o deferimento liminar da tutela cautelar.

Na lição de GALENO LACERDA, a introdução da contracautela em nosso direito é inovação infeliz porque agora a liminar “só é possível, mediante caução real ou fidejussória do requerente”, o que virá dificultar justamente a medida que se impõe com maior urgência, criando “uma situação muito difícil para o requerente de boa-fé”[28].

De fato, o que tem se visto como procedimento comum, é que os juizes utilizam a contracautela ex-ofício, condicionando, como regra, a concessão da medida liminar, em procedimentos que envolvem disputa em valor pecuniário,  desde que o autor preste a garantia, geralmente em dinheiro, o que dificulta, de certa forma, o acesso às tutelas de urgência aos menos favorecidos.

4.     A possibilidade de revogação da ordem liminar

Examinamos anteriormente, a possibilidade do juiz deferir a ordem liminar, para  preservação de direito ameaçado, e assegurar a plena realização do direito material, a ser pleiteado em processo principal. Também foi objeto de exame, em que momentos processuais a concessão de liminar pode ocorrer, no curso do processo cautelar.

É importante ser notado, todavia, que o processo cautelar tem como uma de suas características, a provisoriedade, o que implica dizer, que as decisões adotadas no processo, em favor do autor, podem ser revogadas a qualquer tempo, até a prolação da sentença.

A revogação pode ocorrer, por provocação do requerido, desde que um fato novo venha para os autos, descaracterizando um ou mesmo os dois pressupostos de admissibilidade do processo cautelar, que haviam sido demonstrados pelo autor, qual seja, o fumus boni iuris e o periculum in mora.

A revogação da medida cautelar poderá ocorrer no seu todo ou apenas parcialmente, e será proferida através da cassação dos efeitos da ordem liminar anteriormente concedida em favor do autor.

Nessa hipótese, de havia sido constituída a caução (contracautela) pelo autor, esta servirá para ressarcir ou indenizar eventual prejuízo que venha ser  comprovado pelo requerido.

A revogação poderá se operar em decorrência de simples petição da parte, após tomar conhecimento da concessão da liminar, ou em razão de pedido feito por ocasião da contestação, ou quando da produção de provas na fase de instrução e julgamento do processo, ou ainda, por ocasião da prolação da Sentença, quando do julgamento do  processo cautelar.

5.  Cabimento da medida  cautelar  para atribuir efeito suspensivo a recurso especial e extraordinário

 5.1.   Admissibilidade

A tutela cautelar de urgência tem sido de grande alcance e utilidade, pois além dos casos específicos previstos na lei processual, tem servido para garantir a atribuição de efeito suspensivo aos recursos especial e extraordinário, que originalmente, por força legal, lhes são atribuídos apenas efeito devolutivo [29].

Tal possibilidade tem sido de grande utilidade às partes nos tribunais superiores, e tem o fim específico de evitar que a morosidade das Cortes de Justiça (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça), nos julgamentos dos recursos extraordinário e especial, venham causar danos irreparáveis.

A admissibilidade da medida cautelar nos Tribunais Superiores, está assegurada nos próprios regimentos internos de cada casa julgadora, a saber:

No STJ,  que dá atribuição ao relator para  “submeter à corte especial, à seção ou turma, nos processos da competência respectiva Medidas Cautelares necessárias à proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação, ou ainda destinadas a garantir a eficácia da ulterior decisão da causa”.[30]

O estatuto interno, afirma que “admitir-se-ão medidas cautelares nas hipóteses e na forma  da lei processual”,  prevendo que “o pedido será autuado em apenso e processado sem interrupção do processo principal” e ainda, que “o relator poderá deferir, liminarmente a medida “ad referendum” do órgão julgador competente”.[31] 

No STF, onde diz que são atribuições do relator  “submeter ao plenário ou à turma, nos processos da competência respectiva, medidas cautelares necessárias à proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação, ou ainda destinadas a garantir a eficácia da ulterior decisão da causa”, e ainda, “determinar, em caso de urgência, as medidas do inciso anterior  “ad referendum” do plenário ou da turma”.[32]

Por outro lado o mesmo regimento prescreve que “admitir-se-ão medidas cautelares nos recursos independentemente dos seus efeitos”.[33]

Numa análise mais extensiva, TERESA ARRUDA ALVIM afirma que não são os regimentos internos dos tribunais superiores que tornam possível o aforamento de processo cautelar incidental,  buscando medidas ínsitas ao poder geral de cautela, mas o próprio Código de Processo Civil, pois em seu artigo 800, parágrafo único, já há muito, existe a previsibilidade.[34]

5.2.   Comprovação dos pressupostos

Para o provimento da tutela cautelar nos casos de atribuição de efeito suspensivo aos recursos especial e extraordinário, se faz necessário a comprovação dos dois pressupostos que sustam a admissibilidade do procedimento cautelar, ou seja, fumus boni iuris e periculum in mora, já analisados.

A título ilustrativo, temos as ementas de dois Acórdãos, proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça, onde a medida cautelar foi acolhida para atribuir efeito suspensivo ao recurso especial, a saber:

RECURSO ESPECIAL – Efeito Suspensivo pretendido em medida cautelar inominada – Admissibilidade de concessão da liminar, em caráter excepcional se presentes o “periculum in mora” e o fumus boni iuris”.[35]

  RECURSO ESPECIAL – Efeito Suspensivo – Providência lícita em casos excepcionais, restritamente considerados e autorizados por norma regimental, desde que caracterizados o “periculum in mora” e o “fumus boni iuris” – Aplicação do art. 34 do RISTJ e dos princípios da instrumentalidade e da efetividade do processo – Medida Cautelar inominada deferida”.[36]

Temos assim, que o provimento de urgência, nesses casos, visa atribuir efeito suspensivo aos recursos, que originalmente não detêm tal efeito, suspendendo a eventual execução provisória do julgado, para  garantir o resultado útil do recurso, desde que o direito alegado pelo recorrente apresente determinado grau de verossimilhança e plausibilidade.

6.      Conclusão

O processo cautelar assumiu, em nosso direito, singular importância, servindo como instrumento acautelatório da parte, para preservação de situações fáticas e de direitos ameaçados, notadamente ao nosso ver, por dois fatores:  de um lado, a morosidade da Justiça, que tem se mostrado ineficaz na pronta solução de conflitos; e de outro lado, pela crescente conscientização dos cidadãos, que cada vez mais, procuram satisfazer suas pretensões jurídicas resistidas, batendo às portas do Poder Judiciário.

É por meio do processo cautelar, de características próprias, que os direitos ameaçados e com risco iminente de dano encontram guarida.

Não tem o processo, como foi dito, o fim de resolver conflitos, ou entregar o bem de vida ao requerente atingido, uma vez que a entrega incontroversa do direito material, somente poderá ocorrer com a apreciação do direito material.

Mas enquanto este não é decidido, serve o procedimento cautelar como meio de preservação do direito ameaçado, à garantir no futuro, a efetiva realização do bem de vida que vier a ser assegurado, após a ampla discussão do litígio num processo de cognição plena.

Para a concessão da ordem liminar asseguratória da tutela cautelar, se fazem indispensáveis a comprovação de dois pressupostos, tidos como a fundamentais ao processo cautelar, ou seja:  o fumus boni iuris, que representa a probabilidade, a plausibilidade, a verossimilhança a cerca  da existência de um direito  a ser protegido, e o perículum in mora, representado pela demonstração do risco de dano iminente e de reparação difícil, que precisa de urgente proteção.

Tais pressupostos se fazem necessários tanto nas cautelares nominadas, tipicas, relacionadas do artigo 813 ao 889 do CPC, quando nas cautelares inominadas, derivadas do poder geral de cautela do juiz, e com autorização no artigo 798, do mesmo estatuto processual.

Também as tutelas de urgência  têm cabimento em procedimentos especiais, tais como nas ações possessórias, na reserva de quinhão hereditário, na restituição dos bens nos contratos de reserva de domínio, nos contratos garantidos por alienação fiduciária, na concessão de guarda provisória nos processos de adoção, conforme procedimento previsto no ECA, na chamada Lei de Locações, dentre outras, e ainda, para a concessão de efeito suspensivo em recursos especial e extraordinário, que ordinariamente são recebidos apenas num único efeito, o devolutivo.

Têm-se assim, que presentes os dois pressupostos, e inexistindo procedimento específico para resguardar o interesse da parte, pode esta se utilizar do processo cautelar para preservação de seu pretenso direito.

O processo cautelar, por sua vez,  é de natureza processual, e visa assegurar a plena efetividade do processo principal, onde o direito material poderá será alcançado.

O fato do processo cautelar se caracterizar como instrumento de  natureza processual e meramente asseguratória e preservativa de direitos, não significa, no entanto,  que ao juiz seja negada a oportunidade de pelo menos descortinar, de forma aparente e superficial, se a parte efetivamente tem direito  a ser atingido.

Assim, para a concessão de medida liminar, em pedido  assentado nos pressupostos do fumus boni iuris e periculum in mora, parece-nos que o juiz não deve se furtar  de proceder a análise, ao menos superficial, da probabilidade do direito material, sob pena de se ver caracterizada a exigência da fumaça do bom direito, para assegurar apenas o direito a ação, e não o “bem de vida”, a ser buscado na ação principal.

B I B L I O G R A F I A

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[1] CHIOVENDA, Giuseppe,  “Instituições de Direito  Processual Civil”, Madrid, I, 1936, trad. Menegale, vol. I, p. 274:275, Apud Humberto Theodoro Júnior, Processo Cautelar, LEUD, São Paulo, 1992, p. 50.  

[2] VILLAR, Willard de Castro, “Medidas Cautelares”, ed. 1971, p.  52.

[3] VILLAR, Willard de Castro, Ob. cit, p. 53, Apud Humberto Theodoro Júnior, .Processo Cautelar, LEUD, São Paulo, 1992, p. 51.

[4] CARNELUTTI, Francesco, “Diritto e Processo”, p. 356, Apud Humberto Theodoro Júnior, ob. cit., p. 52.

[5]THEODORO JÚNIOR,  Humberto, Processo Cautelar, LEUD, São Paulo, 1992,  p. 53.

[6] FERREIRA Pinto, “Medidas Cautelares”, Editora Forense, 3a. edição, 1990, p. 51.

[7] Artigo 675, incisos I a III, CPC de 1939

[8] Artigo 676, incisos I a X, CPC de 1939.

[9] BATISTA DA SILVA, Ovidio  A., “Curso de Processo Civil”, vol. 3, 2a ed., Ed. Revista dos Tribunais,  p. 21.

[10] FRIEDRICH LENT, “Diritto Processuale Civile Tedesco”, ed. Morano, 1962, p. 17, Apud  Humberto Theodoro Júnior, ob. cit.,  p. 28.

[11] FRIEDE, Reis, “Liminares  em Tutela Cautelar e Tutela Antecipatória”, 1997, p. 13.

[12] Artigo 173, CPC.

[13] OLIVEIRA,Carlos Alberto Álvaro de, “Perfil dogmático da tutela de urgência”, Revista Forense 342, p. 19.

[14] BOMFIM MARINS, Victor A. A., “Tutela Cautelar. Teoria Geral e Poder Geral de Cautela”, p. 110.

[15]CAMPOS, Ronaldo Cunha, “Estudos de Direito Processual”, 1a. ed., Uberaba, 1974, p. 132, Apud Humberto Theodoro Júnior, ob. cit., p. 76.

[16] LACERDA Galeano, “Comentários ao CPC”, p. 295.

[17] BATISTA DA SILVA, Ovídio A.  Ob. Cit., p. 59-60.

[18] COSTA, Lopes da,  “Medidas Preventivas”, ed. 1958, no. 2, p. 14.

[19] FRIEDE, Reis, Ob. Cit., p. 48

[20] BATISTA DA SILVA, Ovidio A , “As ações Cautelares e o Novo Processo Civil”, p. 28, 3a. ed., Rio de Janeiro, 1974.

[21] THEODORO JUNIOR, Humberto, Ob. Cit., p. 77.

[22] FRIEDE, Reis, Ob. Cit., p. 9.

[23] Artigo 798, CPC.

[24] CPC, artigo 804.

[25] Artigo 804, CPC.

[26] THEODORO JÚNIOR, Humberto, Ob. Cit., p. 137

[27] Artigo 826, CPC

[28] LACERDA, Galeno, “Proc. Cautelar”, in Revista Forense, vol. 246, p. 155.

[29] Artigo 542, § 2º, CPC.

[30] STJ, Regimento Interno, Artigo 34, V.

[31] STJ, Regimento Interno, Artigo 288, § 1º e 2º

[32] STF, Regimento Interno, Artigo 21, IV e V.

[33] STF, Regimento Interno, Artigo 304.

[34] ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa, “Aspectos Polêmicos e Atuais do RE e Resp”, Ed. RT, 1997

[35] RT 703/167

[36] RT 658/178

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

CLOVIS BRASIL PEREIRA, Advogado, Professor Universitário, Mestre em Direito e Especialista em Processo Civil. É coordenador e Editor do Site Prolegis Site Jurídico.  2003. 

prof.clovis@54.70.182.189

 

Separação e divórcio: uma inútil duplicidade

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* Maria Berenice Dias –

Um olhar no tempo 

Sob a égide de uma sociedade fortemente conservadora e influenciada pela Igreja, justificava-se a concepção do casamento como indissolúvel, tal como o considerou o Código Civil em 1916. A evolução dos costumes levou a uma verdadeira revolução do próprio conceito de família, mas ainda assim forte foi a resistência de alguns segmentos quando da instituição do divórcio no Brasil, por meio da Emenda Constitucional nº 9, de 28 de junho de 1977.

Para viabilizar a aprovação da lei regulamentadora do divórcio (Lei nº 6.515, de 26/12/1977), alguns abrandamentos precisaram ser instituídos e restrições acabaram por ser impostas. Assim, a Lei, em sua versão primeira, autorizou o pedido de divórcio por uma única vez (art. 38) – o que agora soa como um verdadeiro absurdo -, e em somente uma hipótese era possível o chamado “divórcio direto”, e isso em caráter emergencial, tanto que previsto nas disposições finais e transitórias da Lei.

O art. 40 possuía a seguinte redação: No caso de separação de fato com início anterior a 28 de junho de 1977, e desde que completados 5 (cinco) anos, poderá ser promovida ação de divórcio, na qual se deverão provar o decurso do prazo da separação e sua causa. Sua concessão, portanto, estava condicionada ao atendimento cumulativo de três pressupostos: (a) estarem as partes separadas de fato há cinco anos; (b) que esse prazo estivesse implementado antes da data da alteração constitucional, ou seja, antes de 28 de junho de 1977; e (c) a comprovação da causa da separação.

Nítida se revelava a intenção do legislador em autorizar o divórcio somente para atender à especial circunstância de quem já se encontrava separado de fato há mais de cinco anos quando da constitucionalização do instituto. Assim, hipoteticamente, quando todos os que, tendo preenchido esses requisitos, houvessem se divorciado, desapareceria a possibilidade da concessão do divórcio de forma direta. Exauridas tais ações, somente após prévia separação judicial é que seria possível obter o divórcio, mas exclusivamente por meio do procedimento de conversão.

Foi a jurisprudência que emprestou uma interpretação mais extensiva ao indigitado dispositivo legal. Reconheceu como possível a decretação do divórcio quando a separação de fato houvesse ocorrido antes de 28/6/77, mesmo que o prazo legal se implementasse posteriormente. Ou seja, ao par separado antes da data da vigência da Emenda Constitucional, decorridos cinco anos, passou-se a autorizar o divórcio direto.

Quando a sociedade se convenceu de que o divórcio não destruiu a instituição da família nem acabou com o casamento, mais uma vez o vanguardismo de algumas decisões judiciais levou à reformulação da lei. No momento em que se tornou possível a sua obtenção mediante a só comprovação da ruptura da vida em comum por dois anos consecutivos, institucionalizou-se o divórcio direto. Além de haver perdido a característica de modalidade temporária de dissolução da sociedade conjugal, também restou dispensada a dupla via procedimental para sua obtenção. Superado o obstáculo que o condicionava a um termo inicial em data determinada, consolidou-se o divórcio como instituto autônomo, afastando a necessidade de prévia separação judicial como requisito para ser deferido somente por meio da conversão.

Portanto, profunda foi a transformação operada pela Lei nº 7.841/89, ao dar nova redação ao artigo 40 da Lei do Divórcio. Além de subtrair o caráter de transitoriedade do divórcio direto, afastou a necessidade de identificação da causa para a sua concessão, ao revogar o parágrafo primeiro do indigitado artigo, que fazia expressa remissão aos dispositivos legais regradores da separação: acordo de vontades ou imputação ao réu de culpa ou doença mental (arts. 4º e 5º e seus parágrafos).

A perenização do desquite 

O casamento era indissolúvel segundo o Código Civil. Só a morte de um dos cônjuges o dissolvia (parágrafo único do art. 315), mas a sociedade conjugal podia “terminar” pelo desquite (CC, art. 315, III).

A lei regulamentadora da reforma constitucional, que acolheu a possibilidade do divórcio, no entanto, não se limitou a cumprir sua função, já que deveria tão-só regulamentar as modalidades e formas para a concessão do divórcio. Não fosse a resistência a sua aprovação, suficiente seria mera normatização de natureza processual. Quiçá algumas regras sobre alimentos e proteção aos filhos, se tanto. Porém, a Lei nº 6.515/77 acabou por manter o desquite, limitando-se a proceder a uma mera substituição de palavras. O que anteriormente era nominado de desquite passou a ser chamado de separação judicial, com idênticas características, ambos “terminam” com a sociedade conjugal: põem termo aos deveres de coabitação, fidelidade recíproca e ao regime matrimonial de bens, como se o casamento fosse dissolvido (art. 3º da LD). Ou seja, “solve” o casamento, mas não o “dissolve”, atributo de que só a morte e o divórcio dispõem (parágrafo único do art. 2º da LD).

Assim, a Lei do Divórcio nada mais faz do que exaustivamente regulamentar a separação (arts. 3º a 24, 34, 39 e 41 a 49). A conversão da separação em divórcio está disciplinada nos arts. 35 a 37, sendo que, do divórcio, tratam só os arts. 38 (ao restringir o pedido a uma única vez) e 40 (entre as disposições transitórias).

A separação dita consensual 

Quando a separação decorre do mútuo acordo de vontades, a única exigência é estarem os cônjuges casados há mais de dois anos (art. 4º da LD). Há quem sustente, com acerto, que esse prazo deve ser reduzido pela metade. O fundamento é dos mais lógicos: a partir do momento em que a lei viabilizou a separação judicial litigiosa, mediante a comprovação da separação por tempo superior a um ano, idêntico requisito deve bastar para que se defira a separação na modalidade consensual, sob pena de consagrar-se interpretação atentatória aos princípios maiores do direito.

Assim, após o prazo de um ano da vigência do casamento, sem necessidade de apontar qualquer motivação, o par pode consensualmente buscar a separação. No entanto, se antes desse prazo acabar o vínculo afetivo, embora não mais convivam os cônjuges sob o mesmo teto, o Estado, de forma aleatória e arbitrária, impõe a mantença de tal status, sem que se possa identificar o motivo dessa negativa ante um fato já consumado. Trata-se de verdadeira imposição de um “estágio probatório”, durante o qual o desejo dos cônjuges não possui o mínimo significado. Antes do decurso desse interstício, mesmo que não mais queiram os cônjuges a mantença do casamento, resiste o Estado em chancelar a vontade das partes, o que, na ausência de melhor justificativa, parece se tratar de imposição de um “prazo de purgação”. Quem sabe melhor identificar esse interregno como um verdadeiro purgatório?

De qualquer sorte, nítido o caráter punitivo de tal restrição. Será a determinação de um período de reflexão? Ou não se admite que o amor possa ter acabado antes desse prazo? Afinal, qual a legitimidade do Estado em se opor à vontade de pessoas maiores, capazes e no pleno exercício de seus direitos? Dizer que é para preservar os sagrados laços do matrimônio? Mas o casamento não mais existe! Se livremente casaram, por que não dispõem da mesma liberdade para pôr fim ao casamento? Portanto, no que a lei chama de separação consensual, o “consenso” não é respeitado nem é tão livre assim a vontade das partes.

Para contornar essa injustificável vedação legal e abreviar o decreto de separação, antes do decurso de um ano, acabam os cônjuges protagonizando uma verdadeira farsa. Simulam uma separação litigiosa. Um dos cônjuges se diz inocente e imputa ao réu uma causa de ruptura do vínculo, buscando o decreto da separação. Ao pedido não se opõe o demandado, que acaba se confessando culpado, o que dispensa a necessidade de probação. Ainda que não haja a dispensa da instrução, por óbvio que não é difícil trazer testemunhas que roborem o afirmado na inicial.

Mas simular litigiosidade tão-só para obter a separação revela-se uma postura desleal. Outra modalidade indevida de contornar os ditames da lei, de largo uso, é a busca consensual da separação de corpos, pedido que não dispõe de qualquer referendo na lei. Como inexiste pretensão resistida, trata-se de procedimento de jurisdição voluntária, não guardando qualquer identidade com a medida provisional de afastamento de um dos cônjuges da morada do casal, prevista no inciso VI do art. 888 do CPC. Acaba o Poder Judiciário servindo somente para fins certificatórios do término da vida em comum.

 A separação litigiosa 

O artigo 5º da Lei do Divórcio prevê as hipóteses da separação chamada litigiosa, ou seja, quando a iniciativa da ação é de apenas um dos cônjuges.

A Lei nº 8.408/92, ao dar nova redação ao § 1º do art. 5º, autoriza o pedido de separação mediante a prova da ruptura da vida em comum há mais de um ano. Nessa hipótese, basta um único pressuposto de ordem objetiva: o adimplemento do prazo temporal, sem necessidade de apontar a causa ou identificar o responsável pelo término da relação. Ou seja, depois de um ano de separação, o Estado deixa de se preocupar com os motivos do fim do casamento e se desinteressa em punir o culpado.

Quando a intenção de buscar a desconstituição do casamento antecede tal prazo, imperioso que o autor impute ao réu a responsabilidade pelo fim do relacionamento. Nessa hipótese, para ser buscada a separação, a causa de pedir é complexa: além de imputar ao réu conduta desonrosa ou violação dos deveres do casamento, também deve o autor demonstrar que tais posturas tornaram insuportável a vida em comum. Portanto, duplo é o requisito para a sua concessão, um imputável ao réu – atitude indigna – e outro de ordem subjetiva, ou seja, que tal comportamento tenha tornado insuportável a mantença da vida a dois.     Talvez o mais paradoxal seja que, não provada a “culpa”, a ação é julgada improcedente, criando uma situação insustentável: a Justiça mantém casados aqueles que se digladiaram durante a tramitação de uma demanda em que foram desvendadas mágoas e ressentimentos, o que, ao certo, aumentou muito mais o estado de beligerância do casal. Felizmente a perquirição da causa da separação vem perdendo prestígio e a jurisprudência tem dispensado sua comprovação, seja porque difícil atribuir a um só dos cônjuges a responsabilidade pelo fim do vínculo afetivo, seja porque indevido é obrigar a um cônjuge que revele a intimidade do outro, imposição que fere inclusive o sagrado direito de respeito à dignidade da pessoa humana erigido como princípio fundamental pela Constituição Federal. Foge ao âmbito de atuação do     Estado impor a violação ao direto à privacidade e à intimidade, com a única finalidade de o juiz, de forma estéril e desnecessária, atribuir a pecha de culpado ao réu. Razão assiste a Luiz Edson Fachin, quando afirma que não tem sentido averiguar a culpa com motivação de ordem íntima, psíquica, concluindo que a conduta pode ser apenas sintoma do fim.

Diferenças e desvantagens 

Talvez a maior diferença que se possa vislumbrar entre a separação e o divórcio é que, para se obter a separação, basta a ruptura da vida em comum por um ano (§ 1º do art. 4º), enquanto para a concessão do divórcio, quer de forma consensual, quer por iniciativa de somente um dos cônjuges, necessário que a ruptura da vida em comum tenha “completado” dois anos consecutivos (art. 40).

Imperioso reconhecer como injustificáveis as contradições da lei. Quando a separação decorre do mútuo acordo de vontades, a única exigência (art. 4º) é estarem os cônjuges casados há mais de dois anos, lapso temporal que vem sendo reduzido à metade, por orientação doutrinária, como já referido. De qualquer forma, não há a necessidade de apontar qualquer motivação nem o implemento de qualquer prazo de dimensão prática para a consensual busca do término da relação. No entanto, para alcançarem o divórcio, ainda que de forma consensual, mister estarem os cônjuges separados de fato há dois anos.

Quando apenas um quiser a separação, somente tem legitimidade para a ação o “inocente”, sendo imprescindível a comprovação da culpa do réu pelo desenlace do relacionamento. Portanto, o cônjuge “responsável” pela separação não pode pedir a chancela oficial pelo fim do vínculo afetivo. Mais. Quando inexistir alguma causa que permita identificar um infrator pelo fim do casamento, nenhum dos cônjuges pode pedir a separação, sendo imperiosa a espera do escoamento de um ano da ruptura da vida em comum para buscar a separação, que passou a se chamar “remédio”.

Também aqui se flagra uma certa incongruência do legislador. Depois de um ano do rompimento da vida conjugal, torna-se despicienda a invocação de alguma causa, e qualquer dos cônjuges, tanto o “culpado” como o “inocente”, pode buscar a separação, independente da identificação do responsável. Mas para isso é preciso esperar que decorra o período de um ano, como se o tempo tivesse o condão de gerar inimputabilidades. Fazendo-se uma espécie de analogia com o Direito Penal, pode-se dizer que ocorre a “prescrição” do crime, e o “delinqüente” – isto é, aquele que praticou o delito – está reabilitado, podendo, então, livrar-se do casamento.

Não se pode deixar de consignar ser no mínimo estranho que, em se tratando de separação, a culpa seja elemento indispensável para sua concessão, se não implementado o prazo de um ano de ruptura da vida em comum, enquanto que, no divórcio, quer direto, quer por conversão, o elemento culpa é absolutamente estranho, havendo expressa vedação a qualquer referência aos motivos que ensejam seu decreto (arts. 25, parágrafo único, e 40 da LD).

Um estágio fugaz 

Depois de uma demanda litigiosa, normalmente demorada e desgastante, em face da imprescindível identificação de um culpado, a vitória é pífia, ainda que sejam impostas severas sanções a quem deu causa ao fim do relacionamento. A perda do direito a alimentos a quem não tem condições de prover o próprio sustento pode levar à morte por inanição. Em sendo a mulher a culpada, é-lhe imposta também a pena de perda de um de seus atributos da personalidade, pois é subtraída a identidade que adquiriu ao adotar o nome do marido. Não se pode olvidar que o nome é um bem jurídico que tutela a intimidade, atributo ínsito da personalidade humana. Indevida a interferência na identidade da pessoa, impondo penalidade sem que haja qualquer motivo que a justifique, o que revela clara afronta ao princípio do respeito à dignidade humana. Tão draconiano é o imperativo constante do parágrafo único do art. 25 da LD, que, mesmo quando os cônjuges, de forma expressa, concordam com a inalterabilidade do nome, a perda é decretada contra a vontade das partes. Essa imposição legal, no entanto, não vem sendo acatada pela jurisprudência. A indispensabilidade da comprovação da culpa para a obtenção da separação, no entanto, perde completamente o sentido quando da sua conversão em divórcio, pois é vedado que conste da sentença a causa que o determinou (art. 25). Ou seja, a “pecha” da culpa dura, no máximo, um ano, já que o prazo para a conversão corre, não a partir da data da sentença que imputou a culpa ao réu, mas de simples decisão judicial que faça presumir a separação dos cônjuges (art. 44).

Há mais um motivo para que se subtraia qualquer justificativa à manutenção da separação litigiosa. Normalmente, como a demanda exige dilação probatória, sua tramitação se estende no tempo, e dificilmente o processo chega à fase da sentença ou o recurso ao tribunal antes do prazo de um ano da propositura da ação. Atentando-se no art. 462 do CPC – o qual determina que o juiz considere os fatos supervenientes que possam alterar o resultado da ação -, implementado o prazo legal durante a tramitação da ação ou do recurso, imperativo que seja decretada a separação tão-só pelo fundamento temporal, imposição essa que se estende a qualquer dos graus de jurisdição.

Uma duplicidade inócua 

Diante de todos esses questionamentos, uma evidência se impõe. A partir do momento em que a lei assegurou a possibilidade do divórcio direto, mediante o só implemento do prazo de dois anos do término da relação, perdeu utilidade a mantença do instituto da separação judicial. Inclusive, cabe questionar a vantagem de alguém se socorrer do pedido de separação, pelo decurso do prazo de um ano da separação de fato, quando o transcurso de dois anos autoriza a decretação do divórcio direto. É que, decorrido o prazo de um ano da separação, necessitam as partes retornarem a juízo para a sua conversão em divórcio, duplicidade procedimental que, além de inócua, é desgastante e onerosa. Certamente acaba por ser mais demorado obter o rompimento do casamento se forem usados os dois expedientes legais em vez de se buscar diretamente o divórcio, ainda que seja necessária a espera de dois anos para sua propositura.

A prova do prazo 

Como a lei impõe o prazo de separação de fato por dois anos para a obtenção do divórcio, além da necessidade da implementação desse prazo, vem sendo questionada a forma de comprovação desse interstício. No divórcio consensual, a exigência constante do inc. III do art. 40 – que determina a coleta da prova testemunhal na audiência de ratificação – está sendo paulatinamente dispensada. Aceitam-se simples declarações de terceiros, trazidas pelas partes, dispensando-se o que antes se tinha por indispensável: a ouvida das testemunhas em juízo.

Não precisou muito para se flagrar que passou o Judiciário a ser palco de uma encenação. Pretendendo os cônjuges pôr fim ao casamento, passaram a não mais fazer uso da via da separação. Para alcançar divórcio, independente do tempo de cessação da vida em comum, o par se mune de singelas declarações – firmadas geralmente por amigos – que afirmam estar o casal separado há dois anos.

Ora, se de há muito já vem sendo dispensada a oitiva em audiência dos firmatários das indigitadas declarações, sequer se justifica a necessidade de apresentação de tais “documentos”. Dizer as partes que estão separadas não basta? Por que emprestar maior credibilidade à manifestação escrita de duas pessoas para se aceitar a assertiva dos cônjuges como verdadeira?

A audiência de ratificação 

Igualmente, não se justifica a obrigatória realização de audiência de ratificação, conforme determina o inc. III do art. 40 da lei, quando o divórcio é buscado consensualmente. Deve bastar a afirmativa constante na petição inicial de que o casamento faliu, e livre é a intenção das partes de se divorciarem.     Cabe questionar o porquê da imposição a pessoas maiores, capazes e no amplo gozo de seus direitos civis de ratificarem, na presença do juiz, a manifestação livre da vontade já externada. Ao depois, a audiência de ratificação também acabou se tornando um ato meramente formal, muitas vezes limitando-se as partes a firmarem um termo impresso no balcão dos cartórios.

De outro lado, para que tentará o juiz reconciliar as partes que já não mais vivem juntas, não querem mais ficar casadas? Procuraram um advogado e intentaram uma ação buscando simplesmente a chancela judicial – que até dispensável seria – para desfazer um vínculo que foi formado espontaneamente, sem interferência judicial, e perante um serventuário da justiça.

Também é de atentar-se em que, na conversão da separação em divórcio, quer por mútuo acordo, quer por ausência de contestação, o juiz conhecerá diretamente do pedido sem a ouvida das partes (art. 37 da LD). Além disso, mesmo quando a partilha de bens é relegada a momento posterior ao decreto da separação ou do divórcio, não há necessidade da audiência para saber se a partilha proposta corresponde à vontade livre das partes.

A impossibilidade de transformar a união estável em casamento 

Outro ponto merece atenção ao se questionar sobre a mantença desta figura híbrida da separação. É que, decretada a separação judicial, resta afastada a possibilidade de se atender ao “aparente” interesse do Estado de que as pessoas se vinculem pelo casamento. Explico: como as pessoas separadas não podem casar, passam a viver em união estável. Mas a condição de separado de um dos conviventes impede que cumpra o Estado o compromisso – diga-se, o mais inútil de todas as inutilidades – de facilitar sua conversão em casamento. Portanto, estando um dos conviventes impedido de casar – separado de fato ou judicialmente -, tal veda a transformação da união estável em casamento. Ora, se o aparato estatal assumiu o encargo de facilitar aos unidos de fato a formalização de sua união, nada justifica que se mantenha um instituto que, mesmo levando ao fim do casamento, impede a constituição de nova relação formal.

Um questionamento que se impõe 

Ao atentar-se em todos esses pontos, verifica-se a total inversão que os regramentos procedimentais acabaram impondo. Para formar uma família, que é a base da sociedade e merece a especial proteção do Estado (art. 226 do CF), entidade responsável por garantir, com absoluta prioridade, todos os direitos assegurados à criança e ao adolescente (art. 227 da CF), é suficiente um mero procedimento de habilitação. Depois, basta dizer “sim” perante o chamado “Juiz de Paz” – que sequer servidor público é -, sendo a solenidade chancelada por um oficial cartorário.

No entanto, para desfazer esse vínculo, necessário o uso do aparato do Poder Judiciário, que impõe a implementação de prazos, a identificação de culpas e se arvora o direito de aplicar sanções. Por quê? Tal tratamento afronta o direito à liberdade. Cada vez mais se está questionando a legitimidade de o Estado imiscuir-se na vida do cidadão, até pelo alargamento de seus direitos e garantias fundamentais, que têm como cânone maior a dignidade da pessoa humana, princípio consagrado de forma destacada na Carta Constitucional.

Lapidar a lição de Rodrigo da Cunha Pereira: é preciso demarcar o limite de intervenção do Direito na organização familiar para que as normas estabelecidas por ele não interfiram em prejuízo da liberdade do ‘ser’ sujeito”.

Será que o Poder Judiciário pode se negar a chancelar a vontade das partes que manifestam de forma livre o desejo de romper o vínculo do matrimônio? Que interesse maior se estaria, in casu, tentando proteger? Se para a realização do casamento basta a expressão livre da vontade dos nubentes, para sua extinção despiciendo exigir mais do que a assertiva do casal de que o casamento ruiu e que eles não mais querem seguir unidos pelos laços do casamento.

Talvez, de forma singela, se devesse transpor para o campo do Direito de Família a norma insculpida no art. 1.093 do CC, que diz: O distrato faz-se pela mesma forma que o contrato. O pedido de divórcio, ao menos quando consensual, poderia ser formulado mediante mero requerimento ao Cartório do Registro Civil em que ocorreu o casamento, solução que, com certeza, melhor atenderia ao atual momento que vive a sociedade.

A solução: divórcio mediante singela manifestação de vontade 

Não há como não reconhecer que é chegada a hora de se expungir do sistema jurídico a separação, ou simplesmente olvidá-la, quiçá deixando o instituto cair no desuso. Importante que se conceda o divórcio pela simples manifestação de vontade dos cônjuges, independente do lapso de vigência do casamento, ou do implemento de prazo da separação. Não há mais como exigir a identificação de qualquer motivo para que o Estado chancele o fim do casamento.

Com certeza é a jurisprudência que deve dar mais este passo. Como sempre vem ocorrendo, são os juízes, que trabalham mais rente ao fato social, que acabam por mostrar o norte e levar o legislador a chancelar, por meio da lei, o que a Justiça já reconheceu como a solução mais acertada e coerente com a realidade.  


Referência  Biográfica

MARIA BERENICE DIAS,  Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam.

www.mariaberenice.com.br

O Ministério Público e a assistência no processo penal: novo enfoque

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* João Gaspar Rodrigues  –

1- Visão atual do instituto

            O art. 268 do Código de Processo Penal dispõe que "em todos os termos da ação pública, poderá intervir, como assistente do Ministério Público, o ofendido ou o seu representante legal, ou na falta, qualquer das pessoas mencionadas no art. 31". O ofendido ou seu representante legal poderá pleitear a sua admissão no processo como assistente após o recebimento da denúncia até o trânsito em julgado da sentença (CPP, art. 269). Não pode, porém, ser admitido no inquérito policial, na fase de execução penal e em processo contravencional.

            Os tribunais interpretando o art. 269 do Código de Processo Penal têm decidido de forma pacífica na esteira do STF que "as normas processuais ou regimentais em vigor não autorizam o ingresso, no feito, de assistente da acusação antes do recebimento da denúncia" (Tribunal Pleno, IP n. 381-DF, Rel. Min. Célio Borja, julgado em 18.11.88, RT 637:311 e Lex 125:231; no mesmo sentido, TAPR, RT 685:351). Entretanto, a 2º Câmara Criminal do TJSP adotou posição contrária, admitindo a assistência antes do recebimento da denúncia, no inquérito policial, no Rec. n. 141.210, julgado em 16.11.81, Rel. Rezende Junqueira: "Ministério Público. Assistente. Intervenção nos autos antes do recebimento da denúncia. Admissibilidade, embora rejeitada aquela peça. Voto vencido. Inteligência dos arts. 268, 269 e 29 do CPP. O interesse do ofendido na apuração do fato e punição do responsável nasce desde o momento em que, pela lesão sofrida, surge o direito subjetivo, que mais tarde se transmuda no jus persequendi in juditio, cuja titularidade, em face de razões sociais, pertence ao Estado quando se trata de ação pública. Não pode, portanto, seu ingresso nos autos como assistente ficar condicionado ao recebimento da denúncia, quando se instaura a instância".

            A respeito da intervenção de assistente no processo contravencional, existem duas correntes: uma a favor, outra contra. Entendemos, entretanto, que descabe a intervenção de assistente no processo contravencional, porque inexiste nele a figura do indivíduo como ofendido, apresentando-se o Estado como sujeito passivo, em nome do interesse social violado. Poderá existir a figura do prejudicado pelo dano material eventualmente ocorrido. Tal entendimento pode ser transplantado integralmente para os crimes contra a incolumidade pública. Nos crimes de perigo comum o ofendido não é aquele que sofreu o dano material eventualmente ocorrido, mas o Estado, a coletividade, titular do bem jurídico "incolumidade pública", pela simples exposição a perigo de tal bem. Nossa posição, portanto, é a de que descabe assistência nas contravenções e em tais crimes.

            A favor da assistência no processo contravencional, sustenta-se que em caso excepcionalíssimos pode exsurgir um ofendido direto e imediato, o que para nós é apenas a figura do prejudicado. A propósito, confira-se decisão do TACrimSP:

            "Contravenção penal. Perturbação do sossego alheio. Intervenção de assistente de acusação. Admissibilidade. Modalidade especialíssima de contravenção, onde possível identificar de modo próximo e direto a figura do ‘ofendido’. Possibilidade, portanto, de perseguir a condenação do contraventor. Recurso por ele interposto que deve ser conhecido mesmo diante da vedação de seu ingresso na sentença. Aplicação do art. 598 e inteligência do art. 268 do CPP e dos arts. 17 e 42 do Dec.-Lei 3.688/41" (1).

            Ao prejudicado pelo delito não é conferido por lei o direito de intervir na ação penal pública como assistente do Ministério Público (RT 491:279, 487:291). Prejudicado pelo delito não se confunde com ofendido, este é o sujeito passivo do crime, enquanto aquele é qualquer pessoa a quem o delito haja causado um dano patrimonial ou não, tendo por conseqüência direito ao ressarcimento e ação civil.

            A "falta do ofendido", constante no art. 268 do CPP, compreende não só a morte como também a ausência decorrente de fator inexorável, como também a impossibilidade de manifestação de vontade válida (RT 646:295). Prevalece, com relação à assistência, o disposto no art. 36 do CPP, de modo que comparecendo diversos interessados conjuntamente, com o fim de exercer a assistência, terá preferência o cônjuge, e em seguida, o parente mais próximo, conforme a ordem de gradação do art. 31 do mesmo diploma processual. Esta não é a única ordem a ser apreciada. Há que se analisar, também, quem foi admitido em primeiro lugar, e nesse caso, sendo admitidos como assistentes os filhos da vítima, precluso fica tal direito à esposa do ofendido, por ter formulado o pedido tardiamente (RT 601:368). O que não é admissível é a pluralidade de assistentes, com viso a evitar tumulto processual em decorrência de eventuais interesses conflitantes.

            Questão que tem levantado alguma celeuma é a de saber se o Poder Público pode intervir como assistente do Ministério Público. Entendemos que nada obsta que o Estado, quando atingido diretamente pelo delito, ou seja, quando se torna sujeito passivo direto e imediato, se habilite como assistente. O STF, inclusive, já decidiu nesse sentido, no RHC n. 46.536, DJU 10.12.68, Rel. Min. Adaucto Cardoso, in RTJ 49:322. E mais recentemente, o STJ, ao julgar o RMS n. 546, 5º Turma, em 17.10.90, Rel. Min. Costa Lima, in RT 667:336: "Crime contra a administração pública. Intervenção do Poder Público como assistente da acusação. Admissibilidade. Interesse do bem público geral do Ministério Público não coincidente com o interesse secundário do ente ofendido". Veja-se que nos processos para apurar a responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores, é permitida a intervenção pública como assistente, nos termos do art. 2º, §1º, do Decreto-Lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967: "Os órgãos federais, estaduais e municipais, interessados na apuração da responsabilidade do prefeito, podem requerer a abertura de inquérito policial ou a instauração da ação penal pelo Ministério Público, bem como intervir em qualquer fase do processo, como assistente da acusação". A lei fala em "órgãos", logo, um vereador ou o Presidente da Câmara Municipal, por exemplo, isoladamente, não poderão se habilitar como assistente.

            Cumpre salientar que tanto pessoas físicas como jurídicas podem ser vítimas de crime e, em sendo assim, poderão se habilitar como assistente do Ministério Público (STF, RTJ 78:922).

            O assistente receberá o processo no estado em que ele se encontrar (art. 269, in fine, CPP), não tendo direito à reprodução de atos praticados sem a sua interferência, ainda quando sejam posteriores ao seu pedido de intervenção. A ele é permitido propor meios de prova, requerer perguntas às testemunhas, aditar o libelo e os articulados, participar do debate oral e arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público ou por ele próprio (CPP, art. 271).

            No pleito de assistência, o Ministério Público necessariamente deverá ser ouvido como custos legis (CPP, art. 272) (2), podendo impugná-lo se ilegítima for a parte (for co-réu no mesmo processo; não figurar entre os elencados no art. 31 etc.) ou se constatar irregularidades na documentação que instruir o pedido (falta de prova do parentesco, na hipótese do art. 31; ausência do instrumento procuratório etc.). Já se decidiu que "quando a lei determina que o Ministério Público seja ouvido previamente sobre a admissão do assistente, não é para que o Promotor Público diga se lhe agrada ou não a colaboração que lhe é oferecida, mas para que, como órgão da lei e fiscal de sua execução, se manifeste sobre a legitimação do requerente" (RT 436:426). Apesar da lei determinar a manifestação prévia do Ministério Público acerca da admissibilidade, a falta de tal procedimento não acarreta a nulidade do processo (RT 552:308, 627:278, 417:270), pois mesmo com a oposição do Parquet, o juiz pode deferir, desde que demonstrada a legitimidade do requerente.

            Após o parecer do Ministério Público sobre a admissão do assistente, tenha ele se manifestado em prol ou contra, compete ao juiz despachar admitindo ou não o assistente, devendo constar dos autos o pedido e a decisão (art. 273, CPP). O STF, entretanto, já decidiu que a falta do despacho não acarreta nulidade quando iniludível a legitimação para intervir (3).

            Contra a decisão que admitir ou não o pedido de assistência não cabe recurso algum, consoante dispõe o art. 273, do CPP. Na jurisprudência, entretanto, vê-se orientação no sentido de caber mandado de segurança (RT 150:524, 577:386) ou correição parcial (RT 505:392, 618:294). Admitido o assistente, será ele intimado de todos os atos do processo, por intermédio de seu procurador. Na hipótese de não comparecer, sem motivo de força maior devidamente comprovado, o processo prosseguirá, a partir de então independentemente de nova intimação (CPP, art. 271, §2º).

            Nos processos de crimes sujeitos ao julgamento pelo Tribunal do Júri, o assistente deverá requerer sua admissão até três dias antes da sessão de julgamento (art. 447, CPP). Todavia, já se tem decidido que a admissão do ofendido fora do prazo legal, embora irregular, não gera nulidade, sequer relativa (RJTJRGS 57:14).

            Este é, em rápidas pinceladas, um apanhado do instituto da assistência, tanto na lei processual penal quanto na jurisprudência.

2- Novo entendimento: limitação das faculdades postulatórias do assistente

            Na minha opinião, o instituto da assistência deve ser encarado com alguns temperamentos face aos termos terminantes do art. 129, inc. I, da CF: "São funções institucionais do Ministério Público: I- promover, privativamente, a acão penal pública, na forma da lei". À primeira vista pode-se pensar que a expressão "nos termos da lei" signifique algum óbice ou limitação ao exercício da função, quando, na verdade, significa o procedimento que deve ser seguido, é o como promover a ação. Não bastasse a clara dicção do inc. I do art. 129, o §1º do mesmo dispositivo afirma: "A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei". Cuida esse parágrafo da legitimação concorrente para as ações civis, a confirmar que a promoção da ação penal pública é de legitimação privativa. E arremata o §2º do mesmo dispositivo: "as funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira", o que equivale dizer que suas funções privativas não podem ser exercidas por terceiros (4), ainda que minimamente.

            É de se considerar ainda, que o interesse do bem público geral do Ministério Público no exercício da ação penal pública não coincide com o interesse secundário do ofendido/assistente. Enquanto este busca a condenação criminal e reparação do dano a todo custo, aquele busca, imparcialmente, a aplicação da lei, tanto que pode vir a pedir a absolvição do acusado, se assim resultar do conjunto probatório.

            No processo penal o MP é parte no sentido formal porque não tem qualquer interesse próprio, particular, a defender. O interesse atribuído ao MP pelo ordenamento jurídico é público, de todos e de cada um. A preocupação do Parquet é com o devido processo legal e com a verdade, pois não interessa à comunidade a condenação de pessoa inocente. Diferentemente do assistente que é sabidamente parcial, que intervém na ação penal por causa de seu interesse civil na reparação decorrente do ato ilícito. E também, a experiência nos diz, busca uma forma de vingança legalizada.

            No processo penal, já está assentado, o Ministério Público é apenas parte formal, pois deve agir com absoluta isenção, entregue à verdade que resultar dos autos e de sua consciência, conforme posicionamento já firmado pelo STJ: "O MP, como instituição, não é acusador, no sentido vulgar do termo. Tecnicamente, por imperativo constitucional, faz a imputação, para averiguar, presentes o contraditório e a defesa plena, o fato, com todas as circunstâncias. Juridicamente, não está jamais contra o réu. Ao contrário, confluem interesses, a fim de evitar o erro judiciário. Busca a verdade real, a decisão justa. Em consequência, evidencia-se a legitimidade para recorrer em favor do réu" (5).

            Como conciliar então o interesse do MP com o do assistente? Impossível, a solução é podar o instituto e amoldá-lo à letra e ao espírito da Constituição.

            O instituto da assistência da acusação entre nós foi adotado na década de 40, em plena vigência da Carta de 1937, que praticamente extirpou o Ministério Público de seu texto, ou, pelo menos, não lhe fez menção como instituição do Estado (como já vimos). A assistência tem como razão de ser, a desconfiança no Ministério Público, o temor da parcialidade e favoritismo no monopólio do exercício da ação penal, a preocupação pelas possíveis influências do Poder Executivo. Cremos que atualmente tais preocupações não têm razão de ser, diante da robustez teórica do MP, sua atuação imparcial, autonomia e independência funcional. Só se justificaria como forma de possibilitar a participação do ofendido na distribuição da justiça criminal e para isso não é necessário o arcabouço interventivo e invasor montado pela lei processual penal, basta que funcione como auxiliar do MP.

            Com a CF/88, o MP foi gizado com novas tintas, inclusive, cabendo-lhe, privativamente, promover a ação penal pública. Ora, não é plausível que uma Constituição seja interpretada à luz de leis, inclusive anteriores. O correto, hermeneuticamente falando, é a interpretação das leis sob o lume da Constituição. Assim, soa cristalino que não só o instituto da assistência, como outros institutos jurídicos criados em tempos recuados, devam ser repensados e amoldados ao espírito constitucional, extirpando-se dispositivos legais necrosados por afronta ao texto maior da Constituição. E isso é necessário não só para depurar as atribuições do MP, como também, para criar o indispensável sentimento da supremacia constitucional.

3- Conclusão

            O que defendemos não é a extinção pura e simples da assistência, mormente, em tempos em que se quer democratizar a Justiça com a participação popular, mas sua limitação ao nível do razoável. Ao assistente não deve ser dada a iniciativa de modificar, ampliar ou corrigir a atividade do titular da ação penal. Deve haver uma limitação das faculdades postulatórias do assistente. Neste sentido, entendemos que deve ser considerado como não recepcionado pelo texto constitucional as disposições do Código de Processo Penal que atribuem ao assistente a função de "requerer perguntas às testemunhas", "aditar o libelo e os articulados", "participar do debate oral" e "arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público" (art. 271). A atividade do assistente, doravante, restringir-se-ia a ser meramente "formulatória" ou "assistencial", sem qualquer faculdade postulatória, como se entrever no "caput" do art. 271: "propor meios de prova". Enfim, coadjuvar e não ser protagonista do entrevero processual, usurpando por via indireta uma função institucional e privativa do Ministério Público. Nenhuma interferência direta do assistente, que influa no curso da ação empreendida pelo Ministério Público, deve ser aceita, por manifestamente inconstitucional.

Bibliografia

            ESPÍNOLA, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, V. 3, Borsoi, 4ª ed., 1957, Rio de Janeiro.

            HOLANDA CAVALCANTI, Renato Dantas de. Ministério Público: Órgão Acusador?, RT 675:331.

            MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime jurídico do Ministério Público, Ed. Saraiva, 2ª ed., 1995;

            REIS, Alberto dos. Ministério Público, Internet, http://www.smmp.pt/Público.htm.

            RODRIGUES, João Gaspar. O mito da natureza judiciarizada do Ministério Público, Revista da Associação Paulista do Ministério Público 18:57; O Ministério Público como Quarto Poder, Revista Forense 346/70-90; Tóxicos: abordagem crítica da Lei n. 6.368/76, Ed. Bookseller, Campinas, 2001.

            ZIYADE, Fátima. O assistente da acusação, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1993.

Notas

            1. Rec. n. 504.669-5, 5º CC, julgado em 21.6.88, Rel. Ribeiro dos Santos, RT 632:312.

            2. Não há necessidade de se ouvir a defesa. Todavia, constitui cerceamento de defesa a não-intimação da defesa do despacho que admitiu a assistência.

            3. Ap. Ordinária n. 7-6, julgada em 7.12.89, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, RT 652:367.

            4. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, p. 210.

            5. Resp 10.715-0-PR-, 6ª Turma, 07.04.92, Rel. Min. Vicente Cernicchiaro, DJU 04.05.92, p. 5899, In: RBCC 20:369.


Referência  Biográfica

João Gaspar Rodrigues – Promotor de Justiça no Amazonas

E-mail: gaspar@argo.com.br

Princípios administrativos aplicados à licitação pública

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* Felipe Luiz Machado Barros –

Resumo

             Esta monografia trata dos princípios administrativos aplicados à licitação pública, à luz da doutrina e jurisprudência majoritárias.

            O Brasil, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, iniciou sua escalada para uma tentativa de melhoria da Administração Pública, trazendo expressamente em seu art. 37, caput, diversos princípios, quais sejam, o da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, publicidade e eficiência (1), uns já anteriormente positivados, e outros não, todos, no entanto, objetivando incutir na mentalidade do administrador público, a seriedade com que deve ser tratado o Erário.

            A licitação, portanto, nessa linha de implementação de uma nova política administrativa, sem sombra de dúvidas, constitui um dos principais instrumentos de aplicação do dinheiro público, à medida que possibilita à Administração a escolha, para fins de contratação, da proposta mais vantajosa, sempre colocando em condições de igualdade os candidatos que do certame queiram participar.

            Nessa linha de pensamento, de primordial relevância será o estudo dos princípios administrativos aplicáveis a esta modalidade de procedimento administrativo, o qual, como veremos, possui seus próprios princípios, que, no mais das vezes, constituem desdobramentos de outros preexistentes, sendo este o objetivo da monografia em tela.

Introdução: Princípios e normas – Uma distinção necessária

            Em uma República Federativa como é o Brasil, a Constituição é a base de todo o arcabouço legislativo e, por que não dizer, principiológico formador de nossa teia ou sistema jurídico. Desta feita, nesse mesmo sentido leciona Rodrigo César Rebello Pinho que "a base jurídica da Federação é uma Constituição e não um tratado." (2)

            Assumindo esta República a característica de Estado Democrático e de Direito, sua Constituição passa a ter papel relevantíssimo para a formação político-administrativa do país, uma vez que servirá a Carta Maior como instrumento de arrimo para todos os atos que venham a ser praticados pelos governantes, seja determinando previamente o modus operandi do administrador da coisa pública, ou mesmo explicitando como aquele não deve agir (non facere), em um verdadeiro sistema de freios e contrapesos (denominado como check and balances, no sistema norte-americano).

            Assim, no corpo de nossa Constituição, encontraremos uma série de princípios e normas que servirão não apenas para fixarmos nossas metas a serem alcançadas no plano do dever-ser, mas também para podermos fiscalizar os atos praticados por aqueles encarregados, entre outros misteres, pela administração da res pública. Nesse passo, concentrar-se-á este trabalho na dissecação de alguns princípios de Direito Administrativo voltados para uma das mais importantes atividades do gestor público: a licitação.

            Antes do desenvolvimento, porém, importante se faz a tomada de algumas considerações preambulares. A primeira, relativa à importante distinção entre princípios e normas. As normas, segundo José Afonso da Silva, "são preceitos que tutelam situações subjetivas de vantagem ou de vínculo, ou seja, reconhecem, por um lado, a pessoas ou entidades a faculdade de realizar certos interesses por ato próprio ou exigindo ação ou abstenção de outrem, e, por outro lado, vinculam pessoas ou entidades à obrigação de submeter-se às exigências de realizar uma prestação, ação ou abstenção em favor de outrem." (3) Já os princípios são, em sentido amplo, a origem das normas. São, segundo ainda J. Afonso da Silva, "ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas." (4) Na acepção lógica da palavra, arremata Miguel Reale que "(…) os princípios são ‘verdades fundantes’ de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades de pesquisa e da praxis." (5)

            A segunda consideração que apriorísticamente necessita ser aqui elucidada é conseqüência direta dos conceitos acima transpostos de princípios e normas. Diante do exposto, podemos dizer que em nossa Constituição encontraremos tanto princípios, como normas. Os princípios, quando consubstanciados em verbo constitucional, terão o status de normas-princípios. Já os princípios que, pelo menos diretamente, não estiverem relacionados em alguma norma constitucional, deverão ser subentendidos como parte do sistema (princípios não sensíveis), sob pena de quebra de sua harmonia e surgimento de situações desproporcionais (6).

            Daí, fácil é se notar que a distinção acima apresentada entre normas e princípios possui grandes conseqüências de ordem prática, não se redundando apenas em mera discussão acadêmica. Por isso é que entendemos desnecessária a inclusão, como o faz freqüentemente o legislador, de diversas normas em nosso quadro constitucional, via de regra, encerrando princípios já bastante conhecidos, apenas com o intuito de conferir positividade a determinadas exigências que, se observada com atenção a mens legem constitucional, de pequeníssimo valia é tal atividade legislativa.

            Exemplo do que no parágrafo anterior se disse é o trazido pela Emenda Constitucional nº 19, a qual incluiu o princípio da eficiência como norma-princípio atinente à Administração Pública. Pergunta-se, então: seria necessária tal inclusão pelo legislador? Alguém, dentro de suas faculdades, acharia proporcional que algum gestor do erário público atuasse de outra maneira que não pautado em critérios de eficiência e moralidade?

            São estes questionamentos que servem para demonstrar a importância do estudo da principiologia jurídica, sob a ótica da primazia dos preceitos básicos que a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu arquétipo. As normas são de importância ímpar em nosso ordenamento jurídico-positivista, possuindo os princípios, contudo, missão superior, que é a de engendrar o sistema de normas, seja oferecendo subsídios para a complementação das leis, seja repugnando normas espúrias, de constitucionalidade duvidosa.

            Nesse intuito de ressaltar a importância dos princípios, portanto, é que será desenvolvida a presente monografia, voltada exclusivamente para a análise daqueles respeitantes à Administração Pública, mais especificamente no que tange à atividade licitatória, com fulcro na jurisprudência e doutrina atuais.

1. Princípios administrativos aplicados à licitação pública

            1.1.Conceito de licitação

            Não há como se falar de princípios administrativos concernentes à licitação pública sem que antes não se efetue uma correta conceituação do que seja este procedimento administrativo.

            Segundo José dos Santos Carvalho Filho, licitação é "o procedimento administrativo vinculado por meio do qual os entes da Administração Pública e aqueles por ela controlados selecionam a melhor proposta entre as oferecidas pelos vários interessados, com dois objetivos – a celebração de contrato, ou a obtenção do melhor trabalho técnico, artístico ou científico." (7)

            Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, citando José Roberto Dromi, trata-se de "procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se sujeitam às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração do contrato." (8)

            Os dois conceitos apresentam traços semelhantes, demonstrando ambos diversas características deste procedimento complexo que é a licitação. Trata-se, portanto, da forma mais equânime que encontrou o Estado em contratar, de maneira sempre a buscar a melhor proposta para a Administração Pública.

            Encontra-se a licitação prevista no art. 37, XXI da Constituição Federal, que assim dispõe:

            "XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações."

            Em termos de legislação infraconstitucional, em nível federal (9), temos a Lei nº 8.666/93, com as alterações produzidas pelas Leis nºs 8.883/94 e 9.648/98. Além destas, temos também a Lei nº 8.987/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da CF (Lei das Concessões), e a Lei nº 9.074/95, que estabelece normas para a outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos.

            A própria Lei nº 8.666/93, em seu art. 3º, caput, tratou de conceituar licitação, em conformidade com os conceitos doutrinários já vistos:

            "A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos."

            Como se percebe, a Constituição, em seu art. 37, XXI, alhures transcrito, assim como a Lei nº 8.666/93, trazem, em seu teor, os princípios norteadores da atividade exercida pelos administradores durante o certame público. O exame da validade ou invalidade dos atos praticados durante o processo de licitação, por diversas vezes, passará antes pela análise à luz destes princípios, enumerados e divididos por José dos Santos Carvalho Filho em princípios básicos (princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório e do julgamento objetivo) e correlatos (princípios da competitividade, da indistinção, da inalterabilidade do edital, do sigilo das propostas, do formalismo procedimental, da vedação à oferta de vantagens e da obrigatoriedade), sobre os quais passar-se-á agora a uma breve explanação.

            1.2.Princípio da legalidade

            Disciplina a nossa Constituição, em seu art. 5º, II, que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei."

            Trata-se, in casu, de norma-princípio voltada exclusivamente para o particular, recebendo a denominação de princípio da autonomia da vontade. Ao particular, como visto, é possível fazer ou deixar de fazer tudo aquilo que a lei não vedar. Se não há lei proibitiva, portanto, permite-se qualquer forma de atuação, positiva ou negativa, sob pena de, aquele que interferir, responder, no mínimo, por constrangimento ilegal.

            Para a Administração Pública tal regra inexiste, por razões óbvias. O administrador ou gestor público está jungido à letra da lei para poder atuar. Seu facere ou non facere decorre da vontade expressa do Estado (com quem os agentes públicos se confundem, segundo a teoria da presentação de Pontes de Miranda), manifestada por lei. Nesse exato sentido é a lição de Celso Ribeiro Bastos:

            "Já quando se trata de analisar o modo de atuar das autoridades administrativas, não se pode fazer aplicação do mesmo princípio, segundo o qual tudo o que não for proibido é permitido. É que, com relação à Administração, não há princípio de liberdade nenhum a ser obedecido. É ela criada pela Constituição e pelas leis como mero instrumento de atuação e aplicação do ordenamento jurídico. Assim sendo, cumprirá melhor o seu papel quanto mais atrelada estiver à própria lei, cuja vontade deve sempre prevalecer." (10)

            Daí a razão pela qual o constituinte de 1988 achou por bem elencar expressamente o princípio ora sob comento em seu art. 37, caput:

            "Art. 37 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…)."

            Retirando-se tal princípio do campo da abstração e trazendo para a aplicação prática no caso da licitação, pode-se dizer que ao administrador cabe observar todas as etapas descritas em lei para a escolha da proposta mais vantajosa (ou mesmo dispensar a licitação, nos casos descritos no art. 24 da Lei nº 8.666/93). Se fôssemos comparar com o Direito Processual Civil, poderíamos afirmar que se trata de questão de respeito ao due process of law, onde a não observância de algum comando previsto em lei é capaz de gerar vícios até mesmo insanáveis (ou de nulidade absoluta).

            Desta feita, observada a ilegalidade do ato administrativo, ou, mais especificamente, de algum procedimento licitatório, há de ser o mesmo anulado. Nesse diapasão arremata Hely Lopes Meirelles, em ensinamento percuciente, que

            "Ato nulo é o que nasce afetado de vício insanável por ausência ou defeito substancial em seus elementos constitutivos, ou no procedimento formativo. A nulidade pode ser explícita ou virtual. É explícita quando a lei comina expressamente, indicando os vícios que lhe dão origem; é virtual quando a invalidade decorre da infrigência de princípios específicos do direito público, reconhecidos por interpretação das normas concernentes ao ato. Em qualquer destes casos, porém, o ato é ilegítimo ou ilegal e não produz qualquer efeito válido entre as partes, pela evidente razão de que não se pode adquirir direitos contra a lei." (11)

            Tanto podem proceder a anulação do ato administrativo o Administrador, quanto o Judiciário. Pode ainda o Administrador revogar seus próprios atos, por motivo de conveniência e oportunidade (mérito administrativo), não sendo tal desiderato conferido, contudo ao Judiciário, sendo-lhe pertinente a análise apenas da legalidade. Quanto ao tema, assim têm se fixado o entendimento dos Tribunais:

            "EMENTA: PROCESSO CIVIL. AÇÃO POPULAR. LIMITES DO JULGAMENTO. O exame judicial dos atos administrativos se dá sob o ponto de vista da respectiva legalidade e de sua eventual lesividade ao patrimônio público (Lei nº 4.717, de 1997, art. 2º), ou simplesmente da legalidade nos casos em que o prejuízo ao patrimônio público é presumido (Lei nº 4.717, de 1965, art. 4º); o julgamento sob o ângulo da conveniência do ato administrativo usurpa competência da Administração. Recurso Especial conhecido e provido."

            (STJ, REsp nº 100.237/RS, 2ª T., Rel. Min. Ari Pargendler, DJU 26.05.1997)

            Hodiernamente, por intermédio das Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal (STF), restou pacificada a questão:

            "STF 346: A Administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos."

            "STF 473: A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revoga-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial."

            Exemplificando o que acima se disse, insta nesse momento comentar-se situação levada até o conhecimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por intermédio do Recurso Especial nº 239.303/BA (DJU 15.05.2000), no qual reformou-se acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça da Bahia que, em sede de Mandado de Segurança, garantiu a reintegração dos impetrantes nos seus respectivos cargos, em certame cujo edital encontrava-se eivado de cláusulas ilegais, acarretando a conseqüente anulação do processo licitatório pela Administração Pública. O acórdão recorrido assim dispôs:

            "MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. ANULAÇÃO APÓS POSSE DOS NOMEADOS. AUSÊNCIA DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. INADMISSIBILIDADE. REINTEGRAÇÃO. CABIMENTO. RECURSO PROVIDO.

            Sem prévio procedimento administrativo, concurso público não pode ser anulado depois da posse dos nomeados.

            Tem direito à reintegração no cargo funcionário público ilegalmente exonerado."

            O STJ, por intermédio do voto do Ministro Jorge Scartezzini, citando Celso Antonio Bandeira de Mello, entendeu no vertente caso que:

            "Para a Administração o que fundamenta o ato invalidador é o dever de obediência à legalidade, o que implica obrigação de restaura-la quando violada. Para o Judiciário é o exercício mesmo de sua função de determinar o direito aplicável no caso concreto.

            O motivo da invalidação é a ilegitimidade do ato, ou da relação por ele gerada, que se tem que eliminar."

            Resultou do julgamento acima comentado ementa preciosa para o desate do estudo ora empreendido, transcrita adiante, in verbis:

            "ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – RECURSO ESPECIAL – MANDADO DE SEGURANÇA – CONCURSO PÚBLICO – EVIDÊNCIAS DE FRAUDE – ANULAÇÃO – DISSÍDIO PRETORIANO COMPROVADO E EXISTENTE (ART. 105, III, ‘C’, DA CF C/C ART. 255 E PARÁGRAFOS DO RISTJ) – INFRIGÊNCIA AO ART. 535, II DO CPC DESACOLHIDA – AUSÊNCIA DE OMISSÃO, OBSCURIDADE OU CONTRADIÇÃO.

            1 – Os Embargos Declaratórios têm natureza, prima facie, meramente integrativa, sendo raros os casos em que a doutrina e a jurisprudência aceitam o caráter infrigente. Logo, não há violação ao art. 535, II, do CPC, quando o Tribunal de origem, ao decidi-los, observou corretamente a inexistência de omissão, obscuridade ou contradição no acórdão embargado, posto tratar-se de matéria, somente naquela oportunidade, aventada.

            2 – A teor do art. 255 e parágrafos do RISTJ, para comprovação e apreciação da divergência jurisprudencial (art. 105, III, alínea ‘c’, da Constituição Federal), devem ser mencionadas e expostas as circunstâncias que identificam ou assemelham os casos confrontados, bem como juntadas cópias integrais de tais julgados ou citado repositório oficial de jurisprudência. O confronto e a menção ocorreram, o que leva ao conhecimento do recurso e à apreciação deste. Dissídio pretoriano existente entre o v. aresto guerreado e os paradigmas trazidos à colação.

            3 – Ante a evidência de fraude no Concurso Público, consoante farta documentação acostada aos autos (07 volumes em apenso), bem examinadas na r. sentença monocrática, deve a Administração Pública anula-lo, em observância aos princípios da moralidade, legalidade e impessoalidade dos atos administrativos. Vislumbrada a lesão ao erário público, não podendo esses atos serem convalidados, diante da situação irregular dos candidatos aprovados e nomeados, o novo Chefe do Executivo Municipal tem o poder-dever de revê-los, posto que se o agente que o praticou buscou uma finalidade alheia ao interesse público, diversa da prescrita em lei, usando de seus poderes em benefício próprio ou de terceiros, tais atos são inválidos, uma vez que eivados de vícios de nulidade desde o nascedouro, não acarretando qualquer direito a seus beneficiários.

            4 – Precedentes (RMS nºs 52/MA e 7.688/RS, ambos desta Corte, e no RE nº 85.557, do STF).

            5 – Recurso conhecido, consoante acima exposto, e, neste aspecto, provido para, reformando o v. acórdão a quo, restabelecer, em todos os seus termos, a r. sentença monocrática que julgou improcedente o pedido dos impetrantes." grifo nosso

            Como conseqüência da anulação de licitação, por motivo de ilegalidade, estabelece a Lei nº 8.666/93, em seu art. 49, § 1º que não é gerado, em desfavor do Estado, o dever de indenizar. A única exceção a esta regra é no caso de a nulidade surgir apenas no contrato administrativo (assinado após a adjudicação do objeto ao vencedor do certame), ocasião que não exonerará a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que houver executado até a data em que a anulação for declarada (Lei nº 8.666/93, art. 59, parágrafo único).

            Correlacionando-se com o princípio básico da legalidade, entendo ser o princípio da obrigatoriedade da licitação corolário daquele. O princípio da obrigatoriedade encontra-se previsto no inciso XXI do art. 37 da CF (como acima se transcreveu), devendo as exceções serem dispostas em lei (v.g., as hipóteses de dispensa do certame público previstas no art. 24 da Lei nº 8.666/93). Assim, caso venha o agente público a ferir esta regra, os atos praticados, ou mesmo toda a licitação, estarão fadados à fulminação em virtude do descumprimento de norma-princípio constitucional.

            Para exemplificar o princípio em tela, cabe pincelar-se no presente trabalho interessante lide consubstanciada em recente julgamento, pelo STJ, do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 5.532/PR (DJU 23.04.2001), Relator Min. Francisco Peçanha Martins, onde a administração, em ofensa ao princípio da obrigatoriedade, pleiteava a contratação, sem concurso, de advogado para atuar em nome do Estado perante a Justiça Trabalhista, mesmo possuindo este ente federativo Procuradores concursados em seu quadro de servidores, restando assim ementado o aresto citado:

            "EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. AUSÊNCIA DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. SUPERINTENDÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO DOS PORTOS DE PARANAGUÁ E ANTONINA (APPA). CONTRATAÇÃO DE ADVOGADO SEM LICITAÇÃO. PRÉVIA AUTORIZAÇÃO GOVERNAMENTAL. INEXISTÊNCIA.

            1. Direito líquido e certo é o que se manifesta de plano, através de prova pré-constituída repelindo a dilação probatória.

            2. Ato governamental posterior não constitui prévia autorização à contratação de advogado sem a necessária licitação.

            3. Por outro lado, não convencem os argumentos expendidos pelo recorrente quanto à singularidade dos serviços profissionais a serem executados, nem que não pudessem ser atendidos pelos integrantes do serviço jurídico do APPA."

            Outra situação que chama a atenção, dada a sua ocorrência em diversos Municípios e Estados brasileiros, é o da necessidade de licitação para a exploração do serviço de transporte coletivo de passageiros, que, não raras vezes, é concedido aos particulares por mera autorização, sem critério algum senão o do interesse político. O Judiciário, atento a isto, vem repugnando tais ilegalidades, em respeito ao princípio da obrigatoriedade:

            "EMENTA: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONVERSÃO DE AUTORIZAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO DE TRANSPORTE COLETIVO DE PASSAGEIROS EM CONTRATO DE CONCESSÃO. INCONSTITUCIONALIDADE.

            I – Ofende o art. 37, inciso XXI da Constituição Federal de 1988 a concessão de serviço público sem prévio procedimento licitatório, ainda que a contratada já prestasse atividade delegada pelo Poder Público sob a forma de autorização.

            II – O deferimento de prolongamento de trecho intinerário de linha rodoviária intermunicipal que afete a esfera patrimonial de outra empresa que o explorava – com exclusividade e por prazo determinado, antes garantida pelo Poder Público -, imprescinde da oitiva da parte interessada, não podendo ser procedido como forma de penalização da empresa sem instauração de procedimento administrativo que apure a ineficiência ou má prestação do serviço delegado."

            (STJ, ROMS nº 6.918/TO, 2ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, DJU 15.05.2000)

            E ainda:

            "EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO POR VIOLAÇÃO AO ART. 535, II, DO CPC. OMISSÃO INEXISTENTE. OFENSA A DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL NÃO DEMONSTRADO.

            1 – O transporte coletivo rodoviário intermunicipal é serviço público cujo provimento e estruturação competem ao Poder Público por meio de outorga de concessão ou permissão de serviço público, imprescindível a licitação.

            2 – Não basta a alegação da violação à Lei Federal. Necessária sua demonstração.

            3 – Descabe ao então embargante limitar-se a indicar o número de folhas do processo onde supõe encontrar-se a matéria não abordada pelo acórdão recorrido, uma vez que é necessário sejam apontadas as razões de fato e de direito de seu inconformismo e o ponto que entende omisso.

            4 – Agravo regimental improvido."

            (STJ, AgRegAI nº 310.211/SC, 1ª T., Rel. Min. Francisco Falcão, DJU 02.04.2001)

            1.3.Princípio da moralidade

            Como dito em notas introdutórias, é entendimento desse autor que este princípio, para ser exigível, não precisaria ser transcrito em norma constitucional. É que a moralidade deve ser vista como atributo ínsito e necessário à atuação de qualquer pessoa que lide com verba pública. A lei não faz nascer a moral; esta preexiste e é inerente ao caráter de cada um de nós. Contudo, até se entende essa necessidade do constituinte, diante do quadro político brasileiro, sempre às voltas com escândalos envolvendo o Erário Público. O engraçado é que muitos dos que aprovaram a Constituição, e que, por via de conseqüência, contribuíram para a inclusão em texto constitucional do princípio da moralidade, por vezes são pegos em situações vexatórias e escusas em flagrante agressão à Carta Magna.

            Quem nos dá uma idéia bastante clara do que seja o princípio in examine é Alexandre de Moraes, para quem "pelo princípio da moralidade administrativa, não bastará ao administrador o estrito cumprimento da estrita legalidade, devendo ele, no exercício de sua função pública, respeitar os princípios éticos de razoabilidade e justiça, pois a moralidade constitui, a partir da Constituição de 1988, pressuposto de validade de todo ato da administração pública." (12)

            Desta feita, caso venha o Administrador Público a ferir o referido princípio, estará o ato por ele praticado sujeito à anulação. Nesse sentido o seguinte julgado do STJ, que manteve decisão recorrida denegatória de Mandado de Segurança interposto por candidato desclassificado de certame público por possuir, em seu quadro de pessoal, dirigente do órgão ou entidade contratante:

            "EMENTA: ADMINISTRATIVO – LICITAÇÃO – DESCLASSIFICAÇÃO – EMPRESA – SERVIDOR LICENCIADO – ÓRGÃO CONTRATANTE.

            Não pode participar de procedimento licitatório, a empresa que possuir, em seu quadro de pessoal, servidor ou dirigente do órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação (Lei nº 8.666/93, artigo 9º, inciso III).

            O fato de estar o servidor licenciado, à época do certame, não ilide a aplicação do referido preceito legal, eis que não deixa de ser funcionário o servidor em gozo de licença.

            Recurso improvido."

            (STJ, REsp nº 254.115/SP, 1ª T., Rel. Min. Garcia Vieira, DJU 14.08.2000)

            1.4.Princípio da impessoalidade

            Trata-se esse princípio, na verdade, de verdadeiro corolário do princípio da legalidade. Sua observância será de primordial valia quando o ato visado for de ordem discricionária. Nesses é que ocorre a maior probabilidade de o administrador incorrer em arbitrariedade, abusando dos vagos conceitos de conveniência e oportunidade.

            Para Celso Ribeiro Bastos, "toda vez que o administrador pratica algum entorce na legislação para abranger uma situação por ela não colhida ou para deixar de abarcar uma outra naturalmente inclusa no modelo legal, a Administração está se desviando da trilha da legalidade." (13) É neste desvio, portanto, que verificaremos, no mais das vezes, a impessoalidade na conduta do gestor público.

            O princípio da impessoalidade já foi alvo de abordagem por parte do STJ, que manifestou-se da seguinte forma:

            "EMENTA: ADMINISTRATIVO – CONCURSO PÚBLICO. JUIZ SUBSTITUTO – ESPÍRITO SANTO – EDITAIS NS. 001/97 E 009/97. ALTERAÇÃO DE CRITÉRIO APÓS A REALIZAÇÃO DA PRIMEIRA PROVA. AUSÊNCIA DE HOMOLOGAÇÃO PELO TRIBUNAL PLENO.

            1. A alteração do critério de cálculo para apuração da média final, nas condições descritas, implica em afronta aos princípios da moralidade administrativa e da impessoalidade, impondo correção via Mandado de Segurança.

            2. Precedente da 5ª Turma.

            3. Recurso a que se dá provimento para conceder a segurança."

            (STJ, ROMS nº 10.980, 5ª T., Rel. Min. Edson Vidigal, DJU 21.02.2000)

            Em idêntico sentido:

            "EMENTA: ADMNISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. MÉDIA MÍNIMA EXIGIDA. ALTERAÇÃO POSTERIOR À IDENTIFICAÇÃO DAS PROVAS. PRINCÍPIOS DA MORALIDADE E IMPESSOALIDADE. CF/88, ART. 37. PROVIMENTO 1/93 DO CONSELHO DA MAGISTRATURA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.

            1. Publicado o edital, lei do concurso, e identificadas as provas, a alteração da média, ainda que para diminuir a exigência mínima, fere os princípios da moralidade e da impessoalidade que devem presidir a edição dos atos administrativos.

            2.Recurso não provido."

            (STJ, ROMS 5437/RJ, 5ª T., Rel. Min. Edson Vidigal, DJU 10.05.1999)

            E por fim:

            "EMENTA: ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. TELEFONIA CELULAR. LEGALIDADE.

            1. No processo licitatório a Comissão está subordinada ao princípio de que os seus julgamentos são de natureza objetiva, vinculados aos documentos apresentados pelos licitantes e subordinados a critérios de rigorosa imparcialidade.

            2. O Judiciário do final do século XX, mais do que o Judiciário do anos que já se passaram, encontra-se voltado para fenômenos que estão alterando o atual ordenamento jurídico brasileiro, onde a vontade dos que atuam como agentes públicos há de ser subordinada, com mais intensidade, à lei interpretada sua função de valorizar os direitos subjetivos dos cidadãos e das entidades coletivas que se envolvem com serviços concedidos ou permitidos a serem prestados à sociedade. Não deve ser, portanto, ancoradouro para prestigiar desvios comportamentais que, por via de atos administrativos, importem em distorção absoluta da realidade.

            3. Posição da Comissão de Licitação, apoiada pela autoridade apontada como coatora, que entende existir uma terceira empresa envolvida em consórcio formado, sem qualquer prova documental existente nos autos. Ficção.

            4. Não há como se prestigiar, em um regime democrático, solução administrativa que acena para imposição da vontade pessoal do agente público e que se apresenta com desvirtuadora dos princípios da legalidade, da impessoalidade, da igualdade, da transparência e da verdade.

            5.Mandado de Segurança concedido, à unanimidade."

            (STJ, MS nº 5287/DF, 1ª S., Rel. Min. José Delgado, DJU 09.03.1998)

            1.5.Princípio da igualdade

            Princípio de extrema importância para a lisura da licitação pública, significa, segundo José dos Santos Carvalho Filho, "que todos os interessados em contratar com a Administração devem competir em igualdade de condições, sem que a nenhum se ofereça vantagem não extensiva a outro." (14)

            E a própria Lei das Licitações traz em seu bojo dispositivos que vedam a prática de atos atentatórios à igualdade entre os competidores, à medida em que veda aos agentes públicos, "admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato" (art. 3º, § 1º, I), ou mesmo estabeleça "tratamento diferenciado de natureza comercial, legal, trabalhista, previdenciária ou qualquer outra, entre empresas brasileiras e estrangeiras" (art. 3º, § 1º, II).

            Os dois incisos acima transcritos encerram, segundo classificação dada por Carvalho Filho, os princípios correlatos, respectivamente, da competitividade e da indistinção.

            A fim de ilustrar a explanação acerca desses princípios, mister se faz observar como vêm decidindo nossos Tribunais, conforme decisões adiante expostas, in litteris:

            "EMENTA: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONTRA DECISÃO A QUO PROFERIDA EM AÇÃO CAUTELAR INOMINADA CONCESSIVA DE LIMINAR SUSPENDENDO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. A VEDAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO DE CANDIDATOS QUE LITIGAM COM O PROMOTOR DO CERTAME LICITATÓRIO, CONTIDA EM EDITAL, ALÉM DE NÃO ENCONTRAR AMPARO NA LEI 8.666/93, E SUAS ALTERAÇÕES, AFRONTA O PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENTRE OS LICITANTES, PREVISTO NO PARÁGRAFO 1º DO ART. 3º, DA REFERIDA LEI, QUE VEDA QUALQUER DISCRIMINAÇÃO ENTRE OS PARTICIPANTES DA LICITAÇÃO, COMO TAMBÉM O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA. O PERIGO DA DEMORA RESIDE NA PERDA DO DIREITO DO LICITANTE EM CONTINUAR NO CERTAME, ATÉ O SEU FINAL, CAUSANDO-LHE PREJUÍZOS IRREPARÁVEIS. PRESENTES O FUMUS BONI IURIS E O PERICULUM IN MORA ENSEJADORES DA MEDIDA LIMINAR CONCEDIDA. DECISÃO A QUO QUE MERECE SER MANTIDA. AGRAVO CONHECIDO E IMPROVIDO."

            (TJRN, AI nº 99.001551-3, 2ª Câm.Cív., Rel. Des. Rafael Godeiro)

            Interessante nesse momento se faz tecer algumas considerações a respeito da importante distinção que deve ser feita entre exigência da qualificação técnica, feita pela Lei de Licitações em seu art. 30, § 1º e incisos, e a necessidade que a Administração possui de procurar aqueles que prestem os serviços contratados da maneira mais eficiente possível, respeitando-se, desta feita, a Constituição.

            Nesse sentido, pertinente se faz, para uma melhor compreensão, a citação do julgado seguinte:

            "ADMINISTRATIVO. PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. ATESTADO TÉCNICO. COMPROVAÇÃO. AUTORIA. EMPRESA. LEGALIDADE.

            Quando em procedimento licitatório, exige-se comprovação, em nome da empresa, não está sendo violado o art. 30, § 1º, II, caput, da Lei 8.666/93.

            É de vital importância, no trato da coisa pública, a permanente perseguição ao binômio qualidade eficiência, objetivando, não só garantir a segurança jurídica do contrato, mas também a consideração de certos fatores que integram a finalidade das licitações, máxime em se tratando daquelas de grande complexidade e de vulto financeiro tamanho que imponha ao administrador a elaboração de dispositivos, sempre em atenção à pedra de toque do ato administrativo – a lei -, mas com dispositivos que busquem resguardar a administração de aventureiros ou de licitantes de competência estrutural, administrativa e organizacional duvidosa.

            Recurso provido."

            (STJ, REsp. nº 144.750/SP, 1ª T., Rel. Min. Francisco Falcão, DJU 25.09.2000)

            Seguindo a mesma linha de raciocínio do acórdão anterior, assim já decidiu o STJ:

            "EMENTA: ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 30, II, § 1º, DA LEI Nº 8.666/93.

            1 – Não se comete violação ao art. 30, II, da Lei nº 8.666/93, quando, em procedimento licitatório, exige-se comprovação, em nome da empresa proponente, de atestados técnicos emitidos por operadores de telefonia no Brasil de execução, no País, em qualquer tempo, de serviço de implantação de cabos telefônicos classe ‘L’ e ‘C’ em período consecutivo de 24 meses, no volume mínimo de 60.000 HXh, devidamente certificados pela entidade profissional competente.

            2 – ‘O exame do disposto no art. 37, XXI, da Constituição Federal, em sua parte final, referente a ‘exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações’ revela que o propósito aí objetivado é oferecer iguais oportunidades de contratação com o Poder Público, não a todo e qualquer interessado, indiscriminadamente, mas, sim, apenas a quem possa evidenciar que efetivamente dispõe de condições para executar aquilo a que se propõe’ (Adilson Dallari).

            3 – Mandado de segurança denegado em primeiro e segundo grau.

            4 – Recurso especial improvido."

            (STJ, REsp nº 172.232/SP, 1ª T., Rel. Min. José Delgado, DJU 21.09.1998)

            Além dos princípios correlatos da competitividade e da indistinção, o princípio da igualdade origina um outro princípio, ainda dentro da classificação trazida por Carvalho Filho. Trata-se do princípio correlato do sigilo das propostas, identicamente afeto também ao princípio da probidade administrativa. Sobre o princípio do sigilo das propostas, localizado no art. 43, § 1º, da Lei nº 8.666/93, vide comentários ao princípio da probidade administrativa (item 1.7).

            1.6.Princípio da publicidade

            A publicidade dos atos da Administração, no campo da licitação pública, é de tremenda importância para os concorrentes, pois dá-se a eles a certeza do que está ocorrendo nas diversas etapas do processo, bem como os possibilita de elaborar seus planejamentos e recursos administrativos em caso de descontentamento com alguma decisão que venha a ser tomada pela comissão de licitação, ou mesmo se houver alguma irregularidade ou ilegalidade no certame. Por outro lado, confere à Administração a certeza de que a competitividade restará garantida, para a seleção da proposta mais vantajosa.

            A Lei nº 8.666/93, em seu art. 21, prevê a obrigatoriedade da publicação dos avisos contendo os resumos dos editais das concorrências e das tomadas de preços, dos concursos e dos leilões, mesmo que sejam realizados no local da repartição interessada, por pelo menos uma vez, no Diário Oficial da União, quando se tratar de licitação feita por órgão ou entidade da Administração Pública Federal, no Diário Oficial do Estado, ou do Distrito Federal, quando se tratar, respectivamente, de licitação feita por órgão ou entidade da Administração Pública Estadual ou Municipal, ou do Distrito Federal, bem como em jornal de grande circulação no Estado e, também, se houver, em jornal de circulação no Município ou na região onde será realizada a obra, prestado o serviço, fornecido, alienado ou alugado o bem, podendo, ainda, a Administração, conforme o vulto da licitação (15), utilizar-se de outros meios de divulgação para ampliar a área de competição.

            Dispõe também, em seu art. 3º, § 3º que "A licitação não será sigilosa, sendo públicos e acessíveis ao público os atos de seu procedimento, salvo quanto ao conteúdo das propostas, até a respectiva abertura."

            Quanto a este princípio, Hely Lopes Meirelles comenta que, "como princípio de administração pública, abrange toda atuação estatal, não só sob o aspecto de divulgação oficial de seus atos como também de propiciação de conhecimento da conduta interna de seus agentes. Essa publicidade atinge, assim, os atos concluídos e em formação, os processos em andamento, os pareceres dos órgãos técnicos e jurídicos, os despachos intermediários e finais, as atas de julgamentos das licitações e os contratos em quaisquer interessados, bem como os comprovantes de despesas e as prestações de contas submetidas aos órgãos competentes (…) Quanto à publicação no órgão oficial, só é exigida a do ato concluído ou de determinadas fases de certos procedimentos administrativos como ocorre nas concorrências, em que geralmente as normas pertinentes impõem a publicação da convocação dos interessados, da habilitação, da adjudicação e do contrato, na íntegra ou resumidamente." (16)

            1.7.Princípio da probidade administrativa

            Conforme os ensinamentos de Carvalho Filho, "a probidade tem o sentido de honestidade, boa-fé, moralidade por parte dos administradores. Na verdade, ‘o exercício honrado, honesto, probo da função pública leva à confiança que o cidadão comum deve ter em seus dirigentes’." (17)

            Ainda segundo aquele autor, "exige o princípio que o administrador atue com honestidade para com os licitantes, e sobretudo para com a própria Administração, e, evidentemente, concorra para que sua atividade esteja de fato voltada para o interesse administrativo, que é o de promover a seleção mais acertada possível." (18)

            Correlato ao princípio da probidade administrativa, no campo da licitação, é o princípio do sigilo das propostas, como dito no item 2.5. A própria Lei nº 8.666/93, em seu art. 43, § 1º, reza que "a abertura dos envelopes contendo a documentação para habilitação e as propostas será realizada sempre em ato público previamente designado, do qual se lavrará ata circunstanciada, assinada pelos licitantes presentes e pela Comissão."

            Visa este princípio a competitividade entre os concorrentes, bem como a manutenção da probidade durante o processo licitatório.

            Sua inobservância pode gerar infração também aos princípios da igualdade e legalidade. O STJ, em julgamento de Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 10404/RS (DJU 01.07.1999), assim decidiu:

            "EMENTA: ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. CONCORRÊNCIA. ATRASO NA ENTREGA DOS ENVELOPES CONTENDO PROPOSTAS. ALEGADA INFRIGÊNCIA AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. SUPOSTO RIGORISMO E FORMALISMO. IMPROVIMENTO DO RECURSO FACE À INEXISTÊNCIA DO DIREITO LÍQUIDO E CERTO.

            1 – A inobservância do princípio da razoabilidade não restou demonstrada. Existe, na licitação, predominância dos princípios da legalidade e igualdade (CF, art. 5º, caput, inc. II).

            2 – Inexistência de direito líquido e certo a amparar a pretensão da recorrente.

            3 – Recurso ordinário improvido."

            Em voto proferido no recurso acima mencionado, o Relator Min. José Delgado assim muito bem pontificou, mencionando expressamente a violação ao princípio do sigilo das propostas:

            "Admitir o pedido seria subverter todos os princípios básicos da licitação, não só o da igualdade entre os licitantes, mas, também, o do sigilo das propostas. Considere-se que os envelopes que contêm as propostas dos demais participantes já foram abertos, com o conhecimento de seus conteúdos, produzindo, conseqüentemente, os efeitos legais."

            Trata-se, portanto, de princípio indispensável.

            1.8.Princípio da vinculação ao instrumento convocatório

            Esta norma-princípio encontra-se disposta no art. 41, caput, da Lei nº 8.666/93: "A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada." O edital, nesse caso, torna-se lei entre as partes. Este mesmo princípio dá origem a outro que lhe é afeto, o da inalterabilidade do instrumento convocatório. De fato, a regra que se impõe é que, após publicado o edital, não deve mais a Administração promover-lhe alterações, salvo se assim o exigir o interesse público. Trata-se de garantia à moralidade e impessoalidade administrativa, bem como ao primado da segurança jurídica.

            Apesar de a Administração estar estritamente vinculada ao instrumento convocatório, pode a mesma alterar o seu teor, quando houver motivo superveniente de interesse público. Nesse sentido, relativizando este princípio, explica Diogenes Gasparini que:

            "(…) estabelecidas as regras de certa licitação, tornam-se elas inalteráveis durante todo o seu procedimento. Nada justifica qualquer alteração de momento ou pontual para atender esta ou aquela situação. Se, em razão do interesse público, alguma alteração for necessária, essa poderá ser promovida através de rerratificação do ato convocatório, reabrindo-se, por inteiro, o prazo de entrega dos envelopes 1 e 2 contendo, respectivamente, os documentos de habilitação e proposta. Assim retifica-se o que se quer corrigir e ratifica-se o que se quer manter. Se apenas essa modificação for insuficiente para corrigir os vícios de legalidade, mérito ou mesmo de redação, deve-se invalidá-lo e abrir novo procedimento." (19)

            A não vinculação do administrador aos estritos termos do edital, pode ser motivo para o Judiciário interferir (mediante ação movida pelos interessados, bem como pelo Ministério Público ou mesmo qualquer cidadão, pela Ação Popular), fazendo com que o desvio de conduta perpetrado seja anulado, restabelecendo-se a ordem no processo licitatório:

            "EMENTA: ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. TÉCNICO JUDICIÁRIO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. EDITAL. EXIGÊNCIA DE FORMAÇÃO EM DIREITO, ECONOMIA, CIÊNCIAS CONTÁBEIS OU ADMINISTRAÇÃO. CANDIDATO COM FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA. NÃO ADMISSIBILIDADE.

            1. O princípio da vinculação ao edital impede a pretensão de mudar-se qualquer exigência, dentre as quais a de formação superior específica para a área.

            2. Recurso a que se nega provimento."

            (STJ, ROMS nº 6.161/RJ, 5ª T., Rel. Min. Edson Vidigal, DJU 07.06.1999)

            Seguindo idêntica conclusão, o aresto adiante:

            "EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. EDITAL COMO INSTRUMENTO VINCULATÓRIO DAS PARTES. ALTERAÇÃO COM DESCUMPRIMENTO DA LEI. SEGURANÇA CONCEDIDA.

            É entendimento correntio na doutrina, como na jurisprudência, que o Edital, no procedimento licitatório, constitui lei entre as partes e é instrumento de validade dos atos praticados no curso da licitação.

            Ao descumprir normas editalícias, a Administração frustra a própria razão de ser da licitação e viola os princípios que direcionam a atividade administrativa, tais como: o da legalidade, da moralidade e da isonomia.

            A administração, segundo os ditames da lei, pode, no curso do procedimento, alterar as condições inseridas no instrumento convocatório, desde que, se houver reflexos nas propostas já formuladas, renove a publicação (do Edital) com igual prazo daquele inicialmente estabelecido, desservindo, para tal fim, meros avisos internos informadores da modificação.

            Se o Edital dispensou às empresas recém-criadas da apresentação do balanço de abertura, defeso era à Administração valer-se de meras irregularidades desse documento para inabilitar a proponente (impetrante que, antes, preenchia os requisitos da lei).

            Em face da lei brasileira, a elaboração e assinatura do balanço é atribuição de contador habilitado, dispensada a assinatura do Diretor da empresa respectiva.

            Segurança concedida. Decisão unânime."

            (STJ, MS nº 5.597/DF, 1ª S., Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU 01.06.1998)

            A exigência da vinculação do administrador (no caso das licitações, de suas respectivas comissões), não é absoluta, sob pena de quebra da competitividade. Com essa inteligência, vêm nossos Tribunais mitigando o princípio do formalismo procedimental, quando se tratar de mera irregularidade:

            "EMENTA: DIREITO PÚBLICO. MANDADO DE SEGURANÇA. PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. VINCULAÇÃO AO EDITAL. INTERPRETAÇÃO DAS CLÁUSULAS DO INSTRUMENTO CONVOCATÓRIO PELO JUDICIÁRIO, FIXANDO-SE O SENTIDO E O ALCANCE DE CADA UMA DELAS E ESCOIMANDO EXIGÊNCIAS DESNECESSÁRIAS E DE EXCESSIVO RIGOR PREJUDICIAIS AO INTERESSE PÚBLICO. POSSIBILIDADE. CABIMENTO DO MANDADO DE SEGURANÇA PARA ESSE FIM. DEFERIMENTO.

            O Edital, no sistema jurídico-constitucional vigente, constituindo lei entre as partes, é norma fundamental da concorrência, cujo objetivo é determinar o objeto da licitação, discriminar os direitos e obrigações dos intervenientes e o Poder Público e disciplinar o procedimento adequado ao estudo e julgamento das propostas.

            Consoante ensinam os juristas, o princípio da vinculação ao Edital não é absoluto, de tal forma que impeça o Judiciário de interpretar-lhe, buscando-lhe o sentido e a compreensão e escoimando-o de cláusulas desnecessárias ou que extrapolem os ditames da lei de regência e cujo excessivo rigor possa afastar, da concorrência, possíveis proponentes, ou que o transmude de um instrumento de defesa do interesse público em conjunto de regras prejudiciais ao que, com ele, objetiva a Administração.

            O procedimento licitatório é um conjunto de atos sucessivos, realizados na forma e nos prazos preconizados na lei; ultimada (ou ultrapassada) uma fase, preclusa fica a anterior, sendo defeso, à Administração, exigir, na (fase) subseqüente, documentos ou providências pertinentes àquela já superada. Se assim não fosse, avanços e recuos mediante a exigência de atos impertinentes a serem praticados pelos licitantes em momento inadequado, postergariam indefinidamente o procedimento e acarretariam manifesta insegurança aos que dele participam.

            O seguro garantia a que alei se refere (art. 31, III) tem o viso de demonstrar a existência de um mínimo de capacidade econômico-financeira do licitante para efeito de participação no certame e sua comprovação condiz com a fase de habilitação. Uma vez considerada habilitada a proponente, com o preenchimento desse requisito (qualificação econômico-financeira), descabe à Administração, em fase posterior, reexaminar a presença de pressupostos dizentes a etapa em relação à qual se operou a preclusão.

            O Edital, in casu, só determina, aos proponentes, decorrido certo lapso de tempo, a porfiar, em tempo côngruo, pela prorrogação das propostas (subitem 6.7); acaso pretendesse a revalidação de toda a documentação conectada à proposta inicial, te-lo-ia expressado com clareza, mesmo porque, não só o seguro-garantia, como inúmeros outros documentos têm prazo de validade.

            No procedimento, é juridicamente possível a juntada de documento meramente explicativo e complementar de outro preexistente ou para efeito de produzir contra-prova e demonstração do equívoco do que foi decidido pela Administração, sem a quebra de princípios legais ou constitucionais.

            O valor da proposta grafado somente em algarismos – sem a indicação por extenso – constitui mera irregularidade de que não resultou prejuízo, insuficiente, por si só, para desclassificar o licitante. A ratio legis que obriga, aos participantes, a oferecerem propostas claras é tão só a de propiciar o entendimento à Administração e aos administrados. Se o valor da proposta, na hipótese, foi perfeitamente compreendido, em sua inteireza, pela Comissão Especial (e que se presume de alto nível intelectual e técnico), a ponto de, ao primeiro exame, classificar o Consórcio impetrante, a ausência de consignação da quantia por extenso constitui mera imperfeição, balda que não influenciou na decisão do órgão julgador (Comissão Especial) que teve a idéia e percepção precisa e indiscutível do quantum oferecido.

            O formalismo no procedimento licitatório não significa que se possa desclassificar propostas eivadas de simples omissões ou defeitos irrelevantes.

            Segurança concedida. Voto vencido."

            (STJ, MS nº 5.418/DF, 1ª S., Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU 01.06.1998)

            E ainda:

            "EMENTA: SERVIÇO DE RADIODIFUSÃO – SONS E IMAGENS – CONCESSÃO – EXCESSO DE FORMALISMO.

            A lei não exige que o balanço da licitante seja assinado por seus dirigentes. Houve excesso de formalismo. O Administrador Público, ao realizar uma concorrência, deve procurar sempre selecionar a proposta mais vantajosa para a administração, escudado nos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e imarcial.

            Segurança concedida."

            (STJ, MS nº 5.600/DF, 1ª S., Rel. Min. Garcia Vieira, DJU 29.06.1998)

            Finalmente, também o STF já se expressou sobre a matéria, senão, vejamos:

            "EMENTA: LICITAÇÃO: IRREGULARIDADE FORMAL NA PROPOSTA VENCEDORA QUE, POR SUA IRRELEVÂNCIA, NÃO GERA NULIDADE."

            (STF, ROMS nº 23.714-1/DF, 1ª T., Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 13.10.2000)

            1.9.Princípio do julgamento objetivo

            O princípio do julgamento objetivo está consignado nos arts. 44 ("No julgamento das propostas, a Comissão levará em consideração os critérios objetivos definidos no edital ou no convite, os quais não devem contrariar as normas e princípios estabelecidos por esta Lei") e 45 ("O julgamento das propostas será objetivo, devendo a Comissão de licitação ou o responsável pelo convite realizá-lo em conformidade com os tipos de licitação, os critérios previamente estabelecidos no ato convocatório e de acordo com os fatores exclusivamente nele referidos, de maneira a possibilitar sua aferição pelos licitantes e pelos órgãos de controle").

            Zanella di Pietro, explicando este princípio, afirma que, "Quanto ao julgamento objetivo, que é decorrência também do princípio da legalidade, está assente seu significado: o julgamento das propostas há de ser feito de acordo com os critérios fixados no edital." (20)

            Nesse exato pensar, confirma Odete Medauar que:

            "o julgamento, na licitação, é a indicação, pela Comissão de Licitação, da proposta vencedora. Julgamento objetivo significa que deve nortear-se pelo critério previamente fixado no instrumento convocatório, observadas todas as normas a respeito." (21)

            O STJ, consagrando o princípio sob exame, assim julgou o Recurso Especial nº 14.980-0/RJ, Relator Min. Antônio de Pádua Ribeiro (DJU 02.05.1994):

            "EMENTA: Administrativo. Concorrência pública. Princípios da vinculação ao edital e do julgamento objetivo. Violação.

            I – Constitui ofensa aos princípios da vinculação ao edital e do julgamento objetivo admitir-se que candidatos entrem em concorrência para fornecimento de medidores com bases rígidas de liga de alumínio silício sobre pressão e com tampas de vidro transparente e, ao final, dar como vencedora proposta para fornecimento de medidores com bases de aço e tampa de policarbonato.

            II – Ofensa ao art. 3º do Decreto-lei nº 2.300, de 21-11-86, caracterizada.

            III – Recurso especial conhecido e provido."

            Nesse passo, tem a doutrina entendido como princípio correlato ao do julgamento objetivo o da vedação à oferta de vantagens. A oferta de vantagens é prática espúria e pode até constituir crime, conforme tipificação trazida no art. 92 da Lei nº 8.666/93: "Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos convocatórios, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei." Trata-se de conduta negativa, que deve ser extirpada de nossa cultura, inobstante as dificuldades encontradas de apuração.

Considerações finais

            À guisa de conclusão, como visto, adotou o sistema jurídico brasileiro uma série de princípios norteadores da atividade administrativa. Devem ser estes princípios aplicados a todos que, direta ou indiretamente, lidem com dinheiro público, sob pena de, em caso de inobservância, serem devidamente responsabilizados civil, administrativa e penalmente, dependendo do grau de agressão ao patrimônio público.

            A Lei de Licitações, coroando as normas-princípios trazidas no seio constitucional, elencou os diversos princípios administrativos aplicáveis à Licitação, sejam os básicos, ou mesmo os correlatos, todos aqui relacionados e analisados à luz da melhor doutrina e jurisprudência nacional.

            Os princípios, como dito na introdução, são algo maior que as normas. Estas podem ou não expressar algum princípio, quando então receberão a feliz denominação trazida por José Afonso da Silva, de "normas-princípios". Os princípios não necessitam, no entanto, estar descritos na letra fria da lei; transcendem eles o campo aleatório da vontade do legislador, para, em nome da segurança jurídica, firmarem-se como postulados imanentes a todo e qualquer ordenamento que preze pela manutenção da Democracia e do Estado de Direito. Tal garantia nos tranqüiliza a partir do momento em que resta impedida a louca atividade legiferante, muitas vezes irresponsável, daqueles que comandam a Nação (veja-se o caso das Medidas Provisórias, que vêm sendo editadas e reeditas pelo Poder Executivo, em atividade atípica, portanto, e com desprezo dos requisitos constitucionais da relevância e urgência.

            Da necessidade de segurança jurídica, portanto, é que devemos retirar a importância do estudo da principiologia. O âmago de toda quaestio juris posta à apreciação do Judiciário deveria passar pela análise dos princípios, não podendo os magistrados ficarem jungidos à mera verificação da correlação dos fatos com a letra fria da lei. Tal atitude é desprezível, por engessar o Judiciário, podendo-se tornar este órgão, se ao acaso assim agir, mero escravo do Executivo ou Legislativo, situação inconcebível em tempos hodiernos. O que se nota, contudo, é que, de regra, nossa Justiça encontra-se em permanente vigília à proteção dos princípios de direito, notadamente, pela análise e pesquisa efetuadas para a produção desta monografia, em relação aos princípios voltados para a licitação pública.

Notas

            1. Introduzido pela Emenda Constitucional nº 19.

            2. SINOPSES JURÍDICAS, Vol. 18, Saraiva, São Paulo, 2000, p. 02.

            3. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO, Malheiros, 9ª ed., São Paulo, 1994, p. 84 e 85.

            4. Idem.

            5. LIÇÕES PRELIMINARES DE DIREITO, Saraiva, 7ª ed., São Paulo, 1980, p. 299.

            6. No sentido que expusemos, o STF assim se posicionou: "Os princípios podem estar ou não explicitados em normas. Normalmente, sequer constam de texto regrado. Defluem no todo do ordenamento jurídico. Encontram-se ínsitos, implícitos no sistema, permeando as diversas normas regedoras de determinada matéria. O só fato de um princípio não figurar no texto constitucional, não significa que nunca teve relevância de princípio." (STF, RExtr nº 160.381/SP, 2ª T., Rel. Min. Marco Aurélio, RTJ 153/1.030)

            7. MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO, Lumen Juris, 7ª ed., Rio de Janeiro, 2001, p. 188.

            8. DIREITO ADMINISTRATIVO, Atlas, 13ª ed., São Paulo, 2001, p. 291.

            9. A lei federal, no entanto, nesse caso, assumirá a posição de lei nacional, aplicando-se também aos Estados e Municípios, por se tratar de matéria de competência legislativa privativa da União, o que significa dizer que os demais entes apenas poderiam legislar mediante a delegação de tal escopo por meio de Lei Complementar (CF, art. 22, parágrafo único), o que até agora não houve.

            10. CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO, Saraiva, 2ª ed., São Paulo, 1996, p. 25.

            11. DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO, RT, 12ª ed., São Paulo, p. 132.

            12. DIREITO CONSTITUCIONAL, Atlas, 6ª ed., São Paulo, 1999, p. 293.

            13. Ob. cit., p. 34.

            14. Ob. cit., p. 194.

            15. Em casos de licitações que envolva grandes somas, prevê a Lei de Licitações a necessidade de realização de audiência pública (art. 39).

            16. Ob. cit., p. 72 a 74.

            17. Ob. cit., p. 195.

            18. Idem.

            19. DIREITO ADMINISTRATIVO, Saraiva, 4ª ed., São Paulo, 1995, p. 293.

            20. Ob. cit., p. 300.

            21. DIREITO ADMINISTRATIVO CONCRETO, 4ª ed., RT, São Paulo, 2000, p. 218.

Referências bibliográficas

            BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 1996.

            DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13ª ed. São Paulo, Atlas, 2001.

            FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 7ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001.

            GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 4ª ed. São Paulo, Saraiva, 1995.

            MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Concreto. 4ª ed. São Paulo, RT, 2000.

            MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 12ª ed. São Paulo, RT.

            MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo, Atlas, 1999.

            PINHO, Rodrigo César Rebello. Sinopses Jurídicas. Vol. 18. São Paulo, Saraiva, 2000.

            REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 7ª ed. São Paulo, Saraiva, 1980.

            SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo, Malheiros, 1994.

 


Referência  Biográfica

Felipe Luiz Machado Barros – Assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte

E-mail: felipe1207@hotmail.com

Home-page: www.qjuris.adv.br

Classificação das Ações

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* Ersio Miranda –

1. INTRODUÇÃO
 
A presente pesquisa visa apresentar de forma sucinta, o tema Ações, classificação, Ação Mandamental, Declaratória, Cominatória, Constitutiva, Teorias da Individualização e substanciação, Causa de Pedir próxima e remota, e Cognição

O tema é por demais complexo, por isso ater-nos-emos aos princípios basilares dando a visão dos principais doutrinadores, especialmente Chiovenda e Pontes de Miranda.

A pesquisa foi elaborada de forma bibliográfica, utilizando-se da doutrina, jurisprudência legislação e do mais recente recurso à disposição, qual seja, a pesquisa virtual através da web.

Ação é o meio legal de pedir, judicialmente, o que é devido. A ação consiste apenas no direito à tutela do Estado, na defesa de uma interesse, direito subjetivo público distinto de um eventual direito concreto ou material.

Configura-se, portanto, a distinção entre o direito material e o direito de ação.

José Frederico Marques define a ação como sendo o direito de pedir a tutela jurisdicional para que o Estado satisfaça a uma pretensão regularmente deduzida. A ação não é propriamente, um direito à tutela jurisdicional, mas apenas o direito de pedir tal tutela, pois do teor do art. 2º do CPC conclui-se que o Poder Judiciário não prestará a tutela jurisdicional quando o interessado simplesmente a requerer, o atendimento não será concretizado se o pedido não preencher a forma prescrita (CPC, arts. 2.º, 36, 37 e 282), não houver interesse e legitimidade (CPC, art. 3º), quando se verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo (CPC, art. 267, IV), quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual (CPC, arts. 3.º e 267, VI).

A natureza do direito de ação é subjetiva, pública, abstrata e genérica.

As Ações de conhecimento, provocam uma providência jurisdicional que reclama, para sua prolação, um processo regular de conhecimento, por meio do qual o juiz tenha pleno conhecimento do conflito de interesses a fim de que possa proferir uma decisão pela qual extraia da lei a regra concreta aplicável à espécie.

As Ações Declaratórias visam uma declaração quanto a uma relação jurídica, e a ação visa desfazer, tornando certo aquilo que é incerto, desfazer a dúvida em que se encontram as partes quanto à relação jurídica.

As Ações Condenatórias visam uma sentença de condenação do réu. Tais ações tendem a uma sentença em que, além da declaração quanto à existência de uma relação jurídica, contém a aplicação da regra sancionadora.

As Ações Constitutivas se propõem a verificação e declaração da existência das condições, segundo as quais a lei permite a modificação de uma relação ou situação jurídica e, em conseqüência dessa declaração, a criação, modificação ou extinção de uma situação jurídica.

Nas Ações Executivas, o credor, com fundamento no título executivo extrajudicial ou judicial – art. 583 do CPC, que é a sentença proferida na ação condenatória, pedirá que se realize essa decisão.

Analisaremos, ainda, as Teorias da individualização e substancialização, o pedido e a causa de pedir, e, finalmente, a cognição.

2. CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES

2.1. Conceito de ação

Toda demanda – qualquer que seja sua natureza e finalidade – compõe-se de três elementos indispensáveis à formação de seu conceito, que são as partes, a causa de pedir – causa petendi, e o pedido. Assim como a omissão ou a insuficiência de qualquer um destes três elementos torna defeituosa a formulação da demanda judicial, assim também a mudança de qualquer deles importará na transformação da demanda em outra diferente. Partes, causa petendi e pedido são, portanto, os elementos formais de toda e qualquer demanda, independentemente de seu conteúdo específico.

O mais antigo conceito de Ação, de que se tem notícias, é aquele atribuído a Celsus, adotada pelo Direito, "Nihil aliud est actio quam persequendi in judicio quod sibi debeatur", ou seja, "Ação nada mais é do que o direito de reclamar em juízo aquilo que nos é devido".

Nosso maior processualista, João Mendes Júnior, não teve preconceito em adotá-lo, e Giuseppe Chiovenda, um dos mais lúcidos processualistas modernos, confessa que o seu conceito não dista muito do axioma miraculoso e perene do genial jurista latino.

Abaixo segue algumas opiniões sobre o que seja Ação:

Corrêa Telles, "Ação é o remédio de direito para pedir ao juiz que obrigue a outrem a dar ou fazer aquilo de que tem obrigação (perfeita)".

Windcheid, "Ação é um meio auxiliar para pedir a manutenção de um direito preexistente, em cujo exercício fomos turbados ou lesados".

Muther, "Ação é a pretensão do titular do direito, em relação ao Estado, à concessão de uma fórmula no caso de violação desse direito".

Liebman, "Ação é o poder de realizar a condição que põe em exercício o órgão judicante".

Carnelutti, "Ação é o direito de obter uma sentença sobre o litígio deduzido no processo".

Chiovenda, "Ação é o poder jurídico de realizar a condição necessária para a atuação da vontade da lei".

Moacyr Amaral Santos, "Ação, em suma, é um direito subjetivo público, distinto do direito privado invocado, ao qual não pressupõe necessariamente, e, pois, neste sentido, abstrato; genérico, porque não varia, é sempre o mesmo; tem por sujeito passivo o Estado, do qual visa a prestação jurisdicional numa caso concreto. É o direito de pedir ao Estado a prestação de sua atividade jurisdicional num caso concreto. Ou, simplesmente, o direito de invocar o exercício da função jurisdicional".

Frederico Marques, "Ação é o direito de pedir a tutela jurisdicionl do Estado, para ser atendida uma pretensão insatisfeita".

Dos conceitos acima expostos, de excepcionais juristas, pode-se, então deduzir que "Ação nada mais é do que o direito de exigir do Estado uma prestação jurisdicional que venha solucionar ou dirimir dúvida e litígios oriundos das relações jurídicas ocorrentes na vida em comunidade. Ou, em outras palavras: Ação é o remédio jurídico processual que o Estado coloca à disposição dos governados para reprimir ou restaurar os seus direitos violados ou simplesmente ameaçados. Portanto, se trata de um direito público, subjetivo e autônomo", ensina Gilberto Caldas, em sua obra A técnica do direito.

2.2. Classificação

A maioria dos doutrinadores classificam as ações em função do direito substancial e em função do direito processual.

Em relação ao direito substancial existe a divisão clássica de ações reais, pessoais e de estado (prejudiciais), no que concerne ao direito reclamado; e ações mobiliárias e ações imobiliárias em relação ao bem exigido.

Moacyr Amaral Santos ensina:

"As ações reais visam à garantia de um direito real. As ações pessoais tendem à tutela de um direito pessoal, ou, mais precisamente, o cumprimento de uma obrigação.

As ações prejudiciais tendem, pois, à tutela do estado de família.

São mobiliárias as ações que versam sobre coisas móveis; são imobiliárias as que versam sobre coisas imóveis".

E mais;

"Para sabermos se uma ação é real ou pessoal, formula-se a seguinte pergunta: Por que se deve?

Pela ação reivindicatória, o autor, dizendo-se senhor da coisa, pede que seja condenado a entregar-lhe aquele que injustamente a detenha. Por que se deve? Por força da propriedade, que é direito real (Código Civil 674). A ação de reivindicação é, pois, real.

Assim, a ação de despejo se deriva de um contrato de locação. Por que se deve? Em razão do contrato de locação. Logo, a ação de despejo é pessoal.

Assim como para se saber se uma ação é pessoal ou real costuma-se formular a pergunta: Por que se deve?, para indagar-se se uma ação é mobiliária costuma-se formular outra pergunta: Que é que deve?

Os exemplos seguintes mostram o interesse prático dessas perguntas:

1º) Ação pela qual se pede a restituição de automóvel dado em locação. Por que se deve? Com fundamento no contrato de locação; logo, ação pessoal. O que se deve? Um automóvel; logo, ação mobiliária.

2º) Ação de despejo. Por que se deve? Com fundamento no contrato de locação; logo, ação pessoal. O que se deve? Um imóvel; logo, ação imobiliária".

A importância desta distinção, de ordem eminentemente substancial, pode ser explicada da seguinte maneira: em sendo a ação real e imobiliária o autor necessitará de autorização de seu cônjuge e de requerer a citação também do cônjuge do réu, para propor ação, ex vi do art. 10 do CPC. É matéria de direito substancial que influi sobre o direito processual.

A ação real e imobiliária tem como foro competente o lugar onde está situado o imóvel, e não o domicílio do réu, que é o domicílio geral – art. 95 do CPC.

No que concerne às ações prejudiciais (de Estado) elas são imprescritíveis, e ex vi do art. 351 do CPC não admitem a confissão ficta através do fenômeno jurídico da revelia.

No que e refere ao direito processual, os mestres usam como ponto de referência, para a classificação, a natureza da tutela jurisdicional invocada, "conforme se trate de tutela jurisdicional de conhecimento, de execução, preventiva ou cautela, se classificam as ações em ações de conhecimento, ações de execução e ações cautelares" segundo Moacyr Amaral Santos.

"Ações de Conhecimento são aquelas que invocam uma tutela jurisdicional de conhecimento; Ações de Execução são as que provocam tutela jurisdicional de execução; Ações Cautelares são as que suscitam medidas jurisdicionais preventivas ou cautelares", ainda como ensina o mestre Moacyr Amaral Santos.

Essa classificação deve ser acolhida, não só pela sua autoridade, mas também pelo fato de ter o legislador seguido esse caminho.

A ação de cognição ou de conhecimento visa o exame mais completo possível do litígio, com oportunidade ampla de defesa, coleta exaustiva de provas, para que o juiz chegue a uma decisão final de mérito, de preferência justa.

Conforme o que se deseja contido no bojo da sentença, a ação pode ser subdividida em: declaratória, constitutiva, condenatória e condenatória-executória. Esta última categoria não será encontrada em nenhum outro autor, por se tratar de uma espécie criada por Gilberto Caldas, com apoio da doutrina e da jurisprudência.

A ação de execução visa a efetivação das sanções constantes de sentenças condenatórias e de determinados documentos aos quais a lei atribui o privilégio da executividade, quer se trate de execução de sentença ou de execução de títulos extrajudiciais.

A ação de prevenção ou cautelar visa assegurar os efeitos da sentença a ser proferida no processo de cognição ou de execução. Logo, ela só pode ser acessória e provisória, e vigorará enquanto se aguarda a decisão da ação principal.

3. CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES SEGUNDO CHIOVENDA

 "Chiovenda leva em consideração dois critérios: 1) a ação como sinônimo do direito material deduzido ou a deduzir em juízo (res in iudicium deducta) e 2) apreciar a ação em sentido próprio (poder de pedir a atuação da lei pelos órgãos jurisdicionais).

a) Reais e Pessoais – que remete à distinção entre direitos pessoais e direitos reais;

b) Mobiliárias e Imobiliárias – que se funda sobre a natureza móvel ou imóvel da coisa que é objeto do direito;

c) Principais e Acessórias – em que se destaca a existência de duas acepções para a distinção: importância que uma ação exerce sobre a outra, por lhe ser consequencial ou conexa; ou por estabelecer uma relação de menos para mais ou de meio e fim (art. 108, do CPC).

d) Petitórias – que diz respeito à ação real, em oposição à ação pessoal.

A classificação funda-se, como próprio autor o admitia, na natureza mesma do direito material a que a ação busca tutelar e, por isso, corresponde a uma visão privatística da ação, sabendo-se que o autor a concebe como um direito concreto de agir, ou seja, o direito de ação só existe para quem tem o direito material.

Para Cândido R. Dinamarco, "A doutrina brasileira do processo civil, embora criticando essas classificações tecnicamente incorretas, é obrigada a levá-las em consideração, porque legem habemus e todo trabalho dogmático há de ser construído sobre o que existe no direito positivo".

Em relação à ação em si – ou ação de direito processual, considerada como o poder de pedir a atuação da lei através dos órgãos jurisdicionais, Chiovenda formula outra classificação, com a observação de que nenhuma mais tem cabimento "… que não a fundada na natureza do pronunciamento judicial que a ação tende", o que certamente é revelado pelo pedido.

Essa atuação da lei pode assumir três formas: cognição, conservação e execução, resultando, de cada qual, diferentes provimentos, que correspondem respectivamente a cada um dos processos.

Da cognição, deriva, segundo Chiovenda, as ações de condenação, constitutivas e declaratórias.

Quando se deseja obter do juiz um pronunciamento que tem por fim apressar a execução, ainda que se não prescinda da cognição, se reconhece que tenha função preponderantemente executiva, alinhando-se entre elas a execução provisória da sentença, o procedimento documental, cambiário e, o procedimento monitório ou injuncional, que recebe do mesmo autor a denominação de Ações Sumárias.

4. AÇÃO DECLARATÓRIA

Conforme a classificação do Código de Processo Civil, que classifica a ação segundo à pretensão, ou seja, quanto a providência jurisdicional invocada, a ação declaratória é uma subdivisão das ações de conhecimento.

A ação declaratória é então, uma ação de conhecimento que apresenta efeitos fundamentalmente declaratórios. Segue o rito de procedimento ordinário.

Na ação declaratória, toda pretensão estará satisfeita com a sentença, em que se declare a existência ou inexistência da relação jurídica.

"Alguns códigos estaduais já faziam referência a "mero interesse à declaração judicial", vindo a figurar no CPC de 1939, quando este, no parágrafo único do art. 2º, dispunha: "O interesse do autor poderá limitar-se à declaração da existência ou inexistência de relação jurídica ou à declaração de autenticidade ou falsidade de documento".

No atual estatuto processual figura no art. 4º:

"O interesse do autor pode limitar-se à declaração:

I – Da existência ou da inexistência de relação jurídica;

II – Da autenticidade ou falsidade de documento.

Parágrafo único. É admissível a ação declaratória, ainda que tenha ocorrido a violação do direito".

O texto legal leva à conclusão de que as ações declaratórias visam, simplesmente, provocar a manifestação do Estado-juiz sobre a existência ou inexistência de uma relação jurídica ou a declaração da autenticidade ou falsidade de um documento".1

"No item I do art. 4º assegurado se encontra à pessoa natural ou jurídica, o direito de propor uma ação meramente para obter uma declaração que afaste dúvidas sobre a existência ou inexistência de uma relação jurídica. Existe ou não existe. A pretensão do autor visão a obtenção declarativa sobre a existência da relação jurídica. O autor propõe a ação para obter uma declaração positiva ou negativa. A resposta é dada pelo juiz através da sentença, afastando a incerteza.

Prevê, ainda, o estatuto processual, no item II, ação meramente declaratória, do chamado "fato puro", que tem como objeto pedido de declaração de autenticidade ou falsidade de documento (conseqüências poderão advir; contudo, a pretensão consubstanciada no pedido foi, exclusivamente, para ser declarada a autenticidade ou falsidade do documento)".2

4.1. Natureza Jurídica

"Devido às peculiaridades da ação declaratória, diversas teorias tentam estabelecer sua natureza jurídica:

Teoria do Remédio Preventivo de Direitos – Tendo em vista o escopo maior da ação declaratória ser a prevenção da violação a direitos, buscando evitar litígios, considera a ação declaratória como uma etapa anterior à ação propriamente dita, com natureza jurídica própria. No entanto, a prevenção de litígios que se procura evitar são aqueles que ainda estão por vir. Hoje em dia, tal teoria está completamente afastada, em face da aceitação unânime no meio jurídico pátrio de que o litígio está presente na ação declaratória, uma vez que o autor e réu sustentam posições antagônicas.

Direito Potestativo (Chiovenda) – Defende que a ação declaratória é espécie do gênero ação. Mas entende que a ação é um direito potestativo e concreto, dirigido contra o adversário"3.

Predomina, porém, na doutrina brasileira, a concepção da ação como direito abstrato (direito a tutela jurídica, favorável ou desfavorável).

O que particularmente define a ação declaratória e a estrema das outras ações de conhecimento é que nela, a pretensão do autor se exaure na simples declaração da existência, ou inexistência, de uma relação jurídica ou da autenticidade ou falsidade de um documento.

4.2. Objeto da Ação Declaratória

"No sistema do direito pátrio, só pode ser objeto de ação declaratória uma relação jurídica (CPC, art. 4º, I ), abrindo-se uma única exceção a essa regra: a declaração da autenticidade ou falsidade de documentos.

Não há consenso entre os autores a respeito do conceito de relação jurídica".4

Sílvio Rodrigues esclarece: "Relação jurídica é aquela relação humana que o ordenamento jurídico acha de tal modo relevante, que lhe dá o prestígio de sua força coercitiva"5.

E qual o tipo de relação jurídica dá ensanchas à ação declaratória? A lei não faz qualquer restrição, sendo consenso na doutrina e na jurisprudência que qualquer tipo de relação jurídica pode ser declarável, seja de direito público ou privado, contratual ou não.

Pontes de Miranda esclarece: "Há ação declarativa para declarar-se, positiva ou negativamente, a existência da relação jurídica, quer de direito privado, quer de direito público, quer de direito de propriedade, quer de direito de personalidade, quer de direito de família, das coisas, das obrigações ou das sucessões, civis ou comerciais"6.

Na ação declaratória o interesse se circunscreve à declaração da existência, ou inexistência, de uma relação jurídica, sendo incabível a declaratória de mero fato, ou de simples questão de direito, por mais intrincada que seja.

O pedido declaratório há que escoar-se em relação jurídica concreta, decorrente de fatos precisos e determinados, e não meras conjecturas ou suposições.

5. CONDIÇÕES DA AÇÃO E PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

5.1. Condições da Ação

As condições da ação (requisitos para se obter uma sentença de mérito) são a possibilidade jurídica do pedido, o interesse de agir e a legitimatio ad causam (CPC, art. 267, VI).

Em conseqüência, as sentenças podem ter conteúdo meramente processual ou de mérito.

Especial atenção deve ser dispensada ao interesse de agir, pois, embora vários autores afirmem que o conceito de interesse processual há de ser o mesmo para ação declaratória e para qualquer outra, na ação declaratória aquele se confunde muitas vezes, com o próprio mérito da causa.

O conceito de interesse de agir é uma das matérias mais controvertidas na doutrina.

João Batista Lopes expõe a posição de vários autores:

"Para Chiovenda, ‘o interesse de agir decorre de uma situação de fato tal que o autor, sem a declaração judicial da vontade concreta da lei, sofreria um dano injusto, de modo que a declaração judicial se apresenta como meio necessário de evitá-lo’.

Donaldo Armelin conceitua … ‘o interesse de agir como resultante da idoneidade objetiva do pedido, para o autor, de provocar a atuação potencialmente útil da jurisdição. Esta idoneidade pressupões uma causa pedenti também idônea, sem o que o pedido careceria de condições para provocar aquela atuação útil da jurisdição’.

Cândido Rangel Dinamarco mostra que o interesse de agir se traduz na ‘coincidência entre o interesse do Estado e do particular pela atuação da vontade da lei, se apresenta analiticamente como a soma dos dois requisitos acenados acima: ‘necessidade concreta do processo e adequação do provimento e do procedimento desejados’ (…) ‘O requisito da necessidade concreta da jurisdição significa que não nasce a ação enquanto as forças do próprio direito substancial objetivo ainda não se mostram incapazes de extinguir a situação de lide (…) O requisito da adequação significa que o Estado condiciona ainda o exercício da atividade jurisdicional, em cada caso, à utilidade que o provimento desejado possa trazer ao seu escopo de atuação da vontade concreta da lei’…".7

Ainda que nebulosa, a linha divisória entre o interesse de agir e o mérito da causa, não há como confundi-los porque, no campo das condições da ação, não se indaga se ocorreu violação ao direito ou se o autor tem razão, mas tão- somente se os fatos narrados caracterizam, em tese, violação a direito ou situação que autorize a tutela pretendida. Basta, pois, a caracterização do interesse de agir, a alegação de fatos idôneos de que decorra a necessidade e utilidade do provimento jurisdicional. Devem ser aferidas pelo juiz objetivamente, em função dos fatos articulados pelo autor na inicial.

Não se há, portanto de procurar um interesse particular ou peculiar na ação declaratória, mas identificar, em cada caso, a existência do interesse processual.

Não existe interesse de agir quando se pede a declaração de relação jurídica futura ou pretérita. Mas haverá se se tratar do desenvolvimento futuro de relação jurídica já existente ou quando, relativamente a relação jurídica pretérita se questionar sobre seus efeitos no presente.

A legitimidade ad causam, mais um dos requisitos da ação, consiste na autorização a figurar num dos pólos da relação processual, apenas quem detém a titularidade do direito material disputado, salvo se permitido por lei pleitear direito alheio em nome própr4io (legitimação extraordinária).

E a possibilidade jurídica do pedido nada mais é do que a admissibilidade de provimento do pedido submetido aos ditames do ordenamento jurídico.

 5.2. Pressupostos Processuais

 "Os pressupostos processuais (requisitos necessários para a existência, validade e desenvolvimento regular do processo) se subdividem em:

a) de existência: a existência do Poder Judiciário e de uma demanda, a citação, a capacidade postulatória, está só em relação ao autor;

b) de validade e desenvolvimento regular do processo: petição inicial regular, competência, imparcialidade do juiz, capacidade"8.

 5.3. Efeitos da Sentença

 Na ação declaratória obtém-se a penas um pronunciamento jurisdicional preceitual; a execução da decisão dependerá de uma posterior ação condenatória com vistas à execução. No entanto, a segurança da coisa julgada tornará essa segunda demanda bastante simplificada.

Quanto à oponibilidade da sentença declaratória, tem-se duas nuances:

Em se tratando do reconhecimento ou não de existência de relação jurídica de uma das partes em face da outra, obviamente os efeitos restringir-se-ão aos limites determinados pelos pedidos contraditórios de ambas;

Caso tenha a ação por objeto a falsidade ou autenticidade documental, o juiz decidirá sobre a coisa em si, ou seja, acerca da qualidade fundamental do documento, operando então efeitos ‘erga omnes’, e não apenas entre os demandantes.

5.4. Prescrição

"A imprescritibilidade da ação declaratória é regra geral, mas se seu objeto disser respeito a pretensão de direito material, a prescrição ocorrerá no prazo previsto para ajuizar a ação que tutela aquele. Por exemplo : a ação para exigir obrigações cambiarias prescrevendo em três anos, a ação declaratória a ela relacionada irá prescrever em igual lapso temporal.

Contudo, somente a ação de característica essencialmente declaratória, ou seja, a declaratória pura, é imprescritível, mas quando a ação é também condenatória-constitutiva, sujeita-se à prescrição. É o entendimento que está consolidado na jurisprudência dos tribunais superiores"9.

Concluímos verificando que dentre as vantagens em se lançar mão da ação declaratória, sem dúvida a principal consiste na prevenção de litígios futuros. A segurança da coisa julgada por si só, mais das vezes, é capaz de solucionar prováveis controvérsias posteriores entre os litigantes. Deste modo, por exemplo, um documento que comprova uma relação jurídica que na verdade inexiste, e que poderá vir a causar transtornos ulteriormente, pode ser corrigido de modo a declarar a inexistência da relação jurídica em questão.

6. JURISPRUDÊNCIA

"Ação declaratória é via legal para preparar a reinvidicatória." (4ª Câm. Cív. do TARJ, na Apel. Cív. N.º 19.690, julgada a 17/8/71 in Arquivo do TARJ, v. 6, p. 184).

"AÇÃO DECLARATÓRIA – Não há lei dispondo sobre o prazo para seu exercício – É pois, imprescritível ." (RJTSSP 60/126; JTACIUSP 39/60; Amorim, RT 300/7).

"No juízo declaratório, não se discutem questões meramente acadêmicas : as ações declaratórias têm de versar sobre uma controvérsia real, não fictícia, quanto à extensão dos direitos das partes ou de suas respectivas obrigações. E para que não sejam possíveis desvios nessa orientação, ficam os juizes com poder discricionário de não decidir do feito, ao inverso do que têm de fazer nas ações executória." (RT 49/258).

"A Ação declaratória pode ser antecedida de cautelar preparatória." RESP 42084/SP ; Recurso Especial (93/0035608-9) DJ; 01/02/1999 – PG:00137 – Relator Ministro ADHEMAR MACIEL.

"Em se tratando de ação declaratória, a fixação da verba honorária, em percentual sobre o valor da causa, não implica ofensa ao disposto no § 4º do art. 20 do CPC ." RESP 100236/RS ; Recurso Especial (96/0042095-5); DJ 19/10/1998, PG:00122; Relator Ministro CID FLAQUER SCARTEZZINI .

"A ação declaratória é meio processual idôneo quando se busca reconhecimento de tempo de serviço, com vistas à concessão de futuro benefício previdenciário." ERESP 113305/RS – Embargos de divergência no Recurso Especial (98/0022218-9); DJ 14/12/1998 – PG:00091; Relator Ministro FERNANDO GONÇALVES.

"PROCESSUAL CIVIL- AÇÃO DECLARATÓRIA – CLÁUSULA CONTRATUAL – INTERPRETAÇÃO E EXATO CONTEÚDO – ADMISSIBILIDADE – SÚMULA 181 STJ. Sendo o objetivo do autor a fixação do exato conteúdo de cláusula contratual, o que levará a solução do conflito, servindo de norma para as partes, admissível é a ação declaratória para tal fim". RESP 132688/SP ; Recurso Especial (97/0034994-2) ; DJ 03/11/1998 – PG:00126; Relator Ministro WALDEMAR ZVEITER.

"AÇÃO DECLARATÓRIA. CONTRATO. INVALIDADE DE CLÁUSULA CONTRATUAL. O contratante pode propor ação para que seja declarada a invalidade de cláusula contratual contrária à Constituição ou às leis. RESP 191041/SP; Recurso Especial (98/0074378-2); DJ 15/03/1999 – PG:00253; Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR.

7. AÇÃO DECLARATÓRIA INCIDENTAL

Trata-se de uma ação proposta no transcurso de um processo, estando relacionada com a questão neste versada.

No curso do procedimento, o juiz, com freqüência, é chamado a resolver diversas questões (pontos controvertidos) de cuja solução depende o deslinde do mérito da causa.

Tais questões denominadas prejudiciais, porque constituem premissas necessárias da conclusão, são normalmente resolvidas incidentemente (incidenter tantum), de tal modo que os efeitos do pronunciamento judicial respectivo não se projetam fora do processo, vale dizer, não se constitui a coisa julgada material.

Pode ocorrer, porém, que uma das partes pretenda, desde logo, ver definitivamente resolvida tal questão prejudicial, com força de coisa julgada, de modo a evitar novas discussões futuras, cujos inconvenientes são de meridiana clareza. Para atender a essa situação, contemplou o legislador, a exemplo de algumas legislações estrangeiras, a figura da ação declaratória incidental.

A ação declaratória incidental é, pois, a ação, proposta pelo autor ou pelo réu, em processo pendente, visando à aplicação do âmbito da coisa julgada material.

8. BREVE VISÃO DO DIREITO COMPARADO

"A admissibilidade de ação declaratória incidental já vinha sendo admitida por princípio elaborado pela doutrina francesa que se transmitiu ao direito germânico e ao direito italiano.

A primeira legislação a formular a possibilidade, foi o Regulamento Processual alemão de 1877. Prescreve o § 280:

‘Até o encerramento da audiência em que se profere a sentença, o autor, ampliando o pedido, o réu, propondo uma reconvenção, podem requer que o Tribunal se pronuncie sobre uma relação jurídica, controvertida no curso do processo, e de cuja existência ou inexistência dependa, no todo ou em parte, a decisão da lide’ "10.

8.1. Natureza Jurídica

De acordo com a doutrina dominante, a ação declaratória incidental ou declaração incidente não constitui mero incidente processual, nem se confunde com a reconvenção, quando proposta pelo réu.

A ação declaratória incidental é sempre uma ação, seja quando requerida pelo autor, seja quando proposta pelo réu.

8.2. Finalidade

A finalidade da ação declaratória incidental é estender a autoridade da coisa julgada também às questões prejudiciais, que de outra forma, seriam apreciadas incidenter tantum.

Através da ação declaratória incidental, impede-se a ocorrência de sentenças conflitantes, uma vez que, nos processos posteriores, será sempre possível argüir-se, ou decretar de ofício, a coisa julgada que no processo anterior se formou sobre a questão prejudicial.

9. AÇÃO COMINATÓRIA

"Ação cabível nas obrigações de fazer ou de não fazer, sendo encontrada sua origem no interdictium prohibitorium do Direito Romano, ingressando no Direito brasileiro mediante o antigo processo lusitano. Esta ação era também chamada ação de embargos à primeira, porque o réu devia trazer seus embargos na primeira audiência após a citação. O adjetivo cominatória deriva do fato de que, nesta ação, sempre se pede uma cominação ou pena, seja esta derivada de contrato, da lei ou daquilo que o autor estimar. Tal cominação é um pedido subsidiário, para o caso de o réu não concretizar a pretensão do autor. O CPC vigente aboliu esta espécie de ação".

A pena, ou era convencionada, ou era atribuída pelo autor, cabendo, neste caso, ao juiz reduzi-la a justos limites, se excessiva.

A ação cominatória competia em geral, a quem, por lei, ou convenção, tivesse direito de exigir de outrem que se abstivesse de algum ato, um prestasse um fato dentro de certo prazo. Ou seja, prestação de fazer, positiva ou negativa, legal ou convencional.

Sua pretensão legal era prevista no artigo 303 do antigo Código de Processo Civil, onde o autor pedia a citação do réu para prestar o fato, ou abster-se do ato, sob a pena legal, ou a convencional, ou pedida pelo autor se nenhuma houver sido prefixada. Se o réu não contestasse em dez dias, os autos seriam conclusos para sentença. Contestada a ação, prosseguiriam com o rito ordinário.

A ação cominatória era a última oportunidade oferecida pelo titular do direito, ao obrigado para praticar um ato ou abster-se dele. Se depois de citado cumprisse a obrigação, estava purgada a mora, uma vez que pagasse as custas.

Encerrava-se o processo, havendo-se a obrigação por cumprida. Se não desse cumprimento a obrigação, nem se defendesse, os autos eram conclusos para sentença, que era fundada na prova pré-constituída trazida pelo autor e na presunção da verdade dos fatos não contestados. A condenação impunha o pagamento da multa contratual, ou da prevista em lei, ou da quantia pedida pelo autor, juros da mora a contar da citação, e custas. Se contestada a ação desenvolvia-se o rito ordinário, mas, a eventual condenação era alternativa: ou cumprir a obrigação, dentro do prazo fixado pelo sentença, ou pagar a quantia pedida na inicial.

Conclui-se que o rito cominatório proporcionava sensível economia processual, pois a ameaça contida na cominação podia produzir o esperado efeito intimidativo, forçando que o obrigado, dentro do decênio em que se esperava a defesa, desse desempenho à obrigação.

Finalizo com o conceito de Maria Helena Diniz, que tão bem esclarece este assunto: ação cominatória "é a proposta para obter, judicialmente, a prática de um ato ou a sua abstenção consignadas em lei ou em um contrato, sob pena de responder pelo seu inadimplemento. Hodiernamente, não é mais admitida, pois o direito de exigir, em juízo, a prestação da obrigação de fazer ou de não fazer concretiza-se mediante rito ordinário, podendo o autor, na petição inicial, pedir a cominação da pena pecuniária para o caso de não cumprimento da sentença".

10. AÇÃO CONSTITUTIVA

Segundo conceito elaborado por Maria Helena Diniz, a ação constitutiva "é a ação de conhecimento que tem por fim a criação, modificação ou a extinção de uma relação jurídica, sem estatuir qualquer condenação do réu ao cumprimento de uma prestação, produzindo efeitos ex tunc ou ex nunc. Por exemplo, são ações desse tipo as que visam anulação de um negócio jurídico, por apresentar vício de consentimento (erro, dolo ou coação) ou vício social (simulação e fraude), ou a separação judicial litigiosa, dissolvendo a sociedade conjugal"1.

Como as demais ações que compõem o processo de conhecimento, são ações cujas sentenças de procedência exaurem a atividade jurisdicional, tornando impossível ou desnecessária qualquer atividade subsequente tendente à realização de seu próprio enunciado.

As sentenças constitutivas prescindem de uma ação executória posterior para realizarem completamente a pretensão requerida pelo autor. Se o autor pedir a rescisão do contrato, ou a anulação do negócio jurídico, a sentença de procedência dirá que o autor tem direito a obter tais resultados e, desde logo, na própria sentença, decretará a rescisão ou a anulação pretendida pelo demandante.

"É preciso lembrar, no entanto, que as sentenças, sejam elas preponderantemente declaratórias, condenatórias ou constitutivas, freqüentemente contém, dentre suas eficácias, certos elementos de outra espécie que, em determinadas circunstâncias, podem exigir alguma provisão legal posterior. Na generalidade dos casos, ou, como pretende PONTES DE MIRANDA, invariavelmente em todos eles, as sentenças não são puras: nem a sentença de simples declaração é apenas declaratória, nem as condenatórias apenas contém eficácia de condenação, assim como as constitutivas nunca se apresentam dotadas apenas desta eficácia, sem conter um mínimo de alguma eficácia de outra espécie"2.

As ações constitutivas tanto podem criar como extinguir uma determinada relação jurídica. Diz-se então que elas tanto podem constituir como desconstituir. No primeiro caso, dizem-se constitutivas positivas, neste último, constitutivas negativas.

Gilberto Caldas cita uma síntese que José Frederico Marques faz sobre as "… características básicas desta categoria de ação: ‘Nas ações declaratórias e de condenação o que o autor pede não leva a modificações no status quo ante: o litígio é solucionado tendo em vista o reconhecimento de uma situação jurídica e de fato existente anteriormente. Na ação declaratória, basta isso para exaurir-se a tutela jurisdicional e atender-se ao pedido do autor. Na ação condenatória, pede-se uma sentença com este conteúdo e mais a sanctio juris que restaure o direito violado.

Não há pedido de modificação da situação jurídica que antecede à propositura da ação. E mesmo na ação condenatória, o plus que se pede na sentença, tem por objeto restaurar ou reparar situação anterior que foi atingida indevidamente por ato lesivo do réu.

Nas ações constitutivas, ao reverso, o que se pede é a formação de uma nova situação jurídica. Ao invés de restaurar-se o status quo ante, de reparar-se o dano que lhe foi causado, ou de declarar-se a existência ou inexistência de relação jurídica anterior, – o que se verifica, com a sentença constitutiva, é sempre a mudança de uma situação jurídica anterior. Claro que o juiz não cria, ele próprio, essa nova situação, mas aplica a lei que prevê a mudança. E assim como condenando, concretiza a sanção abstrata da lei e declarando, concretiza a situação jurídica abstrata, – também constituindo, ele torna concreta a mudança abstratamente prevista na lei. Na ação constitutiva, o autor, com base em pressupostos de fatos descritos na lei, pede que se declare estes existentes e que, em conseqüência, se produza a mudança que também a lei prevê"3.

As ações constitutivas encontram seu fato gerador nos direitos potestativos.

"A eficácia da sentença constitutiva é via de regra, ex nunc, ou seja, irretroativa.

Isto quer dizer que ela começa a produzir os efeitos de direito somente a partir da sentença transitada em julgado. Esta constatação tem grande importância na prática porquanto todos os atos concretizados anteriormente são reputados inteiramente lícitos, válidos e perfeitos"4.

No que diz respeito a coisa julgada, verificamos que ela acompanha as sentenças constitutivas tanto quanto as outras. Precisamos verificar porém, que, o que passa em julgado não é o ato do juiz enquanto produz um novo estado jurídico, mas enquanto afirma ou nega a vontade da lei de que o novo estado se produza. Portanto, verifica-se a coisa julgada tanto se a sentença opera a mudança, quanto se nega poder operá-la.

Ainda segundo ensinamento de Gilberto Caldas verificamos que as ações constitutivas são via de regra imprescritíveis, mas estão sujeitas à decadência prevista em lei.

Vejamos alguns exemplos de ações constitutivas positivas e ações constitutivas negativas:

Para saber a diferença basta fazer a seguinte indagação: O que pretende o autor com a sentença de mérito? Se a resposta for formação de uma relação jurídica, trata-se de constitutiva positiva, se for a extinção de uma relação jurídica será indubitavelmente constitutiva negativa.

 10.1 Constitutivas Positivas

Colimam a formação de uma relação jurídica.

Exemplos:

1) Ação de Investigação de Paternidade: A paternidade, como a maternidade, são uma relação jurídica. Toda relação de vida, que a ordem jurídica fez relevante e dota de efeitos jurídicos, se torna relação jurídica. O juiz quando julga procedente a ação de paternidade ou de maternidade, não só reconhece, como constitui o ato que corresponde ao pai ou a mãe;

2) Ações para nomeação de tutores ou curadores: São ações constitutivas pelas quais quem tem pretensão constitutiva à nomeação de tutor ou curador, para alguém, pede que se nomeie tutor ou curador, de acordo com a lei, ou testamento;

3) – Suplemento de idade;

4) – Suprimento de consentimento;

5) – Nomeação de inventariante;

6) – Sonegação e inclusão de bens;

7) – Extinção de condomínio (venda de coisa comum);

8) – Revocatória de locação comercial;

9) – Pedido de falência ou concordata, entre outras.

10.2. Constitutivas Negativas

Colimam a extinção de uma relação jurídica.

Exemplos:

1) Separação Judicial: É um dos exemplos mais conhecidos de ação constitutiva negativa. Seu objetivo, está dito no art. 3º da Lei do Divórcio, é pôr termo aos deveres de coabitação, fidelidade, recíproca entre os cônjuges e ao regime matrimonial de bens, como se o casamento fosse dissolvido. É evidente que as dissolução dá-se por força de sentença. A eficácia constitutiva prepondera tanto nas sentenças que decretam a separação judicial litigiosa quanto nas resultantes se separação judicial por mútuo consentimento dos cônjuges.

2) – Interdição de incapaz;

3) – Anulatória de casamento;

4) – Cancelamento de registro de bem de família;

5) – Ação redibitória;

6) – Rescisória de contrato;

7) – Extinção de usufruto, entre outras.

É importante elucidar que existe uma corrente na doutrina que entende o recurso como uma ação constitutiva autônoma.

"A corrente de pensamento que entende o recurso como uma ação autônoma de impugnação das decisões judiciais, com a finalidade de modificá-las (natureza desconstitutiva), quer para anular a decisão formalmente inválida, quer para reformar a decisão injusta, tem como seus principais defensores Gilles, Betti, Provinciali, Mortara, Guasp e Del Pozzo, entre outros"5.

Finalizamos reforçando que como todas as ações de conhecimento, as ações constitutivas tendem a uma sentença que contém uma declaração e, além disso, modifica uma situação jurídica anterior, criando uma situação nova.

 11. AÇÃO MANDAMENTAL

 11.1. Conceito

 Pontes de Miranda a conceitua como "aquela que tem por fito preponderante que alguma pessoa atenda, imediatamente, ao que o juízo manda".

Acrescenta ainda que foi grave o erro dos juristas menosprezarem a busca dos pesos de mandamentalidade nas ações e nas sentenças.

Nesta ação se ressalta a prevalência, em todos os casos, de uma ordem para que, imediatamente, alguém atenda.

A ação mandamental prende-se a atos que o juiz ou outra autoridade deve mandar que se pratique. O juiz expede o mandado, porque o autor tem pretensão ao mandamento e, exercendo a pretensão à tutela jurídica, propôs a ação mandamental.

"Não se pode confundir mandado intraprocessual, como por ex. o de citação, que depende de mero despacho ou decisão interlocutória, com o mandado sentencial. Sempre que alguém manda ou ordena, sem ter conteúdo e eficácia de sentença o mandamento, de modo algum se pode falar de sentença mandamental, seja ela de força mandamental (5), seja de eficácia mandamental imediata (4), ou mesmo mediata (3).

A sentença que se profere na ação mandamental típica, tem, como efeito máximo, 5 de mandamentalidade; Após ele, vem o efeito imediato, 4, que é o de declaratividade"

 11.2. Ação Mandamental Típica

 Na ação mandamental típica, o juiz, após a análise dos elementos contenutísticos, considerando baseada, acertadamente, a sua decisão, "manda".

É diferente das ações que preponderantemente "declara", ou "condena", ou "executa".

Nas execuções o juiz não manda preponderantemente. Nas execuções típicas o mandamento é quase sempre a eficácia imediata, com peso 4.

A função mandamental é exercida na própria sentença, ou exercida posteriormente.

11.3. Eficácia Mandamental Imediata

A eficácia mandamental imediata aparece em quase todas as ações declarativas e constitutivas. A maioria das ações de eficácia mandamental imediata é constitutiva.

Pensemos nas ações declarativas típicas, ação de usucapião, consignação em pagamento, verificação de crédito, abertura de sucessão definitiva e outras ações declarativas.

Com relação as ações constitutivas, a eficácia mandamental imediata aparece na ação de remição de imóvel hipotecado, substituição do devedor, separação de bens para pagamento de dívidas de partilha, cumprimento de testamento, cancelamento de registro de bens de família e outras.

 11.4. Eficácia Mandamental Mediata

 São ações mandamentais, mas que a mandamentalidade é mediata, no futuro.

Ex. Ação de renovação de contrato de locação, ação de nunciação de obra nova demolitória, na de eleição, de nomeação de cabecel e nas de nomeações de inventariantes, tutores e curadores.

11.5. Generalidades

 Nas ações mandamentais normalmente há eficácia imediata de declaratividade.

Raramente ocorre que a ação mandamental tenha a eficácia imediata de "condenação": Ação de nunciação de obra nova pelo embargante (3,1,4,5,2); Ação de remoção ou destituição de inventariante culpado (3,2,4,5,1). A eficácia mediata de condenação aparece em casos como habeas corpus.

A eficácia executiva imediata surge na ação de posse em nome do nascituro e na de entrega de objetos próprios. Já a eficácia executiva mediata está na de embargos (de terceiro) contra a arrecadação.

A constitutividade é eficácia imediata na ação de averbação de registro civil, revisão de aluguel. A mediata na ação mandamental típica, como mandado de segurança.

Exemplos de ação mandamental: Habeas corpus, ação de mandado de segurança, ação de manutenção de posse, interdito proibitório, ação de arresto, de seqüestro, de busca e apreensão, de embargos de terceiro, de atentado, de posse em nome do nascituro e outras.

 12. TEORIA DA INDIVIDUALIZAÇÃO E TEORIA DA SUBSTANCIALIZAÇÃO

A teoria da individualização e a teoria da substancialização se referem a compreensão da causa de pedir, são duas corrente que na prática implicam em diferente conseqüências.

Pela teoria da individualização, a causa de pedir se completa somente pela identificação, na inicial, da relação jurídica da qual o autor extrai certa conseqüência jurídica. Por ex.: Na ação reivindicatória, basta o autor alegar o domínio, pouco importando a sua fonte, se é originária (usucapião) ou se é derivada (compra e venda).

Na moderna doutrina Italiana não se necessária a cabal descrição dos fatos nas ações fundadas em direito absoluto, liberando o autor da sua completa narração, substituída pela indicação do direito formativo invocado na demanda.

Mas nas ações baseadas em direito relativo, de força declarativa ou condenatória, é necessária a exposição dos fatos que originaram o direito alegado pelo autor.

Na ação declaratória positiva de domínio, em que se aponte testamento ou usucapião como causa de aquisição da propriedade, trata-se uma só ação.

Pela teoria da substancialização, constituem os fundamentos da demanda o conjunto de fatos em que o autor baseia a ação.

Conforme o artigo 282, III do C.P.C., ao autor compete, na inicial, explicitar "os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido".

Na doutrina brasileira, é total o reconhecimento da adesão do C.P.C. à teoria da substancialização.

Nesta teoria a indicação completa dos fatos se afigura fundamental para particularizar a ação.

Na ação reivindicatória, por ex., o autor deve apontar o modo de aquisição do domínio. Fundamentando o remédio processual, concomitantemente, em testamento e usucapião, o réu enfrentará duas ações.

Cabe avaliar a rigorosa fidelidade do artigo 282, III, à teoria da substancialização, desde a configuração emprestada à causa de pedir no direito brasileiro, mas, seguramente, o dispositivo não consagra a tese oposta da individualização.

Leo Rosemberg constata nas mais recentes exposições dos partidários de cada corrente, uma progressiva harmonia. De acordo com idéia haurida na doutrina alemã, em certas demandas basta o sujeito e o conteúdo (autodeterminadas), enquanto outras exigem fatos (heterodeterminadas).

Para Pontes de Miranda:

"A narração há de ser clara e precisa; convém, outrossim, que seja exaustiva, mas concisa; e subentende-se que há de conter a verdade dos fatos, exposto com probidade e encadeamento, tal como se passaram".

Segundo Arruda Alvim, "é absolutamente inafastável a realidade de que o direito decorre de fatos".

Assim, a narrativa fática integra a "causa pretendi". Os fatos devem ser indicados para favorecer à inteligência da categoria jurídica controvertida, em função da qual se deduzem as conseqüências face ao réu. Visto por esse ângulo, a teoria que dispensa os fatos, reclamando somente a relação jurídica, se apresenta errônea.

12.1. Analisemos o Acórdão proferido na Apelação n.º 771.556-6 – São Paulo – 4ª Câmara – 12/08/98 – VU – Rel. Juiz Oséas Davi Viana)

 "AÇÃO – Condições – Ajuizamento de ação de repetição de indébito referente à prestação de serviços fisioterápicos – Alegação, contudo, pelo réu, de inocorrência dos pressupostos da restituição do indébito – Irrelevância, pois o nosso sistema, ao adotar a teoria da substanciação, exige apenas a descrição do fato e do fundamento jurídico essencial, o qual não se confunde com a indicação deste ou daquele artigo da lei material – Preliminar afastada".

Ainda no corpo do Acórdão:

"Em sua apelação, o requerido diz ser nula a r. sentença, porque não definido o seu suporte legal, se os artigos 964 e 965 ou os artigos 159 e 1.056 do Código Civil.

Entretanto, tal nulidade não ocorre e esta preliminar se funde à alegação de carência de ação, por falta de interesse-adequação, a seguir apreciada.

E o autor, data vênia, também não é carecedor de ação, pois conquanto o mesmo a tenha proposto como de repetição de indébito, o nosso sistema, ao adotar a teoria da substanciação, exige apensas a descrição do fato e do fundamento jurídico essencial, o qual não se confunde com a indicação deste ou daquele artigo da lei material, mas ao conteúdo adequado a que o juiz proceda a subsunção do fato à norma jurídica abstrata adequada (MOACYR AMARAL SANTOS, "Primeira Linhas…", 2º vol., 4ª ed. Saraiva, 1979, pág. 115).

13. DO PEDIDO

A partir de agora iremos discorrer sobre o pedido, seus aspectos e finalidade.

Encontramos o tema em tela, nos artigos 286 a 294, no Código de Processo Civil, porém restam-se insuficientes para o nosso entendimento a leitura destes artigos, o que nos leva a buscarmos o respaldo de diversos doutrinadores que nos oferecem seus conceitos e suas variações sobre o referido tema.

13.1 Vicente Grecco Filho

O mestre e doutrinador, logo de imediato, fala que o pedido é o núcleo da petição inicial.

Para ele o pedido tem dois aspectos – o imediato e o mediato.

O Imediato é o tipo de providência jurisdicional pretendida que poderá ser no processo de conhecimento: declaratória, constitutiva e condenatória. Já o mediato é o próprio bem jurídico de direito material a ser tutelado pela sentença, por exemplo: o pagamento, obrigação de fazer.

Segundo entendimento "o pedido é dirigido contra o Estado em sua função jurisdicional, mas tem por finalidade a produção de efeitos sobre o réu, ou sobre a relação jurídica de que o réu é um dos titulares"

Diz que o pedido para alcançar a finalidade deve ser certo ou determinado. Certo é todo pedido expresso, explicito e delimitado e teremos como idéia antagônica o implícito, tácito e genérico. Há casos em que determinados pedidos decorrentes do pedido principal acabam por ficarem omitidos, o que contudo não deixam de serem cumpridos, posto que o acessório segue o principal. Apesar de ser recomendável que nada seja omitido, podemos pegar como exemplo o pagamento de custas e honorários advocatícios.

Os pedidos devem ser interpretados de forma restritiva, desta maneira, salvo os casos acima citados, se o ação inicial deixou de constar determinado pedido, somente poderá fazê-lo em ação autônoma, distinta da primeira.

Determinado é aquele pedido definido quanto a qualidade e quantidade, segundo o doutrinador.

Podemos dizer que o pedido, para alcançar as suas finalidades, dever ser certo e determinado, nem por isso a legislação deixou sem providência o caso de pedido genérico, conforme o artigo 286 do CPC.

O artigo em tela nos fornece um rol onde o pedido poderá ser genérico, ou seja, nas ações universais, se não puder o autor individuar , na petição, os bens demandados; quando não for possível determinar, de modo definitivo, as conseqüências do ato ou fato ilícito; ou quando a determinação do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu.

Entretanto diz o doutrinador que "Em qualquer caso, porém, a indeterminação ou generalidade não é absoluta, porque sempre o pedido é certo e determinado quanto ao gênero, faltando apenas a fixação do valor."

Poderá o pedido ainda ser simples ou complexo. Este poderá ser cumulativo, alternativo, sucessivo ou subsidiário.

Alternativo é aquele pedido que o devedor poderá cumprir com a obrigação de mais de um modo. Não poderá neste caso o autor requerer que o réu arque com prestações cumulativamente, mas apenas uma delas. Ressalte-se que a escolha poderá competir ao autor ou ao réu. Neste ultimo caso, a sentença condenará alternativamente e o réu no momento da execução optará pelo que lhe parecer de mais favorável.

Subsidiário é aquele pedido que o autor ao formular o pedido principal, porém pede ao juiz que acolha um outro pedido em caso de não poder acolher o primeiro. O pedido subsidiário é conhecido pelo código como sucessivo.

Contudo entende o autor que sucessivo é o pedido cumulativo e que poderá ser concedido se o primeiro for concedido.

Poderá o autor cumular pedidos em um único processo contra o réu o que denominamos de cumulação objetiva, distinta da subjetiva, que é a das partes (litisconsórcio).

Requisitos para que o pedido possa ser cumulado:

Que os pedidos sejam compatíveis entre si;

Que seja competente para conhecer deles o mesmo juízo;

Que seja adequado para todos os pedidos o tipo de procedimento.

Para concluir diz o nosso ilustre doutrinador que "O pedido, como já se disse, define o objeto da demanda e é o próprio objeto do processo."

13.2. Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarca

Para referidos doutrinadores não há justificativa para o indivíduo ingressar com uma medida judicial se não fosse com o escopo de buscar uma tutela do órgão jurisdicional pedindo uma medida ou provimento. Esse provimento poderá ter natureza cognitiva, executiva ou cautelar.

Terá natureza congnitiva quando caracterizar o julgamento da própria pretensão que o autor deduz em juízo e a sentença de mérito será meramente declaratória, constitutiva ou condenatória.

Terá natureza executiva quando se tratar de medida através da qual o juiz executa os resultados determinados através da vontade concreta do direito.

O provimento cautelar é aplicado para resguardar eventual direito da parte contra possíveis desgastes ou ultrajes propiciados pelo decurso do tempo.

Ressaltam os doutrinadores que todo o provimento que o autor pede refere-se a determinado objeto ou bem da vida e dizem eles que: " Assim é que, considerando-se uma massa de ações propostas ou a propor, distinguem-se elas entre si não só pela natureza do provimento que o autor pede, como também pelo objeto do seu alegado direito material."

13.3. Carlos Eduardo Ferraz de Mattos Barroso

O doutrinador em tela diz que toda a inicial traz dois pedidos distintos.

O primeiro para ele é o pedido imediato, ou seja, a exigência é formulada contra o juiz como o escopo de obter uma tutela jurisdicional, a qual poderá ser de cognição – condenatória, constitutiva ou declaratória, ou executiva – satisfatividade do direito ou ainda cautelar – garantindo a eficácia do processo principal.

O segundo é o mediato, ou seja, a exigência é formulada contra o réu para

que este seja submetido a pretensão de direito material que o autor diz não ter sido respeitada.

Termina o doutrinador dizendo que " qualquer uma das duas espécies de pedido implica a geração de uma nova demanda, afastando a incidência dos fenômenos da coisa julgada e litispendência."

13.4. Antônio Carlos Marcato

O Ilmo. Dr. Desembargador em suas obras intituladas o Roteiro de Estudos de Direito Processual Civil e Apontamentos de Direito Processual Civil nos dá o enfoque sobre o pedido.

Para ele "o pedido representa, em sentido amplo, a própria dedução, em juízo, da pretensão formulada pelo autor, relacionando-se intimamente com o exercício do direito de demandar e em nada influindo, destarte, pára a sua individualização."

O pedido em sentido estrito é o próprio objeto representando o bem jurídico que o autor pretende obter o provimento jurisdicional, ou seja, o próprio objeto da ação.

O pedido deve fixar limites da prestação jurisdicional pleiteada, não podendo ter conteúdo diverso – qualitativa ou qualitativamente – daquele pretendido pelo autor – obedecendo-se ao Princípio da Adstrição do Julgamento ao Pedido – artigos 128 e 460 do Código de Processo Civil.

O Pedido nada mais é que a manifestação de vontade externada pelo autor dirigindo-se a autoridade judiciária pretendendo desta uma atividade de determinado conteúdo.

Em outras palavras, " a tutela jurisdicional invocada pelo autor ao Estado (pedido imediato) e o bem jurídico material, ou incorpóreo, alvo de sua pretensão (pedido mediato)."

Pedido imediato é a pretensão processual e pedido mediato é a pretensão de direito material afirmada no processo.

Para ele o pedido mediato qualifica a ação ou qualifica o tipo de tutela desejada, ou seja, se a pretensão do autor é a imposição de uma sanção ao réu, consistirá o seu pedido em uma condenação e, diz mais, que na realidade nem o pedido e nem a ação são condenatórios, mas sim a sentença de procedência, pois a improcedência terá cunho meramente declaratório; se a pretensão do autor é a constituição ou desconstituição de uma relação de um estado jurídico, o provimento será de cunho constitutivo; se o objetivo do autor for a declaração de existência ou inexistência de uma relação jurídica teremos um conteúdo declaratório.

Na ação de execução o pedido imediato dirá respeito, segundo o doutrinador, a provimentos consubstanciados em atos de constrição, excussão e satisfação, e o mediato dirá respeito às satisfação do direito violado.

"As sentenças declaratórias e constitutivas , positivas ou negativas, atendem plenamente a ambos os pedidos, tanto que não exigem execução forçada.

A condenatória, ao reverso, atende apenas ao pedido imediato, tanto que seu cumprimento voluntário pelo devedor impõe ao credor nova ação, desta feita objetivando a satisfação de seu direito ( ação de execução)."

O pedido certo e determinado – artigo 286 do Código de Processo Civil – o autor diz que " a certeza diz respeito à tutela desejada, a determinação, ao bem da vida almejado pelo autor."

O pedido poderá ser genérico quando o objeto for indeterminado e poderá ainda ser implícito.

Poderá ainda haver a cumulação de pedidos, eventual ou simples, sucessiva (art. 289, CPC) ou alternativa (art. 288, CPC).

Os artigos 264 e 294 falam sobre a inalterabilidade do pedido, sendo o primeiro inalterável qualitativamente e, o segundo, quantitativamente.

O art. 920, CPC reza sobre a fungibilidade do pedido.

Para finalizar o tema – DO PEDIDO – iremos acrescer ao trabalho perguntas e repostas extraídas do livro Questões de Direito Processual Civil II, do doutrinador Vicente Grecco Filho , elaboradas e respondidas pelo Mestre.

" Que se entende por pedido imediato?

O pedido imediato é o tipo de providência jurisdicional pretendida, que, nos termos da natureza das sentenças de conhecimento, pode ser declaratória, constitutiva ou condenatória.

Que se entende por pedido mediato?

Pedido mediato é o bem jurídico de direito material que se pretende seja tutelado pela sentença, como, por exemplo, a entrega da coisa, o pagamento, a desocupação do imóvel, etc.

Como deve ser formulado, de regra, o pedido?

O pedido deve ser, de regra, certo e determinado.

Em que casos é lícito ao autor formular pedido genérico? Exemplifique.

É lícito formular pedido genérico:

nas ações universais, se não puder o autor individuar, na petição, os bens demandados. Numa ação de petição de herança, por exemplo, o pedido é genérico, porque se refere a todos os bens que couberem no quinhão.

quando não for possível determinar, de modo definitivo, as conseqüências do ato ou fato ilícito. È o que ocorre, por exemplo, quando não é possível ainda determinar a real e definitiva extensão de uma lesão decorrente de ato ilícito.

Quando a determinação do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu. È o que ocorre, por exemplo, na ação de prestação de contas.

Esta generalidade permitida no art. 286 do Código pode ser absoluta?

A indeterminação ou generalidade não é absoluta, porque o pedido é certo e determinado quanto ao gênero,. Faltando apenas a fixação do valor.

Que se entende por pedido simples? E pedido complexo?

Pedido simples é aquele que contém apenas um item. Pedido complexo é aquele que contém mais de um item.

Que se entende por pedido cumulativo? Em sentido amplo diz-se que o pedido é cumulativo quando contém mais de um elemento ou unidade, mas pedido cumulativo propriamente dito é aquele em que há uma soma de pretensões sendo que cada uma delas pode ser concedida ou negada autonomamente.

Que se entende por pedido alternativo?

Pedido é alternativo quando, pela natureza da obrigação, o devedor puder cumprir a prestação de mais de um modo.

Que se entende por pedido subsidiário?

O pedido é subsidiário ( o Código usa a expressão " pedidos de ordem sucessiva") quando o autor formula um principal, pedindo que o juiz conheça de um posterior em não podendo acolher o anterior.

Que se entende por pedido sucessivo?

Entende-se como sucessivo o pedido que é feito cumulativamente com um primeiro, e que só pode ser concedido se este for. Exemplo: pedido de rescisão contratual cumulado com reintegração de posse.

Que pedidos podem ficar implícitos?

O das despesas processuais e honorários de advogado, o de juros legais e o das prestações vincendas, o da multa diária nas ações de obrigação de fazer e não fazer, bem como a correção monetária legal, se se entender que subsiste."

14. DA CAUSA DE PEDIR

14.1. Vicente Grecco Filho

Segundo o doutrinador o autor deverá descrever com precisão os fatos relevantes e pertinentes que constituem a relação jurídica sobre a qual haverá o pronunciamento jurisdicional, bem como o fato contrário do réu que impediu a efetivação voluntária e espontânea de direito do autor. Deverá ainda dar a todos os fatos descritos a qualificação jurídica ou a natureza perante o direito da situação descrita. Segundo o doutrinador " o fato e o fundamento jurídico do pedido são a causa de pedir, na expressão latina a causa petendi. Antes de mais nada é preciso observar que o fundamento jurídico é diferente do fundamento legal,; este é a indicação (facultativa porque o juiz conhece o direito) dos dispositivos legais a serem aplicados para que seja decretada a procedência da ação; aquele (que é de descrição essencial) refere-se á relação jurídica e fato contrário do réu que vai justificar o pedido de tutela jurisdicional."

O nosso código ao exige a descrição do um fato e de um fundamento jurídico do pedido acaba por filiar-se à chamada teoria da Substanciação quanto a causa de pedir, posto que a decisão judicial julgará procedente , ou não, o pedido, em face de uma situação descrita e como descrita.

14.2. Carlos Eduardo Ferraz de Mattos Barroso

Para o autor são os fatos e fundamentos jurídicos que levam o autor a buscar o magistrado. È o conflito de interesses e sua repercussão jurídica na esfera patrimonial ou patrimonial do autor. É ela dividida em causa de pedir remota ou fática ou próxima ou remota.

Causa de pedir remota ou fática é a descrição fática do conflito de interesses, consistente na indicação de como a lesão ao direito do autor ocorreu. Estes fatos que geram o direito são chamados de constitutivas do direito do autor. O Poder judiciário só atua de fatos concretos, uma vez que todo direito dele nasce. O ajuizamento de ação que não se baseie em conflito de interesses real e concreto significa tentativa de utilização de Judiciário como mero órgão de consulta, carecendo de agir ( falta de necessidade de intervenção judiciária)

Causa de pedir próxima ou jurídica é a descrição da conseqüência jurídica gerada pela lesão ao direito do autor. Não se confunde ela com a enunciação do fundamento legal que embasa a pretensão do autor, uma vez ser esse elemento dispensável, ante o brocardo de que o juiz é aquele que conhece o direito. Conclusão do autor no sentido que de para o surgimento da lide de interesse do Judiciário necessário se faz que os fatos gerem violação na órbita jurídica do titular da pretensão. São essas conseqüências jurídicas que consubstanciam a causa de pedir próxima.

14.3. Antônio Carlos Marcato

Para o autor em tela, a causa de pedir ou causa petendi é aquela resultante da soma dos fundamentos jurídicos e fáticos que suportam o pedido formulado pelo autor.

Para ele a causa de pedir é " representada pelos fundamentos jurídicos do pedido (causa de pedir próxima) e pelos fatos deduzidos pelo autor em sua inicial (causa de pedir remota) conforme exigência contida no artigo 282 do Código."

È a causa de pedir, segundo o autor, que delimita a res in iudicium deducta, tanto que ao autor é vedado, após a citação válida do requerido, alterar a causa de pedir, ou mesmo o pedido, sem a anuência daquele (art. 264, CPC).

Para finalizar o autor reza que causa de pedir próxima são os fundamentos jurídicos do pedido e a causa de pedir remota são os fatos deduzidos pelo requerente em sua exordial, ou seja, são os chamados fatos constitutivos do direito do autor.

Para corroborar o entendimento dos doutrinadores, novamente nos utilizaremos do livro Questões de Direito Processual Civil II, do mestre Vicente Grecco Filho.

A pergunta feita foi : " Em que consiste a teoria da substanciação quanto á causa de pedir?

Na teoria da substanciação, a petição inicial define a causa, de modo que os fatos ou fundamento jurídico não descritos não podem ser levados em consideração, mesmo porque a causa de pedir é um dos elementos que identifica a causa, não podendo ser modificada sem o consentimento do réu após a citação, e em nenhuma hipótese após o saneamento do processo. O Código, ao exigir a descrição do fato e o fundamento jurídico do pedido, filiou-se à chamada teoria da substanciação quanto à causa de pedir. A decisão judicial julgará procedente, ou não, o pedido, em face de uma situação descrita e como descrita. A teoria da substanciação se contrapõe á teoria da individualização ou individuação, segundo a qual não bastaria ao autor a indicação de relação jurídica controvertida, podendo o juiz investigar e apreciar todos os fatos e fundamentos a ela relativos".

15. DA COGNIÇÃO

A Cognição é uma ato, segundo Kazuo Watanabe, de inteligência em que o juiz poderá, melhor dizendo, deverá considerar, analisar e valorar as alegações e provas produzidas pelas partes, ou seja, as questões de fato e de direito as quais são deduzidas em um processo e cujo alicerce é o resultado (a sentença), o fundamento do judicium, do julgamento do objeto que objetivou a lide.

O mestre Kazuo diz que "O juízo – observa Frederico Marques – é o fruto e resultado, sobretudo, da cognição do juiz, o que vale dizer que o elemento lógico e intelectual constitui o seu traço predominante e fundamental. E acrescenta: A imperatividade do julgado se subordina sempre ao ato de inteligência que o precede e lhe dá substância, visto que provêm das indagações realizadas pelo órgão jurisdicional para investigar e resolver a respeito das questões jurídicas de fato focalizadas no processo."

Segundo o autor em tela, em seu livro, diz que o juiz antes de decidir a demanda, a lide, realiza uma série de atividades intelectuais, ou seja, forma o seu juízo de convicção com o objetivo de se respaldar e trazer subsídios suficientes para julgar a demanda.

Inclusive toma por exemplo os casos já vivenciados em aulas de metodologia científica onde se é utilizado as premissas (premissa menor, premissa maior e conclusão). Para o autor a premissa menor seriam os fatos, premissa maior seria a regra jurídica abstrata e o provimento do juiz seria a conclusão. A soma das premissas abrangeria a cognição, uma vez que estas nortearão o juiz no caminho decisório.

A importância da cognição vem ao encontro da atividade jurisdicional, uma vez que o juiz ao decidir sobre determinado litígio precisa conhecer dos fatos e fundamentos jurídicos da lide, ou seja, conhecer das razões que levaram o autor a buscar e pedir ao Estado que resolva os conflitos suscitados e, por outro lado, ouça também as razões do réu, chegando por fim a um juízo de valor, tomando a decisão que achar correta.

O juiz poderá conhecer das razões em profundidade, superficialmente, parcialmente, definitivamente ou em caráter provisório, tudo dependerá do que o autor venha a pedir.

Salienta ainda o doutrinador que a cognição não fica adstrita aos fatos e fundamentos da lide, uma vez que o magistrado tem como parâmetro decisório as suas próprias vivências, ou seja, fatores tais como: psicológico, volitivo, sensitivo, vivencial, intuitivo, cultural. Cita, como exemplo, a decisão de diferentes juizes em um acidente automobilístico em que um dos magistrados sabe dirigir e outros nunca dirigiu.

15.1. A cognição nos planos vertical e horizontal

A cognição pode ser vista em distintos planos em número de dois: horizontal (extensão) e vertical (profundidade).

No horizontal a cognição tem por limites objetivos do processo e no plano vertical poderá ser classificada segundo o grau de sua profundidade, em exauriente (completa) e sumária (incompleta).

Há a cognição rarefeita que é a cumprida no processo de execução.

Grande parte dos processualista adota a teoria do trinômio (pressupostos processuais, condições da ação e mérito da causa), entretanto não há uniformidade de entendimento quanto ao conceito e abrangência de cada um dos termos. Ë a teoria defendida por Liebman, e que no Brasil formou inúmeros seguidores e ainda continua tendo adeptos.

Diz o mestre Kazuo sobre os pressupostos processuais que "Cintra, Grinover e Dinamarco sustentam concepção restritiva: ‘a doutrina mais autorizada – dizem eles – sintetiza esses requisitos nesta fórmula: uma correta propositura da ação, feita perante uma autoridade jurisdicional, por uma entidade capaz de ser parte em juízo’. Reduzem a apenas três pressupostos processuais: a) um pedido; b) a capacidade de quem formula; c) a investidura do destinatário do pedido, ou seja, a qualidade de juiz".

Condições da ação para os adeptos do trinômio seriam o segundo objeto da cognição do juiz e são elas a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade de partes e o interesse de agir.

Mérito da causa diz respeito ao uso correto da terminologia adequada, pois há inúmeras formas de se falar sobre o mérito da causa como lide, res in iudicium deducta, litígio, objeto do processo, objeto litigiosos do processo todas expressões

Sinônimas de mérito da causa.

No âmbito do mérito reza o autor em tela que "o juiz deverá conhecer de todas as questões suscitadas pelas partes e também daquelas que por ofício lhe caiba conhecer, cumprindo assim, por inteiro, a atividade cognitiva que deverá servir de fundamento à decisão a ser proferida."

As espécies de cognição que são: plena e exauriente, parcial e exauriente, plena e exauriente secundum eventum probationis, eventual, plena ou limitada e exauriente, sumaria e superficial.

Para finalizar não poderíamos de deixar de citar o grande mestre Kazuo que mostrou-nos quão importante é a cognição no ordenamento jurídico dizendo: "A cognição torna-se necessária no momento em que o Estado avoca para si o monopólio da justiça, interpondo-se entre os homens em conflitos de interesses. A interposição do Estado atende à razão política de evitar o prevalecimento do mais forte e de substituir a força pela justiça, num esforço de solucionar os conflitos pelos meios mais civilizados, e isso somente se consegue conhecendo-se as razões de ambas as partes."

16. CONCLUSÃO

 A classificação mais aceita pela doutrina é a tradicional – abraçada pelo Código de Processo Civil, por se considerar que o pedido que se contém na ação será sempre ou uma declaração, ou a formação de nova situação jurídica (criando-a, modificando-a ou suprimindo a antiga) ou uma prestação.

Isso corresponde à tríplice divisão das ações de conhecimento: declaratórias, constitutivas e condenatórias, afirmando-se, mesmo, que não tem tido aceitação na doutrina a denominação ações mandamentais.

Dentre as vantagens em se lançar mão da ação declaratória, sem dúvida, a principal consiste na prevenção de litígios futuros. A segurança da coisa julgada por si só, as vezes capaz de solucionar prováveis controvérsias posteriores entre os litigantes.

A ação cominatória apesar de Hodiernamente não ser mais admitida, proporcionava sensível economia processual, pois a ameaça contida na cominação podia produzir o esperado efeito intimidativo, forçando que o obrigado, dentro do decêndio em que se esperava a defesa, desse desempenho à obrigação.

Assim, as ações de conhecimento, as ações constitutivas tendem a uma sentença que contém uma declaração e além disso, modifica uma situação jurídica, criando uma situação nova.

O nosso Código de Processo Civil adotou a teoria da substancialização, exigindo que o autor indique na inicial os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido.

A ação mandamental, apesar de muito estudada por Pontes de Miranda, não é adotada pela maioria dos juristas que utilizam a classificação tripartida.

Importante lembrar que o Pedido nada mais é do que o núcleo da exordial, visando alcançar a sua finalidade, seja ela de satisfatividade, garantia de um processo principal, declaração, condenação ou de constituição. Já a causa de pedir, com a somatória dos fatos e fundamentos jurídicos chega-se à causa de pedir, que é a teoria da substancialização.

A cognição é um ato de valoração feito pelo juiz para que, quando de sua decisão tenha efetivamente subsídios suficientes para julgar a demanda.

BIBLIOGRAFIA

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WATANABE, Kazuo. Da Cognição no Processo Civil, Central de Publicações Jurídicas, São Paulo: 1999, 2ª ed. atual.

 

Referência  Biográfica

Ersio Miranda – ersio@uol.com.br


O duplo processo de vitimização da criança abusada sexualmente: pelo abusador e pelo agente estatal, na apuração do evento delituoso

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* Maria Rosi De Meira Borba

"No presente, os meio cegos estão falando aos cegos. Uma das maiores causas de dano secundário nas crianças que sofrem abuso sexual e de fracasso profissional é a imensa pressão sobre os profissionais e o sentimento de que temos que fingir que conseguimos enxergar perfeitamente e que sabemos como agir. Mas nenhum de nós sabe ainda",  –   (Tilmam Furniss).

1. Introdução

            De todas as mazelas sociais que o ser humano enfrenta no dia a dia, por certo, a violência sexual infantil ocupa uma posição absolutamente relevante e incomodativa.

            Quando, no polo passivo do abuso sexual, se depara com uma criança de 03, 06, 07, 12 anos e as seqüelas físicas e psicológicas advindas da violência sofrida, é natural que um sentimento de impotência e despreparo transpasse a alma de cada um que necessita lidar diretamente com as conseqüências do abuso sexual.

            A reação primeira de todos, diante do tema-tabu do abuso sexual infantil é evitar o enfrentamento da questão, afinal, é por demais doloroso entender e aceitar que o abuso sexual infantil existe, que ele perpassa todas as classes sociais e tem como vitimizador, em mais da metade dos casos, alguém ligado à criança por laços afetivos muito fortes, como o pai, padastro ou responsável pela sua educação.

            A tomada de consciência da problemática e o meio de lidar com a questão posta é essencial para toda sociedade, na busca de meios e propostas que coíbam essa hedionda conduta.

            Aos operadores do direito, porém, cabe uma tarefa ainda mais árdua, a de lidar com a criança vitimizada, de forma profissional e consciente, onde se busque evitar a ocorrência do segundo processo de vitimização, que se dá nas delegacias, conselhos tutelares e na presença do juiz, quando da apuração do evento delituoso, causando na vítima os chamados danos secundários advindos de uma equivocada abordagem realizada quando da comprovação do fato criminoso e que, segundo a melhor psicologia, poderiam ser tão ou mais graves que o próprio abuso sexual sofrido.

            Este trabalho objetiva, portanto, além de, resumidamente, buscar compreender a dinâmica do abuso sexual infantil, entendendo-o sob o enfoque multidisciplinar, pretende ofertar algumas soluções para a comprovação do fato ocorrido, sem que se constranja a vítima ao ponto de impor-lhe, através do jus puniendi do Estado, um novo processo de vitimização.

            Todos sabem que o abuso sexual é tido como uma das mais graves formas de maltrato infantil e consiste na utilização de um menor para a satisfação dos desejos sexuais de um adulto. As formas mais comuns de abuso sexual são: as "carícias", o contato com a genitália, a masturbação e a relação vaginal, anal e oral.

            Nunca é demais relembrar que o abuso sexual é um fenômeno transgeracional, que perpassa todas as classes sociais, sem distinção de raça, cor, etnia ou condição social, e cuja incidência não se revela no seu inteiro teor, já que, na grande maioria dos casos, não se leva a notícia do abuso às Autoridades Competentes.

            Apesar disso, os números são escandalizadores. Estima-se que ocorram 12 milhões de abuso sexual, por ano, no mundo.

            Os americanos acreditam que, em seu País, aconteça uma agressão sexual a cada 6,4 minutos e que 25% das mulheres tenham sofrido algum tipo do contato sexual não consentido, na infância ou adolescência.

            Inúmeras pesquisas realizadas pelo mundo comprovam de que no abuso sexual infantil o pai biológico, seguido pelo padrasto, tio, avô, são os responsáveis por mais de 70% dos eventos delituosos ocorridos.

            Os números falam por si e expressam, na medida de sua magnitude, o grave problema social e de saúde pública a ser enfrentado.

            Desta forma, resta claro que aqueles que nunca lidaram com o fenômeno não têm idéia de sua vastidão e de seus devastadores efeitos.

            Gize-se que, segundo dados levantados, de 20 a 30% das crianças maltratadas, convertem-se em adultos violentos, mantendo-se o círculo vicioso de que a vítima de hoje é o carrasco de amanhã, confirmando-se, assim, que o abuso sexual é um fenômeno transgeracional.

2. Da interdisciplinariedade ocorrente no abuso sexual infantil:

            A primeira premissa da qual se deve partir ao estudar o abuso sexual infantil é que o assunto não permite uma abordagem embasada na unilateralidade.

            O enfrentamento do complexo tema do abuso sexual infantil feito de forma unidisciplinar ofertará ao estudioso uma visão mutilada, incapaz de ofertar soluções que levem em consideração não só aspectos legais, mas a recuperação plena da criança vitimada, não se permitindo, por conseqüência, a ocorrência do fenômeno transgeracional.

            Para Tilmam Furnis o abuso sexual da criança é um problema maior do que o esforço, as capacidades e as responsabilidades que uma única profissão consegue abranger. Ele é uma questão verdadeiramente multidisciplinar e metassistêmica. (1)

            Assim, mister se faz que os operadores jurídicos e toda a sua gama de representantes tenham a clareza que, ao tratar do abuso sexual infantil não o podem fazer de maneira isolada, mas devem buscar a imprescindível colaboração dos profissionais que conheçam a dinâmica do abuso sexual, as seqüelas dele advindas e as formas possíveis de combatê-las.

3. Das diferenças entre o abuso sexual ocorrido dentro e fora do ambiente familiar:

            A grande diferença entre o abuso sexual intrafamiliar e o extrafamiliar se dá basicamente pelo que a psicologia convencionou chamar de síndrome do segredo.

            Assim, quando o abuso sexual ocorre fora do lar, ou tem como abusador alguém não próximo à família, a providência imediata, na grande maioria das vezes, é denunciar o agressor, dando crédito à denúncia da vítima.

            Essa conduta, porém, não ocorre, em termos gerais quando o agressor é o pai biológico, padrasto, pai adotivo, tio, avô, irmão, onde, também na grande maioria dos casos, se concentra o esforço familiar na busca de se manter o status quo existente e ameaçado com a revelação.

4. Do abuso sexual intrafamiliar como síndrome de segredo ocorrente com a vitima do abuso sexual:

            A primeira questão que vem a mente, de início, daquele que estuda o abuso sexual infantil, é a motivação que leva a criança vitima do abuso a calar-se ou ocultar a verdade dos fatos.

            Esse fenômeno que os psicólogos chamam de síndrome de segredo e que leva a não revelação, às vezes, por longo período, ocorre por vários motivos que vão desde a culpa que a criança carrega por ter participado da interação abusiva, até ao medo das conseqüências da revelação, como fator desintegrador do núcleo familiar.

            Aspecto por demais esquecido pelos que lidam, de forma empírica, com o abuso sexual infantil é entender que a criança vitimizada, em muitos casos, nutre forte apego pelo abusador, com quem, no mais das vezes, mantém vínculos parentais significativos e únicos.

            Outra premissa que não se embasa em fatos da realidade é a assertiva de que as mães ou cuidadores não abusivos sempre acreditarão na revelação do abuso sofrido por parte da criança.

            A negação psicológica e a incapacidade de acreditar na revelação do abuso sofrido por parte das mães ou cuidadores não abusivos e que ocorre com mais freqüência do que um leigo é capaz de supor, leva a criança vitimizada a crer que a sua história não interessa e que os adultos não se preocupam com ela.

            O fato de participar da interação abusiva leva muitas vitimas a acreditarem que são, de alguma forma, responsáveis pelo abuso.

            Ressalte-se ainda que as ameaças explícitas ou implícitas dirigidas contra a criança reforçam a síndrome de segredo, em relação ao abuso.

            Em muitas vezes o abusador busca transferir para a criança a responsabilidade pelo ocorrido ou pelas conseqüências da revelação, convencendo a vítima de que será sua culpa se o pai for para a cadeia ou se a mãe ficar magoada com ela.

            O sentimento de culpa partilhado pela criança e a responsabilidade que sente pela prática abusiva, segundo Furniss é o principal fator de existência da síndrome do segredo.

            O temor de serem castigadas, não acreditadas e não protegidas, leva muitas crianças a mentirem sobre o abuso sexual, de forma consciente.

            Dessa forma, só com o rompimento da síndrome do segredo se poderá comprovar, de forma satisfatória, a prática sexual ocorrente, retirando-se a vitima do círculo vicioso existente.

5. Do abuso sexual como síndrome de segredo e adição por parte do abusador:

            Para o abusador as síndromes de segredo e de adição encontram-se interlegadas e compõem o processo de interação abusiva.

            Não restam dúvidas que o vitimizador tem consciência de que o abuso sexual é prejudicial à criança e, apesar disso, o abuso acontece.

            Na visão dos terapeutas, o abusador sexual age em relação à criança como os dependentes de entorpecentes agem em relação à droga.

            É factível notar que, ao contrário do processo de drogadição, em que o polo ativo é ocupado pelo dependente e o polo passivo pela substância da qual depende, no abuso sexual o polo passivo é preenchido pela criança, "coisificada" e pronta para ser consumida.

            Assim, se instala uma relação onde o abusador se transforma em um dependente da criança abusada, e dela necessita, inclusive para que guarde o segredo sobe o abuso ocorrente

6. Dos direitos constitucionais do acusado de abuso sexual infantil:

            Aos operadores do direito é essencial a consciência de que o crime é um fato social inerente à própria condição humana e que sempre existirá.

            A diminuição da criminalidade não se realiza através do direito penal e sim pelo exercício de políticas públicas e sociais que visem extirpar a miséria, as diferenças sociais existentes.

            A forma como o Estado exerce seu direito de punir e as limitações a esta tarefa estão garantidas pela Constituição, através do princípio constitucional do devido processo penal e seus consectários previstos na ampla defesa e contraditório, exercidos dentro de um processo penal formal.

            O apego a essas diretrizes é essencial para a garantia e sobrevivência do Estado Democrático de Direito, aspiração maior de toda Sociedade.

            Assim, mister se faz que na apuração do evento delituoso de qualquer matiz, especialmente nos crimes contra a liberdade sexual, o operador do direito deve ter claro o sentido garantista da Carta Magna que não permite o abrandamento ou supressão das garantias constitucionais do Acusado.

            A busca do equilíbrio entre a verdade real e a garantia dos princípios constitucionais do Réu é a tarefa maior a que deve se dedicar o operador do direito incumbido da tarefa de comprovar ou não o crime de abuso sexual, especialmente o infantil.

            É factível notar que o sistema presidencial, onde o Juiz, colocando-se numa posição física superior a da vítima e circundado pelo Representante do Ministério Público e o Defensor do Réu, questionando diretamente a criança sobre o evento delituoso, apesar de validar as garantias constitucionais do Denunciado, traz, na maioria das vezes, danos psicológicos que podem de ser de igual ou maior monta que o próprio abuso sexual sofrido.

            Insta salientar ainda que o Magistrado ao conduzir a oitiva da vítima de abuso sexual infantil da mesma forma que os demais crimes, no mais das vezes, não consegue penetrar no universo da criança vitimada e deixa de recolher dados absolutamente imprescindíveis à comprovação do abuso, que acaba por redundar na absolvição do Denunciado, por falta de provas.

7. Dando licença explícita para a criança relatar o abuso sexual ocorrido:

            A primeira premissa que ocorre aos operadores do direito, especialmente aos magistrados é que a tarefa de romper a síndrome de segredo que atinge a criança vitimizada pelo abuso sexual, não pertence a sua seara de conhecimentos e isso deveria ser realizado por profissionais de outras áreas, mais preparados para a tarefa.

            Há entretanto, pontos relevantes que devem ser distinguidos: o primeiro é a garantia do contraditório, ocorrente na audiência de instrução probatória, o segundo é a certeza que se espraia sobre a consciência do julgador, ao ouvir, da própria vítima, o relato do abuso sexual sofrido, certeza esta que não se conseguiria extrair de milhões de relatórios e entrevistas.

            É conhecido por todos que militam na área jurídica a enormidade de absolvições, por falta de provas, ocorridas nas acusações de abuso sexual, especialmente infantil. Isso ocorre, no mais das vezes, pela total incapacidade do Operador do Direito, especialmente o Magistrado, de entender que a criança vitimada necessita de licença explicita para contar o que lhe ocorreu, usando para tanto o que os psicólogos chamam de Linguagem Sexual.

            Nos casos de abuso sexual intrafamiliar é imprescindível relembrar que a criança sofre, normalmente, em seu meio familiar, pressão psicológica para não romper a síndrome do segredo.

            Demais a mais, a criança abusada sexualmente não tem facilidade de confiar nos adultos, já que foi violentada por um deles.

            Ao questionar uma criança vitima de abuso sexual, especialmente o intrafamiliar, o Magistrado deve transmitir à vítima a sensação de que a sua história lhe interessa e que não teme conhecê-la.

            Na busca de preservar a criança, muitos juizes evitam questioná-las, na intenção de protegê-las. Os terapeutas afirmam que ao agir assim, o Magistrado passa à criança a impressão de que sua história não lhe interessa e que a criança não tem autorização para romper o segredo.

8. Da linguagem apropriada para falar sobre o abuso sexual:

            Sem dúvida, uma das maiores dificuldades existentes para quem lida com qualquer tipo de abuso sexual é encontrar a linguagem correta para se comunicar com a vítima, testemunhas e com aquele que é apontado como abusador sexual.

            Quando se trata de uma vítima de 05, 06, 07 anos a situação é por demais aterrorizante, principalmente para os magistrados que, por não conhecerem a dinâmica do abuso ou por se sentirem envergonhados ou embaraçados, evitam, de todas as formas uma linguagem explícita sobre o abuso sexual ocorrente.

            Buscar o uso de uma linguagem sexual explícita e apropriada para a idade da criança é essencial.

            Nominar os órgãos genitais com os apelidos que a criança vitimada lhes dá, ajuda, por certo, a romper com a síndrome de segredo.

            Muitos profissionais, inclusive da área médica, referem-se ao ato sexual como "aquilo", "um problema" etc.

            É elementar que, ao contactar com a criança ou com as testemunhas, não se deve usar uma linguagem sexual agressiva e que crie uma sensação de constrangimento insuperável.

            A busca do equilíbrio em nominar o abuso sexual de forma clara e transparente, sem parecer à criança que o profissional que a interroga teme dizer as expressões em seu contexto, e a sensibilidade do inquiridor para não fazer colocações desnecessárias e abusivas é a tênue linha sobre a qual devemos caminhar quando questionamos sobre abuso sexual infantil.

9. Da experiência da autora na apuração de alguns casos de abuso sexual infantil:

            É bem verdade que seria excelente se o trabalho de preparar a criança para romper com a síndrome de segredo fosse realizada antes da audiência com o Magistrado e que a criança ali chegasse pronta para relatar o que aconteceu.

            No mais das vezes, entretanto, a criança às vezes relata o ocorrido na Delegacia ou no Conselho Tutelar, ou em ambos, e ao chegar à sala de audiências, se fecha, assustada com o ambiente ou com as repercussões de seu relato.

            Com alguns juízes mais desavisados a criança chega a se avistar com o abusador minutos antes da audiência, pelos corredores do fórum e, dependendo do vínculo que os une, a vitima estará muito abalada para relatar o ocorrido.

            Em alguns casos em que tenho trabalhado na apuração de abuso sexual infantil, tive como providência primeira buscar uma aproximação com a criança, iniciando o trabalho por sentar-me próximo a vítima ou testemunha impúbere.

            Despir-se da beca é essencial, já que a representatividade de poder que ela impõe chega a assustar alguns adultos, imagine-se a repercussão na alma de uma criança.

            Nessas audiências tenho primeiro buscado adentrar no universo dos pequenos, buscando afinidades entre a sua família e a minha e entre a minha filha e a vítima, procurando saber o número e a idade dos irmãos, as brincadeiras que gosta, etc.

            Outro ponto que entendo relevante é nominar os órgãos genitais pelo apelido que a vítima lhes dá e isso varia de família para família, de região para região e de classe social.

            Chegar ao nível da criança e dela buscar uma proximidade faz com que a criança acredite que a sua história é importante e que o profissional que a questiona se preocupa com ela.

            A criança deve ter certeza de que o seu relato não lhe trará punições ou rejeição pelos membros da família e pelo profissional que a interroga.

            A permissão para relatar o ocorrido deve ser explícita e a mensagem de que apesar de não ter culpa, no sentido legal, a criança participou dos fatos e os conhece, podendo assim ajudar a esclarecê-los, com suas informações.

            Em uma audiência, onde inquiri 04 menores impúberes, a mais nova tinha apenas 06 anos e a maior com 11 anos, me lembro de ter abordado o assunto do abuso sexual, depois de uma longa conversa onde busquei criar um vínculo de intimidade, nos seguintes termos: "é importante que você saiba que você não teve culpa pelo que ocorreu. Nenhuma culpa. Acontece que você estava lá e eu preciso muito saber o que aconteceu para tomar as providências que os adultos tomam em casos assim. Vamos supor que você estivesse viajando comigo, em meu carro e eu começasse a dirigir em alta velocidade e viéssemos a sofrer um acidente. Você se sentiria culpada? Quem seria responsável pelo acidente?". Nesse ponto a resposta é sempre a mesma; "A Senhora seria responsável pelo acidente".

            Daí para frente a argumentação é fácil. "Então, mas se o guarda perguntasse a você como foi o acidente, você não contaria que eu estava correndo e por isso o carro bateu? Pois da mesma forma que no acidente você não teve culpa, porém você estava lá quando ocorreu, da mesma forma você estava presente quando ocorreu o abuso e eu preciso que você me relate, como relataria ao guarda, todo o ocorrido".

            Os fatos colocados assim retiram da Vítima a sensação da culpa pelo abuso, colocando o fato da responsabilidade na pessoa que o cometeu, permitindo que a criança tenha a sua experiência e relate o que efetivamente aconteceu.

10.  Das formas alternativas de procedimento de colheita de provas:

            Como já afirmado, no decorrer deste trabalho, o que se busca são formas de proceder a oitiva da criança sexualmente abusada, sem lhe causar novos danos psicológicos, ao mesmo tempo em que se garanta,ao Acusado, o direito ao devido processo legal e seus consectários.

            Entre as propostas devem ser consideradas as seguintes:

            a) A substituição da inquirição da vítima por uma avaliação técnica que só será possível com a concordância da Acusação e Defesa.

            b) a nomeação de um intérprete, para a oitiva da criança vitimada, nos termos do artigo 223 do Código de Processo Penal.

            c) A inquirição através da Câmara de Gesel.

            d) A criação de Varas Especializadas na apuração dos crimes de abuso sexual.

            Importante que se analise cada uma das sugestões acima alinhavadas com suas vantagens e desvantagens.

            10.1. A substituição da inquirição da vítima por uma avaliação técnica:

            Colher o depoimento de uma criança vitimada pelo abuso sexual, como já afirmado alhures e por diversas vezes, não é tarefa fácil. Diante disso, alguns magistrados têm determinado uma avaliação técnica da vítima, com a apresentação de relatório, nos autos.

            Gize-se que este procedimento tem sido validado pelos Tribunais Superiores e é de grande valia, em muitos casos.

            A única dificuldade que se coloca é quando uma das Partes, Acusação ou Defesa, discorde do procedimento adotado e alegue supressão do direito constitucional ao devido processo legal que não prevê tal possibilidade. Assim, a avaliação técnica só será possível quando se puder contar com a aquiescência de ambos os Polos da relação processual, sob pena de nulidade.

            10.2. A nomeação de intérprete:

            Sugestão por demais interessante e trazida a baila pela Promotora de Justiça Veleda Dobke, em sua sobre o tema ora em estudo:

            Os operadores do direito, na hipótese de não se encontrarem capacitados para a inquirição da criança abusada, de não terem conhecimentos sobre a dinâmica do abuso sexual ou não entenderem a linguagem das pequenas vítimas, podem nomear um "intérprete" com formação em psicologia evolutiva e capacitação na problemática do abuso sexual, para, através dele, ouvir a criança, numa tentativa de melhor atingir os objetivos da ouvida – não infligir dano secundário e obter relato que possa ser validado como prova para a condenação, se for o caso.

            Quando a testemunha, também a vítima, não conhece a língua nacional ou for surda-muda que não saiba ler e escrever, intervirá no ato de sua inquirição, por nomeação do juízo, como intérprete e sob compromisso, pessoa habilitada a entende-la. Assim, determina o artigo 223 do Código de Processo Penal.

            Ora, se é determinada a nomeação de um intérprete no caso de a vítima não entender a língua nacional ou der surda-muda que não saiba ler e escrever, também será possível a nomeação de profissional para auxiliar na realização da inquirição de uma criança vítima de abuso sexual. A necessidade da nomeação de um intérprete em ambos os casos é evidente (2)

            10.3. A inquirição através da Câmara de Gesel:

            Segundo Sanz e Molina, citados por Veleda Dobke, em muitas nas Comarcas da Argentina já se lança mão da Câmara de Gesel, descrita como uma sala com uma das paredes de vidro espelhado, unidirecional.

            Assim, os profissionais que atuam no feito, Juiz, Promotor, Defensor, além do Acusado, não são vistos ou percebidos pela Vítima, posto que se posicionarão do lado externo e se comunicarão com um profissional habilitado e nomeado pelo Juiz, que fará à criança as perguntas determinadas pelo Magistrado, através de intercomunicadores.

            Sem dúvida alguma esta é a solução ideal para a realização de uma oitiva não traumatizante para a vitima e, por sua vez, garantirá, ao Acusado, o seu direito constitucional ao devido processo legal.

            Por evidente, a solução demanda despesas adicionais às finanças do já combalido Poder Judiciário, entretanto, poderia, de início, se analisar a possibilidade de instalação de Câmaras de Gesel em Comarcas Polos, onde se teria um Magistrado com conhecimento da dinâmica do abuso sexual, ladeado por um psicólogo com formação específica na área.

            Assim, as vítimas poderiam ser descoladas, por pequenas distâncias e oitivadas através de Carta Precatória.

            10.4. A criação de Delegacias e Varas especializadas em crimes de abuso sexual:

            Diante do elevado número de ocorrências de crime de abuso sexual é importante que os Tribunais de Justiça dos Estados analisem a possibilidade de criação de Varas Especializadas para esses casos.

            É fato de que o abuso sexual, especialmente o infantil e intrafamiliar está entre os crime de menor notificação às Autoridade Competentes. Nem por isso se pode dizer que poucos são os casos a se apurar.

            Assim, com a criação de Delegacias e Varas Especializadas neste tipo específico de crime, onde atuariam profissionais capacitados na lida com tão delicada questão, somaria, de forma significativa, na apuração dos crimes em questão.

CONCLUSÃO:

            Por certo cabe aos operadores do direito a conscientização do grave problema enfrentado e a consciência de que se faz necessário conhecer dinâmica do abuso sexual para realizar seu trabalho, seja como Juiz, Promotor ou Defensor do Réu, posto que, por certo, a ninguém interessa traumatizar, novamente, o infante já vitimado.

            Um novo proceder se impõe.

            Nos Juizes, promotores, advogados, só estaremos motivados a buscar a comprovação ou não do abuso sexual se tivermos capacidade intelectual e conhecimento que nos permitam manejar a situação posta a nossa frente.

            A colocação em prática das sugestões alhures alinhavadas modificará, por certo, a comprovação do abuso sexual, tornando-a mais efetiva e não traumatizante.

            Não há, porém, como deixar de concluir que de todas as sugestões apontadas, a que atinge de forma definitiva os objetivos propostos, de preservar a vitima e garantir ao Acusado o devido processo legal é, sem dúvida, a instalação das Câmaras de Gesel, em todas as Comarcas ou em polos regionais para onde se procederia ao deslocamento da Vítima que poderia ser oitivada, através de precatória, pelo Juiz local, assistido por profissional competente que, após ouvir as interrogações do Magistrado, as faria à Vitima, de forma técnica, sem a causação de mais danos psicológicos.

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Notas

            1. FURNIS, Tilman. Abuso Sexual da Criança. Uma abordagem Multidisciplinar.Porto Alegre, 1993, p.98.

            2. DOBKE Veleda. Abuso Sexual: a inquirição das crianças uma abordagem interdisciplinar.Porto Alegre, 2001, p.91.

 


Referência  Biográfica

Maria Rosi De Meira Borba  –  Juíza de Direito do Estado de Mato Grosso

E-mail: mrosi@vsp.com.br

Súmula Vinculante : uma nova abordagem

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* Eduardo Feld  –

"O fascismo é fascinante e deixa a gente ignorante e fascinada

E é tão fácil ir adiante e esquecer que a coisa toda está errada"

Engenheiros do Hawai

Foi criada pela mídia uma entidade personificada, intitulada "o Mercado", que é uma criatura com a aptidão para ficar calma, nervosa, triste, agitada, cautelosa ou eufórica, dormir, acordar, enfim, um ser quase humano. Ganhou este ser a suprema importância de nortear, acima de tudo, os juízos de valor sobre as decisões do país.

A cada lei ou emenda constitucional que retira alguma garantia do cidadão, o Mercado sorri, e a partir deste termômetro, conclui-se que a medida é boa. E assim a Constituição de 1988 vem sendo depenada pelo Mercado, eufórico, até que não sobre quase nada.

O Mercado agora está de olho na independência do Judiciário, uma vez que esta independência consiste num obstáculo para a realização de seus objetivos. Por isto, é necessária uma reforma do Judiciário, cuja estrela principal é a "súmula vinculante", uma espécie de norma que visa vincular o Judiciário ao Mercado.

A súmula vinculante é apresentada para a sociedade como um santo remédio para o problema do emperramento da máquina judiciária brasileira. Uma vez aprovada a reforma, repentinamente, como num passe de mágica, aquilo que se convencionou chamar de "Justiça" tornar-se-ia muito mais ágil. Este é o modo pelo qual se procura esconder o verdadeiro objetivo da inovação: apresentando-se um suposto efeito benéfico, que na verdade é ilusório.

Mas afinal, o que é o Mercado?

Todo desejo de uniformidade esconde no seu bojo o desejo de uma determinada ideologia. Quem quer uniformizar, evidentemente quer uniformizar a seu modo. O sonho de Adolf Hitler era a total uniformidade. E na busca desta uniformidade, não mediu esforços para destruir tudo aquilo que obstaculizava seu sonho. Afinal, os fins justificam os meios.

Muito se discute sobre a súmula vinculante, sobre a sua conveniência, uns são contra, outros a favor, vários artigos já foram escritos, no entanto, há ainda questões que foram muito pouco abordadas.

Em primeiro lugar, há uma impossibilidade ontológica de uma pessoa impor a outra um modo de interpretação. Isto se dá pois a interpretação (determinação do sentido e alcance de uma norma) é uma atividade que não se pode separar da subsunção da norma (aplicação ao caso concreto). A primeira é instrumental em relação à segunda.

Imagine, por exemplo, que haja um aviso numa estação de trem nos seguintes termos: "É proibida a entrada de cães". Esta norma é constitucional? Aparentemente, sim.

Agora, imagine que um cego, guiado por seu cão, seja impedido de entrar na estação por causa desta norma. Para ele, a norma é inconstitucional, pois lhe impede o direito à locomoção. Chega-se, então, à seguinte conclusão: a constitucionalidade é algo que se avalia não em abstrato, mas em função de cada caso concreto. Uma norma pode ser constitucional para um caso e inconstitucional para outro.

Assim, um comando normativo que diga "o aviso é válido em face do direito de locomoção", antes de padecer, evidentemente, do vício da inconstitucionalidade, possui um vício de essência, um vício ontológico.

Da mesma forma, num raciocínio mais amplo, qualquer tipo de imposição sobre interpretação de normas torna-se inválida diante da infinita riqueza de casos possíveis mediante os quais as normas podem ser subsumidas.

Outra questão a ser observada, é a seguinte: no conflito entre a lei e a súmula, o que prevalece? Dizer que há a prevalência da lei é o mesmo que dizer que o novo instituto é totalmente ineficaz, podendo o julgador descartar qualquer súmula que entenda ser contrária à lei. Evidentemente, esta não é a intenção da norma (leia-se, do "Mercado").

Então, devemos assumir como verdade que, uma vez que se entenda válido o instituto da súmula vinculante, os enunciados terão força de lei (para maior simplificação, a partir de agora passo a chamar esses novos enunciados de SV’s – súmulas vinculantes -)

Ocorre entretanto que a Constituição, em suas cláusulas pétreas (as que não podem ser alteradas por emenda) restringe aquilo que possa ter força de lei, ou seja, o condão de obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer algo. Para que uma norma tenha esta força, deve ela ter os requisitos formais estabelecidos pela própria Constituição, o que não ocorre com as SV’s. O projeto das SV’s infringe não só o art. 5º, II da CRFB, como também a separação dos poderes.

Se a sociedade e, sobretudo, aqueles que se intitulam "operadores do direito" aceitarem esta novidade como algo válido, estaremos submetendo-nos a um conjunto de normas legais emanadas de um poder não sujeito ao controle popular. E é, então, neste momento que percebemos a gravidade do problema e também a verdadeira questão que está por trás do debate.

Tudo que está sendo dito se aplica igualmente à Emenda nº 3, de 1993, que criou a ação declaratória de constitucionalidade com efeito vinculante.

Há uma incrível semelhança entre os AI’s (atos institucionais) e as SV’s (súmulas vinculantes).

Ambas as normas têm por objetivo "arrumar a casa", uniformizar condutas e vincular a sociedade aos ditames do Mercado.

Ambas provêm de um mecanismo ilegítimo de exercício do poder.

Como aconteceu com os AI’s, os criadores das SV’s esperam de seus destinatários uma total subserviência e estão dispostos a criar mecanismos práticos para assegurar esta subserviência.

Só resta saber se aqueles que ousarem descumprir as SV’s também serão torturados nos porões.

Resumindo e concluindo: uma vez aprovado, o dispositivo da "súmula vinculante" não pode e nem deve ser respeitado, por ser

. sob o ponto de vista ONTOLÓGICO, uma inexistência;

. sob o ponto de vista CONSTITUCIONAL, uma nulidade;

. sob o ponto de vista ÉTICO, inaceitável;

. sob o ponto de vista TELEOLÓGICO, uma tentativa de reinstalar a ditadura no país, agora sob nova roupagem e nova direção.


Referência  Biográfica

EDUARDO FELD  -Juiz substituto do Estado do Rio Grande do Norte

e-mail: efeld@bol.com.br

Novas considerações sobre o momento do interrogatório na Lei 10.409/2002 (Nova Lei Antitóxicos)

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* Renato Flávio Marcão

1. Introdução

Conforme a precisa visão do Jurista e Advogado Mineiro Renato de Oliveira Furtado, a Lei 10.409/2002 é mesmo um “novo Frankstein jurídico” [1] e como tal impressiona e assusta.

Impressiona por ter sido objeto de estudos pelo Poder Legislativo por mais de uma década e ter resultado em um “nada jurídico” (ou injurídico); impressiona pelo conjunto de equívocos e erros crassos que alberga (mandato de citação, p. ex.; cf. art. 38, caput); impressiona pelo conjunto de “regras perdidas”; pelo absurdo de certas disposições; pelos retalhos abandonados no universo jurídico após os vetos Presidenciais ao Projeto que ela deu origem.

Assusta por dar a exata noção da capacidade jurídica (ou incapacidade), do conhecimento (ou desconhecimento) e da preocupação técnica (ou despreocupação) de nossos Legisladores. Assusta pelo descaso de quem não consulta e tampouco ouve quem deveria, na elaboração das Leis.

Por fim, reflexamente ao susto produzido pelo nosso mais novo Frankstein jurídico, pois é só mais um (porém um dos piores), outra coisa que também assusta é a “falta de pulso” que impediu o indispensável e reclamado veto integral ao Projeto que a ele (Frankstein) deu origem.

2. Do interrogatório

Após as primeiras, genéricas e superficiais reflexões lançadas sobre a Lei [2], foi preciso estabelecer novos pensamentos sobre alguns de seus dispositivos, sobre alguns de seus temas, e no particular sobre o interrogatório, que nos inquietou ainda mais profundamente, considerando a forma como veio regulado no Novo Diploma.

Com efeito, nos precisos termos do art. 38, caput, última parte, da Lei 10.409/2002, ao proferir o despacho em que ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias, o Juiz designará dia e hora para o interrogatório, que se realizará dentro dos 30 (trinta) dias seguintes, se o réu estiver solto, ou em 5 (cinco) dias, se preso.

Pela interpretação que se extrai do texto, o prazo de 30 (trinta) ou 05 (cinco) dias (seguintes) será contado do despacho e não da resposta escrita, já que a designação ocorrerá no despacho inicial, e nesta ocasião o juiz ainda não saberá a data em que será apresentada a resposta escrita, inclusive em razão das disposições contidas nos §§ 3º, 4º e 5º, do art. 38.

Há um grave problema, entretanto, que decorre da impossibilidade de realização do interrogatório dentro do prazo de 05 (cinco) dias, em se tratando de acusado preso, pois não é possível admitir seja ele interrogado antes da apresentação de sua resposta escrita, para a qual dispõe do prazo de 10 (dez) dias, contado da juntada do mandado de citação aos autos ou da primeira publicação do edital de citação (o que já vai demandar outros tantos dias). E mais, como interrogá-lo no prazo de 05 (cinco) dias se ainda é possível o acréscimo de mais 10 (dez) dias no prazo para a resposta escrita, além dos dez iniciais, na hipótese do § 3º do art. 38 e, em qualquer caso, dispondo o Ministério Público de 05 (cinco) dias para manifestar-se sobre a resposta escrita (§ 4º) e o Juiz de outros 05 (cinco) para decidir (§ 4º) sobre o recebimento ou não da denúncia, além de outros 10 (dez) na hipótese de se determinar a realização de diligências antes do recebimento (§ 5º) ?

Mesmo em se tratando de denunciado solto, não raras vezes seria impossível a realização do interrogatório em 30 (trinta) dias, contados da data do despacho inicial, a se considerar as hipóteses e os prazos regulados nos §§ 3º, 4º e 5º do art. 38.

Além da questão dos prazos inconciliáveis, pela lógica do artigo 38, caput, parte final, em se tratando de acusado preso o interrogatório sempre ocorreria antes mesmo da resposta escrita, e o que é pior e mais absurdo, antes do recebimento da denúncia.

Não bastasse, o art. 40 da mesma Lei estabelece que ao receber a denúncia, o Juiz designará dia e hora para a audiência de instrução e julgamento, sendo certo que nesta, a teor do disposto no art. 41, proceder-se-á à oitiva das testemunhas após o interrogatório. Vale dizer: o interrogatório deverá ocorrer na audiência de instrução e julgamento.

Pela redação do art. 38 conclui-se que haveria uma data anterior à audiência de instrução e julgamento para a realização do interrogatório, todavia, para conciliar-se tais dispositivos e aproveitá-los integralmente seria preciso concluir que a data designada para o interrogatório, por ocasião do despacho a que se refere o art. 38, deveria ser “aproveitada” para a instrução e julgamento, conforme se determinar em segundo despacho, a ser proferido por ocasião do recebimento da inicial acusatória (art. 40), já que a audiência é una e a inquirição das testemunhas será realizada após o interrogatório, na mesma audiência (art. 41).

Ocorre, entretanto, que pela redação do art. 38 [3] o interrogatório do preso ocorreria sempre antes da resposta escrita e do recebimento da denúncia….

O caos é total.

3. Conclusão

Como também já salientamos em outra ocasião [4], “melhor seria se o legislador estivesse atento e não tivesse incluído na parte final do art. 38, caput, a designação de data para o interrogatório já no primeiro instante, até porque revela-se, a nosso ver, descabida a designação de tal data se o Juiz ainda poderá rejeitar a inicial acusatória (art. 43)”, e aqui a questão é mais complexa que a prevista no procedimento sumaríssimo da Lei 9.099/95, conforme seu art. 81, onde o juiz designa audiência de instrução e julgamento (art. 78), com interrogatório após a colheita de toda a prova, podendo, antes, ainda rejeitar a denúncia, após a resposta da defesa à acusação, a verificar-se imediatamente após a abertura da audiência.

No particular, entendo que a parte final do art. 38, caput, não reúne condições de aplicabilidade.

Assim, no procedimento (instrução criminal) da Lei 10.409/2002, oferecida a denúncia, o juiz, em 24 horas, deverá ordenar a citação do denunciado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias… Nesta ocasião não deverá designar data para interrogatório, pois deverá aguardar o momento do art. 40 [5], quando então, recebendo a denúncia designará data para a audiência em que se procederá ao interrogatório, instrução e julgamento, o que me parece mais adequado, considerando, inclusive, o disposto no art. 41 [6] do mesmo Diploma Legal.

[1] FURTADO, Renato de Oliveira. Nova Lei de Tóxicos – anotações ao artigo 38 e parágrafos. Disponível na internet: http://www.ibccrim.org.br, 22.02.2002.

[2] MARCÃO, Renato Flávio. Anotações pontuais sobre a Lei 10.409/2002 (Nova Lei Antitóxicos) – Procedimento e Instrução criminal. Disponível na internet:
http://www.ibccrim.org.br, 04.02.2002.

[3] “Oferecida a denúncia, o juiz, em 24 (vinte e quatro) horas, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data da juntada do mandato aos autos ou da primeira publicação do edital de citação, e designará dia e hora para o interrogatório, que se realizará dentro dos 30 (trinta) dias seguintes, se o réu estiver solto, ou em 5 (cinco) dias, se preso”.

[4] MARCÃO, Renato Flávio. Idem.

[5] “Recebida a denúncia, o juiz designará dia e hora para a audiência de instrução e julgamento, e ordenará a intimação do acusado, do Ministério Público e, se for o caso, do assistente”.

[6] “Na audiência de instrução e julgamento, após o interrogatório do acusado e a inquirição das testemunhas, será dada a palavra, sucessivamente, ao representante do Ministério Público e ao defensor do acusado, pelo prazo de 20 (vinte) minutos para cada um, prorrogável por mais 10 (dez), a critério do juiz, que, em seguida, proferirá a sentença”.


Referência  Biográfica

Renato Flávio Marcão – Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Penal Especialista em Direito Constitucional. Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal, em São José do Rio Preto-SP. Coordenador Cultural da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo – Núcleo de São José do Rio Preto-SP. Sócio-fundador da AREJ – Academia Riopretense de Estudos Jurídicos e Coordenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP).

e-mail: rmarcao@terra.com.br

Considerações sobre as novas reformas do Código de Processo Civil Leis nº 10.352/01 e 10.358/01

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* Paulo Henrique Moritz Martins da Silva –

           No ano de 1991, através do Ministério da Justiça, foi constituída uma comissão de juristas para estudar o problema da morosidade processual e propor soluções visando a simplificação do Código de Processo Civil. Referida equipe foi coordenada pelos eminentes Sálvio de Figueiredo Teixeira, Ministro do Superior Tribunal de Justiça e Athos Gusmão Carneiro, Ministro aposentado daquela Corte e representante do Instituto Brasileiro de Direito Processual, entidade presidida pela Professora Ada Pellegrini Grinover.

            Em razão dos trabalhos da comissão, desde 1992 o Código de Processo Civil vem sendo submetido a mini-reformas, pois se optou por preservar a estrutura do Diploma, de modo a realizar adequações sem descaracterizar a sua concepção originária.

            Ao longo destes 10 anos tivemos reformulações significativas, como a antecipação da tutela, a ação monitória, o procedimento sumário, o novo agravo, etc.

            Parece razoável frisar que o escopo dessas reformas, inclusive das mais recentes, é o de procurar implementar dispositivos que garantam maior efetividade e celeridade ao processo, ou seja, que através de uma racionalização e de uma simplificação, permitam, de modo mais eficaz, o acesso a uma ordem jurídica justa, na expressão de Kazuo Watanabe.

            Como enfatiza o Prof. Cândido Dinamarco:

            " Não tem acesso à justiça aquele que sequer consegue fazer-se ouvir em juízo, como também todos os que, pela mazelas do processo, recebem uma justiça tarda ou alguma injustiça de qualquer ordem. Augura-se a caminhada para um sistema em que se reduzam ao mínimo inevitável os resíduos de conflitos não-jurisdicionacionalizáveis (a universalização da tutela jurisdicional) e em que o processo seja capaz de outorgar a quem tem razão toda a tutela jurisdicional a que tem direito. Nunca é demais lembrar a máxima chiovendiana, erigida em verdadeiro slogan, segundo a qual "na medida do que for praticamente possível o processo deve proporcionar a quem tem um direito tudo aquilo que ele tem direito de obter." ( A reforma do Código de Processo Civil, Malheiros, 1995, p. 20)

            As tentativas de melhorar a performance do Código vêm sendo feitas, mas não são todas as alterações, contudo, que merecem elogios e nem se pode imaginar que por mero processo legislativo consigamos solucionar toda a gama de problemas que nos afetam.

            Mesmo cientes de tal realidade, passemos a análise das novas reformas do CPC.

            A primeira e inevitável crítica que se faz diz respeito à data de publicação das Leis no Diário Oficial. A n.º 10.352 no dia 27 e a n.º 10.358 no dia 28 de dezembro de 2001, estabelecendo-se em ambas uma vacatio legis de 03 meses, o que indica vigência em 27 e 28 de março, respectivamente.

            Durante boa parte da vacância a comunidade jurídica estava praticamente inativa (as universidades em férias até o final de fevereiro e os Tribunais em recesso durante o mês de janeiro). Isso dificultou a discussão das novidades e representará entraves para a implementação de algumas alterações.

            A reforma do artigo 555, por exemplo, obrigará Tribunais a reverem seus regimentos internos; o artigo 547 propiciará o protocolo unificado de petições e o art. 253, inc. II obrigará à modificação dos sistemas de distribuição das ações, inclusiva na forma eletrônica. O tempo para as adaptações, em muitos Estados, não será suficiente.

            Será abordada, em primeiro lugar, a LEI N.º 10.358, que entrará em vigor no dia 28 de março. (Projeto de lei n. º 3.475).

            Por questão didática, não serão referidos os artigos da lei propriamente dita, mas sim aqueles que foram objeto de modificação no Código.

            ART. 14

            Foi polêmica, pela concepção e pelo desfecho, a alteração do art. 14.

            A redação antiga previa os princípios processuais de lealdade e de probidade das partes e dos seus procuradores.

            Art. 14 – Compete às partes e aos seus procuradores:

            O caput agora dispõe que:

            " São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo."

            Doravante não são apenas as partes e seus advogados que devem agir com lealdade e probidade na esfera do processo e perante o órgão judicial.

            " (…) todos aqueles que de qualquer forma participam do processo".

            A expressão tem abrangência qualificada, ou seja, a interpretação deve ser a mais aberta possível. Aí se incluem as partes, procuradores, servidores da justiça, peritos, assistentes técnicos, autoridades e terceiros submetidos às determinações judiciais, enfim, todos aqueles que de qualquer forma participam do processo.

            A exegese do comando é ampliativa.

            O inciso V foi criado e estabelece o dever de " cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final."

            A redação do dispositivo não é das mais felizes, apesar de ser parcialmente técnica.

            Os provimentos judiciais, segundo a classificação quinária, são de natureza condenatória, declaratória, constitutiva, executiva lato sensu e mandamental.

            É intuitivo, então, que provimento judicial é gênero e que provimento mandamental é espécie.

            Por que destacar o cumprimento de provimentos mandamentais e logo após se referir a não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais?

            Não resta dúvida que provimentos mandamentais são cumpridos, que provimentos condenatórios são executados e que provimentos constitutivos e executivos lato sensu são implementados. Cumprir, executar e implementar são comportamentos que têm conceito distinto em direito processual, mas a especificação, no texto legal, não me parece adequada.

            Efetivar, segundo Aurélio, é tornar efetivo; levar a efeito; realizar, efetuar: efetivar medidas indispensáveis à boa solução de um problema.

            É certo que cumprir tem dicção diferente de não criar embaraços à efetivação, mas a particularização dos provimentos mandamentais teve conotação de preciosismo.

            Por que não se concebeu, tão somente, o dever de cumprir e de não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final?

            Aliás, se o objetivo era de explicitar rigor científico e garantir a efetividade, por que não foram incluídos os provimentos de natureza cautelar? O legislador se prendeu ao tecnicismo quanto aos provimentos mandamentais, mas não teve o mesmo cuidado com a diferença inequívoca que há entre os provimentos de natureza cautelar e antecipatória.

            Pela nossa tradição e pela imensa capacidade de criar teses para todos os temas, não faltarão argumentos para tentar tumultuar a incidência da norma, seja em relação à abrangência de todos os tipos de provimentos judiciais, seja para excluir os deveres de lealdade e probidade em relação aos provimentos cautelares.

            Por interpretação teleológica, todavia, é possível afirmar com boa margem de segurança que os deveres do artigo 14 se dão perante o órgão judicial, independentemente da carga de sua determinação e do tipo de provimento editado, seja ele de natureza antecipatória, final ou cautelar.

            Pela redação do Projeto de Lei, o parágrafo único indicava a punição para quem violasse o inciso V, independentemente de quem fosse o seu protagonista.

            Ocorre que na esfera legislativa este parágrafo foi parcialmente alterado.

            Vejamos como era a redação original do Projeto.

            " Parágrafo único. A violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado."(NR).

            A lei, contudo, ficou assim:

            Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V…

            Pelo que se pode acompanhar do processo legislativo, houve tentativa de fulminar todo o parágrafo único, mediante emenda supressiva.

            Argumentava-se que o parágrafo único era uma regra ociosa, porque o artigo 16 do CPC já cuidava do ressarcimento por dano processual e quando complementado pelo artigo 17 resolvia de modo adequado a questão da " litigância de má-fe."

            A tese não tinha consistência jurídica, data venia.

            Ora, o artigo 14 então sob análise apresentava um conteúdo de abrangência muito maior que o da mera litigância de má-fé, pois além de se voltar contra o litigante (parte), passava a reprimir os outros participantes do processo que de qualquer forma atentassem contra o exercício da jurisdição.

            Enquanto os artigos 16, 17 e 18 tratam de comportamentos e de punições às partes (exclusivamente), o artigo 14 apresentaria maior abrangência e ainda incluiria os advogados, procuradores e todos os que de qualquer forma se submetessem aos comandos judiciais.

            O artigo 32, § único do EAOB também não resolveria o problema, porque cuida da responsabilidade do advogado por lide temerária, desde que esteja coligado com o cliente para lesar a parte contrária. Aliás, sabemos que é dificílima a demonstração inequívoca de tal conluio.

            Não se conseguiu aprovar a emenda supressiva, mas a estratégia acabou vingando de forma parcial, tanto que o Relator do Projeto, Deputado Inaldo Leitão, admitiu para a Folha de São Paulo (edição de 20 de janeiro de 2002) que a OAB conseguiu livrar os advogados privados das novas regras do art. 14 e assim concluiu: "Esse foi o ponto de negociação com a OAB. Não sei dizer quais serão as conseqüências práticas disso. Mas sem esse acordo, não seria possível aprovar o Projeto de Lei."

            O manto protetor sobre os advogados eminentemente privados causou indignação a vários setores da advocacia pública, inclusive ao Advogado Geral da União, Gilmar Mendes, que prometeu ajuizar Ação Direta de Inconstitucionalidade para rever o dispositivo.

            Convenhamos que a redação final do artigo não é nada sutil e se mostra tão corporativa que dispensa maiores esforços para concluir por sua inconstitucionalidade, ou seja, o advogado eminentemente privado não deve à jurisdição as mesmas obrigações que os demais.

            Não há nenhuma justificativa plausível para a exceção e o princípio da isonomia está ferido de morte.

            Mas qual a conseqüência prática de tal redação?

            Sob o meu ponto de vista, a regra não prevalecerá para nenhum advogado, seja ele privado ou público.

            A partir do momento em que se reconhece a lesão à Constituição (art. 5º, caput), não se pode imaginar a incidência da norma apenas para parte da classe dos advogados; ou se atinge a todos ou não se atinge a nenhum.

            Como a lei afastou a sanção sobre os advogados exclusivamente privados idêntica "benesse" deve ser estendida aos demais integrantes da classe.

            É inconcebível inverter a interpretação e projetar a lei contra todos os advogados.

            As novas regras projetadas para o artigo 14 mereciam aplausos, porque tinham objetivo moralizador, principalmente por coibirem os obstáculos à efetivação de decisões judiciais, independentemente de quem fosse o seu autor material ou de quem os arquitetasse.

            Pelo texto aprovado, a norma prevalecerá para os demais participantes do processo, exceto para os advogados.

            Assim, para aqueles que violarem o inciso V do art. 14 do CPC, "sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, será aplicada uma multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final, a multa será inscrita como dívida ativa da União ou do Estado."(NR)

            A sanção é independente de outras de natureza penal, civil e processual, ou seja, se o ato configurar crime, ilícito civil ou processual, as penas respectivas serão aplicáveis, sem prejuízo da multa por ato atentatório ao exercício da jurisdição, no patamar máximo de 20% sobre o valor da causa.

            Como o parâmetro da multa é o valor da causa, será necessária maior atenção sobre a valoração realizada na petição inicial. Além da impugnação facultada ao réu, caberá ao juiz, por questões objetivas, determinar ex-officio a adequação, porque mais um ingrediente de interesse público justificará o controle judicial do valor da causa, independentemente de provocação da parte adversa.

DO VETO AO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 154

            A Lei n.º 10.358 também contemplava um parágrafo único ao artigo 154 do CPC, cuja redação era a seguinte:

            " Atendidos os requisitos de segurança e autenticidade, poderão os tribunais disciplinar, no âmbito da sua jurisdição, a prática de atos processuais e sua comunicação às partes, mediante a utilização de meios eletrônicos."

            Tratava-se de regra há muito tempo esperada por boa parte da comunidade jurídica, a fim de que a tecnologia pudesse ser inserida na atividade processual de modo mais qualificado e com respaldo legal.

            Como disse o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, ao classificar de infeliz o veto, o comando era de feição programática, com escopo de incentivar a prática de atos processuais pela via eletrônica.

            No âmbito do processo propriamente dito, o avanço tecnológico tem nos socorrido de forma muito tímida, porque o sistema legislativo emperra a maioria dos projetos que possam ser desenvolvidos.

            O computador, com seus aplicativos, nos auxilia na edição de textos, na pesquisa de jurisprudência e permite, por mera consulta, a verificação do estágio dos processos em tramitação.

            O parágrafo único representaria uma carta de alforria à tecnologia judiciária e viabilizaria inúmeros projetos que aguardavam a autorização legal para sua implementação.

            Ocorre que o Sr. Presidente da República entendeu de vetar um dispositivo cuja concepção partiu de seu próprio gabinete. Os motivos do veto, com todo o respeito, são de baixa qualidade argumentativa e mais uma vez indicam que a centralização do poder continua ativa e em plena forma.

            Eis as razões do veto:

            "A superveniente edição da Medida Provisória no 2.200, de 2001, que institui a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras, que, aliás, já está em funcionamento, conduz à inconveniência da adoção da medida projetada, que deve ser tratada de forma uniforme em prol da segurança jurídica."

            O Governo Federal criou o programa ICP-BRASIL, que institui a certificação digital para garantir melhor segurança e dar autenticidade à remessa de documentos eletrônicos, públicos e privados.

            Ao invés de motivar os Estados ao desenvolvimento de tecnologia processual eletrônica, o Executivo preferiu caminho inverso, ou seja, colocou uma pá de cal em vários projetos existentes, que precisarão aguardar uma solução uniforme para toda a Federação.

            Em Santa Catarina, por exemplo, onde contamos com um parque de informática de excelente qualidade (creio que não haja nada similar na Justiça de Primeiro Grau em nosso País), já dispomos de tecnologia para a prática de inúmeros atos processuais pela via eletrônica e quando da remessa do projeto de lei imaginamos que poderíamos implementar outras idéias que estavam praticamente concluídas.

            Hoje, em caráter facultativo, já se pode peticionar e receber intimações via e-mail. Temos também o sistema Push, em que o advogado fornece o número do processo em que atua e passa a receber por e-mail qualquer movimento que é realizado naquele feito.

            Por ora, isso é mera faculdade, porque não há respaldo legal que garanta sua implementação coercitiva.

            Já estávamos nos preparando para a intimação automática, ou seja, a partir do momento em que o advogado, portador de uma senha, consultasse a fase do processo pela Internet, o sistema acusaria, emitiria certidão de intimação para ser anexada ao processo e contaria o prazo respectivo.

            Todos os dias, o SAJ listaria ao Técnico Judiciário os processos com prazos vencidos e poderia emitir as certidões.

            Imagine-se, também, a perspectiva de interligação com os Cartórios Extrajudiciais – o cumprimento das sustações de protesto, registros de penhora, de formais de partilha, enfim, quantos atos poderiam ser implementados pela via eletrônica, com ganho de tempo e eficiência.

            Nós já dispomos de know how para isso e poderíamos servir de laboratório, repartindo nossos conhecimentos com os outros Estados.

            O Executivo, no entanto, optou por trafegar na contra mão e vetou o parágrafo único do artigo 154. Aguardemos uma solução uniforme para todo o País, pois foram niveladas por baixo as diferenças regionais que infelizmente ainda temos.

DO VETO AOS ARTIGOS 175 E 178:

            Também foi frustrante o veto quanto à modificação de contagem dos prazos processuais, o que se daria com a nova redação dos artigos 175 e 178, os quais estavam intimamente associados.

            Na verdade, em relação a estes dois dispositivos, podemos dizer que o art. 178 era o ator principal e o art. 175 era o coadjuvante.

            O Projeto alteraria a forma da contagem dos prazos processuais, afastando a concepção da fluência ininterrupta, ou seja, do princípio da continuidade dos prazos.

            Vejamos como é a regra atual:

            Artigo 178:

            "O prazo, estabelecido pela lei ou pelo juiz, é contínuo, não se interrompendo nos feriados."

            Como seria:

            "O prazo legal ou judicial, contado em dias, suspender-se-á nos dias feriados e naqueles em que não houver expediente forense, salvo nos casos previstos no art. 188." (NR)

            Para viabilizar esta forma de contagem, também se alteraria o art. 175, com a seguinte redação:

            "São feriados, para efeitos forenses, os sábados, os domingos e os dias assim declarados por lei." (NR)

            Atualmente, só são feriados os domingos e os dias assim declarados por lei.

            Abortar a nova forma de contagem de prazos significou perder uma boa oportunidade de se fazer Justiça à classe dos advogados, porque são sensivelmente prejudicados pela sistemática atual e que será mantida.

            Nós sabemos que dependendo do dia da intimação, um prazo de cinco (5) dias se reduz, de fato, para dois (2), como acontece, por exemplo, com as intimações ocorridas nas 5ª feiras. Conta-se a 6ª, vem o sábado e o domingo, sobrevindo apenas a 2ª e a 3ª feira.

            Se fosse adotada a sistemática vetada, o prazo de cinco (5) dias só se esgotaria na outra 5ª feira, o que revelaria uma coerência que hoje não existe.

            Vejamos o que o Executivo argumentou para vetar a sua própria idéia, pois aqui também o Projeto fora de sua iniciativa:

            Razões do veto

            "No que diz respeito ao projetado art. 178 do CPC ( pelo art. 1o da proposta, que manda suspender a contagem do prazo nos dias feriados e naqueles em que não houver expediente forense, salvo nos casos dos prazos contados em dobro e quádruplo, estabelecidos no art 188), tem sido dirigidas a este órgão considerações que nos parecem relevantes e que podem ter o condão de alterar o entendimento do Poder proponente acerca da conveniência da adoção de tal norma.

            Tais ponderações dizem respeito às conseqüências negativas que o acolhimento de tal prática acarretará nos trabalhos de secretaria e, em especial, nos Tribunais Superiores, quando da análise de processos oriundos de comarcas diversas, levando-se em conta o número de feriados locais e os casos que podem ter ensejado o fechamento do fórum, que deverão ser do conhecimento do magistrado, principalmente porque o decurso dos prazos peremptórios impede a prestação jurisdicional. Some-se a isso, na primeira instância, por exemplo, o caso de exceções de incompetência serem acolhidas e, portanto, deslocadas as causas para localidades distintas das quais são oriundas as demandas. Ciente de que as Secretarias terão grande dificuldade para o cumprimento da norma, uma vez que, como se sabe, o Poder Judiciário encontra-se cada vez mais assoberbado e, portanto, mais desaparelhado, e, também, de que a busca da celeridade da justiça estará mais comprometida, principalmente se considerado o número de recursos que poderão advir da contagem equivocada dos prazos, contagem essa, frise-se, que é feita por servidores, parece-nos que deveria haver nova avaliação sobre a matéria, agora diante de opiniões que só se fizeram conhecer posteriormente ao encaminhamento da propositura ao Congresso Nacional. A par do elevado propósito que norteou a elaboração do novo texto, a majoração do prazo poderia ser obtida não pela modificação da forma de sua contagem, mas pela própria majoração objetiva dos prazos estabelecidos no ordenamento codificado, sem causar nenhum prejuízo ao bom andamento da justiça."

            Ora, convenhamos, dos seus prazos, que são bem dilatados, o Governo cuida com especial atenção, mas no momento de afastar a hipocrisia hoje reinante em relação aos prazos dos interesses privados, aplica o chamado "jus barrigandi", ou seja, empurra com a barriga uma solução que pelo menos atenuava o grave problema da escassez e da falta de lógica dos prazos para o advogado.

            Não convence o argumento da inconveniência de certificar, Comarca a Comarca, os dias Feriados que suspendessem os prazos.

            Apesar de o Brasil ser o País do Feriado e até do Feriadão, é intuitivo que eles representam uma exceção à regra geral. Em tal contexto, o normal seria a fluência dos prazos nos dias de semana, com suspensão apenas nos sábados e domingos.

            O Executivo, no entanto, fez da exceção uma regra e depositou suas energias vetatórias numa falsa premissa.

            A certificação dos prazos não inviabilizaria o Judiciário Brasileiro, em hipótese alguma. Bastaria uma singela adaptação, com certidões mais precisas, nada mais.

            A propósito, abro parêntese para registrar que a baixa qualidade da informação no processo é um dos graves problemas que afetam a tramitação dos feitos e a manipulação inadequada dos dados é fator de retardamento na composição dos litígios. Esta deficiência é diagnosticada em todos os figurantes do processo. Datas, números, endereços das partes, das testemunhas, valores, e outras informações não são tratadas com a atenção necessária e em muitas ocasiões represam um ato processual e até um procedimento, que precisa ser refeito uma, duas ou mais vezes.

            Seguindo na análise do veto, é surpreendente a menção a problemas na contagem dos prazos quando fossem acolhidas as exceções de incompetência. Que tipo de inconveniente enxergaram? Talvez não tenham lembrado que até mesmo nos casos de incompetência absoluta somente os atos decisórios são nulos (art. 113, § 2º do CPC).

            O Governo afirma, então, que o melhor caminho seria a majoração objetiva dos prazos, mas quando se chegará a tal solução?

            Não resta dúvida que é preciso rever toda a sistemática de prazos no processo civil, mas há tanta diversidade e tanta falta de lógica em relação a isso que se faz necessária uma cirurgia legislativa de grande porte.

            Nós convivemos com situações anômalas em termos de prazos, senão vejamos:

            Imagine-se uma questão envolvendo um contrato bancário. Se a ação for de procedimento ordinário, o prazo de resposta é de quinze (15) dias, se for uma ação de prestação de contas, o prazo é de apenas cinco (5) e se o pacto for objeto de uma execução, o prazo para controvertê-lo será de dez (10) dias (embargos).

            Por que apelar em quinze (15) dias, agravar em dez (10) e fazer embargos de declaração em cinco (5)?

            Por que contestar uma ação cautelar em cinco (5) dias e ter dez (10) dias para responder uma impugnação ao valor da causa?

            Todos sabemos que os prazos são desconexos e exíguos apenas para as partes, já que após a exigência da prática de atos em períodos tão curtos o processo fica aguardando até meses para o impulso oficial, pois se torna refém de um engarrafamento forense com o qual já não podemos mais conviver, tamanho o volume de feitos que nos sufocam.

            Desçamos à realidade e façamos uma uniformização racional dos prazos, porque não é mais possível aceitar que numa escala de produção de massa o processo ainda seja tratado como algo artesanal, cheio de contornos e adereços.

            Só nos resta esperar.

            Com a decisão de vetar o artigo 178, o Executivo não tinha outro caminho e também precisava bloquear o novo artigo 175, pois este só teria sentido com a reforma daquele.

            Considerar o sábado, como feriado, isoladamente, seria realmente inoportuno, pois mitigaria o art. 172.

ART 253:

            O art. 253 ficou com a seguinte redação:

            "Distribuir-se-ão por dependência as causas de qualquer natureza:

            "I – quando se relacionarem, por conexão ou continência, com outra já ajuizada;

            "II – quando, tendo havido desistência, o pedido for reiterado, mesmo que em litisconsórcio com outros autores."

            O novo art. 253 substituiu a antiga expressão feitos de qualquer natureza por causas de qualquer natureza, o que foi correto, porque o que está sujeito à distribuição é a causa, não o feito. O processo começa a se formar com a distribuição e só existirá como actus trium personarum após a citação válida. Assim, não é o feito que é distribuído, mas sim a causa.

            A modificação mais sensível, contudo, se deu no inciso II, cujo objetivo foi o de evitar as "distribuições conduzidas", as quais se caracterizam como uma manobra dos advogados, visando a que a causa que patrocinam seja distribuída para um magistrado que venha decidindo conforme seus interesses, em casos similares.

            Por exemplo, ajuíza-se a ação com pedido de liminar, a qual é negada pelo juiz da 1ª Vara.

            Sabendo que os outros magistrados da Comarca têm posição diversa, o advogado desiste imediatamente da demanda (antes da citação) e protocola novamente a ação, contando que seja distribuída a outro juízo.

            A partir de agora isso fica obstado, o que é bom para o sistema forense, porque evita a sua manipulação pelo usuário.

            Destaque-se que mesmo com a inserção de novos autores (litisconsortes) a segunda demanda será distribuída por dependência.

            Os softwares dos setores de distribuição precisarão ser alterados, mas enquanto isso não ocorrer parece que o controle da dependência só será realizado de forma eficaz no âmbito da ação reiterada. Na verdade, sem o cruzamento eletrônico de informações relativas às partes e às ações, não haverá possibilidade material do distribuidor aferir a repetição.

            Quando a distribuição não fizer o controle da dependência, a matéria poderá ser suscitada ao Juiz da causa que foi renovada, o qual poderá, até mesmo ex-officio, determinar a redistribuição, porque se trata de incompetência absoluta.

            A novidade do art. 253, inciso II poderá, entretanto, abrir campo para turbulências indesejáveis.

            Na linha do exemplo anterior, suponhamos que a primeira ação seja distribuída para a 1ª Vara e o juiz indefira a liminar. O autor pede a desistência e reitera a demanda, que agora é encaminhada para a 2ª Vara. O juiz concede a liminar, o réu é citado e desde logo suscita a preliminar de incompetência, pela prevenção do juízo da 1ª Vara. Como se trata de incompetência absoluta, os atos decisórios são nulos (art. 113, § 2º do CPC).

            É certo que o juiz da 1ª Vara não irá ratificar a decisão do colega da 2ª Vara e os prejuízos pela efetivação da liminar podem ser irreversíveis, o que coloca em jogo a estabilidade e a segurança da tutela jurisdicional.

            Aí está o aspecto negativo da inovação.

ART. 407:

            A novo art. 407 merece elogios:

            " Incumbe às partes, no prazo que o juiz fixará ao designar a data da audiência, depositar em cartório o rol de testemunhas, precisando-lhes o nome, profissão, residência e o local de trabalho; omitindo-se o juiz, o rol será apresentado até 10 (dez) dias antes da audiência."

            Comecemos pelo caput.

            O prazo de cinco (5) dias do texto revogado estava incompatível com a nossa realidade. Pelo grande acúmulo de processos e pela carência de oficiais de justiça, era comum a frustração de audiências pela falta de tempo para a intimação das testemunhas.

            Foi importante facultar ao juiz a fixação de prazo para o depósito do rol, porque cada magistrado conhece as peculiaridades de sua unidade jurisdicional e pode administrar o processo de forma mais adequada.

            A lei presume que o juiz tenha bom senso e a fixação do prazo, por questão lógica, não deverá ser inferior a dez (10) dias. Exigir um rol com grande antecedência também não parece aconselhável.

            Entendo que o legislador perdeu uma boa oportunidade para flexibilizar o prazo do art. 398, do CPC, que hoje é de cinco (5) dias. O artigo 398 cuida da manifestação sobre documentos novos. Em muitos casos o volume de documentos é de tal monta que o advogado solicita uma prorrogação para falar nos autos, o que via de regra é atendido pelo Magistrado. Isso poderia ser facultado diretamente ao juiz, independentemente de provocação do interessado. Na hipótese de não fixação, o prazo também poderia ser de dez (10) dias.

            Da mesma forma poderia se ampliar para dez (10) dias o prazo do art. 185, pois no atual sistema é de cinco (5) dias o prazo para a prática de ato processual a cargo da parte quando não houver preceito legal ou assinação pelo juiz.

            A uniformidade destes prazos, que têm feição similar, seria interessante e não comprometeria a agilidade da prestação jurisdicional.

            O parágrafo único da redação anterior foi suprimido:

            " É lícito a cada parte oferecer, no máximo, dez testemunhas; quando qualquer das partes oferecer mais de três testemunhas para a prova de cada fato, o juiz poderá dispensar as restantes."

            Foi adequada a postura do legislador.

            A restrição do texto não fazia sentido, pois a limitação de 10 testemunhas para cada parte podia representar cerceamento, notadamente nas causas de elevada complexidade, onde a abrangência da lide exigisse dilação probatória mais extensa. Se houvesse necessidade objetiva, o juiz não poderia vedar a inquirição de testemunhas indispensáveis ao esclarecimento da verdade, daí o equívoco de tarifar o número de testemunhas.

            Também era imprópria a estipulação: "quando qualquer das partes oferecer mais de três testemunhas para a prova de cada fato, o juiz poderá dispensar as restantes".

            Havia uma sensação equivocada de que a parte sempre poderia ouvir três testemunhas para cada fato, mesmo que a primeira delas já tivesse esclarecido satisfatoriamente o que era pretendido. De longa data já não se aceita o brocardo testis unus testis nullus. (uma testemunha, nenhuma testemunha), porque ficou consagrado que depoimentos não se contam, se sopesam.

            Vejamos as modificações da prova pericial:

 

ART. 431:

            O artigo 431 do CPC estava revogado pela Lei 8.455 e agora ressurge com letras A e B.

            Art. 431-A. As partes terão ciência da data e local designados pelo juiz ou indicados pelo perito para ter início a produção da prova."

            A idéia do artigo é interessante, pois melhora a qualidade do contraditório, já que o processo de produção do laudo pericial poderá ser acompanhado e fiscalizado pelas partes, sem qualquer margem para discussões posteriores quanto à sede e o dia da realização da perícia.

            Certa vez me deparei com um caso de alegação de cerceamento em razão de uma prova pericial.

            Tratava-se de uma ação indenizatória por exploração de lavra no leito de um rio. O perito do juízo calculou a quantidade de material produzido e chegou a montante bem inferior ao pretendido pelo autor.

            Este, ao ser intimado para falar sobre o laudo, disse que o expert levantou área menor, pois peritou apenas parte do rio, desprezando seus afluentes e por isso chegou a resultado tão baixo. O autor argumentou que não foi cientificado do dia marcado para o trabalho de campo e por isso não pode acompanhar o levantamento, restando prejudicado por não conseguir indicar a área efetivamente minerada.

            O perito, de larga experiência, rebateu o argumento e apresentou a prova da remessa de fax ao assistente técnico do autor, comunicando o dia da perícia. Este, contudo, não compareceu e talvez não tenha avisado seu cliente.

            Naquela época não havia obrigação legal de dar ciência às partes, mas o perito foi cauteloso e a alegação caiu por terra.

            Agora a comunicação é de lei.

            A redação do artigo foi feliz porque fala em ciência e não em intimação.

            Assim, quando o perito for realizar seu trabalho, deverá ele mesmo cientificar as partes, como fez aquele do exemplo mencionado. É desnecessária a intimação oficial, mediante mandado ou outra forma de comunicação do juízo, o que agiliza a prova.

            O juiz, sempre que possível, deverá delegar ao perito a designação da data e local par ter início a prova, cabendo ao expert cientificar as partes.

            Art. 431-B. "Tratando-se de perícia complexa, que abranja mais de uma área de conhecimento especializado, o juiz poderá nomear mais de um perito e a parte indicar mais de um assistente técnico."

            Era desnecessária a inovação, porque é intuitivo que na diversidade de áreas de conhecimento, tanto o juízo como as partes possam contar com profissionais específicos para cada segmento da perícia.

            Princípios de natureza processual e constitucional garantiriam a participação de tantos peritos e assistentes quantos fossem necessários para a aferição de fatos que desafiassem especialidades diversas, independentemente de previsão legal expressa. O bom senso também chancelaria idêntica solução.

            Como se percebe, o legislador se houve com excesso de zelo.

            Continuando a análise da prova pericial, vamos ao art. 433

 

ART. 433:

            Foi modificada a redação do parágrafo único, mas o dispositivo, na sua integralidade, continua com rotina inadequada:

            O caput não foi alterado e estabelece:

            " O perito apresentará o laudo em cartório no prazo fixado pelo juiz, pelo menos 20 dias antes da audiência de instrução e julgamento".

            A modificação se deu no parágrafo único.

            O texto antigo em muitas oportunidades inviabilizava o trabalho dos assistentes técnicos, pois dizia que eles deveriam oferecer seus pareceres no prazo comum de dez (10) dias após a apresentação do laudo, independentemente de intimação, ou seja, pela lei, os assistentes ou as partes precisavam fazer plantão no Fórum para saber quando o laudo seria apresentado.

            A jurisprudência procurou adequar a infelicidade da regra, mas nem sempre se chegava a bom termo.

            A questão da intimação está superada pela nova redação do parágrafo único. "Os assistentes técnicos oferecerão seus pareceres no prazo comum de 10 (dez) dias, após intimadas as partes da apresentação do laudo."(NR)

            Ocorre que há um equívoco de estratégia normativa quanto ao procedimento propriamente dito.

            A lei dá a sensação irreal de que após a apresentação do laudo pericial seguem-se os pareceres técnicos e que logo após já se pode realizar a audiência de instrução e julgamento, com se tudo fosse uma sucessão estável de atos, algo como uma escada rolante.

            Todavia, os prazos são tão exíguos que é comum a inviabilidade da instrução, na forma imaginada pelo legislador, isto porque, inspirados pelo Código, muitos juizes designam provam pericial e desde logo marcam a audiência de instrução e julgamento, como estipula o artigo 331 do CPC.

            Façamos uma simulação:

            Na decisão de saneamento o juiz defere prova pericial e testemunhal. Marca desde logo a instrução e julgamento e fixa a entrega do laudo pericial para vinte (20) dias antes daquele ato, na forma do art. 433, caput. O perito entrega o laudo na data estabelecida. Pela nova redação do p. único, as partes precisarão ser intimadas e dali correrá o prazo comum de dez (10) dias para a apresentação dos pareceres dos assistentes.

            Sejamos utópicos e imaginemos que tudo isso se deu em tempo hábil para a realização da audiência.

            Pois bem, uma das partes, ou ambas, desejam esclarecimentos do perito e dos assistentes técnicos, como lhes faculta o art. 435.

            Formulam seus quesitos por escrito, mas as respostas só poderão ser exigidas quando o perito e os assistentes forem intimados com a antecedência de cinco (5) dias da audiência.

            Aí, nem o mais romântico ou lírico sonhador será capaz de sustentar que a seqüência procedimental é factível do ponto de vista temporal.

            Na verdade, a boa prática recomenda que só se marque a instrução e julgamento após o término da prova pericial escrita, dando-se margem de segurança para que a audiência não se frustre, porque são comuns os problemas que surgem até a conclusão da perícia e da entrega dos pareceres dos assistentes.

            Com a idéia de dar celeridade, encadeando a prova pericial com a designação concomitante da instrução e julgamento, o legislador acaba tumultuando a marcha processual.

            Na vida, quando se aguarda a fluência natural das coisas a solução acaba sendo mais adequada. Assim também se dá na esfera do processo, razão pela qual é aconselhável a separação bem definida destas etapas da fase probatória.

            O processo de execução também foi alterado pela Lei 10.358.

 

ART. 575:

            O art. 575, que trata da competência para a execução de título judicial, teve o inciso III revogado, sendo-lhe modificado o inciso IV, que ficou assim:

            Art.575: A execução, fundada em título judicial, processar-se-á perante:

            (…)

            IV – o juízo cível competente, quando o título executivo for sentença penal condenatória ou sentença arbitral."(NR)

            A sentença penal condenatória já integrava o comando de forma correta e agora houve a adaptação do dispositivo à Lei de Arbitragem (9.307/96), pois a sentença arbitral não está mais sujeita à homologação judicial.

 

ART. 584:

            O art.584, que explicita o rol dos títulos executivos judiciais, também sofreu alteração no inciso III e restou inserindo um inciso VI.

            III – a sentença homologatória de conciliação ou de transação, ainda que verse matéria não posta em juízo;

            VI – a sentença arbitral. "(NR)

            A redação do novo inciso III restabelece aquela introduzida pela Lei n.º 8.953/94, para esclarecer que a transação sobre questão que não seja objeto de processo judicial também possa ser homologada em juízo, formando título executivo judicial

            A idéia é interessante porque dá maior estabilidade e efetividade à composição, já que a execução de um título judicial restringe a discussão de várias matérias no âmbito dos embargos do devedor (art. 741 do CPC).

            A inserção do inciso VI destaca a sentença arbitral de forma isolada e na verdade confere melhor técnica legislativa ao artigo.

            A LEI N.º 10.352 (PROJETO DE LEI N.º 3474) alterou dispositivos referentes a recursos e ao reexame necessário.

            Para não interferir na temática dos demais palestrantes, que tratarão do novo Agravo e do Recurso Especial, me limitarei a abordar questões da Lei n.º 10.352 que estejam fora do alcance daquelas matérias.

 

ART. 475:

            O legislador preferiu manter a sujeição de algumas sentenças ao duplo grau de jurisdição obrigatório, o que certamente vai gerar críticas de por boa parte dos juristas.

            A idéia também não me agrada, porque algema o processo, retarda a composição definitiva do litígio e coloca em xeque a eficiência dos procuradores da administração pública, ou seja, recorrendo ou não das sentenças adversas aos órgãos que patrocinam, os processos ascendem ao Tribunal.

            Provavelmente, o maior cliente passivo do Judiciário seja o próprio Estado, isto é, União, Estados, Municípios, Distrito Federal e suas respectivas autarquias.

            Falo da participação direta do Estado nas ações judiciais, sem contar tudo o que provoca por atos de administração e de legislação, os quais interferem nas relações privadas, obrigando os particulares a buscar soluções judiciais para suas pendências. Planos econômicos mirabolantes, confiscos, solavancos do câmbio e leis de péssima qualidade são exemplos dessas turbulências.

            Na verdade, o Estado, na feição judiciária, trabalha praticamente em razão do próprio Estado, no seu perfil executivo e legislativo.

            Parece que algo está errado.

            Pois bem, além de consumir grande parte da energia jurisdicional, esse mesmo Estado faz regras para postergar o acerto de suas relações jurídicas.

            O reexame necessário está longe de tutelar a segurança jurídica. Visa, isto sim, dar mais fôlego para a Administração Pública resolver suas pendências, prejudicando em inúmeras oportunidades aqueles que, vilipendiados em seus direitos, só conseguem resolvê-los pela via judicial.

            Já que temos que conviver com isso, vejamos o que há de novo:

            Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:

            I – proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público;

            Como se percebe, a sentença que anular o casamento não estará mais sujeita ao Duplo de jurisdição. Aplausos ao legislador, pois a perspectiva de recurso de tal decisão ficará restrita às partes e ao Ministério Público.

            A nova redação do inciso I estende o benefício do reexame necessário às autarquias e fundações de direito público, mas na verdade apenas insere no CPC algo que já estava albergado pelo artigo 10 da Lei 9469/97

            II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI).

            Este inciso II, que é o anterior inciso III, fez correção técnica à redação antiga, que continha a expressão: "julgar improcedente a execução de dívida ativa da Fazenda Pública".

            É de conhecimento básico que na execução propriamente dita não há julgamento de procedência ou de improcedência do pedido, pois o direito já está, por presunção legal, previamente definido no título executivo, não havendo incerteza jurídica a suprir com a edição de uma sentença.

            O que se dá, em termos processuais, é o julgamento de procedência ou improcedência dos embargos eventualmente opostos pelo devedor, já que estes embargos nada mais são que uma ação incidental com escopo de desconstituir a força do título executivo, total ou parcialmente.

            Assim, quando os embargos contra a Fazenda forem julgados procedentes, no todo ou em parte, a sentença estará sujeita ao duplo grau de jurisdição obrigatório.

            Do ponto de vista estritamente técnico, a reforma representou uma evolução.

            § 1o Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los.

            O parágrafo primeiro também se encarrega de fazer correções técnicas.

            Substituiu-se a ociosa expressão "apelação voluntária da parte vencida", simplesmente por apelação, o que está certo.

            Ora, só pode apelar quem de certa forma foi vencido (interesse de recorrer) e também é da essência da apelação a voluntariedade do seu manejo.

            A regra anterior previa que o Presidente do Tribunal "poderia" avocar os autos, caso o juiz não os remetesse. A expressão "poderia" há muito tempo era compreendida como "deveria", mesmo porque a sentença não transitava em julgado antes de ser confirmada pelo juízo ad quem e o recurso ex officio era considerado interposto ex lege. Neste sentido a Súmula 423 do STF.

            § 2o Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.

            O parágrafo 2º estabeleceu um valor mínimo para o reexame necessário, que hoje eqüivale a R$ 10.800,01.

            Isso se dá nas ações de conhecimento onde o ente público for réu, como também nas hipóteses de execuções de dívida ativa do mesmo patamar econômico.

            Pois bem, vencida a Fazenda Pública em ações cujo proveito econômico não exceda a R$ 10.800,00, descabe a remessa obrigatória, desde que a condenação ou o direito controvertido seja de valor certo.

            É importante observar: que a condenação ou o direito controvertido seja de valor certo, isto é, quando não haja duvida concernente ao objeto e ao alcance da sentença. No âmbito das sentenças condenatórias é o que se convenciona chamar de liquidez.

            Parece claro também que a regra não se aplica apenas às ações de carga condenatória, mas também às declaratórias, constitutivas, mandamentais e executivas lato sensu, porque o dispositivo é abrangente e trata não só da condenação, mas do direito controvertido.

            Prestigia-se, de igual modo, a boa técnica quanto à formulação do pedido, que na medida do possível deve ser certo e determinado, na forma do art. 286 do CPC.

            Os advogados deverão estar atentos para definir, antes do ingresso em juízo, a exata dimensão econômica do direito que irão patrocinar, individuando o seu objeto.

            Com idêntica inspiração, também cabe aos juizes evitar as tão comuns e muitas vezes indesejadas liquidações de sentença.

            Sentenças de conteúdo incerto não se submeterão à regra.

            § 3o Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente."(NR)

            Trata-se de um avanço, que na verdade ainda é tímido. Pelo novo texto, se o juiz aderir à Jurisprudência do plenário do STF ou às Súmulas deste Tribunal ou do tribunal superior competente, não haverá remessa obrigatória.

            A medida é boa, na proporção em que reduz a incidência do reexame necessário, mas é conservadora porque ainda permite o manejo do recurso voluntário, reapresentando ao Tribunal matéria que já está Sumulada ou que já foi apreciada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal.

            Penso que o recurso voluntário para questão sumulada deve sofrer restrições, não através de precedentes vinculantes, mas das sentenças impeditivas de recursos. A Súmula vinculante, na fórmula que tem sido proposta, representa um engessamento vertical da jurisprudência, o que é desaconsalhável, por toda a sorte de riscos que traz à democracia. Não se deve obrigar o Juiz a decidir de acordo com a Súmula, mas quando o Magistrado se convencer do acerto da posição sumulada de um Tribunal Superior e quiser aderir aquele entendimento de forma livre e consciente, o processo deve terminar por ali, na sentença. Isso se chama "sentença sumulada impeditiva de recurso", que evita a reprodução de julgados nos Tribunais, sempre com o mesmo resultado.

            É certo que hoje já se conta com a redação poderosa do art. 557, do CPC, mas aquela decisão monocrática desafia o "agravinho" e nova carga de trabalho se projeta contra o 2º Grau.

            Obrigar os Tribunais Superiores à produção de escala afasta a razão de sua existência. Enquanto o STF brasileiro vem julgando em média 100.000 processos por ano, a Suprema Corte Americana decide apenas 90 feitos.

            Os números falam por si.

            Algo precisa ser feito para reverter esse quadro e a "sentença sumulada impeditiva de recurso" seria uma providência muito interessante, idéia, aliás, que é sustentada pela AMB na Reforma do Judiciário.

 

ART. 515:

            Mudança importante aconteceu no artigo 515, que recebeu um parágrafo 3º e fez revolução na chamada profundidade do efeito devolutivo da apelação:

            Diz o § 3º :

            "Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento."

            Apesar da falta de estilo da redação, o dispositivo é avançado.

            Pela sistemática anterior, a Jurisprudência dominante indicava que se o Tribunal reconhecesse o equívoco da extinção terminativa do processo (casos do art. 267 do CPC), teria que determinar ao juiz a edição de nova sentença, sobre o mérito da causa, mesmo que fosse desnecessária a produção de qualquer outra prova.

            Agora a situação é diversa, pois a lei autoriza expressamente o Tribunal a julgar desde logo a lide. Espero que a expressão "pode" seja interpretada como sempre foi, ou seja, "deve", porque não se trata de mera faculdade do órgão julgador. Presentes os requisitos objetivos para o julgamento imediato, o Tribunal não pode desconsiderá-los.

            Na regra antiga prestigiava-se o princípio do duplo grau de jurisdição, cuja existência no plano constitucional hoje é discutida.

            A doutrina diverge em considerar o duplo grau de jurisdição como um princípio de processo inserido na Constituição Federal, já que não tem previsão expressa. Dentre os autores que não o admitem, pode-se mencionar Manoel Antônio Teixeira Filho, Arruda Alvim, Tucci e Cruz, dentre outros. Humberto Theodoro Júnior e Nelson Nery Júnior são divergentes.

            Hoje se indaga, inclusive, quais valores devam preponderar para a realização da Justiça. Será que a idéia do duplo grau prevalece sobre a da efetividade do processo?

            No caso do § 3º do art. 515, o legislador abriu espaço para a efetividade e a instrumentalidade, o que é moderno, porque apresenta resultados e não compromete a segurança jurídica.

            A lei poderia ter sido mais técnica e repetido as mesmas expressões utilizadas para o julgamento antecipado da lide: "quando a questão for unicamente de direito, ou sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência." Penso, todavia, que não haverá dificuldade para a interpretação da norma e sua extensão ficará devidamente compreendida.

 

ART. 520:

            O art. 520, que para casos excepcionais prevê o recebimento da apelação no efeito meramente devolutivo, teve a adição de mais um inciso, ou seja, será recebida só no efeito devolutivo a apelação de sentença que:

            VII – confirmar a antecipação dos efeitos da tutela;

            A antecipacão da tutela foi introduzida no procedimento comum ordinário para combater os males do tempo no processo e pode inclusive ser executada provisoriamente, aplicando-se, no que couber, as regras do art. 588, incisos II e III do CPC.

            Doutrina e jurisprudência têm entendido, com acerto, que na antecipação dos efeitos tutela não se abrevia apenas a sentença de mérito, mas a sua própria implementação/execução.

            Ora, se a decisão interlocutória que defere a antecipação da tutela pode ser executada provisoriamente e se ela desafia recurso de agravo, cujo efeito originário de recepção é meramente devolutivo, com idêntica carga deve ser recebida a apelação da sentença que confirma a antecipação, sob pena de se conferir mais efetividade à interlocutória do que à própria sentença.

            É intuitivo, porém, que na maioria dessas apelações os recorrentes pedirão ao Relator a concessão do efeito suspensivo, na forma do art. 558, § único do CPC.

            Vejamos, por fim, os embargos infringentes, que apesar das duras críticas quanto à sua manutenção, foi prestigiado pela reforma.

            Se foi equivocada sua sobrevida, pelo menos restringiram sua abrangência.

Art. 530

            " Cabem embargos infringentes quando o acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente ação rescisória. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência."(NR)

            Apenas a reforma da sentença de mérito, por maioria, é que permitirá estes embargos. Sentença de mérito confirmada por maioria não desafiará os infringentes. Igual destino terá qualquer sentença que não tenha analisado o mérito, seja ela mantida ou reformada por maioria de votos.

            Também só caberão os infringentes na hipótese de procedência do pedido da ação rescisória. Antes, para dar ensejo aos Embargos Infringentes, bastava a maioria de votos no julgamento de apelação e de rescisória.

 

Art. 531

            Interpostos os embargos, abrir-se-á vista ao recorrido para contra-razões; após, o relator do acórdão embargado apreciará a admissibilidade do recurso."(NR)

            Logo após a interposição será aberta vista para as contra-razões e somente depois delas dar-se-á o juízo de admissibilidade, o que é mais correto, porque na resposta o recorrido poderá suscitar preliminares que inviabilizem o processamento dos embargos, o que facilita o trabalho do julgador na fase de admissão do recurso.

            No sistema anterior, se dava o inverso (antiga redação do 531 e do 534).

 

Art. 533

            "Admitidos os embargos, serão processados e julgados conforme dispuser o regimento do tribunal."

            O art. 533 remete o processo e julgamento para o Regimento Interno dos Tribunais, o que é correto.

            A propósito, comentou o Des. Silveira Lenzi, do TJSC:

            " Admitidos os embargos – diz o novo texto – serão processados e julgados conforme dispuser o Regimento Interno do Tribunal. O parágrafo único que trata da escolha do relator, entende-se que foi revogado, uma vez que a matéria foi transferida para o dispositivo seguinte" (Novas alterações do Código de Processo Civil, www.tj.sc.gov.br – Informativos e Dicas)

 

ART. 534

            "Caso a norma regimental determine a escolha de novo relator, esta recairá, se possível, em juiz que não haja participado do julgamento anterior."(NR)

            Ainda nos socorrendo das observações do Des. Silveira Lenzi:

            " O novo art. 534, complementa o anterior com a reformulação da redação: caso a norma regimental determine a escolha de novo relator, este recairá, se possível, em juiz que não haja participado do julgamento anterior. Revogado, igualmente, o parágrafo único do dispositivo atual.

            " A modificação nos textos comentados, remetendo o procedimento para o Regimento Interno dos Tribunais é mais correta, uma vez que cada uma destas Cortes – dentro do princípio da autonomia constitucional (arts. 24 e 125) –, cria suas leis de organização judiciária e regimentos internos, de acordo com as peculiaridades do Poder Judiciário de cada Estado."

 

CONCLUSÕES

            É inegável a capacidade técnica e o bom propósito da Comissão encarregada de propor as reformas do Código de Processo Civil, mas como registrou o Prof. Egas Muniz de Aragão, na palestra de abertura deste Congresso, há um certo grau de empirismo nos projetos de reformulação, principalmente pela falta de diagnóstico científico do que seja efetivamente necessário reformular e pela ausência de aferição do êxito ou do fracasso das reformas já implementadas.

            Apesar de tudo que já se fez, percebe-se que o processo ainda não é tratado como um mecanismo de instrumentalidade operacional; ao contrário, tem se revelado como uma espécie de vampiro do direito material, que suga as atenções da verdadeira estrela da atividade jurisdicional, que é o conflito de interesses.

            É certo que essa visão não decorre de mero atavismo comportamental, mas também é fruto do próprio sistema legal disponível.

            As reformas têm sido extremamente pontuais e mesmo quando se modifica todo um procedimento, como se deu com o comum sumário, são mantidas idéias que não libertam a máquina judiciária para dar vazão ao enorme volume de demandas que se atulham nos Fóruns.

            O processo de que precisamos é aquele que atenda ao perfil do mercado, que hoje é de atacado, não de varejo.

            Não é mais possível conviver com uma postura processual de artesanato, cheia de detalhes e filigranas, muitas vezes com contornos inúteis.

            Atingir uma produção de massa bem qualificada é certamente nosso maior desafio, porque o consumidor dos serviços judiciários quer resultados.

            Apesar de sua boa concepção, o CPC é pródigo em incidentes perfeitamente dispensáveis.

            O apensamento é um destaque permanente e há formalidades que algemam a lógica. Essa cultura infelizmente perdura. Veja-se, a propósito, que por esta última reforma do CPC, o relator poderá converter o agravo de instrumento em agravo retido (art. 527, II). Ao invés de simplesmente comunicar tal decisão ao juiz da causa, o Código determina que o Agravo seja remetido à origem e que fique apensado aos autos principais. Qual o sentido jurídico e prático de tal providência? Todas as peças que formaram o Instrumento já estão no processo principal. Para que apensar?

            Vejamos outras incoerências verificadas, por exemplo, no procedimento comum ordinário:

            1)a incompetência absoluta é alegada como preliminar da contestação, mas a relativa gera um incidente apensado, com suspensão do processo;

            2) a impugnação ao valor da causa é deduzida em peça própria e é autuada em apenso;

            3) a assistência, quando impugnada, é desentranhada do processo e forma um incidente (art. 51);

            4)a oposição, oferecida antes da audiência de instrução e julgamento, será apensada aos autos principais (art. 59);

            5)a reconvenção deve ser manejada em petição distinta da contestação; a denunciação à lide e outras intervenções de terceiro também.

            6)Os requisitos estruturais da sentença, com relatório, fundamento e dispositivo têm bolor originário e assim por diante.

            Isso demonstra como o processo, de modo geral, poderia ser simplificado, sem qualquer risco à ampla defesa e ao contraditório.

            O princípio da concentração, presente no procedimento sumário e no Juizado Especial, poderia inspirar uma reforma ampla do procedimento ordinário, extirpando vários atos e formalidades perfeitamente dispensáveis.

            Hoje, no âmbito do Juizado Especial, v.g., não há relatório para a sentença e é dispensável o acórdão quando a decisão de primeiro grau é confirmada por seus próprios fundamentos. Por que não exportar tal objetividade para o juízo comum, liberando o Magistrado para decidir a lide e enfrentar o mérito da causa, sem desperdício de tempo e de energia jurisdicional?

            Fala-se na Súmula Vinculante, mas não se pensa em oportunizar ao Magistrado a edição de uma decisão sumária quando vier a adotar a Súmula, sem necessidade de fundamentação aditiva.

            Na verdade, ainda estamos muito distantes de um procedimento comum mais singelo, compacto e concentrado.

            Outra questão nuclear é a inversão da fase conciliatória, que hoje se dá no saneamento, quando já há relação processual instalada.

            Antes de formar litígios e acirrar ainda mais os ânimos, dever-se-ia tentar a conciliação numa fase embrionária do procedimento, não pelo improviso de conciliadores leigos, mas por Magistrados Conciliadores, especialmente adestrados com técnicas de mediação.

            A composição é arma importante não só para solucionar um processo, mas para resolver uma relação litigiosa. Pouco adianta conceder uma reintegração de posse, fazer cumprir a decisão e as partes continuarem a nutrir ódio recíproco. Se conseguirem transacionar seus direitos, o fato social é atingido na origem e não volta a se reproduzir.

            Enquanto não se instala entre nós o espírito da mediação e da conciliação, temos que buscar soluções mais inteligentes para resolver pelo menos aquelas lides que estão postas.

            O desafio é árduo, mas para conseguir superar a demanda de pleitos que crescem em progressão geométrica nas distribuições dos foros é indispensável uma reforma ampla dos procedimentos cognitivos e da estrutura formal das decisões judiciais.

            Sem concentração de atos, unificação de prazos e simplificação de rotinas, continuaremos prisioneiros de um formalismo que nasceu ilógico e que está ultrapassado há muito tempo.

 


Referência  Biográfica
Paulo Henrique Moritz Martins da Silva
  –  Juiz corregedor do Tribunal do Justiça de Santa Catarina, professor de Direito Processual Civil

Palestra proferida no 16º CONAEC – Congresso Nacional De Advogados De Empresas De Consórcio, em Campinas (SP).

E-mail: phmm3034@tj.sc.gov.br