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As novas alterações do Código de Processo Civil. Leis nº 10.352 e 10.358/2001

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*Rosana Ribeiro da Silva

Introdução:

            As mudanças sociais e científicas das duas últimas décadas implicaram numa constante necessidade de atualização legislativa, sem a qual, mesmo que com poucos anos de vigência, uma norma venha a se tornar supérflua, anacrônica mesmo.

            Foi reconhecendo esta aceleração nas mudanças sócio-científicas e a cada vez mais premente necessidade de efetivação dos princípios gerais do processo, que levou o legislador a empreender micro-reformas no Código de Processo Civil, ao invés de proceder à sua substituição por um novo códice, opção de tramitação reconhecidamente morosa.

            Na esteira destas micro-reformas é que foram promulgadas as Leis 10.352 e 10.358, de 26 e 27 de Dezembro de 2001, respectivamente.

            Objetivamos aqui proceder a um breve estudo das alterações levadas a efeito por aquelas leis.

Do Reexame Necessário (Lei n. 10.352/01):

            Antes da alteração legislativa levada a efeito pela Lei 10.352/2001, estavam sujeitos ao duplo grau de jurisdição, apenas após o que fariam coisa julgada, as decisões que anulavam o casamento (I); proferidas contra a União, o Estado e o Município (II); e as que julgavam improcedente a execução de dívida ativa da Fazenda Pública (III), conforme determinava a antiga redação do artigo 475, do CPC.

            A partir de 26 de Março de 2002, não mais a sentença que anula o casamento está sujeita ao impropriamente denominado recurso necessário. Isto porque, desde o ingresso no ordenamento jurídico brasileiro do instituto do divórcio, decresceu a importância social dada à dissolução da sociedade conjugal.

            A hipótese anteriormente prevista no inciso II daquele artigo, agora renumerado para inciso I, que previa o reexame necessário da decisão proferida contra a União, o Estado e o Município, foi acrescida do Distrito Federal, autarquias e fundações de direito público de todos aqueles entes, até então injustificavelmente omitidos da norma ora comentada.

            O antes parágrafo único foi convertido em parágrafo 1º, acrescido o artigo de outros dois parágrafos.

            A primeira parte do novo parágrafo 2º determina que não está sujeita ao reexame necessário a decisão proferida contra aqueles entes públicos, desde que a condenação ou direito controvertido não exceder 60 (sessenta) salários mínimos. Pela legislação anterior, a exigüidade do valor da condenação fazia com que o processo, por vezes, viesse a custar mais que ela, caso houvesse a remessa necessária.

            O antigo inciso II determinava o reexame necessário das decisões que julgassem improcedente a execução de dívida ativa da Fazenda Pública. A nova redação corrigiu esta impropriedade técnica, substituindo o termo "improcedência da execução" por "procedência dos embargos à execução". Isto posto que a procedência dos embargos é que provocam a improcedência da execução fiscal.

            Todavia, ainda na esteira da evitação do prolongamento de ações cuja condenação seja de pequeno valor, a segunda parte do parágrafo 2º determina que não haverá reexame necessário da decisão que julgar procedente os embargos do devedor nas execuções de dívida ativa de valor não superior a 60 (sessenta) salários mínimos.

            O novo parágrafo 3º determina que não haverá recurso necessário, também, quando a decisão contra o ente público ou fazenda pública estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula desde Tribunal ou do tribunal superior competente.

            Merece crítica a primeira parte daquele parágrafo, posto que o uso do termo "jurisprudência", sem o acompanhamento da expressão "dominante" ou "reiterada", abriu oportunidade para que uma única decisão do Pretório Excelso tenha o condão de dispensar a remessa necessária. Com esta afirmação não se pretende defender o instituto da remessa necessária, mas já que esta persiste em nossa processualística, uma única decisão, mesmo que proferida pelo Tribunal máximo, não deveria bastar para dispensar a sua necessidade.

            Melhor fez a segunda parte daquele parágrafo, posto que determinou a dispensa do recurso necessário no caso de o tribunal que devesse julgá-lo possuir súmula reiterando a decisão de primeiro grau. Caso em que o recurso já tinha desfecho certo.

            Na tendência da simplificação do procedimento e da valorização das decisões de primeiro grau, que aparentemente embasam as alterações legislativas que aqui se pretende breve estudo, melhor teria feito o legislador se simplesmente houvesse suprimido o antigo artigo 475, do Código de Processo Civil.

Do Prazo do Recurso Especial e Recurso Extraordinário (Lei n. 10.352/01):

            A antiga redação do art. 498, do CPC, determinava que, interpostos simultaneamente embargos infringentes, recurso especial ou recurso extraordinário, os prazos destes últimos ficarão sobrestados até o julgamento daquele primeiro. Isto porque os prazos para aqueles três recursos tinham início de contagem com o proferimento do acórdão que contivesse julgamento por maioria de voto, para os embargos infringentes, e julgamento unânime, para os recursos especial ou extraordinário.

            A Lei 10.352/2001 alterou este dispositivo legal simplificando o procedimento ao dispensar a interposição do recurso especial ou extraordinário no caso de interposição de embargos infringentes da parte não unânime do acórdão, retardando o inicio da contagem do prazo para a interposição daqueles para após a intimação da decisão dos embargos.

            O acréscimo do parágrafo único completa a alteração pretendida regulando a hipótese de não interposição dos embargos infringentes da parte não unânime da decisão, prevendo que, neste caso, o prazo para interposição de recurso especial ou extraordinário terá início com o trânsito em julgado daquela parte.

Da Apelação (Lei n. 10.352/01):

            Ao artigo 515 foi acrescentado um parágrafo 3º, que, mais uma vez, segue a tendência de simplificação do procedimento ao determinar que, havendo a extinção do processo sem julgamento do mérito, poderá o tribunal, dando pela procedência a recurso de apelação contra tal decisão interposto, julgar desde logo a lide, se a causa versar sobre questão unicamente de direito e esteja em condições de imediato julgamento.

            O requisito "estar em condições de imediato julgamento" estará atendido quando o processo tiver, em primeiro grau, se desenvolvido até a fase do julgamento conforme o estado do processo. Ou seja, quando o réu já tiver sido chamado ao processo e ali tido a oportunidade de proceder à sua defesa, e o juiz já tiver ouvido as partes sobre eventuais faltas de condições da ação ou pressupostos processuais.

            Na fase do julgamento conforme o estado do processo, poderia o juiz de primeiro grau, dentre outras decisões, julgar extinto o processo sem julgamento do mérito ou julgar antecipadamente a lide, por se tratar a questão unicamente de direito, conforme o caso.

            Ora, se o juiz de primeiro grau decidiu por extinguir o processo sem julgamento do mérito na fase do julgamento conforme o estado do processo, é porque, apesar do procedimento já estar bem adiantado, identificou o juiz a falta de um pressuposto processual ou condição da ação. O que inviabilizaria a continuidade da relação processual até solução da lide.

            Tendo havido recurso, e este tendo sido provido, antes da presente alteração legislativa a conseqüência era a devolução do processo para o juiz da causa para julgamento pelo mérito. Todavia, se o processo houvesse sido extinto na fase do julgamento conforme o estado, e a questão fosse unicamente de direito, restaria ao juiz de primeiro grau, baixados os autos, unicamente julgar antecipadamente a lide.

            Em face disto, o legislador inovou dando ao tribunal o poder de julgar a causa pelo mérito, dispensando, assim, a devolução do processo ao juízo inferior para julgamento pelo mérito.

            Todavia, um dilema certamente surgirá na mente daqueles que se debruçarem sobre o novo dispositivo legal: qual o recurso cabível contra a decisão do tribunal que julga, no exercício de jurisdição de primeiro grau, o mérito da causa? Apelação para o colegiado? Certamente não, posto que os recursos são aqueles expressamente previstos na lei, e tal recurso não atende a este requisito.

            Entenderão alguns serem cabíveis embargos infringentes, no caso da decisão não ser unânime, desde que atendidos todos aqueles novos requisitos que abaixo estudaremos.

            Caso entendamos não existir recurso cabível na hipótese, estaríamos admitindo a supressão de um grau de jurisdição, ou seja, a supressão do próprio princípio do duplo grau de jurisdição, entendido como presente tacitamente na Carta Magna.

            Não pretendemos aqui adentrar no estudo de tão controvertida conseqüência desta alteração legislativa, deixando o enfrentamento da questão para futuros estudos.

            Outra alteração levada a efeito no que concerne ao recurso de apelação, é o acréscimo do inciso VII ao art. 520, do CPC, donde aquele recurso será recebido apenas no efeito devolutivo quando interposto de sentença que haja confirmado os efeitos de tutela no processo anteriormente concedida.

            Claro está que se o juiz, initio litis, achou por bem conceder a antecipação da tutela, e em sentença definitiva veio a confirmar a propriedade da solução antecipadamente concedida à lide, totalmente despropositado era que o recurso de apelação fosse recebido no efeito suspensivo, além do devolutivo.

            Ora, se em sentença terminativa o juiz entendeu por bem confirmar a tutela antecipadamente concedida, e se a grande tendência do momento é a valorização das decisões proferidas em primeiro grau, nada mais natural que se sanasse a falta de previsão legal que limitasse, na hipótese, os efeitos do recurso de apelação ao meramente devolutivo.

Do Agravo (Lei n. 10.352/01):

            A primeira alteração levada a efeito no recurso de agravo diz respeito ao prazo para contra-razões, que de 5 (cinco) dias passou a 10 (dez) dias, conforme nova previsão do parágrafo 2º do art. 523, do CPC.

            No mesmo artigo, em seu parágrafo 4º, que previa o agravo retido como o recurso cabível contra as decisões proferidas posteriormente à sentença, foi acrescentada mais uma hipótese desta modalidade recursal. Será retido o agravo interposto contra as decisões interlocutória proferidas em audiência de instrução e julgamento.

            Conforme a previsão contida no art. 280, III, será retido o agravo interposto das decisões sobre matéria probatória proferidas em audiência em rito sumário. Agora, com o acréscimo acima apontado, também no procedimento ordinário será retido o agravo proferido em audiência de instrução e julgamento, salvo nos casos de possível dano de difícil ou incerta reparação.

            Ainda no parágrafo 4º, já havia, antes da alteração legislativa, a previsão de uma exceção à obrigatoriedade da forma retida do agravo, determinando aquele parágrafo que as decisões posteriores à sentença que dissessem respeito à inadmissão do recurso de apelação desafiariam o recurso de agravo de instrumento, e não na forma retida. A nova legislação acrescentou mais uma exceção à interposição de agravo retido contra decisões posteriores à sentença: devera ser por instrumento o agravo cabível contra decisões posteriores à sentença que digam respeito aos efeitos nos quais a apelação deverá ser recebida.

            O art. 526, do CPC, prevê a necessidade, diante da possibilidade do juízo de retratação inerente ao agravo de instrumento, de comunicação ao juízo a quo da interposição do referido recurso. Todavia, não havia a previsão de qualquer sansão pelo descumprimento da norma.

            A Lei 10.352/01 acrescentou ao art. 526 um parágrafo único, que veio a determinar que o não-cumprimento da comunicação, no prazo de 3 dias, ao juízo a quo da interposição do agravo poderá ensejar a sua inadmissão, desde que denunciada e provada pela parte contrária, ou seja, o agravado.

            Deste dispositivo legal podemos concluir que o tribunal, de ofício, não poderá dar pela inadmissão do agravo por descumprimento do disposto no art. 526, caput, salvo mediante provocação do agravado, a quem compete a prova do lapso.

            Assim será possível resolver divergência doutrinária, até então existente, quanto a ser aquela previsão uma faculdade ou uma obrigação.

            A segunda parte do art. 527, com a alteração legislativa, passou a estar prevista no novo inciso I, daquele artigo, e o antigo inciso I passou para o inciso IV.

            O novo inciso II, prevê a hipótese de o relator converter o agravo de instrumento em agravo retido, quando remeterá os autos ao juízo a quo para que sejam apensados aos principais. Contra esta decisão monocrática, caberá recurso de agravo para o órgão colegiado competente.

            Contudo, não está o relator autorizado a proceder àquela conversão caso se trate de provisão jurisdicional de urgência, ou caso haja perigo de dano grave de difícil ou incerta reparação.

            A nova redação do inciso III, tem como sua primeira parte o que antigamente estava previsto do inciso II, acrescida de um novo instituto: a possibilidade de concessão pelo relator de antecipação da pretensão recursal.

            A justificativa para a criação da antecipação da tutela recursal está em que, interposto agravo contra decisão negativa, aquela onde se nega à parte um pedido, a concessão de efeito suspensivo, que para as decisões positivas é plenamente satisfatório, de todo seria inócua. Somente através da antecipação da pretensão recursal, denominada efeito ativo do agravo, é que se poderá garantir a efetividade do recurso nos casos da decisão agravada ser de cunho negativo.

            Determina a nova legislação que da decisão que concede a tutela antecipada recursal deverá ser comunicado o juízo a quo.

            Houve o acréscimo de um inciso V, que repete o antigo inciso III, acrescentou-se a possibilidade de dispensa de intimação pessoal do advogado do agravado para contra-razões por carta registrada com aviso de recebimento. Havendo a publicação em Diário Oficial do expediente forense da comarca de origem do recurso, a intimação será feita via publicação naquele órgão de imprensa.

            Concluindo as alterações levadas a efeito pela nova legislação no recurso de agravo, acrescentou-se um inciso VI, que repete o antigo inciso IV, quanto à oitiva do ministério público no prazo de 10 dias, quando for o caso.

Dos Embargos Infringentes (Lei n. 10.352/01):

            As alterações sofridas pelos embargos infringentes expressam a tendência do legislador em valorizar as decisões de primeiro grau, restringindo a possibilidade de pedidos inúteis de revisão de decisões já confirmadas em grau de apelação, evitando assim a procrastinação fútil do fim do processo.

            A nova redação dada ao art. 530 limitou enormemente a aplicabilidade dos embargos infringentes, restringindo a praticamente duas únicas hipóteses a autorização legal para a interposição deste recurso.

            Anteriormente, caberiam embargos infringentes contra as decisões não unânimes proferidas em apelação e ação rescisória. Desde o dia 27 de Março, do corrente ano, somente cabe a interposição de embargos infringentes contra a decisão não unânime que haja reformado, em apelação, a sentença de mérito proferida em primeiro grau, ou que haja julgado procedente a ação rescisória.

            Assim sendo, somente será cabível o recurso sob estudo contra o acórdão não unânime que reforme sentença definitiva, sendo, portanto, incabível contra decisão não unânime que reforme sentença terminativa, que não conheça do recurso, ou que mantenha ou anule a decisão definitiva de primeiro grau.

            No que concerne à ação rescisória, não foi menor a limitação sofrida para as hipóteses autorizadoras do recurso de embargos infringentes. Se antes eram cabíveis os embargos contra decisões não unânimes que admitissem ou não a ação rescisória, que lhe julgassem o mérito ou não, após a reforma legislativa somente é possível a interposição do recurso contra decisão não unânime que dê pela procedência do pedido de rescisão da decisão.

            Resumindo, somente cabem embargos infringentes contra acórdão não unânime que contraste com a decisão proferida em primeiro grau.

            O procedimento dos embargos infringentes sofreu também algumas alterações que aqui resumiremos.

            Antes, interpostos os embargos deveriam ser eles conclusos ao relator do acórdão embargado para o juízo de admissibilidade, conforme determinação da antiga redação do art. 531. Desatendidos os requisitos de admissibilidade, deveriam ser indeferidos os embargos, com opção de agravo em 5 dias, de acordo com os arts. 532 e 557. Admitidos os embargos, procedia-se ao sorteio de novo relator, cuja escolha deveria recair sobre juiz que não houvesse participado do julgamento embargado. Determinações previstas nas antigas redações do artigo 533 e parágrafo único. Apenas após todo este andamento processual é que se abria prazo para o embargado apresentar impugnação em 15 dias, conforme disposição do antigo art. 534.

            Com o advento da Lei 10.352/01, o procedimento dos embargos infringentes foi racionalizado. Interpostos os embargos, abre-se prazo para vistas pelo embargado para impugnação em 15 dias, após o que o relator procederá ao juízo de admissibilidade, conforme a nova redação dada ao art. 531. Desatendidos os requisitos de admissibilidade, continua-se a proceder em conformidade com os arts. 532 e 557, cujas redações não sofreram alteração alguma. Admitidos os embargos, passou à competência dos regimentos internos dos Tribunais o seu processamento (art. 533). Todavia, caso o regimento preveja a escolha de novo relator, deverá esta recair, se possível, sobre juiz que não tenha participado da decisão objeto do recurso (art. 534).

            Obviamente pretendeu o legislador a simplificação a muito requerida do procedimento deste recurso, do qual muitos defendem mesmo a sua eliminação completa da processualística pátria.

Do Agravo de Instrumento contra a inadmissão dos Recursos Especial e Extraordinário (Lei n. 10.352/01):

            Da redação do artigo 542 foi retirada a expressão e ali protocolada, do que se pode depreender a intenção do legislador em possibilitar a interposição dos recursos especial e extraordinário via protocolo integrado, já que não há mais a exigência legal de que a petição dos mesmos seja protocolada na secretaria do tribunal recorrido.

            Pela antiga redação do parágrafo 1º do art. 544, havia a necessidade de autenticação das peças componentes do instrumento do agravo pela secretaria do tribunal de origem. Sem esta autenticação corria-se o risco de não ser o recurso conhecido. Já havia, contudo, tendência jurisprudencial entendendo dispensável tal autenticação.

            A nova redação daquele parágrafo autorizou ao advogado declarar a autenticidade das peças, diminuindo assim um injustificável e excessivo formalismo. Todavia, fica o advogado responsável pessoalmente pela autenticidade das peças do processo, sob pena de responsabilidade penal, civil e perante a Ordem dos Advogados do Brasil.

            O parágrafo 2º também sofreu alteração e, onde antes se deixava a cargo do regimento interno do tribunal de origem a regulamentação da matéria sobre custas e despesas de postagem, agora há determinação expressa de dispensa do pagamento daquelas custas e despesas. Tendência já encontrada no regimento interno do Superior Tribunal de Justiça.

            A dispensa de autenticação pela secretaria do tribunal das peças do instrumento, embora prevista para o recurso de agravo contra a inadmissão de recursos especial e extraordinário, é perfeitamente aplicável ao agravo de instrumento contra decisões interlocutórias outras, posto que se a própria Corte Máxima admite a autenticação pelo próprio advogado, por que não seria o mesmo possível perante as cortes inferiores?

Da Ordem dos Processos no Tribunal (Lei n. 10.352/01):

            Ao artigo 547 foi acrescentado um parágrafo único dando aos tribunais autorização para descentralização do protocolo, delegando-o a ofícios de primeiro grau, coisa que vem facilitar enormemente o exercício da advocacia e desburocratizar os serviços de protocolo.

            O caput do art. 555 foi alterado para corrigir equivoco da redação anterior que mencionava revisor em recurso de agravo, no qual não existe tal função.

            O antigo parágrafo único foi convertido em parágrafo 2º e acrescentou-se o parágrafo 1º que segue tendência já consagrada no Superior Tribunal de Justiça, conforme previsão em seu regimento interno, que autoriza a remessa do recurso de apelação ou agravo a um órgão colegiado mais amplo, para apreciação de questão que se apresente com potencial de provocar divergência entre Câmara ou Turma e assim compor ou prevenir o surgimento de tais conflitos.

            A possibilidade de uma questão veiculada por apelação ou agravo suscitar conflitos entre Câmara ou Turma é definida no parágrafo ora estudado como relevante questão de direito, requisito legal para autorizar o relator daqueles a propor seu julgamento por órgão colegiado mais amplo, a ser definido em regimento interno.

            Ao órgão colegiado mais amplo compete apreciar a admissibilidade deste encaminhamento para julgamento. Reconhecendo a sua competência para o mesmo, o órgão colegiado o levará a efeito. Se não, devolverá o recurso encaminhado ao relator para que este dê continuidade ao andamento do recurso perante o órgão colegiado inicialmente indicado como o competente.

            Vale ressaltar que a decisão proferida pelo órgão colegiado mais amplo no julgamento dos recursos para ele encaminhados servirão como precedentes jurisprudenciais.

Dos Deveres das Partes (Lei n. 10.358/01):

            A antiga redação do artigo 14, "compete às partes e aos seus procuradores", tornava necessária interpretação extensiva do vocábulo "partes", entendido então como todo aquele que participa do processo, seja como assistente, oponente, litisconsorte, etc.

            A nova redação dada ao artigo pela Lei n. 10.358/01 corrigiu a impropriedade semântica ao substituir aquela expressão por "todos aqueles que de qualquer forma participam do processo", tornando-se desnecessária aquele interpretação extensiva do vocábulo "partes".

            Acrescentou-se um inciso V ao artigo 14 que incluiu dentre os deveres de todos os que participam do processo o de cumprir os provimentos mandamentais e tutelas antecipatórias ou finais. Até então, a obrigatoriedade do cumprimento aqueles provimentos mandamentais e tutelas antecipatórias desafiavam uma interpretação teleológica em face da inexistência de expressa previsão legal acerca do tema.

            Um parágrafo único foi acrescentado determinando que, com exceção do advogado, sujeito unicamente ao estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, aquele que tenha o dever de cumprir o determinado no inciso V e não o faça estará atentando contra o exercício da jurisdição, podendo o juiz aplicar ao infrator, além das sanções penais, civis e processuais cabíveis, multa de até vinte por cento do valor da causa, a qual, não sendo paga, será convertida em divida ativa da União ou Estado.

Da Distribuição da Ação (Lei n. 10.358/01):

            O artigo 253 teve a parte final de seu caput, que determina a distribuição por dependência das ações que se relacionem por conexão ou continência com outra já ajuizada, convertida em inciso I.

            Sofreu ainda acréscimo de um inciso II, que estabelece a distribuição por dependência também para as causas que sejam reiteradas após desistência. Inciso este com o intuito óbvio de evitar a burla na distribuição dos feitos e, por conseqüência, burla ao principio do juiz natural.

            Assim, desde o dia 27 de março de 2002 a distribuição de uma ação torna o juiz daquela prevento para o julgamento da lide ali contida. Ele, e somente ele, em detrimento de todos os demais órgãos da jurisdição, será o juiz natural daquela causa. Somente ele poderá prestar tutela jurisdicional, ou seja, dar solução àquela lide.

            Caso o autor desista da ação e posteriormente pretenda reitera-la, deverá propor a nova ação perante aquele juiz para o qual a primeira ação, extinta por desistência, foi distribuída.

            Todavia, ao utilizar o vocábulo "desistência", disse a lei menos do que pretendia, posto que certamente a intenção da norma é reprimir qualquer tentativa de burla à livre distribuição. Tal objetivo somente poderá ser atendido se interpretarmos o termo "desistência" no seu sentido leigo, não-técnico.

            Por desistência devemos, então, entender qualquer causa que leve a extinção do processo sem julgamento do mérito, tais como a desistência propriamente dita, a falta do pressuposto processual capacidade postulatória decorrente da falta de juntada pelo autor do instrumento da procuração, etc.

            Concluindo, tendo havido prévia propositura de uma ação e tendo esta sido extinta sem julgamento do mérito, por qualquer causa, tendo o autor a intenção de reiterá-la deverá faze-lo em face do mesmo juiz da primeira ação, sob pena de violação do principio do juiz natural.

            Por se constituindo a tentativa de burla ao principio constitucional do juiz natural em ato atentatório ao exercício da jurisdição, poderá ser aplicado analógica ao autor responsável, nos autos do processo onde se pretendeu a burla, e de ofício, a multa de até vinte por cento do valor da causa prevista no parágrafo único do artigo 14 do CPC.

Da Prova Testemunhal (Lei n. 10.358/01):

            O prazo retroativo de cinco dias antes da audiência de instrução e julgamento, para depósito em cartório do rol de testemunhas foi alterado pela nova lei. A nova redação do art. 407 coloca a cargo do juiz a fixação do prazo para depósito do rol de testemunhas. Coisa que fará quando designar a data da audiência, ou seja, no despacho saneador. Deixando o juiz de faze-lo nesta oportunidade, o prazo será o legal, de dez dias antes da audiência.

            Quanto aos dados das testemunhas a serem indicados, sabiamente acrescentou-se a necessidade de indicação do local de trabalho, coisa que certamente facilitará o trabalho dos oficiais de justiça.

Da Prova Pericial (Lei n. 10.358/01):

            A Lei n. 10.358/01 acrescentou dois novos artigos à Seção concernente à Prova Pericial do Código de Processo Civil: os artigos 431-A e 431-B.

            O primeiro determina que deverá ser dada à parte ciência do local e da hora em que será levada a efeito a produção da prova pericial. Outro entendimento não poderíamos dar ao presente artigo que não o que afirma estar ele possibilitando às partes e assistentes técnicos acompanharem a produção daquela espécies de prova.

            O segundo artigo determina que, sendo a perícia complexa, poderá o juiz nomear mais de um perito, compondo uma junta de especialistas. Conseqüentemente, às partes é dado indicar mais de um assistente técnico, por óbvio, um para cada área de conhecimento ao qual tenha havido indicação pelo juiz de um perito.

Da Prova Pericial (Lei n. 10.358/01):

            A antiga redação do parágrafo único do artigo 433 previa que corresse em cartório o prazo de dez dias para os assistentes técnicos oferecerem seus pareceres. A nova redação passou a determinar a necessidade de intimação das partes para a juntada daqueles, ou seja, apenas após tal intimação terá início a contagem do prazo de dez dias.

Da Competência na Execução (Lei n. 10.358/01):

            A sentença arbitral, conforme determina o artigo 31 da Lei n. 9.307/96, produz entre as partes os mesmos efeitos da sentença proferida por órgão jurisdicional, e, sendo condenatória, constitui-se em título executivo judicial.

            O artigo 575 determinava em seu inciso III, agora revogado, como competente para o processamento da execução de sentença arbitral o juízo que a houvesse homologado. Todavia, por se constituir em decisão proferida no exercício da jurisdição por árbitros leigos, totalmente dispensável se faz a homologação dela por órgão do Poder Judiciário.

            Assim é que a alteração de dezembro revogou o inciso III do artigo 575 e acrescentou ao inciso IV a sentença arbitral, donde corrigiu-se a impropriedade técnica de atribuir a competência para o processamento da sua execução ao juízo que a houvesse homologado para o juízo civil competente, ou seja, o juízo a quem competiria julgar originariamente a ação de conhecimento.

            Desde 27 de março do presente ano, a competência para a execução de sentença arbitral equipara-se à da sentença penal condenatória.

Dos Títulos Executivos (Lei n. 10.358/01):

            Se antes a sentença arbitral se equiparava à sentença homologatória de conciliação ou transação, lógico era que ela se encontrasse relacionada no elenco de títulos judiciais junto àquelas.

            Todavia, em atendimento à verdadeira natureza do instituto, por se tratar de sentença proferida no exercício da jurisdição, foi ela transferida para um inciso próprio, o de número VI.

Conclusão:

            Na contínua preocupação em aprimorar o desempenho das atividades do Poder Judiciário, face às constantes mudanças do mundo social, optou-se por micro-reformas na processualística civil em contraposição às agruras da elaboração de um novo códice.

            As modificações pontuais do Código de Processo Civil, que vêm ocorrendo nos últimos dez anos, visaram e visam alterações precisas e muito bem delimitadas com o claro objetivo de aprimorar o já conhecido, sem desembocar em grandes inovações, simplificando as formas, permitindo assim uma maior agilização do processo.

            Nota-se que o binômio segurança/celeridade teve, nesta última década, um deslocamento acentuado da esfera da segurança para a da celeridade. Isto porque o tempo do processo não pode exceder ao limite do razoável, sob a justificativa de garantir-se a segurança na prestação da tutela jurisdicional.

            Como o conjunto das alterações legislativas da última década, que visaram alterações pontuais no Processo Civil Brasileiro, as alterações abordadas neste breve estudo seguem esta mesma tendência, ou seja, sem introduzir quaisquer mudanças estruturais, simplificar e agilizar a máquina da Justiça, tornando a prestação da tutela jurisdicional mais célere e eficaz na solução das lides.

            Todavia, a doutrina e a jurisprudência deverão encetar profundas interpretações sobre algumas destas novas alterações, que poderão se apresentar um tanto quanto polêmicas, como a que pode desafiar o entendimento da supressão do duplo grau de jurisdição. E isto na esteira da recente tendência interpretativa do STF de que o princípio do duplo grau de jurisdição não é uma garantia sequer implícita na Constituição Federal.

Bibliografia:

            CAHALI, Yussef Said: org. Constituição federal, código civil, código de processo civil. 4ª ed. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2002.

            CERQUEIRA, Josemar Dias. As reformas de 26/12/2001: o duplo grau de jurisdição. In Farol Jurídico. http://www.msm.com.br/msm/links_banner3.htm.

            Friede, Reis. Tutela recursal antecipada. In Revista Brasileira de Direito Aeroespacial. http://www.sbda.org.br/revista/Anterior/1659.htm.

            LIMA, George Marmelstein. A livre distribuição à luz da lei 10.358, de 27 de dezembro de 2001. In Revista Neófito. http://www.neofito.com.br/artigos/art03/pcivil_pdf002_neofito.pdf.

            LIMA, George Marmelstein. Desrespeito à regra da livre distribuição. In Revista Teia Jurídica. http://www.lazaro.guimaraes.nom.br/distrib.htm.

            NERY JR., Nelson; NERY, Rosa M. A.. Código de processo civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 5ª ed. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2001.

            NEVES, Frederico Ricardo de Almeida. Sistema recursal – a nova lei limita os recursos dos embargos infringentes. In Revista Consultor Jurídico. http://cf6.uol.com.br/consultor/view.cfm?id=8612&ad=c.

            SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. Vol I – processo de conhecimento. 7ª ed. Saraiva: São Paulo, 1999.

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            SZKLAROWSKY, Leon Frejda. A distribuição de processos à luz da lei n. 10.358, in Revista Jurídica Consulex. Ano VI; n. 121; 30 de Janeiro de 2002; pp. 18-20.

            SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Recursos e reexame necessário, in Revista Jurídica Consulex. Ano VI; n. 121; 30 de Janeiro de 2002; pp. 14-17.

            THEODORO JR., Hunberto. Curso de direito processual civil. Vol II, 32ª ed. Forense: São Paulo, 2000. 
 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

ROSANA RIBEIRO DA SILVA, advogada de Moji Mirim (SP), mestranda em Direito Processual Civil na Universidade Paulista (UNIP), professora de Direito na Fundação de Ensino “Octávio Bastos” (FEOB).

juka-balla@uol.com.br

Investigação de paternidade e a questão da prova

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* Maria Berenice Dias                       

Das demandas que transitam pelo Poder Judiciário, no âmbito do Direito de Família, talvez seja a investigatória de paternidade a que sempre apresentou maiores dificuldades no campo probatório, sendo, por outro lado, a que mais se beneficiou com a evolução – quase revolução – ocorrida a partir da descoberta dos indicadores genéticos, que muito contribuem para a identificação das relações de parentesco.

A primeira questão que se põe diz com a definição da causa de pedir como elemento identificador da ação. Ainda que elenque, o art. 363 do CC, as hipóteses de cabimento da ação para o reconhecimento da filiação, não se pode deixar de reconhecer que o fato gerador do direito é, ao fim, a existência de uma relação sexual entre os genitores do investigante. Ou seja, não é necessário que estivesse a mãe concubinada com o pretenso pai (inc. I), ou que este a tivesse raptado (inc. II), para o exercício do direito de ação. Igualmente dispensável a existência de escrito reconhecendo expressamente a paternidade (inc. III). Basta tão-só a alegação – e, conseqüentemente, a prova – da existência de um contato sexual entre ambos.

É inquestionável que, ocorrendo esse tipo de relacionamento, ordinariamente, de forma reservada e a descoberto de testemunhas, a prova do fato constitutivo que sustenta a ação torna-se particularmente dificultosa. Trata-se de probação de ato praticado por terceiros, do qual o autor não foi um partícipe, mas quase que uma mera “conseqüência”, o que mais aumenta a dificuldade de amealhar provas.

Assim, nessa espécie de demanda, é necessário equacionar a distribuição dos encargos probatórios feita pelo art. 333 do CPC, atendendo-se a tais peculiaridades. Não se pode impor ao autor que faça prova do fato constitutivo de seu direito (inc. I), relegando-se ao demandado a também quase impossível demonstração de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito alegado na inicial (inc. II). Se é difícil provar a ocorrência da relação sexual, não é mais fácil evidenciar que ela não existiu. Por isso, a prova testemunhal sempre foi usada para apontar ocasiões e identificar situações em que o par foi visto em atitudes que insinuassem a existência de um vínculo afetivo, para concluir-se sobre a possibilidade de ocorrência de um contato sexual. A tese defensiva, de outro lado, muitas vezes centrava-se na argüição da exceptio plurium concubentium, pela qual o demandado, apesar de reconhecer a mantença de relacionamento íntimo com a mãe do investigante, buscava evidenciar a concomitância de contato com outros parceiros, por meio de uma linha argumentativa que sempre restava por denegrir a figura materna, como a apenar o livre exercício da sexualidade.

Além da prova testemunhal, a prova pericial, que, em um primeiro momento, identificava exclusivamente os grupos sangüíneos, era de pouca valia para o reconhecimento da filiação. Porém, a evolução científica veio a revolucionar a investigação dos vínculos parentais, por meio de métodos cada vez mais seguros de identificação dos indicadores genéticos, revelando-se como meio de muita utilidade na busca do reconhecimento a essa espécie de direito. Dita prova, com índices de certeza por demais significativos, acabou inclusive por devolver a liberdade sexual à mãe do investigante, já que perdeu prestígio a alegação da vida promíscua da mulher como fato impeditivo à identificação da paternidade.

No entanto, a prova pericial apresenta dupla ordem de dificuldade. Primeiro, necessita que haja a participação do demandado para sua realização, e não há como se impor que alguém a ela se submeta coactamente, sob pena de afrontar-se o princípio do respeito à integridade física do cidadão, que dispõe de resguardo constitucional. Tal diretriz sobreleva o dever de ambas as partes de colaborar com o Poder Judiciário (art. 339 do CPC) e de proceder com lealdade e boa-fé (inc. II do art. 14 do CPC). O outro empecilho é de ordem pragmática, pois o elevado valor do exame de DNA, método que apresenta maior índice de certeza, não é custeado pelo Estado. No Rio Grande do Sul, o Serviço Médico Judiciário realiza, sem ônus para as partes, o exame pelo método GSE – Grupos Sangüíneos Eritrocitários -, que, entretanto, não apresenta resultados com grau de probabilidade muito acentuado. Não dispondo as partes de recursos para arcar com o pagamento dos testes, tem-se dispensado a perícia, fato que resta por fragilizar o contexto probatório, que, muitas vezes, deságua no desacolhimento da ação.

Mas não são só essas as dificuldades que se apresentam. Em se tratando de ação que diz com o estado das pessoas, envolvendo direito personalíssimo, não se operam os efeitos confessionais decorrentes da revelia. Assim, a eventual omissão do réu, negando-se a se submeter ao exame, não pode, ao invés de onerá-lo com a presunção de veracidade dos fatos articulados na inicial, vir em seu benefício, apenando o autor com um juízo de improcedência, por insuficiência de prova.

Ao depois, mesmo a alegação das partes de não disporem de condições para custear o exame de DNA não deveria revelar-se como fato impeditivo para sua realização. Porém, o exame não tem sido realizado, ainda que haja lei estadual determinando que o Estado arque com os custos (Lei nº 11.163/98) e mesmo que o STJ tenha decidido que o juiz pode determinar a realização da prova pericial pelo exame de DNA a expensas do Estado, que deve diligenciar os meios de provê-lo ou criar dotação orçamentária para tal fim (REsp 83.030-0 – Relator Min. Waldemar Zveiter, Segunda Seção, DJ 20/4/98).

O que descabe é, face à ausência de probação – decorrente quer da omissão do demandado, quer do fato de as partes militarem sob o pálio da assistência judiciária gratuita -, gerar definitivamente a impossibilidade de se buscar a identificação de seu vínculo familiar.

A ausência de prova, que no juízo criminal enseja a absolvição, ainda que não tenha correspondência na esfera cível, não pode levar a um juízo de improcedência, mediante sentença definitiva, conforme preconiza Humberto Theodoro Júnior (Curso de Direito Processual Civil, vol. I, 2ª ed., Ed. Forense, 1990, p. 571).

Há antecedentes legais. Na ação civil pública (art. 16 da Lei nº 7.347/85) e nas ações coletivas de que trata o Código de Defesa do Consumidor (art. 103), está, de forma expressa, afastada a eficácia erga omnes quando a ação é julgada improcedente por ausência de prova, autorizando qualquer legitimado a intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

Ainda que ditas disposições sejam tidas como verdadeira excrescência ao princípio da estabilidade jurídica, não se pode deixar de invocar como precedentes a autorizarem o afastamento dos efeitos da coisa julgada quando a ação diz com o estado da pessoa. A omissão do próprio demandado ou do Estado em viabilizar a realização da prova não permite a formação de um juízo de convicção, a ser selado pelo manto da imutabilidade, de não ser o réu o pai do autor. O que houve foi a impossibilidade de identificar a existência ou concluir pela inexistência do direito invocado na inicial, omissão probatória, no entanto, que, não podendo ser imputada ao investigante, não pode apená-lo com uma sentença definitiva.

Ainda que o processo não se limite à definição dos direitos dos litigantes, tendo por objetivo, conforme Chiovenda, a atuação da vontade da lei, o interesse público de toda a sociedade na composição dos conflitos não pode suplantar o interesse de um menor em identificar seus vínculos familiares. De forma contundente, a Constituição Federal outorga especial proteção à família (art. 226), proclamando como dever do Estado assegurar à criança a convivência familiar (art. 227). De outro lado, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) decanta que o direito personalíssimo de reconhecimento do estado de filiação é indisponível e imprescritível (art. 27).

Tais interesses, por evidente, se sobrepõem ao instituto da coisa julgada, que não tem assento constitucional, não se podendo impedir o livre acesso à Justiça para o reconhecimento da filiação face à temporária impossibilidade probatória ou, até, à negligência em subsidiar a formação de um juízo de certeza para o julgamento.

Desse modo, impõe-se repensar a solução que vem sendo adotada ante a ausência de probação nas ações de investigação de paternidade. Descabe um juízo de improcedência do pedido, a cristalizar, como coisa julgada, a inexistência do estado de filiação. O que se verificou foi falta de pressuposto ao eficaz desenvolvimento da demanda, ou seja, impossibilidade de formação de um juízo de certeza, o que impõe a extinção do processo nos precisos termos do inc. IV do art. 267 do CPC. Tal solução, que, tecnicamente, é uma sentença terminativa, viabiliza a possibilidade de qualquer das partes retornar ao Judiciário, munida de melhores e mais seguras provas, para a identificação da verdade no estabelecimento do vínculo mais caro ao ser humano.


Referência  Biográfica

MARIA BERENICE DIAS, Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam.

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Amor tem preço?

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* Maria Berenice Dias –

O amor imposto como eterno – sem a relativização com que o cantou Vinícius de Moraes – fez do casamento uma instituição indissolúvel. Daí, a veracidade da expressão “até que a morte os separe”, implicando severas penas para quem buscasse o que se chamava “desquite” (não quites, isto é, em débito), tais como a perda do direito a alimentos e ao uso do nome, até pela simples iniciativa da ação.

Mesmo com o advento da Lei do Divórcio, permaneceu o instituto da separação e a necessidade da identificação de um culpado pelo fim do amor. O que tem um evidente caráter punitivo, pois somente o cônjuge “inocente” tem legitimidade para propor a demanda, devendo comprovar a “culpa” do réu pelo rompimento do vínculo matrimonial decorrente do inadimplemento das obrigações elencadas na lei. Ainda quando há o consenso do par, imperioso que aguardem o decurso de prazos, quer para a obtenção da separação, quer para a concessão do divórcio.

Tais restrições, infelizmente, estão reproduzidas no Código Civil que será promulgado a qualquer momento. Persiste a necessidade de uma causa imputável a um dos cônjuges pelo término do casamento. Essa imputação já vem sendo desprezada pela jurisprudência, que até mesmo reconhece como inconstitucional e indevida a intromissão do Estado na intimidade das pessoas. De todo descabido, impor que um dos cônjuges revele a postura do outro, o que evidencia fragrante desrespeito à dignidade da pessoa humana, cânone maior do Estado Democrático de Direito em que vivemos.

Nítida, a tendência cada vez menos intervencionista do Estado nas relações afetivas, seguindo a orientação ditada pela evolução dos costumes e já sufragada nas legislações mais desenvolvidas, que abandonaram o instituto da culpa e a imposição de prazos para chancelar o desenlace de um vínculo afetivo.

Voltando à sensibilidade de Vinícius: “o amor é eterno enquanto dura”. Realmente, ninguém pode ser responsabilizado quando se apaga a chama da paixão. Não gera o casamento qualquer obrigação ou compromisso de caráter definitivo, cujo “distrato” possa ensejar o reconhecimento da ocorrência de dano moral suscetível de ser indenizado.

Assim se revela de todo descabida e retrógrada a tentativa de inserir na lei obrigações de caráter indenizatório pelo fim do afeto, pois muitas vezes o desenlace do casamento é o melhor caminho para a felicidade.


 

Referência  Biográfica

MARIA BERENICE DIAS, Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam.

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Famílias Modernas: (inter) secções do afeto e da lei

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 *Maria Berenice Dias e Ivone M. C. Coelho de Souza

                        Ao buscar-se dimensionar, no contexto social, o conceito de família, é mais ou menos intuitivo identificar família com a noção de casamento, conjunto de pessoas ligadas a um casal unido pelo vínculo do matrimônio. Também vem à mente a imagem da família patriarcal, sendo o pai a figura central, na companhia da esposa, e rodeados de filhos, genros, noras e netos.

                        Para o cristianismo, as únicas relações afetivas aceitáveis são as decorrentes do casamento entre um homem e uma mulher, configuração com nítido interesse na possibilidade de procriação. Essa conservadora cultura, de larga influência no Estado do início do século, acabou levando o legislador pátrio, ao redigir o Código Civil, em 1916, a reconhecer juridicidade apenas ao matrimônio, verdadeira instituição geradora de um vínculo indissolúvel. Identifica a lei o conceito de família como a relação decorrente do casamento.

                        A perda da plena capacidade da mulher e a indispensabilidade de ela adotar os apelidos do marido mostram o significado que tinha o casamento. Duas pessoas fundiam-se numa só, formando uma unidade patrimonial, tendo o homem como único elemento identificador do núcleo familiar.

                        A finalidade da família constituída centrava-se na transmissão de patrimônios de qualquer natureza, hoje delegada à divulgação da tecnologia de comunicação e à chamada globalização.1 Até então, a família tradicional, permanecendo a serviço da grande sociedade, funcionava como polícia, que, se falhava, o Estado empregava a sua, diz Michelle Perrot,2 quando tenta abranger a transmissão das tradições, pela imposição peculiar a tempos passados.

                        Hoje, a dinâmica das transformações impressas aos grupos familiares, especialmente na modernidade e na pós-modernidade, deve ser revisitada sob a ótica da transformação dos papéis da mulher, sem que se incorra em distorção: a mulher sempre simbolizou no imaginário universal a afetividade, a capacidade de procriar, de cuidar, enfim, conceber e zelar pela sua prole, fenômenos que no gênero humano estão impregnados de um sentimento capaz de, por si só, diferenciar a espécie. Aliás, os movimentos de mulheres, atualizados, postulam que nenhuma questão humana deve ser alheia ao feminismo. É fácil deduzir que a recíproca seja igualmente verdadeira.

                        Pontes de Miranda salienta que a Economia pode desencadear alguns fatos sociais que o Direito posteriormente referenda. Da mesma forma, a História e outras ciências sociais apontam os mais decisivos movimentos femininos em direção a mudanças, precipitados por fatores econômicos, dos quais o mais eloqüente foi a demanda de mão-de-obra feminina durante as duas Grandes Guerras.

                        Diante das famílias, até aqueles tempos, as funções da mulher reduziam-se ao interior, historicamente sem voz nas decisões de seus próprios grupos familiares e sem influência nas suas manifestações. Não lograva acesso à informação, equiparava-se em dependência aos filhos menores e sua figura era considerada, perante a lei, incapaz. Esse paradigma feminino por si representou a identificação polarizada da submissão na família, uma vez que lhe era absolutamente impossível prover seu sustento. Era nula como agente de produção econômica formal.

                       Qualquer ordem jurídica legítima cambia constantemente, uma vez que muda a sociedade. Essa afirmação de Pontes de Miranda prossegue com a idéia de que o fato jurídico é antes um fato social e este, amiúde, um fato econômico. Se em tal reflexão já está introduzida a função do Direito, à Psicologia cabe apreender dinamicamente o estabelecimento dessas verdades, tentando sondar o inconsciente do homem, em que jazem as verdadeiras origens de seus comportamentos, suas inclinações e a capacidade com que pode ou não mudá-los. São, efetivamente, formas de ser e agir influenciadas pela realidade externa, enquanto também a influenciam. Um jogo interativo no qual é sujeito e/ou objeto de constante ebulição.

                        Pouco antes, todavia, dos grandes conflitos armados na Europa, já era observável haver-se instalado um desgaste da repressão representada pela era vitoriana do século XIX, graças, entre outras, às contribuições da Psicanálise, que se firmara como ciência e se debruçava no esforço de captar o entendimento profundo da feminilidade, apesar da leitura inicial de Freud e de alguns de seus discípulos, que identificavam a figura feminina como naturalmente passiva.

                        Johann Bachofen,3 pensador e jurista suíço do século XIX, autor do primeiro trabalho científico sobre a família como instituição social, contesta a idéia de que a família monogâmica e patriarcal devesse ser um fato inquestionável e natural. Perrot refere-se a esse grupo como o nó e o ninho, ao mesmo tempo um refúgio caloroso, centro de intercâmbio afetivo e sexual, barreira contra a agressão exterior,… mas também secreto… palco de intrigas,4 tão identificável pelos psicólogos que se dedicam ao estudo e tratamento de famílias e tão impressionantemente imortalizado por Eça de Queiroz em A Ilustre Casa de Ramires.

                        As famílias modernas ou contemporâneas constituem-se em um núcleo evoluído a partir do desgastado modelo clássico, matrimonializado, patriarcal, hierarquizado, patrimonializado e heterossexual, centralizador de prole numerosa que conferia status ao casal. Neste seu remanescente, que opta por prole reduzida, os papéis se sobrepõem, se alternam, se confundem ou mesmo se invertem, com modelos também algo confusos, em que a autoridade parental se apresenta não raro diluída ou quase ausente. Com a constante dilatação das expectativas de vida, passa a ser multigeracional, fator que diversifica e dinamiza as relações entre os membros.

                        Há uma apreciação bipartida dessa família, que refere crise e decadência, ao lado de outra que prefere perceber evolução e conquista. Na verdade, a família de hoje, ao lado das aquisições que instalaram a modernidade, como a educação mais liberal, os papéis flexíveis, etc., não logrou isentar-se de profunda problemática, expressa, por exemplo, na ausência dos pais, na debilidade dos limites que se impõem aos filhos e nas dificuldades de reduzir os índices de conflitos por eles apresentados. É o mesmo para a confusão estabelecida nos papéis parentais, entre o autoritarismo ou simplesmente a tão necessária autoridade parental.

                        A pensadora e feminista francesa Flora Tristan5 diz que os avanços sociais se operam em razão do progresso das mulheres no rumo da liberdade. De fato, grande parte dos avanços tecnológicos e sociais estão diretamente vinculados às funções da mulher na família e referendam a evolução moderna, confirmando verdadeira revolução no social. São eles: descoberta de contraceptivos eficazes, com planejamento familiar efetivo – fertilização manipulada – liberação do aborto – dessacralização da maternidade como imprescindível – dessacralização do casamento, com novas formas de conjugalidade – dissociação de sexo-afeto – implantação da educação equalitária, com respeito às diferenças – crescimento e divulgação dos movimentos feministas, “a mais longa das revoluções”, com leis avançadas, imbuídas de proteção à mulher e que minaram a hierarquização entre os gêneros.

                        Instalam-se, assim, atualmente, importantes alterações nos papéis de gênero. No que diz respeito diretamente à mulher, transparecem pelas expressões atualizadas e liberadas da sexualidade, pelo desempenho na maternidade e pelas recentes relações sócio-laborais, diretamente associadas à Economia e ao plano público. A partir disso, alteram-se as relações intergenéricas, abalando a dissociação masculino-público e feminino-privado, que passa a ser alternada, repercutindo decisivamente sobre a nova família.

                        A legislação, além de omitir-se por longo tempo em regular relações informais, expungia, com veemência, a possibilidade de se extraírem conseqüências jurídicas de todo e qualquer vínculo afetivo outro. Proibiu doações, seguros, bem como a possibilidade de herdar, em face de ligações tidas por espúrias. Tal ojeriza, entretanto, não coibiu o surgimento de relacionamentos sem respaldo legal, levando seus partícipes, quando do rompimento da união, às portas do Judiciário. Viram-se os juízes forçados a criar alternativas para evitar flagrantes injustiças, tendo sido cunhada, via jurisprudencial, a expressão companheira, como forma de contornar as proibições para o reconhecimento dos direitos banidos pela lei.

                        Em um primeiro momento, aplicou-se por analogia o Direito Comercial, face à aparência de uma sociedade de fato entre os convivas. Quando ausente patrimônio a ser partilhado, passou-se a ver verdadeira relação laboral, dando ensejo ao pagamento de indenização por serviços prestados.

                        A Constituição Federal de 1988 alargou o conceito de família, passando a integrá-lo as relações monoparentais, de um pai com os seus filhos. Esse redimensionamento, calcado na realidade que se impôs, acabou afastando da idéia de família o pressuposto de casamento. Para sua configuração, deixou-se de exigir a necessidade de existência de um par, o que, conseqüentemente, subtraiu de sua finalidade a proliferação.

                        O claro declínio do modelo patriarcal rígido, no sentido de todo poder ao pai, com o encapsulamento da mãe, restrita a tarefas domésticas e à procriação, de tal forma desencadeou confusão e ambivalência no relacionamento interfamiliar, a ponto de alguns considerarem a hipótese de se estar a caminho de uma alternativa matriarcal para a família. Como Evelyne Sullerot,6 que diz temer a ausência da figura do pai, reduzida apenas ao sêmen, ou a uma célula, da qual a mãe poderia apropriar-se livremente. O papel fundamental, diante da Psicologia, a ser desempenhado pela figura paterna tende a esfacelar-se em alguns tipos de famílias monoparentais, assim instituídas já não tão raramente. O filho pode ser exposto a riscos de não lhe ser de todo facilitada a constituição do triângulo edípico, raiz do desenvolvimento psicológico da criança. Por outro lado, a premência econômica e a revisão nem sempre tranqüila das funções da mulher projetam-na para fora do âmbito doméstico, pressionando-a por vezes a subestimar a maternidade-maternagem. As repercussões sobre os filhos permanecem como incógnita. Além disso, as ansiedades advindas do trabalho externo e a sobrecarga com as tarefas domésticas, ainda precariamente divididas, produzem um desgaste físico-afetivo perturbador.

                        Também a Carta Constitucional reconheceu como família a união estável entre um homem e uma mulher, emprestando juridicidade ao relacionamento existente fora do casamento. Tal o conservadorismo, que difícil foi ampliar os direitos que já vinham sendo reconhecidos na Justiça, chegando a questionar-se inclusive acerca da auto-aplicabilidade do dispositivo.

                        Só em 29 de dezembro de 1994 é que surgiu a primeira lei, de n.º 8.971, regulando a previsão constitucional, mas que se revelou tímida. Reconheceu como estável só a união com vigência de 5 anos ou com filhos, permanecendo à margem de sua incidência as relações em que havia vedação de casar. Conferiu direito a alimentos, incluiu o companheiro na ordem de vocação hereditária, concedendo-lhe o usufruto da metade ou da quarta parte dos bens, a depender da existência de prole. Também deferiu direito à meação exclusivamente quando a herança resultou da colaboração do companheiro.

                        Em 10 de maio de 1996, surgiu a Lei n.º 9.278, com maior campo de abrangência, já que não quantificou prazo de convivência e albergou as relações entre pessoas somente separadas de fato, gerando a presunção de que os bens adquiridos são fruto do esforço comum. Define como união estável a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família. Mais uma vez o legislador se socorre da idéia de família como elemento configurador de um relacionamento suscetível de gerar efeitos jurídicos.

                        Assim, com a implantação do divórcio, surgiu a instabilidade das uniões tradicionais e conseqüente aceitação da união estável. Cada vez mais têm-se tornado comuns as famílias flutuantes,7 oriundas parcialmente de várias outras, cujos membros, não de todo definidos entre si, podem ser levados a um convívio descontínuo, superficial, competitivo, francamente hostil ou simplesmente, em muitos casos, confuso.

                        Esses novos modelos familiares, muitos formados com pessoas que saíram de outras relações, fizeram surgir novas estruturas de convívio, sem que seus componentes disponham de lugares definidos com uma terminologia adequada. Inexistem na Língua Portuguesa vocábulos que identifiquem os integrantes da nova família. Que nome tem a namorada do pai? O filho do primeiro casamento é o quê do filho da segunda união? "Madrasta", "meio-irmão" são palavras que vêm encharcadas de significados pejorativos, não servindo para identificar os figurantes desses relacionamentos que vão surgindo.

                        Cabe observar que, junto à família, a evolução da mulher evidentemente não se produziu isolada. Desencadearam-se sobre o homem uma série de transformações pressionadas por ela, pela família e pelo social, uma vez que as exigências atuais contrastam com o até então concebido como “privativo do masculino”. Há uma competição crescente entre o casal moderno, freqüentemente perturbadora da relação e da identidade de gênero a ser transmitida aos filhos.

                        Luiz Cuschnir, psiquiatra paulista, chama a atenção ao que denomina masculismo, que visa justamente a integrar as partes externas do homem, ainda ligadas ao poder e ao dinheiro, com a sua maior aceitação da própria afetividade e dependência. Observa curiosamente que o plano da paternidade foi no que o homem melhor se desincumbiu.

                        Dentre tantas inconclusões, comuns à Psicologia, enquanto ciência do dinâmico e do profundo para o homem, é bom assinalar que a família ideal, definida por alguns estudiosos, é apenas uma tentativa de indicar e redefinir relações. As pressões econômicas, como considerava Pontes de Miranda, provocam mudanças cada vez mais bruscas, seguidas pelo Direito, que o faz lentamente. Os conflitos invariáveis na associação de quaisquer indivíduos para quaisquer fins, define a Psicologia, resistem, reestruturam-se, atualizam-se. O antigo paradigma familiar permanece como um resíduo rançoso, não obstante todas as conquistas obtidas. No imaginário coletivo, o dinheiro-poder ainda se identifica como masculino, mesmo com a ascensão da mulher ao mercado de trabalho, no qual ainda não logrou equiparar-se em status econômico e em liderança. E um homem premido por exigências crescentes num mundo também voraz deixa-se oprimir por realidades que já não pode controlar. A temível violência doméstica, a intolerância e o preconceito, nas mais variadas formas, apresentam-se como metáfora a ser administrada.

                        A Lei Maior, rastreando os fatos da vida, viu a necessidade de reconhecer a existência de entidades familiares fora do casamento, mas, buscando exercitar um controle social, se restringiu a emprestar juridicidade às relações heterossexuais. Por absoluto preconceito de caráter ético, deixou de regular certas espécies de relacionamento que não têm como pressuposto a diversidade de sexos.

                        Necessário é encarar essa realidade sem preconceitos, pois a homossexualidade é considerada um distúrbio de identidade e, sendo um determinismo psicológico inconsciente, não é uma doença nem uma opção livre. Assim, descabe estigmatizar quem exerce orientação sexual diferente, já que, negando-se a realidade, não se irá solucionar as questões que emergem quando do rompimento de tais relações. Não se pode negar a ocorrência de enriquecimento injustificado em proveito dos familiares – que normalmente hostilizam tal opção sexual -, em detrimento de quem dedicou a vida a um companheiro, ajudou a amealhar um patrimônio e se vê sozinho, abandonado e sem nada.

                        Essa outra modalidade de família está a exigir da Psicologia e das demais ciências do comportamento uma particular atenção. Não apenas para o surgimento da união homossexual, mas em especial às suas reivindicações de filiação, de forma que seu entendimento minimize o preconceito e tente indicar a saída mais saudável possível. Trata-se de uma realidade premente, que já não é dado negar, porque, desencadeada por afeto antes de tudo, diz respeito também à família. Ao contrário do percebido por Oscar Wilde, ao seu tempo vitoriano, esse tipo de amor, agora, ousa dizer seu nome.

                        Muito raras têm sido as decisões judiciais que acabam por extrair conseqüências jurídicas dessas relações, mostrando-se ainda um tema permeado de preconceitos. Mas é preciso que se reconheça que em nada se diferencia a convivência homossexual da união estável. Ainda que haja restrição em nível constitucional, imperioso que, por meio de uma interpretação analógica, se passe a aplicar o mesmo regramento legal, pois inquestionável que se trata de um relacionamento, que resta por se constituir como uma unidade familiar.

                        A nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir o status de família, merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição Federal, no inc. III do art. 1º, consagra, em norma pétrea, o respeito à dignidade da pessoa humana.

                        A compreensão e o enfrentamento desses quadros anacrônicos demandam muito mais que um enfoque singular. Certamente exigem uma integração multidisciplinar. Leis que busquem a proteção da mulher, do menor, da família, das minorias, que coíbam a discriminação e o abuso, tanto mais fáceis serão de implantar, quanto fundamentadas em contribuições que visem a um entendimento das causas originárias dos comportamentos repetitivos, uma vez que, sabemos, residem no plano psíquico mais velado.


REFERÊNCIAS BIOGRÁFICAS

MARIA BERENICE DIAS, Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam.

IVONE M. C. COELHO DE SOUZA (Coordenadora da Assessoria Psicológica do JUSMulher)

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Algumas considerações da parte geral, no novo Código Civil brasileiro

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* Luís Carlos Drey –

           Após várias décadas de tramitação no Congresso Nacional o projeto de Lei nº. 635\75, no dia 10 de janeiro de 2002, foi sancionado pelo Presidente da República a Lei n. 10.406, que institui o Código Civil brasileiro. O diploma legal entrará em vigor após o vocatio legis de 01(um) ano, a contar da publicação, revogando o Código de Clóvis Beviláqua, primeira parte do Código Comercial de 1850 e toda a legislação civil e mercantil que venha ser incompatível com os dispositivos legais nele previstos.

            Embora, a parte geral, tenha ficado ao encargo do eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, José Carlos Moreira Alves(1), reacende-se a discussão da efetividade do novo diploma legal. A questão é controversa. Parte da doutrina defende que o novo Código já é ultrapassado e não atenderá as novas relações civis advindas da sociedade contemporânea, em especial a genética, as relações homossexuais e o comércio eletrônico. Outros, favoráveis a descodificação, orientados pela voz do mestre ORLANDO GOMES(2), que prelecionam que os princípios formulados, na parte geral, são inconvenientes num Código "sendo-lhes estranhas, por conseguinte, as definições, classificações e teorias".

            Dentre os defensores do novo código, o Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Dr. Paulo Costa Leite. Segundo o Ministro, o novo Código reflete a necessidade de renovação das normas jurídicas em função das transformações da sociedade. Entendem PIMENTEL, PANDJARJIAN e MASSULA (3), que o projeto do novo Código Civil consolidado pelo Senado Federal, representa inegável avanço ao adequar a legislação civil à Constituição. Sustentam que a revogação de alguns artigos do vigente Código Civil contrários à Constituição é tácita, não expressa, o que poderia resultar, em alguns casos, decisão equivocada dos magistrados a cerca da aplicabilidade dos dispositivos. REALE(4), por seu turno, assevera que a codificação do projeto de Código foi elaborada com o critério de preservar, sempre que possível, as disposições do Código vigente, em respeito a um patrimônio de pesquisas e de estudos de um universo de juristas. No entanto, adverte o autor: "a estrutura do novo código é essencialmente social, ao contrário do contraste individualista do Código Civil ainda em vigor, onde o espírito da época o individual se sobrepunha aos interesses sociais".

            É na parte geral que são fixados os parâmetros do sistema, direitos e obrigações da pessoa humana, o regramento e pressupostos gerais da vida civil. FIUZA(5), vai além, não é apenas o pórtico de ingresso do Código Civil. Ao contrário, são preceitos da mais ampla generalidade e eficácia, que permanecem, embora implícitos, em todos os âmbitos do texto codificado. Devido à importância, dar-se-á ênfase, de forma sucinta a algumas alterações advindas com a nova legislação e as repercussões na órbita das relações civis após a entrada em vigor do novo Código Civil.

            O primeiro ponto a se destacar na Lei 10.406 é a menoridade, que a teor do artigo 5.o cessa aos dezoito anos completos e não mais aos vinte e um anos como dispõe o Código vigente, ocasião em que o sujeito fica habilitado à prática de todos os atos da vida civil. Entendeu o legislador, que o sujeito com esta idade, já possui discernimento total para a prática dos atos negociais. Trazendo à baila as lições de MONTEIRO(6), já era possível aos maiores de 18 anos: "casar, postular na justiça do trabalho, sem assistência do pai ou tutor, ser eleito e exercer o cargo de vereador, (…)" o que, não se justificava permanecer a menoridade civil aos vinte e um anos. A antecipação da maioridade, por óbvio, foi reduzida, nos termos do artigo 5.o, parágrafo único, I, do novo Código, quando tiver dezesseis anos completos, pela concessão dos pais ou por sentença judicial, ouvido o tutor. O novo Código, fundado sobretudo nos mais recentes estudos da psiquiatria e da psicologia, distinguiu-se entre "enfermidade ou retardamento mental e "fraqueza da mente" REALE(7), determinando a incapacidade absoluta ou relativa dos sujeitos. O artigo 3o, III, do recente diploma, reconhece como incapacidade absoluta, os que, ainda por motivo transitório, não puderem exprimir sua vontade. Outrossim, algumas das formas que, na vigência do atual Código, são considerados como incapacidade absoluta, foram enquadradas na incapacidade relativa, é o que se verifica, no artigo 4,II, quanto aos ébrios habituais, aos viciados em tóxicos, e aos que, por fraqueza mental, tenham o discernimento reduzido. Neste contexto, não apenas os surdos-mudos, mas todos os excepcionais sem desenvolvimento mental completo, se declaram relativamente capazes (art.4,III). Importante observação sobre a incoerência e imperfeição técnica do artigo 5,IV, do vigente Código é trazida por Francisco Pereira de Bulhões Carvalho apud RIZARDO(8), inclusive da contradição do dispositivo com o artigo 451 do Código Civil, que permite ao magistrado, no decisum, fixar os limites da curatela.

            "Se o juiz pronunciar a interdição do surdo-mudo, deve fixar os limites da curatela, é porque a incapacidade não será absoluta para todos os atos da vida civil, como enuncia o artigo 5, n. IV, mas poderá sê-lo apenas para determinados atos, da vida civil", entretanto, o Código vigente não alude como incapacidade relativa.

            A lei 10.406, introduziu capitulo específico a respeito dos direitos da personalidade, embora, como saibamos, este direito fundamental, referente à integridade física e à moral, a longa data permeiam as legislações dos últimos tempos. A sociedade moderna demonstra cada vez mais preocupação com os direitos humanos em detrimento tão somente no interesse patrimonial, refletido no Código de Beviláqua.

            Estão previstos, no capitulo II, nos artigos 11 a 21, as regras gerais e essenciais à plena existência da pessoa humana. Encontram-se elencadas no novo código: a) Proteção aos direitos da personalidade. Preceitua o artigo 11: "Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos de personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária"; b) Proibição de atos de disposição do próprio corpo, que importe diminuição permanente da integridade física, ou que contrariem os bons costumes, consoante dispõe o artigo 12. O parágrafo único, deste dispositivo legal, admite o transplante, na forma estabelecida em Lei; c) Nos termos do artigo 14, é válida a disposição gratuita do corpo, no todo ou em parte, com objetivo científico ou altruístico, para depois da morte; d) Tutelou de forma expressa, nos termos do artigo 16, o direito ao nome, nele compreendido o prenome e o patronímico, como já era admitido em Leis esparsas e pela doutrina. Da mesma forma, o direito do pseudônimo (artigos 17 a 19); e) Proteção à propriedade intelectual, a honra, a boa fama ou respeitabilidade da pessoa.

            Apesar do esforço do legislador, entendem autores como COSTA(9), que poderia ter uma melhoria neste capitulo.

            "(…) Não há dúvidas, porém, de que o projeto poderia ainda Ter avançado nesta matéria, talvez pelo emprego de uma cláusula geral do direito de personalidade, a exemplo do que procedeu relativamente a um dos seus aspectos, qual seja, o direito ao resguardo da vida privada. Poderia assim criar uma ponte com o princípio constitucional da dignidade da pessoa e com os direitos constitucionais sociais, também atinentes às dimensões da personalidade, sendo indiscutível que atual ênfase numa esfera de valores existenciais da pessoa deve-se, entre outros fatores, à compreensão do papel desempenhado pelos princípios constitucionais do Direito Civil. Estes para além de Constituírem normas jurídicas atuantes nas relações de Direito Público, têm incidência especial em todo ordenamento e, nesta perspectiva, também no Direito Civil, disciplina das relações jurídicas travadas entre os particulares entre si.

            De qualquer sorte, a matéria é complexa, donde haverá desenvolvimento pela doutrina e jurisprudência.

            Cuidou-se de regrar, na parte geral, da curadoria dos bens do ausente, sucessão provisória e definitiva, no capítulo III, artigos 22 a 39 do novo diploma, conforme preleciona REALE(10) adotando-se critérios mais condizentes com as facilidades de comunicação e informação próprias de nosso tempo.

            Avanço significativo e tratamento diferenciado foram dados as pessoas jurídicas de direito privado. O novo código, ao contrário do vigente, que se revelava lacunoso e vacilante, elabora conceitos efetivos e precisa a distinção entre as associações e fundações (artigos 53 e 62, respectivamente), – que possuem fins não econômicos – daquelas que possuem no seu âmago manifesto propósito econômico.

            Exsurge de forma expressa, no artigo 50, da Lei 10.246, a desconsideração da personalidade jurídica, quando do uso indevido da personalidade jurídica e dos fins a que se destina, em especial para a prática de atos ilícitos ou abusivos. A doutrina, já admitia a despersonalização da pessoa jurídica "disregard of legal entily, disregar doctrine", do direito anglo-saxão, ou da "penetração na pessoa jurídica", o Durcchgriff, descrito por DINIZ(11). Todavia, já se fazia mister como defendia CARNEIRO(12) "os pressupostos do abuso de direito, o desvio de poder, a fraude e os prejuízos a terceiro, em virtude de confusão patrimonial ou desvio dos objetivos sociais da empresa". Pelo dispositivo legal, havendo abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, possibilita ao magistrado, que os efeitos determinados nas relações sejam ampliados aos bens particulares dos sócios ou administradores da empresa. Afirma DINIZ(13) que a legislação trabalhista a longa data já admitia esse Instituto Jurídico. Conforme a autora, a Consolidação das Leis do Trabalho, no artigo 2, parágrafo segundo, parece aplicar a teoria da desconsideração ao prescrever que:

            "Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis à empresa principal e cada um das subordinadas".

            Nas relações de consumo, vige este princípio. É exeqüível desconsiderar a personalidade jurídica, consoante dispõe o artigo 28 da Lei 8.078 de 1990, nas seguintes hipóteses: – abuso de direito, desvio ou excesso de poder, lesando consumidor; – infração legal ou estatutária, por ação ou omissão, em detrimento do consumidor; – falência, insolvência, encerramento ou inatividade, em razão de sua má administração, etc. Convém lembrar, a teor do artigo 20 do Código Civil Vigente e artigo 596 do Código de Processo Civil, a absoluta independência entre as pessoas jurídicas e seus sócios, inexistindo quaisquer responsabilidades destes por dívidas da sociedade, salvo em excepcionais exceções previstas em Lei.

            De grande importância o disposto no artigo 52 do novo Código:

            "Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade".

            A Carta cidadã de 1988, no art. 5º, X, declara invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Rubens Limongi França(14) já defendia a possibilidade da pessoa jurídica ser sujeito de dano moral. Com o advento da Súmula 227 do egrégio Superior Tribunal de Justiça, encerrou-se fase de profundas controvérsias e discussões jurisprudenciais a cerca da aplicabilidade dos danos morais à pessoa jurídica, sendo estes admitidos. Ad instar, como preleciona LÔBO(15), a tutela atingiria também os entes não-personificados, que são equiparados a pessoa jurídica para determinadas finalidades legais, ou seja, o condomínio de edifício, o espólio, a herança jacente, a massa falida, o consórcio, a família, a empresa de fato, a empresa individual entre outros, o que não era admitido por GOMES(16).

            Disciplina, a nova lei, o que a doutrina contemporânea denomina negócio jurídico, em substituição a expressão genérica ato jurídico, empregada no Código vigente. Figuram normas distintas para os dois Institutos. O primeiro assume papel primordial, dá-se ênfase de forma expressa não apenas a forma e o objeto do ato negocial, mas sobretudo o elemento vontade ou no plano da existência com a declaração de vontade, como defende AZEVEDO(17). Aliás, o que já dispunha o artigo 85 do Código vigente e vinha sendo reconhecido pela doutrina. É de importância destacar, o capítulo IV, no que tange aos defeitos dos negócios jurídicos, já que foi incluído o estado de perigo e a lesão previstos nos artigos 156 e 157, respectivamente, novidades em relação ao Código atual, podendo acarretar, se comprovado, a anulabilidade do negócio.

            Configura-se o estado de perigo: Art.156: "quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa". De relevo destacar, nos termos do parágrafo único do dispositivo legal citado, que pode o magistrado ao apreciar a demanda estender esta prerrogativa à pessoa não integrante da família. Pelo novo conceito, faculta-se a uma das partes, postular a anulabilidade do negócio jurídico. Há uma colisão entre os conceitos do novo Instituto frente ao princípio do "pacta sunt servanda". Seria possível anular a venda de imóvel, por exemplo, que se realizou por preço vil, em razão de necessidade urgente do vendedor? Pois bem, questões como esta deverão aflorar em discussões técnico-jurídicas, até a entrada em vigor do novo código civil.

            Outra forma inovadora e que pode gerar a invalidade do negócio jurídico é a lesão. Dispõe o artigo 157 "Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obrigada a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta". Destacam-se três elementos que devem coexistir para a caracterização do ato lesivo, conforme preleciona RIZZARDO(18):

            I- a desproporção entre as prestações;

            II- a miséria ou necessidade, a inexperiência e a leviandade (para o termo "ligeireza" utilizado no espanhol empresta-se o significado de leviandade);

            III- a exploração por parte do lesionante.

            Demais disso, assevera o AUTOR(19), ao dispor sobre os requisitos, para caracterização da lesão, que não basta o elemento objetivo (desproporção material e econômica). Faz-se mister a comprovação do elemento subjetivo, qual seja o abuso da premente necessidade, da inexperiência e da necessidade do lesado.

            Entretanto, o instituto da lesão é figura jurídica conhecida no ordenamento jurídico brasileiro, tendo integrado a Consolidação das Leis Civis, por Teixeira de Freitas. A lesão, apesar de não estar regulada no atual Código, conforme FIUZA(20) foi considerada crime de usura pela Lei 1.521/51, no seu artigo 4o. "Obter ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade da outra parte, lucro patrimonial que exceda o quanto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida". Ainda segundo leciona FIUZA(21), o Código do Consumidor, no que tange ao tema, foi mais sábio, não fixou parâmetros, nem procurou definir a lesão com muitos detalhes. Deixou tudo isto a cargo do juiz que deverá julgar com equidade, caso por caso, tudo conforme dispõe o artigo 51 do diploma legal.

            Para REALE(22), um dos princípios que norteiam o novo Código é o da operabilidade. Centrado nas idéias de Ihering, entende que as normas jurídicas se fundam mormente na realizabilidade. "Direito é para ser executado; – Direito que não se executa – já dizia Ihering na sua imaginação criadora- é como chama que não aquece, luz que não ilumina. O direito é para ser realizado; é para ser operado". Alicerçado neste princípio é que a nova legislação se refere à matéria da prescrição e a decadência. Prazos de prescrição, são aqueles discriminados na Parte Geral, Titulo IV, Capitulo I, (artigos 205 e 206), sendo de decadência os demais, tanto na parte geral como na especial. O propósito do legislador, é evitar as reiteradas discussões doutrinárias, haja vista o Código Civil não dispor de forma explícita da decadência. Ainda por ocasião do anteprojeto do Código Civil recentemente aprovado, MARTINS(23), já tecia elogios a atitude politicamente acertada de reconhecer a dicotomia existente entre prescrição e decadência. Assevera ainda:

            "Disciplinando em capítulos diversos a prescrição e a decadência, o Anteprojeto, como convinha e tradição, não procurou estabelecer diferenças limites ou definições. Pelo menos diretamente. A compreensão se alcança pelo conhecimento das normas em si, emerge das expressões jurídicas sobre prazos principalmente."

            Nesta esteira, a doutrina já vinha demonstrando a distinção entre prescrição e decadência. A decadência é a extinção do direito, pela falta do exercício, atinge indiretamente a ação, não se suspende e não se interrompe. Como leciona DINIZ(24), o prazo pode ser estabelecido pela Lei, ou pela vontade unilateral ou bilateral das partes. Os prazos extintivos seriam mais exíguos, ao contrário da prescrição, que são mais dilatados. A decadência ocorre independente da provocação das partes, inclusive pronunciada pelo juiz "ex offício". A prescrição, ao contrário, deve ser alegada pelas partes, etc. Já RODRIGUES(25), entende que quanto aos efeitos o primordial na prescrição é suscetível de interrupção o que não se dá na decadência. Adverte, que é difícil a distinção quando se busca a natureza ou a essência da cada uma das Instituições.

            Ressalte-se, por fim, o artigo 189 do novel Código, que havendo lesão de direito, utiliza a terminologia prescreve a pretensão, superada a teoria da prescrição do direito de ação como projeção de direitos, defendida por parte da doutrina contemporânea.

            Em conclusão, peço vênia aos entendimentos contrários, mas é inegável o avanço em relação aos regramentos da parte geral. O novo texto veio corrigir e adequar a terminologia técnica ao direito contemporâneo, banindo do Código palavras e expressões que geravam ambigüidade e dificultavam a interpretação dos operadores do direito. A que ser valorado as diretrizes fundamentais, consoante entendimento de Miguel Reale(26), quais sejam: a socialidade, em contraste com o sentido individualista do Código Civil vigente, o princípio da eticidade abandonando o formalismo técnico-jurídico próprio do individualismo da metade do século passado e o princípio da operabilidade, tudo para evitar-se uma série de equívocos e complexidades, que hoje estorvam a existência do Código Civil. Não obstante os aspectos positivos da nova legislação, haverá necessidade de um aperfeiçoamento e quiçá alguns reparos em áreas que tenha havido falha ou que não tenha havido uma adequação efetiva às relações civis da sociedade contemporânea.

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Notas

            1.ALVES, José Carlos Moreira. A parte Geral do Projeto de Código Civil Brasileiro. Editora Saraiva, 1986, p. 70 e 77.

            2. ORLANDO, Gomes.Introdução ao Direito Civil. Editora Forense 1998, 13ª Edição, p. 32.

            3.PIMENTEL, Silvia. PANDJARJIAN, Valéria e MASSULA, Letícia. O Novo Código Civil representa um avanço significativo na legislação? SIM Avanços material e simbólico. Folha de São Paulo, 18 de agosto de 2001- TENDÊNCIAS E DEBATES.

            Sílvia Pimentel, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP. Valéria e Letícia, membras do Cladem-Brasil.

            4.REALE, Miguel. O Projeto do Novo Código Civil; p.4/6, editora Saraiva, 2a edição reformulada e atualizada, 1999.

            5. FIUZA, Ricardo. Revista Jurídica, n. 292, Fev/2002, p. 28\31. Revista Jurídica Editora Ltda.

            6.MONTEIRO. Wasghinton de Barros. Curso de Direito Civil, Parte Geral, p. 64, 37ª edição, 2000, editora Saraiva.

            7.Obra já citada. Página 64.

            8.RIZZARDO, Arnaldo. Parte Geral do Código Civil, p. 201. Editora Forense, 2002, 1a edição.

            9.COSTA, Judith Martins. O Projeto de Código Civil Brasileiro: "Em busca da ética da situação". Revista Jurídica, n. 282, p. 27\53. Revista Jurídica Editora Ltda.

            10.Obra Já citada. Página 65.

            11.DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral do Direito Civil, p. 170, 15ª edição, São Paulo, editora Saraiva, 1999.

            12. CARNEIRO, Athos Gusmão. REVISTA AJURIS. Vol 64- Jul/95. P. 27/33.

            13. Obra citada, página 172.

            14. FRANÇA, Rubens Limongi. Reparação do Dano Moral. Revista dos Tribunais, vol 631, p.29/37.

            15. LÔBO, Paulo Luis Netto. Danos Morais e Direitos da personalidade. Revista Jurídica n 284, junho de 2001. p. 16.

            16. Obra já citada, página 197.

            17. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico. Existência, Validade e Eficácia. Editora Saraiva, 3a edição, revista 2000, p.80.

            18. Obra já citada. Página 403.

            19. Idem, página 407.

            20. FIUZA, Cézar. DIREITO CIVIL CURSO COMPLETO. Del Rey editora, Belo Horizonte, 1999, p. 118.

            21. Obra já citada. Página 118.

            22. Obra citada, Página 20.

            23.MARTINS, Milton dos Santos. DA PRESCRIÇÃO E DA DECADÊNCIA NO ANTEPROJETO DE CÓDIGO CIVIL. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, AJURIS, n 20, 1980, p. 49/55.

            24. Obra já citada. Página 264.

            25. RODRIGUES, Sílvio. Parte Geral, Volume I, 30a edição, revista 2000. Editora Saraiva P.p. 323.

            26. Obra já citada. Página 7/10.

 


Referência  Biográfica

Luís Carlos Drey – Advogado, professor de Direito da Universidade de Passo Fundo – Campus Palmeira das Missões, especialista em Direito pela Universidade Regional Integrada (URI) em Frederico Westphalem

E-mail: drey@mksnet.com.br

Novo Código Civil: críticas pontuais ao Livro I Direito das Obrigações

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* Hélder Gonçalves Dias Rodrigues –

           Art. 316. É lícito convencionar o aumento progressivo de prestações sucessivas.

          O aludido aumento progressivo de prestações sucessivas demonstra grandes possibilidades de vir a significar capitalização de juros (juros sobre juros), a despeito da diversa denominação que lhe foi atribuída, produzindo a perniciosa evolução negativa do saldo de forma a gerar GANHO SEM CAUSA que em nada eleva os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigos 1.º, III e 170, ambos, da Constituição Federal).

          Por certo, o indigitado artigo tem muitas chances de vir a produzir uma desvantagem exagerada para aquele que deve pagar as prestações a que se obrigou. Sendo assim, o aludido artigo ofende a dignidade da pessoa humana (artigos citados da Constituição Federal), a garantia do desenvolvimento nacional com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, de modo a possibilitar a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e regionais e a não favorecer a marginalização (artigos 3.º, I , III e 170, VII, ambos da CF). O peso que desta obrigação pode advir, retira a função social da propriedade (art. 170, III, da CF).

          Os avanços, universalmente, reconhecidos ao Código de Defesa do Consumidor (mesmo tendo prevalência por ser lei especial) podem começar a sofrer restrições porque, por exemplo, poderiam argüir que não seria abusiva a cláusula que trata do assunto respaldado em Lei; etc.

          Nesta particular opinião, um atraso legislativo desmedido.

          Art. 404. As perdas e os danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, serão pagos com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional.

          Parágrafo único. Provado que os juros da mora não cobrem o prejuízo, e não havendo pena convencional, pode o juiz conceder ao credor indenização suplementar.

          O Código Civil abre aqui uma oportunidade para novas discussões judiciais e "melhores negócios" que vão de encontro com alguns avanços legislativos que imperavam de 1988 aos dias atuais. Com a Constituição da República Federativa do Brasil, criou-se um novo modelo de Estado, preocupado com a Democracia e com o Estado de Direito que se pretendeu Social, ou seja, voltado para o benefício da nossa castigada sociedade. É o que se presume, por exemplo, do preâmbulo e dos Princípios Fundamentais da nossa Constituição.

          O dinheiro já é assegurado pela correção monetária que prevê índices objetivando a manutenção dos valores pelo decurso do tempo. A essa correção monetária, somam-se os juros que se por alguma razão não pactuados, hoje, seria de 0,5% (meio por cento) ao mês. Legalmente, seria possível ocorrer ainda um acréscimo pela incidência da cláusula penal que, hoje, seria de no máximo 10% do valor contratado (Lei de Usura). Como se não bastasse, ainda, seria possível incidir o juros de mora que teria como teto o limite de 2% do valor da prestação em atraso (Código de Defesa do Consumidor). Quer dizer, hoje, o dinheiro faz muito dinheiro e sua falta, mesmo que momentânea, acarreta enorme aumento das dificuldades e prejuízos. Mas, ainda "era justo".

          Agora, tende a ficar muito pior. Não é difícil crer que os "comerciantes" não vão encontrar maiores dificuldades para provar que os juros de mora não cobrem os "prejuízos" e, neste caso, não havendo pena convencional, devido ao caráter da transação, pode o juiz, fundamentada (mas subjetivamente), conceder ao credor indenização suplementar. Pode servir de estímulo a criação de "novos e bons contratos", sem pena convencional, objetivando os privilégios deste artigo (por exemplo). A meu ver, a lei não deve facilitar a "esperteza".

          Em vários dos seus artigos, o Novo Código Civil, aparentemente, concedeu ao aplicador do direito (normalmente ao juiz) exagerado subjetivismo. É sabido que mesmo dentro da objetividade da Lei já possui o intérprete meios e poder de ampliar ou restringir o significado das normas, bem como de integrá-la ao sistema, possibilitando, com parâmetros reduzidos às próprias leis, meios de melhor interpretá-la de acordo com os fins da norma ou do direito.

          A Lei é instrumento de segurança e melhor medida de contenção de eventuais arbítrios aparentemente legalizados ou instituídos. Sob pena de mais facilmente poder infringir e atentar contra o Estado de Direito, não pode a lei conceder maiores margens de elasticidade ao subjetivismo do aplicador da Lei que no exercício das suas funções pode ser tentado a valorar mais certas razões ou condições pessoais dos litigantes do que propriamente legal.

          Nem sempre, mas até pela inamovibilidade dos aplicadores da Lei dentro das suas Comarcas, como condição humana, passam os aplicadores da Lei a fechar certos círculos de amizade ou de relações sociais. Passam, ainda, a não nutrir maiores considerações por aqueles que por alguma razão não lhes agradam. Assim, e principalmente nas pequenas Comarcas, se não for dada objetividade à interpretação da lei, pode ser que a almejada distribuição paritária da justiça tenha, ainda mais, menor chance de prevalecer.

          Permanecendo a conceder tamanho subjetivismo às funções do intérprete praticamente nula restará a possibilidade de responsabilizá-lo, civil e criminalmente, por desvio de conduta. Deve haver, SEMPRE, limites objetivos à atuação do intérprete e aplicador do direito que já amplamente pode exercê-lo. Não há poder ilimitado que seja bom. A Lei deve criar mecanismos de controle e limitar as funções, o exercício e a extensão das condutas de todos aqueles que formam (ou atuam) num Estado Democrático de Direito. Não há razão jurídica para tamanho e exacerbado subjetivismo que tem condições de possibilitar ao intérprete (e aplicador) do Direito afetar o próprio Estado de Democrático de Direito, cometendo abusos que podem vir a se tornar menos raros.

          Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

          A meu ver, sem dúvida alguma, muitas saudades vão deixar os artigos 1.062 e 1.063 do Código Civil em Vigor (de 1.º de janeiro de 1916), que fixa a taxa de juros moratórios (ou os juros de lei), não convencionadas, em 6% (seis por cento) ao ano. Quanto mais o "inaplicável" § 3.º do art. 192 da Constituição Federal, que limita as taxas de juros reais, incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, a 12% (doze por cento) ao ano (* Não aplicar o aludido § 3.º é, com a devida vênia, um absurdo e uma afronta ao bom Povo brasileiro).

          O Código de Defesa do Consumidor, tido como uma das melhores leis do Brasil e que tem servido de exemplo para muitos Países, prevê que as multas de mora não poderão ser superior a 2% do valor da prestação (art. 52, § 1.º).

          Até então um avanço que agora passa a ser novamente ameaçado. Nas relações de consumo, pela especialidade das Leis, vigora o citado índice (2%). Ocorre que o Código Civil acabou por abrir nova fonte de discussão perniciosa para os direitos sociais que vinham se consolidando. Serão as mais diversas interpretações e julgados, por vários e longos anos, até que se consolide um entendimento desconhecido frente as diversas possibilidades que a prática vai gerar.

          Salvo melhor juízo, quase sempre o Estado extrapola os direitos e não os particulares. O correto seria emparelhar as possibilidades do Estado com as dos particulares em tudo o que se refere a fixação de juros, índices, multas ou cobranças. Na pior das hipóteses, ainda inconcebível, seria emparelhar a situação dos particulares com a do Estado, somente, quando ambos se relacionassem.

          Entretanto, aconteceu o pior. Foi transferida às relações entre particulares a possibilidade de estabelecer a abusividade que até então era própria do Estado. A possibilidade do aumento dos índices ou taxas cobradas, pode criar uma "cultura" favorável a estabelecer situações onde a solvabilidade não seja pretendida. Se hoje as longas prestações apresentam-se como uma das melhores formas de capitalização, imagina-se o que acontecerá com as "novas oportunidades".

          Em se tratando de fatos ligados a dinheiro, finanças, primordial à garantia do desenvolvimento nacional e à redução da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais; imprescindível seria a unificação da legislação em torno do disposto na Constituição Federal (art. 192, especialmente o § 3.º), no Código de Defesa do Consumidor e na Lei de Usura. Leis boas, estas, que deveriam ser integralmente aplicáveis a todos (inclusive ao bancos, cada dia mais favorecidos por uma política de arrecadação e concentração de riquezas) por se apresentarem compatíveis com um País que se pretende cada dia mais social.

          Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.

          Até o momento, o valor da cláusula penal não pode ser superior a 10% do valor da dívida (art. 9.º do Decreto n. 22.626, de 1933). Agora, os legisladores, em nova afronta aos interesses sociais, procuram dar à cláusula penal um aumento de 90% ou mais.

          Com tantos benefícios advindos do atraso, parece ser possível entender que foi criada toda uma estrutura "legal" tendendo a criar dificuldades para o adimplemento das obrigações na medida em que visa conferir tão desmedidos lucros em decorrência dos aviltantes encargos. Os acordos foram feitos para serem cumpridos, assim como o Estado foi feito para dar proteção e segurança ao seu Povo que é, a final de contas, a razão deste. Ao que leva a crer, na forma como está, o Novo Código Civil é uma ferramenta para o aumento das já agigantadas diferenças sociais. Ao que tudo indica, poder vir a se transformar numa apologia ao lucro sem causa.

          Dando força à aludida piora:

          Art. 416. Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo.

          Parágrafo único. Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado; se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente.

          Como se não bastasse o vertiginoso aumento da pena convencional (citada cláusula penal) e dos demais encargos das obrigações, pode o credor exigir indenização suplementar se assim for convencionado. Frente algumas "práticas comerciais", imagina-se não ser tão assombroso, a partir de agora, o surgimento de novos prejuízos além dos convencionalmente acertados.

          Contratos com aparência de benéficos poderão criar situações que coloquem o devedor, ainda, em muito maior desvantagem pela simples comprovação de prejuízos além do livremente pactuado e previsto em cláusula contratual (que nem mesmo necessitaria existir).

          É a "liberdade de contratar" num Estado que, aparentemente, institui inúmeras possibilidades de fulminar com mínimas garantias constitucionais e sociais. O pequeno valor da cláusula penal pode, verdadeiramente, ocultar os interesses dos seus estipuladores. Ao contrário do que certamente pretendeu o legislador, este artigo não trará benefício algum à pacificação social (escopo do direito); pelo contrário, vai causar enormes prejuízos.

          Em síntese, ao que tudo indica, o Novo Código Civil merece os devidos reparos legislativos para que possa vir ao encontro dos objetivos do Novo Estado Democrático de Direito, evidentemente Social, instituído pela Constituição da República Federativa do Brasil. Não pode ser crível que os nossos representantes tenham mudado tanto de ideal, retrocedendo em direitos e garantias legais, desde à época da elaboração e promulgação da atual Constituição Federal. Pior, como está, ao que tudo indica o legislador laborou em retrocesso ao próprio Código Civil hoje em vigor (de 1.º/01/1916) e, ainda, em retrocesso a Lei de Usura de 07/04/1933.

          Mesmo os Legisladores devem obedecer e primar em suas condutas pelos preceitos e princípios que regem a administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

          Em que pese seja a lei um instrumento legal, questionável seria a moralidade dos citados artigos pelos argumentos expostos. A Nova Constituição da República Federativa do Brasil, por representar a vontade da sociedade, deveria ser observada como fonte de inspiração às novas espécies (ou textos) legislativas. O Professor JOSÉ AFONSO DA SILVA ensina:

          "A constituição é algo que tem, como forma, um complexo de normas (escritas ou costumeiras); como conteúdo, a conduta humana motivada pelas relações sociais (econômicas, políticas, religiosas, etc.); como fim, a realização dos valores que apontam para o existir da comunidade; e, finalmente, como causa criadora e recriadora, o poder que emana do povo. Não pode ser compreendida e interpretada, se não se tiver em mente essa estrutura, considerada como conexão de sentido, como é tudo aquilo que integra um conjunto de valores" (Curso de Direito Constitucional Positivo – 11ª Edição – Malheiros – 1996 – p. 43/44).

          Assim, parafraseando o Professor Clèmerson Merlin Clève, para quem "No sistema constitucional brasileiro, não é impossível advogar a tese da potencial inconstitucionalidade da lei injusta" (Atividade Legislativa do Poder Executivo no estado Contemporâneo e na Constituição de 1988 – Revista dos Tribunais – 1993 – p. 70), deve o legislador repensar os "benefícios ou não" da legislação criada procedendo de forma a impedir: 1) A supervalorização do dinheiro em benefício do enriquecimento sem causa, e; 2) o desmedido excesso de Poder nas mãos dos aplicadores do direito que, da forma como impregnado em vários artigos do Novo Código Civil, poderão empreender abusos pelo excesso de subjetivismo que tendem a favorecer ao arbítrio e, se não bastasse, a reduzir imensamente a possibilidade, hoje já diminuta, de virem a responder por excesso ou abuso de poder.

 


Referência Bibliográfica

Hélder Gonçalves Dias Rodrigues – Advogado em Ibaiti (PR)

E-mail: helder@ibanet.com.br

A função social e o princípio da boa-fé objetiva nos contratos do novo código civil

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* Ramon Mateo Júnior              

             No dia 10 de janeiro de 2002 foi sancionada a lei nº 10.406 que instituiu o novo Código Civil Brasileiro, diploma legal que entrará em vigor em 10 de janeiro de 2003. Por certo o novo estatuto do direito privado, que reúne em seus dispositivos o direito civil e o direito comercial legislado, trará em seu bojo várias alterações que serão assimiladas gradativamente por todos nós, os destinatários da lei.

             Sem a pretensão de abordar exaustivamente a matéria, gostaria de tecer algumas considerações sobre uma alteração, desde logo percebida na leitura do novo Código, que está no campo da teoria geral do contrato. Ela é de grande importância para as relações jurídicas de nossa atual sociedade. Estamos falando dos artigos 421 e 422, inseridos no capítulo que cuida das disposições gerais dos contratos.

             O artigo 421 determina que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, enquanto que o artigo 422 dispõe que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

             Diante dessas disposições legais, verificamos uma mudança na mens legem do Código novo em relação ao atual. A lei opera um avanço na concepção da finalidade da relação jurídica contratual. De fato, até hoje adotamos, nos contratos em geral, o denominado modelo liberal como sendo um inabalável paradigma, estabelecendo-se um dogma entre os operadores do direito em torno dos princípios da autonomia da vontade e força obrigatória, desde que livremente formalizados e com observância à ordem pública e aos bons costumes.

            Essa concepção clássica do contrato, que tem na vontade a única fonte criadora de direitos e obrigações, exige, para seu implemento, um Estado ausente, ou seja, apenas garantidor das regras do jogo, que seriam estipuladas pelos contratantes na livre manifestação de vontade – pacta sunt servanda – em sua mais pura idealização.

            Relembrando a visão de Pontes de Miranda, para quem a autonomia da vontade consistia no auto-regramento da vontade, a chamada autonomia da vontade é que permite que a pessoa, conhecendo o que se produzirá com seu ato, negocie ou não, tenha ou não o gestum que a vincule(1), podemos delimitar o campo que a doutrina tradicional nos permitia trabalhar. Se a vontade expressa não se chocasse com a ordem pública e os bons costumes, estabelecia verdadeira lei entre as partes. A regra particular assim criada não poderia ser violada, nem mesmo pelo Magistrado no julgamento da causa, ou seja, ressalvadas exceções decorrentes de situações absolutamente imprevisíveis (teoria da imprevisão) ou de onerosidade excessiva, devidamente comprovada (lesão), não seria possível ao Estado ingressar e modificar a vontade das partes.

            Não se pode negar que a circulação das riquezas, tão necessária para a vida em sociedade, exige esse respeito à vontade emitida, para a segurança dos contratantes, não só quanto ao estabelecimento do conteúdo do contrato (elaboração de suas cláusulas) mas também no que se refere a sua efetiva execução. O Estado apenas deveria concretizar uma garantia, impondo, no caso de inadimplemento, a sua força com a finalidade de compelir o devedor ao cumprimento de sua obrigação ou reparação de perdas e danos, sem maiores questionamentos.

            A liberdade de contratar impunha uma responsabilidade pelos compromissos assumidos. Não fosse assim, estaria em risco toda a segurança do edifício jurídico.

            Neste ponto, também destacamos a influência do Direito Canônico para a concepção do princípio da autonomia da vontade. Aquele pregava a sacralidade dos contratos, de modo que a palavra dada, a vontade manifestada a outra pessoa, era tida como sagrada e o seu descumprimento configurava o pecado.

            O ápice dessa teoria clássica do contrato será alcançado no apogeu do século XIX, quando se constrói a teoria do negócio jurídico, que foi exaustivamente ensinada nos cursos jurídicos por quase todo o período do século XX.

            Ocorre que a sociedade passou por modificações no curso da história e a nova realidade resultante desse fenômeno clamava pela realização de uma justiça mais distributiva que não era alcançada com a utilização da teoria clássica. O curso da história impunha uma evolução no modo de pensar o contrato; reclamava uma mudança principalmente tocante à formação do vínculo jurídico e na sua execução.

            A insatisfação era percebida exatamente porque a liberdade de contratar – âmago da autonomia da vontade – passou a ser uma simples falácia histórica, pois na prática sentia-se que nenhuma liberdade era exercida no momento de contratar, mormente em face da necessidade de ser praticado o ato, para a própria subsistência no meio social.

            Além da necessidade de submeter ao contrato, constata-se também, no curso do século XX, o aumento da quebra do equilíbrio sócio – econômico dos contratantes, como reflexo das desigualdades dos homens, principalmente no acesso aos bens da vida. Essas desigualdades são características próprias do capitalismo e é mais sentida nos países pobres onde praticamente se aniquilou a livre vontade no contraimento das obrigações.

            Em outras palavras, não somos tão livres para contratar como pensamos. Ao contrário, estamos direcionados para assumirmos obrigações em busca de uma vida melhor, como exigência de respeito e sucesso no meio social. Tudo programado pelo ideal consumerista que desde cedo ensinamos aos nossos filhos.

            Afinal de contas, um mercado lucrativo para os empresários – detentores do capital – exige, em contrapartida, a presença de ávidos consumidores. Com certeza, o capitalismo não teria a menor possibilidade de sobrevivência se todos pensássemos como São Francisco de Assis, que acolheu o desprendimento das coisas e bens materiais como um estilo de vida.

            Após o término da 1ª Guerra Mundial, abre-se o caminho para a discussão do contrato no início do século XX. Experimentando a sociedade um processo de aumento populacional a nível mundial, originaram-se novas espécies de relações jurídicas que foram massificadas ou receberam uma conotação coletiva.

            As correntes socialistas, bem como, as doutrinas sociais da Igreja Católica direcionam o pensamento no respeito aos direitos sociais, impondo a necessidade de reformas para elevação da dignidade do homem. Essa preocupação se dirige, principalmente, para aqueles que ficaram à margem dos benefícios sociais somente concedidos aos que poderiam comprá-los.

            Posteriormente, com o advento da 2ª Grande Guerra e suas nefastas conseqüências para a humanidade, são aprofundadas as necessidades em torno do respeito aos Direitos Humanos. Passou-se a exigir do Estado uma postura mais voltada ao social. No campo do direito privado encontramos o reflexo desse modo de pensar e, aos poucos, o interesse com os contratos não se limita ao individual, mas é ampliado em prol do social. É certo que essa alteração de postura não se dá de forma abrupta, mas paulatinamente; são transplantadas para o direito contratual as mesmas idéias que norteiam o direto administrativo na proteção do administrado em face da poderosa administração pública. A Igreja Católica reunida em concílio (Vaticano II) decide a sua opção pelos pobres, enriquecendo a luta em favor do social.

            Nos campos do chamado Direito Social, tais como educação, saúde, trabalho, lazer, consumo, segurança, previdência social, economia e outros, verificam que o interesse preponderante está na coletividade, para a formação de uma vida digna em sociedade. Ganha relevo o trabalho do operador do Direito, que deve apresentar essa preocupação, sob pena de não ser realizada boa distribuição de justiça.

            Desse modo, evolui a teoria contratual para acompanhar a formação do Estado Social, assim sentida por Luiz Neto Lôbo:

            …o Estado Liberal assegurou os direitos do homem de primeira geração, especialmente a liberdade, a vida e a propriedade individual. O Estado Social foi impulsionado pelos movimentos populares que postulam muito mais que a liberdade e a igualdade formais, passando a assegurar os direitos do homem de segunda geração, ou seja, os direitos sociais(2).

            Continua o jurista a desenvolver seu pensamento, afirmando que o grande golpe contra o Estado Liberal foi dado pelo reconhecimento dos direitos de terceira geração, quais sejam, os de natureza transindividual, protegendo-se interesses que ultrapassam os dos figurantes concretos da relação negocial, ditos difusos, coletivos ou individuais homogêneos.

            Esse momento de transformação é sentido pelo legislador pátrio que consigna expressamente no novo Código Civil, quando trata dos contratos, o respeito à função social e ao princípio da boa-fé, como normas de ordem pública (art. 422). Mas, efetivamente, o que significam essas mudanças para o dia a dia das inúmeras relações jurídicas que são praticadas?

            Para buscarmos a resposta a essa indagação, voltamos nossa atenção para o princípio da boa-fé. Nesse ponto, vale a pena destacar que não estamos falando da boa-fé subjetiva, bastante utilizada no direito das coisas, onde se exigia um estado psicológico (intenção) voltado à não provocação de dano ao próximo. Tanto que o oposto da boa-fé subjetiva seria a má-fé vista como a vontade de causar dano ao outro. Nessa ótica a boa-fé é analisada apenas com ausência de conhecimento sobre o ilícito do ato praticado, ou seja, era conceituada dentro do campo subjetivo.

            Ao estabelecer o princípio da boa-fé nas relações contratuais, a nova lei está implementando uma outra concepção sobre o instituto, à qual a doutrina passou a denominar de objetiva, porque a sua finalidade é impor aos contratantes uma conduta de acordo com os ideais de honestidade e lealdade, independentemente do subjetivismo do agente; em outras palavras, as partes contratuais devem agir conforme um modelo de conduta social, sempre respeitando a confiança e o interesse do outro contratante. A antítese dessa espécie, não é a intenção de prejudicar, como na boa-fé subjetiva, mas a exteriorização de um comportamento improbo, egoísta ou reprovável, verificado sob a ótica da vida em harmonia dentro da comunidade. Consiste em ato violador de um dever anexo ao contrato.

            A boa-fé objetiva é concebida como uma regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração de que todos os membros da sociedade são juridicamente tutelados, antes mesmo de serem partes nos contratos. O contraente é pessoa e como tal deve ser respeitado.

            Esse comportamento pode ter como paradigma o amor ao próximo pregado pelo Cristianismo. Sem dúvida, não há melhor parâmetro para se verificar a retidão de um comportamento

            Com efeito, a vida na sociedade capitalista nos ensina a sermos competidores, onde o contrato é mais uma arena dessa luta diária. A boa-fé objetiva, aliadas aos ideais do Estado Social, busca humanizar essa disputa, impondo aos contratante deveres anexos às disposições contratuais, onde não tem cabimento a postura de querer sempre levar vantagem.

            Estando a teoria geral dos contratos dotada do princípio da boa-fé objetiva, o magistrado passa a exercer um papel de fundamental importância, na exata medida em que participará da construção de uma nova noção do direito contratual como sendo um sistema aberto que pode evoluir e se completar, a cada momento, diante dos mais variados casos que podem surgir na vida social.

            Em outras palavras, se os contratantes são obrigados a guardar, tanto na conclusão, como na execução do contrato, os princípios da probidade e da boa-fé(3), o julgador sempre poderá corrigir a postura de qualquer um deles sempre que observar um desvio de conduta ou de finalidade. Ou ainda, se o contratante quiser se prevalecer de qualquer situação onde obtenha mais vantagem que aquela inicialmente esperada. Aliás, mesmo que não exista qualquer espécie de dano ou vantagem, entendemos que diante de uma regra de ordem pública, como o art. 422 do novo Código Civil, é proibida a postura não condizente com a boa-fé objetiva, impondo-se a correção pelo magistrado.

            Na concretização desses princípios o magistrado irá guiar-se pela retidão de caráter, honradez e honestidade, que expressam a probidade que todo cidadão deve portar no trato de seus negócios. São conceitos abstratos, mas neles se pode visualizar o que podemos chamar de mínimo ético, patamar onde o Juiz deve lastrear sua decisão.

            Não se pode confundir a adoção desse princípio da boa-fé, ora estudado, com a tradicional forma interpretação dos contratos. Nela se prega o dever de serem as cláusulas do contrato, quando obscuras, interpretada segundo a boa-fé. Porém, no princípio da boa-fé objetiva não há interpretação de cláusula ou disposição obscura do contrato, mas uma análise do comportamento das partes quando aos deveres que são anexos ou conexos ao vínculo jurídico estabelecido pelas partes.

            A visão do julgador não está na letra do negócio jurídico, mas nas atitudes dos contraentes. Opera-se uma reflexão acerca do comportamento das partes de forma que a prestação devida poderá se amoldar às características fáticas de cada caso concreto, sem que isso provoque incertezas no espírito dos contratantes, pois desde logo saberão que o proceder no curso do contrato não poderá se afastar dos ideais da honestidade e probidade.

            Dispositivo semelhante já vige na Alemanha no § 242 do BGB há muitos anos e ultimamente tem se consubstanciado em doutrina dominante, acolhendo-o como um princípio supremo e absoluto que domina todo o direito das obrigações e todas as relações obrigacionais em todos os seus aspectos e conteúdo.

            No nosso atual Código Civil, que já prepara a sua despedida, não há previsão legal para a aplicação do princípio da boa-fé objetiva, de modo que essa matéria não foi tratada pelos tradicionais juristas pátrios. Somente nesta última década o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, em matéria intitulada "A boa-fé na relação de consumo", publicada pela Revista de Direito do Consumidor, nº 14 (abril/junho de 1995), referiu-se ao artigo 131 do Código Comercial de 1850(4), para asseverar que este dispositivo sempre esteve como letra morta por falta de inspiração da doutrina e nenhuma aplicação pelos nossos Magistrados. Entendeu o Ministro Ruy Rosado que o princípio da boa-fé poderia ser dinamizado por nossos operadores do direito, há muito tempo, mesmo à míngua de texto legal específico. Porém, o apego à dogmática vigente não permitiu esse avanço. Cumpria-se o contrato como estipulado ainda que isso provocasse aversão em nosso senso de justiça.

            Cláudia Lima Marques, cuidando das relações contratuais no campo de consumo, afirma que – propõe a ciência do direito o renascimento ou a revitalização de um dos princípios gerais do direito há muito conhecido e sempre presente desde o movimento do direito natural: o princípio geral da boa-fé. Esse princípio ou novo mandamento (Gebot) obrigatório a todas as relações contratuais na sociedade moderna, e não só as relações de consumo(5).

            Havendo dispositivo expresso no novo Código, não resta dúvida que a matéria deverá ser enfrentada por nossos juristas. Estes não poderão simplesmente dizer que nada mudou alegando que a boa-fé sempre norteou nossas obrigações, entre outros argumentos. Citam-se duas razões que esvaziam esse argumento. A primeira consiste em que a boa-fé objetiva, como regra de comportamento das partes, nunca foi efetivada por nossos juízes. A segunda liga-se uma forte regra de interpretação que afirma não conter a lei palavras inúteis. Portanto, se o texto do novo Código contém essa regra (art. 422), que não havia no Código de 1916, é evidente que ela contém alguma finalidade.

            Em recente trabalho acadêmico explica, com muita felicidade, Alinne Arquertte Leite Novais:

            Assim uma dupla função é assumida pela boa-fé objetiva na nova teoria contratual: 1) como fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, os chamados deveres anexos e, 2) como causa limitadora do exercício, antes lícito, hoje abusivo, dos direitos subjetivos. Vale ressaltar que a essas duas funções elencadas por Cláudia Lima Marques, Judith Martins-Costa junta uma outra, a de cânone hermenêutico-integrativo.(6)

            Os deveres conexos nascem com o contrato na medida em que este se consubstancia em fonte de eventuais conflitos, os quais são evitados se a atuação dos contratantes estiver amparada pela boa-fé em suas relações, não só em face das regras do contratos, mas também diante da conduta social de cada uma das partes. Menciona a doutrina, como exemplo, os deveres de cuidado, previdência e segurança, o dever de comunicação e esclarecimento, o dever de informação, de prestação de contas, o respeito pelo nome do contratante, cuidado com o patrimônio do outro contratante, de sigilo e outros.

            O segundo aspecto mencionado na lição da Profª Alinne nos coloca perante a problemática da função social do contrato. O novo Código determina no artigo 421 que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Na teoria tradicional a liberdade de contratar sempre estava limitada à ordem pública e aos bons costumes. É certo que esses limites se mantém na nova ordem do direito civil, mas agora a liberdade de contratar também deve ser exercida tendo em mira a função social do contrato, de modo que o instituto em análise deverá estar amoldado aos ideais do Estado Social, sob pena de não ser válido.

            A função limitadora do exercício dos direitos subjetivos expressa a obediência ao mandamento constitucional de que o contrato deve cumprir sua função social, como concepção de justiça que orienta a ordem econômica hoje disseminada em todos os ramos do direito. Portanto, o contrato não se presta apenas à mesquinha função de criar direitos e deveres para as partes individualmente consideradas; tem também o aspecto social que incrementa o seu engajamento na sociedade globalizada, atendendo a função social antes de qualquer coisa.

            E o que significa atender uma função social? A resposta a essa indagação somente pode ser construída tendo-se como orientação os ideais do Estado Social. Nele se recoloca o ser humano no centro da preocupação da Ciência Jurídica, tanto que a dignidade humana é hoje um dos princípios fundamentais de nossa Constituição.

            Desde a idealização do Estado Liberal, que propalava uma pseudoliberdade para todos, o direito passou ser usado como meio de dominação nas mãos das minorias (elite) que sempre tiveram o comando das decisões, ainda que amparadas pela força dos canhões. Como a maior preocupação dessas minorias, detentoras do poder econômico, era a manutenção do seu status, via-se com tristeza que a lei somente se preocupava com o patrimônio. A pessoa com seus problemas e suas necessidades nunca foi objeto de preocupação do legislador.

            Se olharmos a nossa sociedade, tal como edificada pelo Estado Liberal no último século, facilmente verificamos que a grande parte do povo está vivendo em absoluta miséria, passando fome em total pobreza. Mesmo em face dessa realidade vivenciada em cada esquina desta nação, o legislador nunca estabeleceu uma norma jurídica obrigando a partilha de bens para diminuição da miséria. Com isso a ordem jurídica demonstra que a lei não está preocupada com o homem, mas sim com patrimônio. Ainda como argumentação deste ponto de vista, lembremo-nos da situação do devedor a quem a lei impõe o dever de cumprir a obrigação a qualquer custo, mesmo que isso signifique a sua marginalização e o aumento do número de miseráveis.

            Assim, o contrato nada é, dentro do Estado Liberal, do que um mecanismo para o exercício dessa dominação, apesar de atrelado ao respeito à ordem pública e aos bons costumes.

            Todavia, na visão do Estado Social o contrato ganha nova roupagem, revestindo-se com a preocupação dirigida à dignidade humana e o social. Nessa nova ideologia não se pode admitir que, em nome da força obrigatória e princípio da liberdade de contratar, a dignidade humana seja colocada em segundo plano.

            O limite da função social e o princípio da boa-fé, agora consignados na teoria geral dos contratos, se completam para permitir uma visão mais humanista desse instituto que deixará de ser apenas um meio para obtenção de lucro.

            A efetivação desses mandamentos legais não fica restrita ao campo da ética, exigindo, igualmente, uma noção técnica – operativa que se especifica no dever do juiz de tornar real o mandamento de respeito à recíproca confiança, que incumbe às partes contratantes, não permitindo que o acordo de vontades atinja finalidade oposta ou divergente ao respeito da dignidade humana, desde o momento da contratação até a consumação do vínculo. Some-se a isso o reconhecimento dos deveres conexos cuja teleologia consiste na observância da função social.

            Ao regrar o comportamento das partes amparado pelo princípio da boa-fé objetiva, o magistrado deverá ter em mente a função social que o contrato exerce na atual sociedade globalizada, sendo certo que nessa perspectiva a leitura e a releitura da legislação social não bastam. É necessária uma reflexão vinculada ao predomínio do valor humano (dignidade humana), com todos os seus atributos, como resultante básica de qualquer anexo dever a ser imposto como regra de comportamento aos contratantes. Essa reflexão exige, com igual intensidade, um estudo mais aprofundado das questões sociais, filosóficas e econômicas.

            O Estado, como garantidor do direito à igualdade e do progresso da sociedade, deve interferir nas relações contratuais definindo limites, diminuindo os riscos do insucesso e protegendo camadas da população que, mercê daquela igualdade aparente e formal, ficavam à margem de todo o processo de desenvolvimento econômico, em situação de ostensiva desvantagem(7).

            Em conclusão, afirmamos que com o advento do novo Código Civil, que traz em seu bojo a adoção expressa da função social e do princípio da boa-fé objetiva, consumou-se, nas relações intersubjetivas privadas, a proteção das pessoas envolvidas, mormente aquelas consideradas hipossuficientes para que não sejam, diante da inferioridade social – econômica ou cultural, submetidas a alguma armadilha contratual que as coloquem em desvantagem, exigindo dos contratantes, além disso, um comportamento transparente, digno, onde não prepondera a ganância lucrativa mas a dignidade das pessoas.

            Teremos maior segurança nos negócios jurídicos, fator hoje inexistente em razão da complexidade e instabilidade de nossa economia. Essa segurança reside no maior ideal de justiça social.

            Cabe agora aos operadores do direito a materialização dessas novas regras jurídicas, que vivificam e humanizam os contratos. A tarefa lhes exigirá muito estudo e reflexão sobre todas as características de cada caso concreto levado ao seu conhecimento.

BIBLIOGRAFIA

            AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de – A boa-fé na relação de consumo. Revista de Direito do Consumidor, n° 14. São Paulo : Revista dos Tribunais, Abril/junho de 1995.

            AZEVEDO, Antonio Junqueira. A boa-fé na formação dos contratos. Revista de Direito do Consumidor – vol. 03. São Paulo : Revista dos Tribunais, set./dez. de 1992

            LÔBO, Paulo Luiz Neto. Contrato e mudança social. Revista Forense, n° 722. Rio de Janeiro : Forense.

            _________. Dirigismo Contratual. Revista de Direito Civil, n° 52. São Paulo : Revista dos Tribunais.

            _________. O contrato – exigência e concepções atuais. São Paulo : Saraiva, 1986.

            MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor – o novo regime das relações contratuais. Biblioteca de Direito do Consumidor, vol. 01 – 3ª Edição – São Paulo : RT, 1998.

            PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Parte Especial, tomo XXXVIII, 2ª Ed. – Borsoi, 1962.

            TEPEDINO, Gustavo. As relações de consumo e a nova teoria contratual – in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro, Renovar, 1999.

Notas

            1.PONTES DE MIRANDA – Tratado de Direito Privado. Parte especial. 2 ed. Rio de Janeiro : Borsoi, 1962. t. XXXVIII, p. 39

            2.Contrato e mudança social. Revista Forense, nº 722 – Rio de Janeiro ; Forense, p. 42.

            3.Artigos 421 e 422 do novo Código Civil

            4.Diploma legal que também será revogado pelo novo Código Civil.

            5.Contratos no Código de Defesa do Consumidor – Ed. RT – São Paulo, 1998, p. 106.

            6.A teoria Contratual e o Código de Defesa do Consumidor – ed. RT – São Paulo, 2001, p.78.

            7.TEPEDINO, Gustavo. As relações de consumo e a nova teoria contratual – in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro, Renovar, 1999 – p. 204.

 


Referência  Biográfica

Ramon Mateo Júnior  –  Juiz de Direito no Estado de São Paulo

E-mail: ramateojr@msn.com

Lei nº 10.352/2001: introdução do § 3º ao art. 515 do Código de Processo Civil. Conflito normativo com as disposições concernentes ao recurso de apelação e a supressão do duplo grau de jurisdição

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*  Mathias Magalhães Silva –

            Recentíssimas alterações no sistema recursal pátrio foram introduzidas pela Lei nº 10.352, de 26 de dezembro de 2001, que alterou dispositivos da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, referentes a recursos e ao reexame necessário.

            Das alterações, nos limitaremos em poucas linhas a dar atenção a uma das quais nos causou espécie, qual seja: o acréscimo de um 3º parágrafo ao artigo 515 do Código de Processo Civil, cuja redação passará (salvo modificação antes de sua entrada em vigor, cuja vacatio legis é de três meses) a ser a seguinte:

            "Art. 515

            § 3o Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento."(NR)

            O aludido parágrafo 3º enseja um conflito normativo, eis que revela-se às escancaras, totalmente antinômico ao caput do art. 515 a que se submete.

            Se a apelação devolve ao Tribunal competente, o conhecimento da matéria impugnada, e a instância origem sequer analisou, ainda que inicialmente o mérito da causa, impossível se mostra, por óbvio que é, a impugnação de questão meritória, inexistente no decisório.

            O malsinado parágrafo, indubitavelmente é norma supressora de instância julgadora.

            É princípio atinente aos recursos, o inconformismo da parte vencida com a decisão proferida pelo julgador, in casu, especificamente a sentença.

            O pedido dirigido ao Tribunal competente é o de nova decisão, de reforma ou anulação da sentença, ou seja, das questões nela apreciadas ou que ao menos o foram parcialmente, à guisa das disposições do parágrafo 1º do art. 515 e art. 516 do CPC.

            "Não pode o apelante impugnar senão aquilo que foi decidido na sentença; (…)." (RTJ 126/813)

            O parágrafo em questão, sem sombra de dúvidas, ampliou o efeito devolutivo do recurso de apelação, pois, além de permitir o pronunciamento pela Segunda Instância, de questão de mérito anteriormente não decidida, mesmo que o Apelante a postule em suas razões, viola as próprias disposições de seu caput, pois, não há matéria de mérito a ser impugnada, demais, sendo defeso ao recorrente a postulação de reforma do inexistente até então.

            O aludido dispositivo, além de afrontar ao seu caput, viola indubitavelmente o princípio do duplo grau de jurisdição, posto que subtrai do órgão julgador de primeira instância, a apreciação da questão de direito substancial, a quem fora inicialmente submetida a pronunciamento, nos termos da postulação da tutela jurisdicional.

            A questão da supressão de grau de jurisdição foi objeto de inúmeros julgados proferidos pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, destacando-se a resenha de autoria do Prof. Humberto Theodoro Júnior(1), sobre alguns acórdãos afetos ao tema:

            "Se o julgamento de primeiro grau se restringiu a questões preliminares, não pode o tribunal, por força da apelação, aprecie desde logo o mérito da causa, É que, na espécie, não houve sequer início do exame da questão de mérito. Julgá-la originariamente em segundo grau importaria abolir o duplo grau de jurisdição. A decisão do tribunal não poderá, pois, ir além do plano das preliminares" (STF, RE 71.515, 72.352, 73.716 e Ação Resc. 1.006, in RTJ, 60/207, 60/828, 62/535 e 86/71.

            Destarte, além de um conflito normativo entre o mencionado parágrafo 3º e o seu respectivo artigo, que merece correção, para se expurgar a contradição de normas de uma mesmo sistema, salta aos olhos a ofensa ao princípio do duplo grau de jurisdição, que, não obstante não previsto em texto expresso na atual Carta Maior, a doutrina ensina que tal princípio encontra-se ínsito no sistema constitucional, no postulado do devido processo legal.(2)

Notas

1. Curso de Processo Civil, Vol. I, 24ª ed., 1998., p. 565, nota 54.

2. José Frederico Marques, Manual de Direito Processual Civil, Vol. I, 3ª ed., 1975, p. 78. 
 

 


Referência  Biográfica

MATHIAS MAGALHÃES SILVA, advogado em Campinas (SP), especializado em Direito Processual Civil.

mathiasmagalhaes@zipmail.com.br

As reformas no CPC : Lei nº 10.352/2001. O duplo grau de jurisdição

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* Josemar Dias Cerqueira –

           O Presidente da República sancionou duas leis no apagar das luzes de 2001, alterando sobremaneira o cotidiano dos operadores do direito, ambas com entrada em vigor 3(três) meses após sua publicação. Tratarei, apenas, das mudanças efetuadas no art. 475 do CPC, relativas ao duplo grau de jurisdição. Diz a lei 10.352 de 26 de dezembro de 2001 :

            Art. 1o Os artigos da Lei n.º 5869, de 11 de janeiro de 1973, que instituiu o Código de Processo Civil, a seguir mencionados, passam a vigorar com as seguintes alterações:

            Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:

            I – proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público;

            II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI).

            § 1o Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los.

            § 2o Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.

            § 3o Também não se aplica o disposto neste art. quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente.

            Não se submete mais ao crivo automático do Tribunal, a sentença que anular casamento (como previa o antigo art. 475,I do CPC). Andou bem a modificação, em assunto que já não tem a relevância de outrora. Já é forte, inclusive, a corrente doutrinária que entende que vários aspectos relacionados ao casamento devem ficar restritos a procedimentos administrativos, saindo da esfera judicial.

            Ampliou-se no art. 475,I do CPC o leque de sujeitos que, ao não lograram êxito na sua pretensão, têm direito à confirmação da sentença pela instância superior, independente de recurso. A medida serve mais para pacificar a jurisprudência, pois os beneficiários incluídos (DF, autarquias e fundações públicas) já eram detentores desta prerrogativa, pelo entendimento majoritário.

            No art. 475,II do CPC foi disciplinado o regramento da execução da dívida ativa da Fazenda Pública em relação ao duplo grau de jurisdição, surgindo interessante questão a ser dirimida na jurisprudência.

            Antes, não obtendo sucesso a Fazenda Pública, haveria o reexame necessário para confirmação(…que julgar improcedente a execução de dívida ativa da Fazenda Pública). Agora, se os embargos à execução forem julgados procedentes, teremos, obrigatoriamente, a revisão. Parece a mesma coisa mas, rigorosamente, não é.

            Primeiro, importante segmento da doutrina entende que o termo embargos à execução diz respeito, apenas, aos embargos do devedor (arts. 736/747 do CPC), não envolvendo, portanto, os embargos de terceiro (arts. 1046 e ss. do CPC). Uma decisão, por conseguinte, em embargos de terceiro, contra a Fazenda Pública, não sofreria o duplo grau. Note-se, entretanto, que no §2º do novo art. 475 do CPC, o texto menciona, expressamente, o termo embargos do devedor, o que sugere que a terminologia no inciso II tem sentido amplo. Em segundo lugar, já é largamente aceita, hodiernamente, a defesa do executado nos próprios autos da execução, via exceção de pré-executividade, por exemplo, e não via embargos à execução, inobstante a interpretação dada por outros ao art. 16,§ 3º da Lei 6830/80. Pela nova regra, se a Fazenda Pública é derrotada em processo de execução da dívida ativa, sem a necessidade de embargos à execução, não haveria necessidade de duplo grau de jurisdição.

            No tocante à remessa dos autos, o legislador retirou a menção à parte vencida(…haja ou não apelação voluntária da parte vencida..). Entendo despicienda a modificação. Antes, como hoje, inerte ou não a parte vencida, haveria remessa dos autos, quaisquer que fosse a conduta da parte vencedora.

            O legislador, de forma inovadora, relacionou quatro situações em que não teremos a aplicação da remessa por duplo grau:

            1. se a condenação ou direito controvertido for de valor certo não excedente a 60 salários mínimos;

            2. na procedência de embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor;

            3. se a sentença for fundada em jurisprudência do plenário do STF;

            4. se a sentença for fundada em súmula do STF ou do tribunal superior competente

            O primeiro caso diz respeito, basicamente, ao art. 475,I do CPC e o operador do direito deve observar que o quantum deve ser de valor certo, não superior a 60 salários mínimos. O termo valor certo deve ser entendido na esteira do art. 604 do CPC: não exige nada mais que o cálculo aritmético na sua apuração ou já está definido de forma líquida. A limitação a 60 salários mínimos é mais uma a ocupar o nosso cotidiano: 20 salários mínimos para procedimento sumário (art. 275,I do CPC), 40 salários mínimos nos juizados especiais (art. 3º da lei 9099/95)…

            Observe se que tanto não haverá duplo grau se o litígio envolver pedido menor do que 60 salários mínimos, como em pedido acima deste valor, desde que a condenação ou discussão, neste caso, fique situada dentro do teto cabalístico. Em síntese : o pedido pode ser maior do que 60 salários mínimos mas a parte litigiosa ficar dentro do limite ou a condenação se adstrir ao teto legal. Em ambos os casos não acontecerá o duplo grau.

            O segundo caso, incluído, provavelmente, para ressaltar a situação do art. 475,II do CPC, acaba por levantar certa contradição com a primeira parte do §2º do referido artigo.

            Imaginemos que a Fazenda Pública execute um suposto devedor pela quantia de 70 salários mínimos e que este oponha embargos a esta execução pelo valor total da dívida, sendo que a sentença reconheça a procedência parcial dos embargos, restringindo a dívida a 40 salários mínimos. Entendendo a sentença como condenatória, fato digno de embates doutrinários, enquadra-se na primeira parte do §2º (condenação, mesmo que parcial, de trinta salários mínimos, dentro do limite de 60 salários mínimos), ainda que a dívida executada, seja superior a 60 salários mínimos(exigência da segunda parte do §2º).

            A distribuição dos textos leva à interpretação de que o §2º consta de duas partes: uma para o inciso I e outra para o inciso II. Não foi feliz, porém, a redação dada ao dispositivo, sem mencionar que, ao explicitar embargos do devedor, não contemplou a hipótese de embargos de terceiro.

            O terceiro caso oferece mais espaço para discussões, pois o legislador empregou a expressão jurisprudência do plenário do STF. Não usou a terminologia jurisprudência dominante, ou mesmo decisões reiteradas. À letra fria da lei, embora não tenha sido esta, no meu entender, a intenção do legislador, se a sentença se fundamentar em uma única decisão do plenário do STF, não ensejaria o duplo grau de jurisdição, motivando, provavelmente, uma série de agravos, a abarrotar ainda mais nossos tribunais.

            O último caso trata de decisão sumulada do STF ou do Tribunal Superior competente. O termo competente não me parece um ter sido a melhor escolha. Sob a ótica técnica, os tribunais superiores a nível federal (STF ou STJ, por exemplo) são sempre competentes para avaliar, em casos específicos e em grau recursal, uma causa ocorrendo em uma pequena comarca de primeira instância. O legislador, provavelmente, quis referir ao tribunal superior imediato( Tribunal de Alçada ou da Justiça Estadual, por exemplo).

            São estes os comentários, em breve síntese, que entendi pertinentes às alterações efetivadas em tão importante artigo do nosso Código Processual Civil.


Referência  Biográfica

Josemar Dias Cerqueira – juiz de Direito em Brejões (BA)

E-mail: drjosemar@hotmail.com

Provas ilícitas lícitas?

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* Daniel Ustárroz –

Sumário: 1. Introdução 2. O direito à produção de prova e a persecução da verdade no processo. 2.1. O mundo dos fatos e o mundo jurídico. 2.2 Até que ponto o processo deve intentar buscar a verdade ? 2.3 O direito à prova. 2.4 O magistrado também pode determinar a realização de determinada prova. 3. A prova ilícita dentro do sistema jurídico brasileiro. 4. A importância do princípio da proporcionalidade. 5. Conclusão. 6. Bibliografia.

1. Introdução

            Reza o artigo 5º, LVI, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

            Muito embora a clareza do comando, vedando genérica e irrestritamente a utilização da prova obtida por meio ilícito em processo judicial, a questão ainda encontra-se longe de navegar em águas calmas, em face da diversidade de interpretações dos operadores. De um lado, encontraremos vozes inadmitindo a utilização da prova de origem ilegal, em sinal de respeito à literalidade da regra constitucional. No outro lado do pêndulo, entretanto, há quem afirme, em homenagem à interpretação teleológica e sistemática, que o dispositivo deva ser lido mais suavemente, harmonizando-se com outros princípios.

            Diante desse quadro, necessário tecer breves considerações a respeito do problema.

2. O direito à produção de prova e a persecução da verdade no processo.

            2.1 O mundo dos fatos e o mundo jurídico.

            Na vida, são observados diversos fatos, os quais naturalmente vão sucedendo-se. É o irmão mais velho que, vinte minutos antes de despertar os demais membros de sua família, sai em busca do leite fresco cada dia, é o pássaro que silva enquanto os alunos do maternal desenham, o pugilista que entra no ringue, o estelionatário que arma seu próximo golpe, enfim, tantas situações vivenciadas diuturnamente que permanecem distante do foro.

            Muitas dessas ações, corriqueiras, não guardam maior importância para o Direito. Outras, ao contrário, são atraídas para o mundo jurídico pelo homem, que busca melhor adaptar a vida social e, assim, oferecer maior tranqüilidade à comunidade. Esse fenômeno ocorre, por regra, através da criação de um sistema jurídico que trace condições abstratas para que fatos comuns da vida sejam chamados a integrar o laboratório do jurista. Uma vez interessando-se por determinados fatos, o homem cria normas, expressas ou não, que prescrevem, abstratamente, situações nas quais sua aplicação se torne possível.

            Prescreve a norma, por exemplo, que os parentes podem exigir de seus pares os alimentos que necessitem para garantir sua sobrevivência. Ciente da existência dessa regra, Eduardo, debilitado fisicamente e sem condições para o trabalho, decide acionar Roberto, irmão detentor de vultoso patrimônio, a fim de que este lhe alcance os alimentos devidos.

            Como se vê, o suporte fático (necessidade alimentar de Eduardo e possibilidade econômica de seu irmão Roberto), permite a incidência de uma norma (que diz que os parentes podem exigir uns dos outros os alimentos de que necessitem para subsistir). Havendo o fenômeno da incidência, há permissão para que o ordinário fato da vida possa entrar no mundo jurídico. Eduardo, outrossim, se confirmadas as premissas fáticas aventadas, terá um direito subjetivado, isto é, o direito de receber alimentos de seu irmão e, dessa forma, poderá exigir-lhe a prestação consistente na entrega de certa quantia, para garantir sua existência. E, para satisfazer sua pretensão (nascida da combinação entre a situação fática e a incidência da norma jurídica que delimitou o direito subjetivo), o irmão debilitado poderá utilizar-se, em caso de renitência de Roberto, de um remédio jurídico processual, apto a entregar-lhe o que lhe assiste por direito, no caso uma ação processual de alimentos.

            Exemplo bastante ilustrativo das diferenças entre os mundos do fato e do direito, bem como dos conceitos de suporte fático, regra jurídica, incidência e direito subjetivo, nos é dado por PONTES DE MIRANDA, quando diz: o ‘direito’ e o ‘dever’, concretamente, têm de ser um só, ou de sujeitos plurais, de modo que é princípio da Teoria Geral do Direito, vindo do conceito de direito, que duas pessoas separadamente não podem ter o mesmo direito. O ´direito´ é dotado, assim de individualidade, como eu, a minha filha mais velha, o marido de A. Estamos no plano dos individuais. Rege, pois, o princípio da individualidade dos direitos. Direito nasce, transforma-se e morre; por isso, pode transmitir-se, conservando a sua identidade. A regra jurídica tem tanto com isso como tem com a identidade da página 100 do exemplar deste livro, que o leitor está lendo, a máquina de impressão que baixou oito mil vezes sobre as folhas de papel. A página de papel foi o suporte fático, a chapa molhada de tinta é a regra jurídica; o contato é a incidência; a página impressa é o fato jurídico, que há de ser necessariamente algum fato que interesse às relações humanas. A página 100 tem a sua individualidade, quer se cogite dela como a página 100 dentre as oito mil páginas 100 que foram impressas, quer dela se cogite como a página 100 dentre as páginas deste exemplar. Todo direito subjetivo, como produto da incidência de regra jurídica, é limitação à esfera de atividade de outro, ou de outros possíveis sujeitos de direito (=outras pessoas) (1).

            Por tais razões que o direito subjetivo, que é conferido através da incidência da norma de direito objetivo, surge. Ele está bem delimitado pelo alcance da norma no suporte fático observado. Logo, para que seja judicialmente reconhecido um direito subjetivo, necessário oferecer ao juízo real dimensão da matéria fática posta à apreciação, a fim de que esse convença-se da existência das condições de incidência da norma que se busca aplicar no caso concreto. Nessa linha, vê-se a importância do estudo da prova, na medida em que esta visa convencer o magistrado das razões trazidas pelas partes em juízo para que seja declarado e ofertado o correspondente direito.

            2.2 Até que ponto o processo deve intentar buscar a verdade ?

            Há muito se discute se seria possível obter a verdade empírica através do processo, diante da falibilidade do homem e a inerente limitação da ciência. Nessa linha, se diz, com vigoroso respaldo de expertos de outras áreas (que não as jurídicas), que jamais poder-se-á encontrar aquilo que CARNELUTTI cunhou de verdade verdadeira, posto que um fato, que é único, jamais lograria ser percebido em toda sua inteireza, ou melhor, ainda que ele pudesse ser integralmente reconstruído em juízo, fatalmente poderia ser interpretado de diversas formas. CALAMANDREI traz exemplo muito significativo nesse particular. Figura, o mestre florentino, em outras palavras, a seguinte situação: Pablo e Vicente são contratados para pintar uma bela paisagem na serra gaúcha. Após alguns dias, finalizam seus trabalhos e apresentam as telas. Nestas, todavia, são observadas relevantes diferenças, pois, enquanto Vicente, que era impressionista, focalizara suas atenções no ímpar contraste de cores que vira, Pablo, admirador da técnica cubista, através dela, buscara exprimir o bucolismo da região. Como se vê, a partir de idêntico cenário, duas obras distintas foram confeccionadas. No entanto, por mais dessemelhanças que sejam observadas, ousará alguém acusá-los de não haver retratado fielmente aquela paisagem ?

            Por seguro que não. Eis o grande problema da avaliação das provas: o mesmo objeto pode ser interpretado de tantas maneiras quantos observadores houver. Nesse contexto, se pode concluir que, mesmo a mais inequívoca prova, pode ter seu aspecto inequívoco contestado, afinal o que parece induvidoso a alguém, pode não o parecer a outrem.

            É nessa medida que as partes se interessam pela produção de provas em juízo. Através delas, e, principalmente, de sua natural interpretação, aquelas buscam aclarar fatos controvertidos, aos efeitos de reconhecer, ou não, o indigitado direito material posto sob apreciação judicial. Nessa tarefa, valem-se, os contendores, de diversos trunfos, a fim de convencer o órgão judicante das razões que são trazidas aos autos, afinal de nada adianta simplesmente alegar, descompromissadamente.

            A importância de provar as alegações deduzidas é crucial em qualquer processo, seja ele de conhecimento, execução ou, até mesmo, cautelar, muito embora o modelo processual prescrito pelo ordenamento de 1973 propusesse a separação quase que completa entre o processo que visa conhecer e aquele que visa executar, sem embargo do terceiro gênero (dito cautelar) que proporcionaria às partes, uma vez evidenciado receio de dano grave e de difícil reparação, a segurança, mediante o afastamento da causa que ofertava risco de ineficácia do futuro provimento jurisdicional. Nesse contexto, o processo de cognição, regulado no primeiro livro do código, necessariamente deveria estabelecer (accertare) o direito de cada qual dos litigantes, pois, sem o bilhete de entrada (título executivo judicial ou extra), ninguém lograria adentrar no livro dois (processo de execução). Para se alcançar o bem da vida pretendido, deveriam os litigantes utilizar-se do processo de execução, aquele conhecido por, através do direito certificado previamente (título executivo), modificar os fatos da vida, entregando ao credor tudo aquilo que lhe é dado exigir.

            Dessa forma, não surpreende que o processo de cautela, espécie do gênero da tutela de urgência, fosse visto como algo absolutamente próprio, que deveria ser provocado mediante outra demanda, não se identificando com a causa principal. Existia, assim, um processo cautelar antes, durante ou mesmo após outro processo, de conhecimento ou de execução, obrigatoriamente.

            No entanto, mostrou a praxe forense que a rígida divisão preconizada pelo código poderia, por vezes, ser um grave entrave à efetividade do processo, afinal, para cada situação de urgência, uma demanda deveria ser deduzida. Outras vezes, foi observado que, a pretexto de evitar o perecimento do direito, a tutela cautelar findava por outorgar ao requerente o bem da vida que, de acordo com a orientação do código, somente lhe poderia ser entregue após cognição plenária. Em meio a tais situações, tormentosas para o ordenamento de então, surgiu o instituto da antecipação da tutela, disposto a harmonizar o emprego de medidas assecurativas e satisfativas, melhor distribuindo o ônus do tempo do processo. Atualmente, já não se duvida de que prováveis efeitos de eventual sentença futura possam ser adiantados em favor de uma parte. Tal fato contribui sobremaneira para o eficaz cumprimento da função jurisdicional (obrigação do Estado), dês que manejado com prudência.

            Retornando ao processo de conhecimento, no qual, por regra, são produzidas as provas mais relevantes – eis que visam acertar o direito discutido – verifica-se natural preocupação com a forma pela qual as partes podem ofertar ao juízo condições de um reto convencimento. Assim, com o fito de otimizar a prestação jurisdicional, o ordenamento, já de antemão, prescreve meios de provas para auxiliar o trabalho dos operadores. Mas não serão apenas as provas clássicas que auxiliarão o juízo a tomar a decisão mais segura, pois, é sabido, a persuasão racional dos magistrados encontrará guarida também em elementos outros, como todo o material obtido por meio moralmente legítimo e não contrário aos bons costumes, as presunções, as máximas da experiência, os indícios, bem como na própria argumentação jurídica dos contendores. Como ao juiz não é dado furtar-se de cumprir seu mister jurisdicional (non liquet), isto é, bem sentenciar os feitos que lhe são trazidos, as partes, convencidas das razões que lhes assistem e tendo interesse em alcançar sucesso na relação processual, utilizam-se de todos os expedientes que encontram a seu alcance, a fim de comprovar suas alegações. E nessa tarefa, por vezes, podem elas recorrer a meios teoricamente vedados pelo sistema. A palavra última, afinal, cabe ao magistrado da causa, que é quem conduz o processo de acordo com aquilo que julga de direito, valorando as provas da forma como lhe persuadem, e extirpando dos autos aquelas cuja origem ilícita não é justificada pelas circunstâncias concretas.

            Nesse ponto, cumpriria indagar: até que escala o processo deveria buscar a reconstrução da realidade, sem olvidar de preservar valores outros também garantidos pelo sistema ?

            Pois bem, evidente que o direito de descobrir a verdade (ou de aproximar-se dela) encontra limites traçados pelo próprio ordenamento. Este não permite o sacrifício de bens dignos de tutela em nome da afirmação categórica do direito de provar os fatos alegados que, na supostamente ensejariam o reconhecimento de quaisquer direitos. Nesse ponto, vale lembrar alguns problemas, tanto de ordem ética, bem como prática, a fim de que não sejam cometidos abusos em nome da prevalência irrestrita do direito de buscar reconstruir fatos pretéritos, sem a devida e esperada cautela.

            Sob a ótica utilitária, pode-se argumentar que a produção da prova demanda tempo (posto que ninguém requer, produz e analisa da noite para o dia o material juntado aos autos). Tampouco pode-se esquecer que outro pressuposto lógico do requerimento, produção e apreciação da prova no processo é o dispêndio de economia (o custo da movimentação da máquina judiciária, da produção do material probatório, honorários de expertos, etc). E como se sabe, o tempo não raro compromete toda eficácia do processo, desacreditando-o perante à comunidade. Os custos materiais, de sua parte, oneram, ainda mais, o já limitado orçamento estatal, isto quando não contribuem para entravar o livre acesso das pessoas à Justiça, as quais, mesmo litigando sob o pálio da assistência judiciária, não encontram meios de prover determinadas provas mais requintadas, que dependem de terceiros, como a perícia, por exemplo.

            De outra banda, também a concepção de que a verdade deveria ser buscada a qualquer preço encontra resistência na ética e na própria logicidade do sistema, afinal esse busca primordialmente afirmar direitos e somente por justificada exceção aceitaria sua agressão. Nesse panorama, conclui-se que de nada adiantaria, por exemplo, garantir a privacidade às pessoas, se, em qualquer litígio, pudesse ser apresentado um diário íntimo, para provar verossimilhança da argumentação jurídica desenvolvida em determinada lide. Do contrário, as garantias estabelecidas jamais lograriam libertar-se do mundo acadêmico e da letra dos textos para invadir a seara forense.

            Por tais razões, de ordem prática, ética e mesmo lógica, não é dado à qualquer litigante introduzir prova obtida por meio ilícito em qualquer processado, podendo-se dizer que o direito à prova encontra, sim, fronteiras definidas pelo sistema e não pode ser entendido como garantia absoluta, na medida em que coexiste com outras garantias que a repelem, uma vez verificadas determinadas circunstâncias concretas. Por decorrência, soa admissível a tese segundo a qual o processo, em certas hipóteses, arrefece seu ímpeto de perseguir a verdade a todo custo. A preocupação, na realidade, sempre existe, porém, em nome de valores outros, de igual ou superior hierarquia no sistema, optamos por preservar situações juridicamente protegidas de cegas investidas em nome da descoberta da verdade real. E essa conclusão é oportuna quando buscamos colocar o problema da vedação constitucional da prova ilícita. Efetivamente, bem examinada a questão, observaremos que a proibição da utilização de provas obtidas ilicitamente, não visa outro que proteger valores importantes do sistema, como a intimidade, a honra, enfim toda gama de direitos reconhecidos e inerentes aos cidadãos dos modernos Estados de Direito. Nessa linha, justo que o legislador sequer tolere as provas obtidas com violação de direito, eis que imbuído do escopo de prestigiar a democracia constitucional.

            Excepcionalmente, como dito, o processo rende-se e desiste de perquirir a verdade empírica, aos efeitos de assegurar a consecução de outros escopos (como o fortalecimento do Estado de Direito ou a célere composição da lide). No entanto, não é dado olvidar que a regra é a tentativa de aproximação do veredicto final àquele de direito mais justo, uma vez mais vizinho dos fatos ocorridos. Como exemplo dessa orientação, observamos, nos modernos ordenamentos, o fortalecimento do princípio da persuasão racional do juiz e o conseqüente dever de fundamentar decisões, a ilimitação dos meios de prova admitidos e a utilização de meios de cognição idênticos àqueles prezados por ciências afins, como a filosofia, psicologia, sociologia, etc (2). A restrição da prova legal e a conseqüente aceitação do livre convencimento não visa outro que aproximar a verdade processual da verdade estranha ao processo, que é buscada pelos mais diversos cientistas com seus diferentes métodos.

            Enfim, embora reconhecendo que a descoberta da verdade (em âmbito processual ou não) seja algo utópico, não nos parece possível afirmar que possa ser aceito um sistema jurídico desvinculado da idéia de alcançar a verdade. A questão é perceber até que ponto se justifica pretender a reconstrução dos fatos e estabelecer tais limites.

            2.3 O direito à prova.

            A Constituição Federal assegura a todas pessoas o direito de ir a juízo e apontar violações ou ameaças a seus direitos. Com efeito, diz o art. 5º, XXXV, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

            Entende-se tal dispositivo, na medida em que o Estado, no momento em que vedou a tutela de mão própria, chamou a si a responsabilidade pela resolução dos litígios ocorridos em seu seio. Conferiu, assim, às pessoas o direito de ir até juiz natural e declinar as razões que lhe embasam o pedido de reconhecimento e oferta de direito. Ao Estado, uma vez acionado, é criado o dever de prestar a jurisdição. No momento em que alguém, através de petição, dirige-se ao poder público, surge um direito subjetivo à uma sentença que avalie a relação processual posta (rechtsschutzanspruch). Embora não haja direito a uma sentença favorável, há um direito subjetivo assegurado, constante na garantia de apreciação da demanda.

            Todavia, se há de ter em mente que o direito que brota do texto constitucional, neste não se encerra. Com razão, de nada adiantaria que aos litigantes fosse assegurado o direito de ir à juízo, se, da mesma forma, não houvesse efetiva possibilidade de comprovar as alegações deduzidas e, assim, auxiliar no convencimento judicial (3). Os litigantes, em processo judicial, necessitam de meios para certificar os direitos de que se afirmam titulares. Do contrário, a garantia de petição seria apenas mais um direito meramente formal, encontrado em texto e sem nenhuma utilidade social.

            Nessa linha, o direito à produção de provas úteis ao deslinde da causa tem origem no próprio direito de ação e no de ampla defesa. Na momento em que a própria Constituição afirma que nenhuma lesão ou ameaça a direito será afastada do controle do poder judiciário, ela, ao mesmo tempo, assegura às pessoas meios para que possam, de maneira eficaz, trazer suas razões e prová-las perante o juízo competente. Eis o alcance do princípio da inafastabilidade, o qual encontra como corolário lógico, em seu seio, o direito à prova, seu irmão gêmeo. Uma parte tem o direito de provar os fatos constitutivos de seu direito, ao passo que à outra é assegurada a apresentação do material visando destruir os argumentos que dão suporte à causa ou criar exceções (4).

            Disso conclui-se que, como regra, podem as partes provar todos fatos que lhe possam ser úteis. Todavia, há exceções, criadas justamente para garantir a sobrevivência do sistema jurídico, o qual encontra nascedouro na inarredável garantia constitucional da dignidade da pessoa humana e no princípio da boa-fé nas relações intersubjetivas.

            2.4 O magistrado também pode determinar a realização de provas.

            De outra banda, é fato hoje pacífico que, sendo uma função do Estado de Direito ofertar jurisdição justa a todos litigantes, também o juiz poderá determinar de ofício provas a serem produzidas, com o fito de aclarar a relação jurídica em análise.

            O papel do magistrado nos estados modernos não se resume a observar passivamente a disputa travada entre as partes, sendo um mero expectador do desenvolvimento do contraditório entre os litigantes. Hoje, pode, ele, sim, participar ativamente do processo que visa convencer-lhe, valendo-se de meios que lhe ofertem maior segurança ao encerrar seu ofício jurisdicional. Esse fenômeno, aliás, não importa em violação a máxima que veda o proceder de ofício, posto que o objeto litigioso de qualquer processado é definido, a priori, pela formatação do pedido da inicial. Conservado, portanto, o princípio da demanda, que veda ao órgão judicial imiscuir-se no objeto litigioso, restando intocável o direito das partes de eleger as questões sobre as quais almejam discussão judicial.

            Nesse sentido, um dos expedientes mais utilizados pelos modernos ordenamentos é a faculdade dada ao magistrado de determinar provas a serem produzidas para esclarecer pontos obscuros. Isto ocorre porque é preocupação inerente ao estado de direito certificar a relação de direito material posta sob análise com a maior nitidez possível, para oferecer a jurisdição justa.

            Bem se sabe, no entanto, que, devido ao invencível acúmulo de serviço de nossos magistrados, muitos desses poderes conferidos não chegam a ser manejados, o que se compreende. Todavia, não nos podemos esquecer que há bons exemplos da salutar participação do magistrado na instrução do processo, como atesta, ilustrativamente, a ordem para realização de exame de dna em ações de investigação de paternidade (5).

            Quanto à crítica de que a iniciativa oficial para a produção de partes pode afetar a necessária neutralidade do julgador no caso concreto, parece-nos acertada a lição de JOSÉ ROBERTO BEDAQUE, para quem quando o juiz determina a realização de alguma prova, não tem condições de saber, de antemão, seu resultado. O aumento do poder instrutório do julgador, na verdade, não favorece qualquer das partes. Apenas proporciona apuração mais completa dos fatos, permitindo que as normas de direito material sejam aplicadas corretamente (6).

            De mais a mais, como dito, é tarefa exclusiva das partes delimitar a res in iudicium deducta, pela inicial e contestação. Nesse processo, diferentemente, não pode o magistrado intervir, sob pena de ferimento do princípio da demanda, corolário lógico do estado de direito. Nesse ponto, vigora o princípio do dispositivo, o qual, aliás, é uma regra fundamental do processo brasileiro, somente cedendo por justificada exceção.

            Dessa forma, justo concluir que, no momento em que o Estado comprometeu-se a oferecer a jurisdição a todos, vedando a autotutela, assumiu uma obrigação natural de bem resolver os litígios. Com esse norte, pode o magistrado também participar do jogo do contraditório e reclamar provas que julgar convenientes.

3. A prova ilícita dentro do sistema jurídico brasileiro.

            Feitas essas breves colocações, chega-se no problema que vem atormentando os operadores do direito, qual seja a utilização da prova obtida mediante comportamento ilícito. Estaria ela vedada, à luz do dogma constitucional ? Se a resposta for negativa, em que hipóteses poderíamos recorrer a esse expediente ? Qual o grau de eficácia do comando ? Essas são apenas algumas das questões postas diariamente no cotidiano forense. E como se era de esperar, em face da delicadeza da questão, não há, ainda, jurisprudência firme, embora seja notada uma tendência pela vedação completa da utilização daquela prova.

            O Direito é imenso sistema normativo, composto por regras e princípios. Nenhuma regra, ou mesmo princípio, por mais importante que seja, pode ser entendida por si própria e distante das demais. Muito ao contrário, a interpretação de qualquer comando sempre deverá levar em conta todos os outros comandos prescritos pelo sistema, pena de grave subversão da ordem jurídica.

            Nessa medida, o sistema tem a função precípua de dar unidade e coesão ao ordenamento jurídico, eis que ele engloba a totalidade de regras e princípios colhidos em todos textos e práticas nacionais. Vale a lição de NORBERTO BOBBIO, que entende por ‘sistema’ uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de coerência entre si (7).

            Com razão, de nada adiantaria seguir à risca a interpretação literal de regras (ou princípios) encontradas aqui ou acolá, se, dessa prática, obtivéssemos um resultado incoerente com o próprio sistema. Ao assim proceder, estaríamos prestigiando irracionalmente uma regra (ou princípio), ao preço do sacrifício de toda unidade de um sistema de hierarquia infinitamente maior. Se entendêssemos o Direito como uma série de normas que valem por si próprias (e que, portanto, nenhuma relação entre si guardam), transmitiríamos, em última análise, a insegurança jurídica a todos. Dessa forma, conclui-se que, para salvaguardar o sistema, muitas vezes seremos obrigados a sacrificar regras e mesmo restringir a aplicação de princípios. Ou melhor: necessitaremos dar uma interpretação às regras e aos aludidos princípios mais consentânea com os fins do ordenamento no qual se inserem, harmonizando-os com o sistema.

            Para bem ilustrar esse aparente conflito, figuremos o exemplo da garantia do contraditório e da inafastabilidade de lesão ou ameaça a direito do controle do Judiciário (ambos inerentes ao Estado de Direito e assegurados constitucionalmente). Muitas vezes, para a efetivação de um, o outro, momentaneamente, tem sua aplicação mitigada. Vale exemplificar: Jayme, após longos anos de noivado, tem um inesperado filho com Clarissa. Ciente da situação, rompe a relação pública que com ela mantinha. Nove meses se passam e, uma vez nascido Breno, Clarissa decide, representando o bebê, cobrar do genitor uma quantia capaz de, ademais de auxiliar no pagamento das despesas de parto, também garantir a manutenção do rebento durante a menoridade. Ao despachar a petição inicial, o magistrado deparar-se-á com dois princípios garantidos pela Constituição: o que prevê que o menor deverá ter sua existência garantida e, de outro lado, o princípio que assegura a Jayme o direito de ser ouvido antes de ter contra si uma decisão judicial. Qual das soluções tomar: ofertar, desde logo, alimentos a Breno ou esperar, para que, uma vez efetivada a citação, Jayme também possa intentar convencer o juízo ? A solução não parece ser complicada.

            Como se vê, no exemplo trazido, em momento algum, Jayme, (que tinha a garantia constitucional de ser ouvido – e, assim, trazer sua versão dos fatos, convencendo o juízo) interferiu na ação proposta contra si por seu filho – pelo menos até o momento em que o juiz ordenou o pagamento mensal de pensão. À todas luzes, o princípio do contraditório não foi respeitado em toda sua extensão (que significaria que em todas as circunstâncias as pessoas têm o direito de participar em todas as fases do processo). Ao contrário, no caso, a bilateralidade da audiência somente perfectibilizar-se-ia em momento ulterior, quando Jayme, já citado e pagando a quantia mensal, oferecesse sua contestação, sem embargo de eventual insurgência contra a decisão liminar.

            Todavia, a momentânea postecipação do contraditório estava plenamente autorizada e ninguém duvida de seu acerto. Com efeito, não seria justo que nosso querido rebento (que, como qualquer criança, tem despesas e pouca condição de sobreviver por seus próprios meios) necessitasse aguardar o natural e inevitável lapso de tempo decorrente da citação de seu pai (através de mandado por oficial de justiça e o retorno aos autos), o prazo para contestação, mais o período em que os autos restariam conclusos com o juiz, a decisão deste e, enfim, a efetivação da medida, para lograr alcançar o bem da vida buscado. Se, ao interpretar o direito ao contraditório, concluíssemos que Jayme efetivamente tinha direito de ser ouvido antes de ter seu patrimônio atacado por ordem judicial, quantos outros princípios de igual envergadura não estaríamos inarredavelmente agredindo ?

            De tudo, resulta que, muito embora todas normas encontrem-se a viger, esse fato não indica que, tão-somente por essa razão, elas devam ser inteiramente respeitadas em todos os casos concretos, mesmo porque seria impossível. A desconsideração do Direito como um sistema complexo implica, em última análise, na impossibilidade de ofertar coerência e unidade ao próprio Direito. Nesse sentido, as provas ilícitas, enquanto integrantes do sistema, não podem assumir facetas alheias a todo conjunto imaginado.

            Os princípios, como se viu, estão sempre em permanente conflito. Mesmo devendo ser respeitados na maior escala possível, também eles sujeitam-se às contingências do caso concreto analisado. Por isso, e não raro, devemos restringir a aplicação de um princípio, se de sua obediência contrariarmos outros tantos (de igual envergadura e de maior valor na situação concreta). Com isto, pode-se afirmar que nenhum princípio, por mais importante que seja, pode existir por si apenas, senão necessita conviver com outros tantos, também integrantes do sistema jurídico. Não é à toa que se diz que os princípios estão em rota de permanente colisão e que devem ser valorados, para que se descubra qual deva preponderar.

            De tão relevante é o tema da ilicitude da prova, afirma-se que, em qualquer grau de jurisdição, possa ela ser declarada, e independente do pedido do interessado. Em outras palavras, não há que se falar em preclusão da prova ilícita (8).

            Todavia, muito embora a clareza do texto constitucional referente ao emprego das provas ilícitas, temos que a expressão legislativa utilizada no comando não deva ser interpretada por sua literalidade, sob pena de grave subversão do sistema (9). Embora reze o art. 5º, LVI, que sejam inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos, estas nem sempre estão vedadas no processo. Para bem compreender o alcance da norma, urge perquirir seu escopo e sua função dentro do processo.

            Pois bem, ao que tudo indica, o legislador constituinte, que teve sua infância e juventude marcada pelo regime de exceção que governou o país por duas décadas, guardou indisfarçável receio dos métodos utilizados em referido período, o qual se imortalizou na história nacional mais pelo desrespeito aos direitos individuais do que por suas eventuais conquistas (10). Temendo novas violações, através do comando constitucional, buscou o legislador colocar freios aos impulsos arbitrários daqueles que ainda não se haviam acostumado a conviver em sociedade democrática. Serviria, a norma, para prevenir o cometimento de novos ataques aos valores essenciais do Estado de Direito (proteção da pessoa humana na maior escala possível) e punir, com rigor, as investidas ilícitas contra direitos de terceiros.

            Como bem observa BARBOSA MOREIRA, explica-se tal opção, em grande parte, por circunstâncias históricas. A Constituição foi elaborada logo após notável mudança política. Extinguira-se, recentemente, o regime autoritário que dominara o País e sob o qual eram muito freqüentes as violações de direitos fundamentais, sem exclusão dos proclamados na própria Carta da República então em vigor, como a inviolabilidade do domicílio e da correspondência. Ninguém podia considerar-se imune a diligências policiais arbitrárias ou ao grampeamento de aparelhos telefônicos. Quis-se prevenir a recaída nesse gênero de violências. É mister reconhecer que, naquele momento histórico, não teria sido fácil conter a reação contra o passado próximo nos lindes de uma prudente moderação. Se puxarmos um pêndulo com demasiada energia em certo sentido e assim o mantemos por largo tempo, quando seja liberado ele, fatalmente, se moverá com força equivalente no sentido oposto (11).

            O escólio do mestre carioca já indicava problemas que vivenciaríamos anos mais tarde. Efetivamente, foi-se de um lado extremo, no qual eram utilizadas em larga escala as provas obtidas por meios ofensivos aos direitos, para o outro, no qual, a pretexto de preservar os direitos conquistados após brava caminhada, encontra-se a vedação ampla e irrestrita à utilização daquelas conseguidas através de violação ao mais discutível direito individual, nem que para isso seja preciso, até mesmo, santificar o egoísmo em detrimento da boa-fé.

            É bom que se estabeleça, vez por todas, que a idéia de vedar a utilização da prova ilícita no processo busca precipuamente varrer a malícia e a deslealdade. Se, na conduta do agente, não se confirmam tais premissas, por seguro a prova poderá ser acolhida, visto que o dispositivo está impedido de incidir. Dessa forma, a correspondência ao filho drogadicto enviada pelo traficante e violada pela mãe é prova boa, assim como a condução do indigitado pai para o exame de dna. Nessas ações, não há qualquer deslealdade, malícia, má-fé,… Muito ao contrário, essas pessoas agem movidas pelos mais nobres sentimentos.

            Situação radicalmente inversa seria observada se, ao invés da mãe e do cônjuge, fossem, as provas, produzidas por terceiros (polícias por exemplo). Nesse caso, a regra da vedação à prova ilícita incidiria com toda força, diante da diversidade dos interesses e valores envolvidos, nada justificando aquela lesão à esfera de outras pessoas.

            Para bem situar a emblemática questão, necessário recorrer a métodos de interpretação que possibilitem a resolução desses conflitos, traduzidos pela eterna batalha dos princípios por sua sobrevivência.

4.A importância do princípio da proporcionalidade.

            Quiçá o maior aliado na resolução desses problemas seja o chamado princípio da proporcionalidade (verhaeltnissmaessigkeitprinzip), utilizado originariamente no direito administrativo tedesco, em meados do século XIX, e que, com o tempo, adquiriu status constitucional, sendo incorporado à Lei Fundamental de 1949 daquela República Ocidental. Os mentores daquele que hoje é um princípio aceito pela ampla maioria dos doutrinadores constataram, na época, que, por vezes, a aplicação estrita e literal de um comando legal, embora plenamente válido e eficaz, poderia ensejar um efeito contrário ao próprio Estado de Direito previsto pelo sistema de determinado país, de modo que se concluiu que a norma (genérica e abstrata) incidindo em determinados casos concretos poderia acarretar conseqüência negativa para a ordem estabelecida naquela nação. Destarte, tornou-se imperioso criar um mecanismo racional, capaz de outorgar a devida segurança jurídica à sociedade, isto é, um meio que garantisse que a norma somente fosse observada caso cumprisse com sua missão e se aliasse aos escopos do sistema. A aplicação de normas, então, deveria harmonizar-se com o sistema no qual elas estão insertas. Nesse diapasão, o princípio da proporcionalidade visava, originariamente, regular o poder de polícia do Estado, ofertando maior segurança jurídica aos particulares.

            Eis a forma pela qual foi imaginado o princípio da proporcionalidade, cuja função precípua é justamente garantir o Estado de Direito em toda sua plenitude, vedando a aplicação de normas desarrazoadas quando em confronto com o sistema vigente. Nada mais acertado, afinal não há, em realidade, nenhum direito absoluto (12), capaz de sobrepor-se sobre todos os demais. Assim, e partindo desse pressuposto (o de que os direitos fundamentais encontram-se não raro em rota de colisão), a doutrina germânica também admitiu que nenhuma norma poderia ser entendida distante do contexto no qual se insere, devendo ter sua aplicação restringida na medida em que afrontasse disposições outras de maior envergadura ou não cumprisse com seus objetivos originários.

            Partindo dessas premissas, como assevera o ilustre maestro da Universidade de Munique, HEINRICH SCHOLLER (13), a jurisprudência acabou por desenvolver o conteúdo do princípio da proporcionalidade em três níveis: a lei, para corresponder ao princípio da reserva da lei proporcional, deverá ser simultaneamente adequada (geeignet), necessária (notwendig) e razoável (angemessen). Os requisitos da adequação e da necessidade significam, em primeira linha, que o objetivo almejado pelo legislador ou pela administração, assim como o meio utilizado para tanto, deverão ser, como tais, admitidos, isto é, que possam ser utilizados. Para além disso, o meio utilizado deverá ser adequado e necessário.

            Estabelece-se, assim, um nítido confronto entre os meios utilizados para lograr o resultado pretendido. Em última análise, o juízo, para estabelecer a pertinência da aplicação do princípio da proporcionalidade no caso concreto, deveria cotejar analiticamente os direitos envolvidos no litígio, estabelecendo qual deles deva preponderar sob as circunstâncias peculiares da relação apreciada, nada impedindo que, em outra feita, o direito cá preterido, diante de novas condições fáticas, paire sobre aquele ora privilegiado. Tudo irá depender da avaliação de se o meio utilizado para a obtenção do escopo almejado mostrava-se adequado, necessário e razoável. Por vezes, um princípio terá sua aplicação maximizada. Noutras, sua observância poderá ser, até mesmo, postecipada, sem que nenhuma subversão ao sistema seja visualizada nesse fato corriqueiro.

            A correlação entre os meios e os fins serviu de base para a criação da teoria dos degraus (Stufentheorie), hoje adotada pelo Tribunal Federal Alemão. De acordo com ela, os direitos encontram-se hierarquizados. Por isso, as exigências para a restrição de um direito crescem à medida em que esse assume posição de maior relevo no cenário jurídico. Decorre, em última análise, maior rigor para restringir a aplicação daqueles princípios mais importantes dentro do sistema, exigindo, da situação fática, manifesto contorno de urgência e necessidade.

            Para ilustrar a nobre função princípio da proporcionalidade, figuremos um exemplo bastante usual nos corredores do Foro: Gustavo, manejando seu corsa, é abordado por policiais, em razão de apresentar indícios de consumo de álcool. Muito embora tenha negado-se a utilizar-se do bafômetro, os polícias o portam até hospital próximo, no qual é obrigado a doar alguns mililitros de sangue para análise. Sobrevém resultado, deixando inconteste que nossa personagem consumira duas vezes mais a quantidade de álcool tolerada pela legislação. Passados alguns meses, o caso assume conotação judicial, na medida em que o sempre combativo promotor de justiça da comarca o denuncia pela suposta prática do delito de direção perigosa e, em instrução, defende a validade da prova coligida naquele hospital. Poderíamos aceitá-la ? Vênia deferida de entendimento diverso, jamais o nobre magistrado da causa poderia ter a prova como boa, aos efeitos de embasar sentença penal condenatória, na medida em que o meio pelo qual ela fora obtida violara tantos outros direitos assegurados à nossa personagem – justamente pelo mesmo ordenamento que proíbe particulares de trafegar alcoolizados. Note-se que, no caso, para bem colocar o princípio da proporcionalidade, deveríamos cotejar os interesses envolvidos no litígio. De um lado, poderíamos argumentar que existe o interesse público, materializado pela obrigação de evitar que mais vidas sejam ceifadas em razão de condutas culposas no trânsito. Todavia, no outro lado da balança, existiriam outras garantias individuais, dentre as quais aquela que confere a todos cidadãos o direito de dispor do próprio corpo conforme sua vontade (e que, poder-se-ia dizer, decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana). Ao que nos parece, o fim aqui não estaria a justificar os meios empregados, visto que, do contrário, praticamente chancelaríamos o arbítrio. Nunca é demais lembrar que uma das funções da vedação da prova ilícita é justamente instigar pessoas menos acostumadas à vida em democracia a pensar duas ou mais vezes antes de investir contra os direitos de terceiros. Nesse caso, uma vez aceita a prova produzida, provavelmente os senhores que portaram Gustavo até o hospital sentir-se-iam capazes de repetir o feito em outras oportunidades, e, quiçá, até mesmo aumentar seu espectro de atuação conduzindo motoristas que não houvessem ingerido qualquer substância proibida até nosocômio vizinho.

            Mas não convém resumir o raciocínio à idéia de que nenhuma pessoa, sob qualquer circunstância, sempre poderá dispor livremente de seu corpo. Como dito, o escopo da aplicação do princípio da proteção à dignidade da pessoa humana, acima materializado no direito de dispor do corpo para contestar aquela ordem, pode assumir outras formas, como logo veremos.

            Efetivamente, situação inversa ocorreria se, em meio a processo promovido por Renata, de quatro anos de idade, a fim de investigar sua paternidade, Mathias, indigitado pai, recebesse ordem judicial para doar alguma quantidade de sangue (ou fios de cabelo) para confrontação de dna’s. Pergunta-se: poderia o varão alegar garantias constitucionais em seu favor a fim de eximir-se do mandado, de tal sorte que a criança fosse obrigada a satisfazer-se tão-somente com a famigerada paternidade presumida? Novamente, rogando vênia aos defensores de opinião contrária – por ora sob guarida do entendimento de escassa maioria do Supremo Tribunal Federal – aqui a matéria assumiria feições outras. Já não estaria em jogo o interesse do particular de negar-se a cumprir as mais bizarras ordens de policiais, dispondo livremente de sua liberdade. Aqui, a questão seria definir qual interesse deva ceder: aquele do indigitado pai preservar sua integridade física, eximindo-se do dever de oferecer alguns fios de cabelo ou mililitros de sangue, ou aquele da criança em descobrir sua real, e não fictícia, identidade. Ora, nesse caso, jamais poderia nosso querido amigo desobrigar-se da ordem, pois, ao fim e ao cabo, o interesse da pessoa em descobrir sua verdadeira (e não presumida) identidade representa o princípio da dignidade da pessoa humana e o ato intentado por Mathias, uma grave afronta a sua aplicação. Esse interesse da criança – e de todos os homens – jamais poderia ceder em nome de uma egoísta e literal interpretação de outra garantia, afinal, como bem assinalou o Min. Carlos Velloso, não há no mundo interesse maior do que este: o do filho conhecer ou saber quem é o seu pai biológico (14).

            Dessa narrativa, conclui-se que, quando tratamos de princípios, estejam eles positivados ou não, não poderemos a priori determinar qual solução será a ideal para um caso futuro, na medida em que somente da análise de suas particularidades, lograremos evidenciar quais as medidas que efetivarão os ditames de um legítimo Estado de Direito. Gustavo pôde esquivar-se da ordem de dirigir-se até hospital próximo para verificar sua condição física, isto porque, do outro lado do pêndulo, havia um remoto interesse de oferecer segurança no tráfego. Nada impediria, entretanto, que Gustavo respondesse pelas conseqüências de seu ato, mediante presunções que emanassem de sua conduta. Mathias, de seu turno, jamais poderia evitar sua estada na clínica, vez que, na outra ponta da relação, estaria outra pessoa, buscando, com muito custo, ter, enfim, sua paternidade definida juridicamente, através da certeza científica. A presunção de ebriedade, no primeiro exemplo, poderia satisfazer o sistema, restabelecendo a tranqüilidade social. Já no segundo caso, a mera presunção de paternidade, ao contrário, representaria sensação de desassossego para toda a comunidade, na medida em que sequer o direito de conhecer a própria identidade pessoal seria chancelado. Nesta última hipótese, pode-se afirmar que o sistema já não permitiria a resolução do litígio mediante o artifício de uma presunção. Tratam-se de duas condutas idênticas (negar-se a ir até clínica) que, diante das condições concretas, importam em conseqüências distintas.

 

5. Conclusões.

            Pelo fio do exposto, força é concluir que, na medida em que a garantia da vedação da prova ilícita (hoje erigida a ordem constitucional), encontra-se dentro de um sistema maior, também ela deve ser interpretada de modo que permita a perfeita realização desse. O Estado, ao vedar a autotutela entre os particulares, comprometeu-se a oferecer jurisdição eficaz e deve garantir meios para que os direitos materiais alegados possam ser certificados, afinal também é sua preocupação bem cumprir o ofício jurisdicional.

            De nada adianta fechar os olhos para aquilo que há do outro lado da balança no justo momento em que nos deparamos com uma prova prima facie contrária ao ordenamento. Convém lembrar que, somente através do cotejo da situação fática concreta, se poderá dizer quais provas devem ou não ser aceitas em determinado processado. É bem verdade que, como regra, a prova obtida por meio ilícito está vedada, pois o ideal, em qualquer processo, é encontrar meios de provas lícitos a comprovar as alegações, de modo que aquela ilícita não necessite constar nos autos. Dessa forma, cumprirá aos operadores justificar com todo zelo as exceções que exijam a restrição da garantia. E, aos efeitos de garantir a harmonia, de todo razoável a aplicação do princípio da proporcionalidade, o qual, em última análise, permite uma solução satisfatória para as questões apresentadas, preservando o Estado de Direito em seus aspectos mais relevantes.

            Nessa linha, ainda é de se referir que, dado os valores que comumente estão envolvidos no juízo criminal, neste a admissão da prova ilícita deve se dar com o máximo de temperamento, mormente quando utilizada pela acusação. De outra banda, tampouco é possível afirmar que a prova ilegal possa ser sempre utilizada quando em benefício do réu, muito embora, por vezes e justificada exceção, também deva ser considerada. Como dito, é necessário medir as conseqüências da aceitação e ponderar todos os valores envolvidos na lide.

            Em suma, não se pode dizer que a regra contida no art.5º, LVI, CF, que prevê a vedação da utilização da prova obtida por meios ilícitos, seja absoluta. Ela deve ser entendida com temperamento e, sob circunstâncias excepcionais, deve ceder, em homenagem à própria sobrevivência do sistema jurídico nacional. Assim, parece evidente que, para a perfectibilização desse comando, deveremos confiar em nossos magistrados, a fim de que esses não cometam atos de puro arbítrio – o qual é justamente combatido pelo princípio da proporcionalidade. As decisões, nessa medida, deverão ser cautelosamente fundamentadas, expondo todos os motivos que influenciem o convencimento pela aceitação da prova prima facie proibida, aos fins de prestigiar o Estado de Direito. A segurança jurídica, então, brotará da uniformização da jurisprudência, mediante a elaboração de critérios objetivos e abstratos para análise e valoração da aludida prova.

6. Bibliografia:

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            Taruffo, Michele. La Prova dei Fatti Giuridici. Milano: Giuffrè, 1992;

Notas

            1. Tratado das Ações, v.1, p.55.

            2. Muito embora o contexto em que a verdade seja buscada relativize sobremaneira a idéia da existência de uma ‘verdade’, na medida em que admitimos que a falibilidade humana, a natureza e mesmo a tecnologia não logram representar com exatidão o acontecimento passado, força é reconhecer que não apenas no processo senão em qualquer área do pensamento humano a tarefa segue assaz complicada e de nada adianta diferenciar uma possível verdade processual de outra capaz de ser compreendida com maior exatidão por terceiros alheios a lide. Nesse sentido, vale transcrever lição de TARUFFO sobre o tema: non bisogna tuttavia pensare che da questa radicale relativizzazione del problema della verità processuale (come anche delle altre verità) derivi necessariamente la dissoluzione della possibilità di parlare sensatamente di accertamento della verità dei fatti all’interno del processo (La Prova dei fatti giuridici, p.57)

            3. Nessa linha, já advertia JHERING, lembrado pelo Professor CARLOS ALBERTO ÁLVARO DE OLIVEIRA, que o direito existe para se realizar. A realização é a vida e a verdade do direito, é o próprio direito. O que não se traduz em realidade, o que está apenas na lei, apenas no papel, é um direito meramente aparente, nada mais do que palavras vazias´.

            4. Lembra CARLOS LESSONA, que, de regra, ´el que quiere hacer valer un derecho, debe probar sencillamente los hechos que, según la relación normal, engendran el derecho y reclaman la aplicación del precepto-regla; el que contradice el derecho, debe probar los hechos anormales que impiden su existencia y hacen aplicable el precepto-excepción. In Teoria General de la Prueba en Derecho Civil, p.133, Instituto Editorial Reus, 1957.

            5. Como ilustra a seguinte ementa: "Prova. Exame de DNA. Desistência não comprovada. A realização de exame de DNA independe de expresso requerimento da parte, podendo ser deferida de ofício pelo Juízo." (TJMG – AG 000.187.901-4/00 – 3ª C.Cív. – Rel. Des. Aloysio Nogueira – J. 15.02.2001)

            6. A Garantia da Amplitude de Produção Probatória, In Garantias Constitucionais do Processo Civil, p.181

            7. In Teoria do Ordenamento Jurídica, 5ª edição, Editora UnB, p.71.

            8. Assim, o seguinte escólio: "Penal. Habeas-corpus. Denúncia. Quebra de sigilo bancário. Prova ilícita. Invalidade. A denúncia oferecida exclusivamente com fundamento em provas obtidas por força de quebra de sigilo bancário, sem a prévia autorização judicial, é desprovida de vitalidade jurídica, porquanto baseado em prova ilícita. Sendo a prova realizada sem a prévia autorização da autoridade judiciária competente, é desprovida de qualquer eficácia, eivada de nulidade absoluta e insusceptível de ser sanada por força da preclusão. Habeas-corpus concedido." Rel. Min. Vicente Leal, HC 9838/SP.

            9. Tanto assim que o próprio Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento, no sentido de que, havendo outras provas para embasar a decisão judicial, que não apenas as ilícitas, o magistrado deverá considerá-las, como atesta a seguinte ementa: " HC. Constitucional. Processual Penal. Prova ilícita. O conjunto probatório precisa ser analisado organicamente. A prova ilícita, sem dúvida, é vedada pelo Direito e não pode fundamentar restrição ao exercício do direito de liberdade. Em havendo, contudo, outros elementos, sem vício jurídico, legal a decisão do juiz que os considerou para explicitar a decisão." Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, HC 9128/RO.

            10. Sobre o tema, assim se manifestou o insigne Min. Vicente Leal, quando do julgamento do ROMS 8.327-MG: O direito constitucional-penal inscrito na Carta Política de 1988 e concebido num período de reconquista das franquias democráticas consagra os princípios do amplo direito de defesa, do devido processo legal, do contraditório e da inadmissibilidade da prova ilícita (CF, art. 5º, LIV, LV e LVI).

            11. A Constituição e as Provas Ilicitamente Adquiridas. In Revista da Ajuris, 68/13.

            12. E essa constatação é irrefutável, na medida em que o próprio direito à vida dentro do sistema jurídico brasileiro sofre restrições. Vide, por exemplo, a possibilidade de aborto quando a gestação decorre de estupro ou implica risco à vida da mãe, ou mesmo as excludentes da legítima defesa e do estado de necessidade, assim como a pena de morte garantida constitucionalmente em casos de guerra.

            13. O princípio da proporcionalidade no direito constitucional e administrativo da Alemanha. In Revista Direito Público, 2/97.

            14. Trecho do voto vencido, proferido no julgamento do HC 71.373-4 – RS, STF, Pleno, em 10.11.1994. Nesse particular, não se ignora a possibilidade levantada pela doutrina, de reconhecimento da formosa figura da paternidade sócio-afetiva. Apenas é trazido o exemplo da paternidade biológica, que depende de perícia, para ilustrar a necessária tutela que o sentimento do filho deva encontrar, preponderando sobre o egoísmo da parte disposta a inviabilizar o imprescindível exame. A discussão, aliás, encontra-se viva mais do que nunca, principalmente em virtude do ainda inintelegível caso Glória Trevi, no qual foi ordenada a apreensão da placenta para realização de exame. Quer-nos parecer que, in casu, não foi em nome do interesse da criança que a perícia foi procedida, indicando, em princípio e ao contrário do exemplo trazido, a ocorrência de uma prova ilícita.

 


Referência  Biográfica

Daniel Ustárroz – Advogado, mestrando em Direito pela UFRGS

 

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