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Convivência Familiar: a qualidade das relações entre pais e filhos

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*Adriana Aguiar Brotti  – 

Atualmente são muitos os fatores que desqualificam as relações humanas. Num  determinado momento é o trabalho que invade a nossa vida privada, em outro,  são  os recursos da globalização que  seduzem  e confinam as pessoas ao  isolamento, ou ainda, a nossa própria história é que nos leva a adotar  comportamentos viciosos e equivocados.

A relação entre pais e filhos é uma das experiências mais marcantes e decisivas na vida de uma pessoa. Muito se fala sobre a importância de se preservar o direito da criança à convivência familiar, contudo,  as razões  que fundamentam esse direito ainda não se perpetuaram na mentalidade dos  pais e da própria sociedade.

É imperioso que homens e mulheres  se conscientizem sobre a elevada responsabilidade social e moral da paternidade e da  maternidade. O  desenvolvimento emocional saudável da criança dependerá sempre  do modo como o exercício do poder familiar será conduzido.

Assim, compete  aos pais a preservação dos valores ético-morais, a valorização do auto-respeito e do respeito ao próximo, promovendo uma dinâmica de relacionamentos saudáveis, ou seja, integrados e equilibrados.

A estruturação moral, a serenidade e a troca de afeto entre os membros de uma família representa o verdadeiro preparo para a formação de um cidadão  responsável, notadamente, de um sujeito útil à humanidade.

Daí a constatação de que a qualidade das relações entre pais e filhos, não depende exclusivamente de seu perfil sócio-econômico ou mesmo de que os pais  se mantenham sobre o mesmo teto. A  transformação da criança em um jovem e,  posteriormente, em um adulto capacitado a interagir harmonicamente no âmbito  de sua vida pessoal, familiar, social e profissional requer o sentimento de  respeito, de solidariedade, de tolerância, de cumplicidade e de amor dentro  do núcleo familiar.

O cultivo de todos esses sentimentos deve representar o exemplo de atitude que a criança deverá adotar na sua história de vida. A criança é  absolutamente dependente dos pais, precisa de referências , observa  atentamente tudo ao seu redor e, por fim, imita os modelos conscientes ou inconscientemente sugeridos.

O grau de “qualidade” das relações entre pais e filhos pode ser medido por meio de algumas perguntas bem simples, como por exemplo: perguntei ao meu filho como foi o dia dele na escola hoje ? ; ao  conversar com meu filho, dediquei-lhe a atenção necessária, ou dividi esse tempo com meus olhos fixos no computador ou no jornal ?; fazemos ao menos uma refeição juntos?

A comunicação entre pais e filhos deve ser estimulada, isso evita que os filhos carreguem traumas, dúvidas ou angústias para o resto de suas vidas, inibindo inclusive, a marginalidade.

Tudo o que falamos até aqui, não está inserido explicitamente em nossa legislação, mas deve estar no íntimo de cada um de nós, ou seja, se seguirmos  as leis da ética e do amor, certamente concluiremos que jamais deveria  ocorrer disputa entre os pais sobre os filhos. Amor de pai é diferente de amor de mãe, contudo, são sentimentos complementares e a criança necessita de ambos, daí o senso igualitário e humanista que deve prevalecer na Família dos novos tempos, e que deve começar agora, com o empenho do próprio ser humano, independente da função social com a qual esteja investido.

 


Referência  Biográfica

ADRIANA AGUIAR BROTTI  –  Advogada, Especialista em Direito de Família, Presidente da Comissão de Direito de Família da 57ª Subsecção da OAB – Guarulhos e Editora Assistente do Prolegis Site Jurídico.

 


A audiência de conciliação, um instrumento pouco ou mal utilizado pelos Juízes

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* Clovis Brasil Pereira

1. Introdução     2. A audiência de conciliação e sua oportunidade     3. Da pouca eficiência das audiências  conciliatórias     4.  Análise crítica das razões da ineficiência     5. Conclusão

1. Introdução

A conciliação entre os litigantes, no curso de um processo judicial, é medida salutar para a solução dos conflitos, e  contribui de forma eficaz para abreviação do tempo das demandas entre os jurisdicionados.

Atento a essa realidade, nosso legislador, possivelmente  movido pelo clamor da sociedade em geral, e da comunidade jurídica em especial, tem procurado criar, ao longo do tempo,  mecanismos processuais para estimular a conciliação entre as partes, nos diversos procedimentos judiciais de natureza cível em nosso país.

Nesse passo,  a realização de audiências de tentativa de conciliação, que no início da  vigência do atual Código de Processo Civil, em 1973, era prevista apenas para as ações que seguiam o procedimento sumaríssimo, então previsto na lei adjetiva (hoje denominado sumário, conforme modificação introduzida pela Lei 8.952/94), foi estendida mais tarde ao procedimento ordinário, quando da minireforma do estatuto processual, ocorrida em 1994.  Logo depois, quando da conversão do Juizado de Pequenas Causas em Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9.099/95),  igual  obrigatoriedade  foi atribuída no caso das ações cíveis promovidas perante os Juizados Especiais.

A importância desse procedimento, e sua pouca  ou má utilização pelo Poder Judiciário, é o objeto desse pequeno estudo,  e que tem, tão somente a intenção de estimular a discussão e fazer uma reflexão, a respeito do melhor aproveitamento da audiência conciliatória, como meio eficaz, de agilização dos procedimentos judiciais.

2.  A Audiência de Conciliação e sua oportunidade

São várias as oportunidades dadas ao Magistrado pela legislação processual, para a busca da conciliação. Tanto é verdade, que o artigo 125, IV, do Código de Processo Civil, prescreve que “ao juiz compete tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes”.

Ainda, quando da realização da audiência de instrução e julgamento, segundo o artigo 448, do CPC, antes de se iniciar a instrução, “o juiz tentará conciliar as partes”.

Não bastassem essas recomendações contidas no CPC, em obediência ao princípio da maior celeridade processual, o legislador determinou, em emendas que alteraram a legislação processual, a realização de audiência de tentativa de conciliação, nas ações que seguem o procedimento comum ordinário (art. 331, CPC) e sumário (art. 277, CPC), além das ações que tramitam perante os Juizados Especiais, no âmbito da Justiça Estadual (Lei 9.099/95) e Justiça Federal (Lei 10.259/01).

Na simples leitura dos artigos da legislação mencionada, se pode concluir, que a clara intenção de tais mudanças foi tentar aperfeiçoar, ao longo da vigência do Código de Processo Civil e legislação especial, os mecanismos processuais, para buscar uma rápida e eficiente solução dos conflitos, e  diminuir o número de atos processuais, e com isso,   encurtar o tempo de duração das demandas, já que muitas delas, demoram em média de 5 a 8 anos, as vezes, até mais, desde sua distribuição até seu trânsito em julgado.

Assim, para todos os procedimentos mencionados, prescreve a legislação processual  que a audiência preliminar de conciliação, deve ocorrer no prazo de até 30 dias, contados da distribuição dos feitos.

O que se vê no cotidiano da vida forense, notadamente no Estado de São Paulo, onde temos atuação e experiência como advogado militante, é que nesse prazo, na maioria das vezes, o processo não é, ao menos, autuado e registrado, e as audiências acabam sendo realizadas, em média entre 6 a  9 meses, em flagrante desrespeito à legislação pátria.

Claro está que não se pode carrear à todos os Magistrados e aos Servidores do Poder Judiciário, a culpa ou responsabilidade por tal situação, pois é evidente e cristalina, a falta de estrutura dos cartórios, ofícios e varas judiciais, quer pela precariedade de instalações e equipamentos, quer pela defasagem dos recursos humanos, indispensáveis à movimentação dos processos.

3.  Da pouca eficiência das Audiências Conciliatórias

Apesar de estimuladas pela legislação, as audiências de tentativa de conciliação acabam se transformando, na maioria das vezes, em instrumento  de pouca ou nenhuma eficácia, em prol dos jurisdicionados.

Em nosso entender, muitas são as razões para que isso ocorra, algumas das quais  alinharemos  a seguir:

Nos Juizados Especiais, na maioria das vezes, a tentativa de conciliação é presidida por conciliadores leigos, escolhidos dentre os estudantes de direito e bacharéis, que prestam serviço voluntário, na qualidade de estagiários ou colaboradores do Poder Judiciário.

É prática comum ainda, as Instituições de Ensino, em convênio com os Tribunais Estaduais de Justiça  ou Tribunais Regionais Federais,  instalarem Unidades desses Juizados, como Anexos, dentro de suas instalações, ou em unidades externas, por elas patrocinadas, com o objetivo de atender exigência do MEC, para estimular a prática jurídica e proporcionar a prestação de serviço à Comunidade, já que está é uma das funções institucionais das Universidades, Faculdades e Centos Universitários, em geral.

Se é verdade que tais Anexos, se constituem em excelente meio de aprendizado para os estudantes, além, é óbvio, de economia considerável aos cofres do Poder Público, face ao uso gratuito de mão-de-obra, não é menos verdade,  que a falta de experiência, e muitas vezes, a falta de  comprometimento de tais conciliadores, com o mister desenvolvido, acaba se refletindo na frustração de inúmeras conciliações, que deixam de ocorrer no cotidiano dos Juizados.

Por sua vez, nas ações que tramitam pelo procedimento ordinário, quer na Justiça Estadual, quer na Federal,  a convocação dos Juizes, para a tentativa de conciliação, nem sempre é atendida por uma, ou por ambas as partes. E quando estas comparecem, observa-se na postura de alguns Juizes, pouca diligência para  tentar se obter a  conciliação.

Muitas  vezes, as partes criam uma grande expectativa, se preparam para o “dia da audiência”,  que para alguns, por ser um acontecimento formal, se torna importante,  inusitado, e quando chega o dia designado, indo ao Fórum, entram e saem da sala de audiência, sem saber ao menos, se ela se realizou.

4.  Análise crítica das razões da  ineficiência

Porque, afinal, as audiências de conciliação, na vida prática, se mostram de pouca ou nenhuma utilidade para os jurisdicionados?

Temos uma pronta resposta, que deflui da prática, de anos a fio, freqüentando assiduamente as Unidades do Poder judiciário, ou seja:

Primeiro, porque são  tão rápidas, e não contam com uma intervenção ativa do Juiz Presidente, que por vezes, ao menos cumprimenta as partes;

Segundo, porque ao menos  o Magistrado indaga dos presentes, sobre o  interesse na  conciliação;

Terceiro, porque o Juiz não faz, preambularmente, uma pequena intervenção, dizendo  de suas vantagens, como meio mais rápido e eficiente de apaziguamento dos conflitos judiciais.

Alguns Juizes, simplesmente mandam o escrevente de sala indagar dos advogados, se há possibilidade  ou proposta para acordo, e ante a exitação dos patronos, que embora representantes das partes, não são titulares dos direitos disputados, simplesmente determinam a  lavratura do Termo de Audiência, dispensando de imediato as partes,  chamando os autos à Conclusão, para posterior deliberação, no chamado  despacho saneador.

Este, para nós, é um grande equívoco, na interpretação do artigo 331, § 2º, do Código de Processo Civil, que textualmente afirma: “Se, por qualquer motivo, não for obtida a conciliação, o juiz fixará os pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se  necessário.”

Temos que essa norma processual, não separa  o momento da audiência de tentativa de conciliação, do momento do despacho saneador, e nesse oportunidade, com as partes presentes, acompanhadas de seus respectivos procuradores, é que deveria, como regra, serem fixados os pontos controvertidos, e deferidas as provas pertinentes.

Da maneira como usualmente ocorre, afigura-se a audiência  de conciliação, como uma verdadeira perda de tempo, de pouca ou nenhuma utilidade ao processo e aos jurisdicionados, além de se constituir em um grave desrespeito às partes e aos próprios procuradores, que muitas vezes se deslocam de uma Comarca à outra, em grandes distâncias, simplesmente para cumprirem uma formalidade, muitas vezes em homenagem e respeito ao próprio Poder Judiciário, porém sem nenhum resultado prático.

Certamente, existem magistrados que tem plena consciência da importância do ato da audiência conciliatória. São convictos de que uma conversa amistosa e respeitosa com as partes,  às vezes um simples sorriso, um olhar atento nos olhos das partes, acaba desarmando os espíritos, muitas vezes ainda contaminados pela mágoa, decorrente do que julgam ser “uma justa pretensão, resistida”, ou pelas pelas desinteligências que normalmente se originam no nascedouro dos conflitos.

Ocorre que essa aparente perda de tempo, de 15 a 20 minutos, no máximo, poderia acabar numa rápida e profícua conciliação, que certamente eliminaria a prática de dezenas e dezenas de atos processuais, na maioria das vezes de  utilidade duvidosa, e que acabam por abarrotar as prateleiras e os balcões do Poder Judiciário.

5.  Conclusão

Critica-se no dia a dia, aos quatro cantos, a morosidade da Justiça, e sua pouca eficiência.

Discute-se formas e mais formas para torná-la mais ágil, mais respeitada, e menos onerosa. A Emenda Constitucional nº 45/2004, denominada de “Reforma  do Judiciário”, em seu artigo 1º, ao acrescentar ao artigo 5º da Constituição Federal, o inciso LXXVIII, assevera que, “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam  a celeridade de sua tramitação”.

Embora tal disposição tenha conteúdo vago e subjetivo, certamente por razoável duração do processo, não se deve entender uma causa que tenha a demora entre 5 a 8 anos para ser resolvida, como hoje ocorre.

Por fim, dezenas de Projetos de Lei dormem nas gavetas da Câmara dos Deputados e Senado Federal, aguardando mudanças e adequação da legislação processual, com objetivo de dar uma resposta à Sociedade, que dá sinais de desesperança com o Poder Judiciário.

No entanto, parece-nos oportuno, como medida efetiva de melhoria da prestação jurisdicional, e conseqüentemente, o de buscar o desentulhamento do Poder Judiciário, que se dê plena eficácia às normas processuais já existentes, notadamente,  às normas que garantem a realização das audiências conciliatórias, em praticamente todos os procedimentos judiciais.

Para tanto, basta tratar as audiências de tentativa de conciliação com seriedade, e tratar os jurisdicionados com o devido respeito.

Será, ao nosso ver, um ato de cidadania, que em muito contribuirá para o fortalecimento da imagem do Poder Judiciário, perante à Sociedade.


Referência  Biográfica

Clovis Brasil Pereira  –  O autor é Advogado com escritório em Guarulhos (SP), Especialista em Direito Processual Civil, Mestre em Direito, Professor Universitário, ministrando cursos de atualização profissional junto às unidades da ESA – Escola Superior da Advocacia no Estado de São Paulo, e Cursos Jurídicos, sendo Coordenador e Editor do Site Jurídico www.prolegis.com.br

Sumaríssimo na contramão da celeridade processual

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* Isabelli Gravatá 

A Lei n.º 9.957 de 12 de janeiro de 2000 acrescentou à Seção II-A os artigos 852-A, 852-I, bem como os artigos 895, § 1º, 896, § 6º e 897-A à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), instituindo o chamado procedimento sumaríssimo no processo do trabalho.

Nos dias atuais, em decorrência do aumento do número de demandas trabalhistas, surge a necessidade de se utilizar um mecanismo célere de solução dos conflitos. O número de processos na Justiça do Trabalho tem crescido a cada ano que passa, estando o nosso Judiciário abarrotado de demandas sem solução, daí a necessidade de se criarem mecanismos que fizessem valer o princípio da celeridade e da economia processual. Foi nesse espírito que surgiu a Lei do procedimento sumaríssimo. Mister salientar a importância do princípio da celeridade, que, hoje, após a Emenda Constitucional nº 45/04 ganhou status constitucional.

Um dos maiores tormentos a que podem ser submetidos os litigantes é a morosidade do processo judicial. Ele avilta a parte, fere de morte o ideal da justiça e funciona como mais uma razão de descrédito e desprestígio do Poder Judiciário.

A Lei criou o procedimento sumaríssimo na Justiça do Trabalho, em outra tentativa de desafogar os tribunais trabalhistas das milhares de ações que por ali tramitam. É um procedimento mais célere, mais simplificado do que o tradicional, que deve ser utilizado nas causas de menor complexidade, ou seja, naquelas cujo valor não exceda a quarenta vezes o valor do salário mínimo na época da interposição.

Trata-se, portanto, de um procedimento célere, que possui três requisitos, quais sejam:

·   Limite máximo de quarenta salários mínimos (art. 852-A da CLT) – O valor da causa deverá ser até quarenta vezes o salário mínimo (nacionalmente unificado – art. 7º, IV da CRFB).

·   Inicial líquida, com pedido certo ou determinado[1] (art. 852-B, I da CLT) – todos os pedidos deverão conter a expressão monetária correspondente, quando possível.

·   Nome e endereço do réu corretos (art. 852-B, II da CLT).

Na falta de qualquer um dos requisitos o processo será ARQUIVADO, ou seja, extinto sem julgamento do mérito (art. 852-B, § 1º da CLT).

A lei proíbe a citação por edital – art. 852-B, II da CLT. Não é possível interpor a ação pelo procedimento sumaríssimo quando o réu é ente público, que goza da prerrogativa do prazo em quádruplo para defesa, o que é incompatível com a celeridade do sumaríssimo – art. 852-A, § único da CLT.

Ao abrir a audiência o juiz fará uma proposta conciliatória. A partir daí, as partes podem conciliar-se a qualquer momento, mas a lei não fixa uma nova oportunidade para a proposta, como ocorre no procedimento ordinário – art. 852-E da CLT. Serão ouvidas até duas testemunhas para cada parte – art. 852-H, § 2º da CLT. Na ata de audiência será registrada apenas uma breve reprodução do que foi tratado. Detalhes não serão reproduzidos, só o que interessa para a solução da causa – art. 852-F da CLT.

A audiência será, em regra, UNA. As testemunhas serão levadas a juízo pelas partes independentemente de intimação. Caso uma delas não compareça, o juiz adiará a audiência mediante a comprovação de que foi convidada pela parte (por carta registrada, telegrama, aviso de recebimento etc.) – art. 852-H, § 3º da CLT.

Cabe perícia, desde que célere. Ao nomear o perito, o juiz já fixa o objeto da perícia, restringindo-a somente ao que interessa – art. 852-H, § 4º da CLT. De imediato o juiz também fixa o prazo para a realização da perícia. E as partes terão prazo comum de cinco dias para se manifestarem sobre o laudo – art. 852-H, § 5º da CLT.

O juiz vai proferir a sentença em quinze dias contados da interposição da ação – art. 852-B, III da CLT. Esse prazo mostra a incompatibilidade do ente público como réu no sumaríssimo, pois se a notificação para a audiência tem que ser feita para eles com vinte dias de antecedência, em respeito ao que vaticina o Decreto-lei 779/69, não será possível ao juiz prolatar a sentença no prazo de quinze dias.

Em sendo adiada a audiência, o juiz terá mais trinta dias para proferir sua decisão – art. 852-H, § 7º da CLT.

Pode ser que nem com os trinta dias a mais o juiz tenha como sentenciar. Se houver necessidade de mais tempo e motivo relevante, poderá o juiz justificar nos autos o não cumprimento do prazo estipulado.

Não é possível dar prazo para emendar a inicial. Não se pode usar o Código de Processo Civil subsidiariamente, pois ele dá prazo de dez dias para emenda e este prazo é incompatível com os quinze dias que o juiz tem para proferir a sentença.

A sentença não precisa ser líquida. O juiz não precisa colocar o relatório na sentença. Tecnicamente a sentença é dividida em três partes, relatório, fundamentação e dispositivo. O relatório é o resumo do processo; a fundamentação é a justificação da sentença (motivos, amparo legal); e o dispositivo é a decisão, o julgamento em si, a parte da sentença que transita em julgado.

No sumaríssimo o juiz está dispensado de fazer o relatório, deverá apenas fazer um resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência, fundamentar e decidir – art. 852-I da CLT.

Em regra, assim como no procedimento ordinário, a sentença deverá ser proferida em audiência.

Os recursos interpostos no sumaríssimo também terão traços de celeridade, entretanto, a lei do sumaríssimo não trata da execução de forma diferente, o que é criticado por muitos, pois toda a celeridade acaba no momento mais importante, que é a hora de executar a sentença.

Em suma, as características principais do procedimento sumaríssimo são:

· causas até quarenta salários mínimos – art. 852-A da CLT;

· exclusão dos entes públicos desse procedimento – art. 852-A, § único da CLT;

· inicial com pedido certo ou determinado, bem como com a indicação do valor correspondente – art. 852-B, I da CLT;

· proibição da citação por edital – art. 852-B, II da CLT;

· apreciação do pedido em até quinze dias contados da data do ajuizamento da ação – art. 852-B, III da CLT;

· audiência UNA;

· conciliação em qualquer fase da audiência, devendo o juiz ao abrir a sessão esclarecer as partes sobre as vantagens da conciliação – art. 852-E da CLT;

· máximo de duas testemunhas para cada parte – art. 852-H, § 2º da CLT;

· prova pericial somente quando a prova do fato a exigir, ou for legalmente imposta, incumbindo ao juiz fixar o prazo, o objeto da perícia e nomear o perito – art. 852-H, § 4º da CLT;

· sentença proferida em audiência, sendo dispensado o relatório – art. 852-I da CLT;

· permanência do recurso ordinário com o relator no prazo máximo de dez dias, sem revisor e podendo o Ministério Público do Trabalho dar o parecer oral – art. 895, § 1º, II e III da CLT;

· dispensa do relatório, se a sentença for mantida pelos próprios fundamentos, bastando uma certidão – art. 895, § 1º, IV da CLT;

· restrição nas hipóteses de cabimento do recurso de revista – art. 896, § 6º da CLT.

O cerne da questão é: será que o que a lei criou efetivamente acelerou o julgamento destas causas e serviu para desafogar o Judiciário?

Entendemos que não. O sonho de um procedimento rápido existe, mas a efetivação dessa celeridade está muito distante de ocorrer diante da nossa realidade Judicial. Vivemos em um país muito extenso, com diversidades em toda a sua plenitude. O Judiciário do Rio de Janeiro não pode ser comparado ao de Tocantins, e por aí vai.

A lei instituiu um procedimento, por muitos entendido como obrigatório, para as causas até quarenta salários-mínimos. Na nossa doutrina verificamos que o procedimento sumaríssimo foi inspirado na Lei 9.099 de 26 de setembro de 1995 que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, em substituição aos antigos Juizados de Pequenas Causas previstos na Lei 7.244 de 7/11/84. O curioso de se observar é que a Lei 9.099/95 foi inspirada na CLT. Portanto, demos uma volta para chegar à própria lei trabalhista.

Ocorre que, a Lei 9.099/95 traz uma celeridade às causas de pequeno valor, porque criou os Juizados Especiais. É muito complicado implantar dentro da Justiça do Trabalho, sem a criação de Varas Especiais um procedimento distinto daquele sempre trabalhado. O número de causas a serem julgadas não sofreu redução, apenas tivemos uma mudança no procedimento. O Juiz continua sobrecarregado de processos.

Há mais, nenhuma mudança foi feita na fase de execução, o que dificulta a prestação da tutela jurisdicional. O processo de conhecimento célere gera apenas uma sentença. A verdadeira entrega do bem jurídico só se concretiza com a execução, que continua morosa.

No processo comum, o juiz, diante de um pedido líquido deverá proferir uma sentença líquida – parágrafo único do artigo 459 do CPC. No procedimento sumaríssimo trabalhista, tal dispositivo foi vetado, inexistindo obrigatoriedade do juiz apresentar sua sentença líquida. Com o texto atual há necessidade do início normal de uma fase de execução, ou seja, devem as partes, o contador judicial ou o perito liquidarem a sentença.

Portanto, mesmo obtendo uma sentença mais rápida, o que nem tem sido o caso, de qualquer sorte, na fase da execução o trâmite é sempre o mesmo, bem lento.

Tal procedimento é judicial, o que leva a concluir que passamos a ter “um sonho de procedimento”, pois o número de juízes não aumentou, não foram criadas Varas especializadas para causas de pequeno valor e não houve qualquer alteração na fase da execução, ou seja, a morosidade continua.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Amador Paes de. O Procedimento Sumaríssimo na Justiça do Trabalho e Comissões de Conciliação Prévia. 2.ed. – São Paulo: Saraiva, 2000.

BEBBER, Júlio César. Procedimento Sumaríssimo no Processo do Trabalho. São Paulo: LTr., 2002.

BOMFIM, Benedito Calheiros. Conciliação Prévia e Procedimento Sumaríssimo na Justiça do Trabalho. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 2000.

MARTINS, Sergio Pinto. Comentários à CLT. 5.ed. – São Paulo: Atlas, 2001.

___________________ Comissões de Conciliação Prévia e Procedimento Sumaríssimo. 2.ed. – São Paulo: Atlas, 2001.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 20.ed. ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2001.

NORRIS, Roberto [et al.]. Inovações no Processo do Trabalho: Procedimento Sumaríssimo (Lei n.º 9.957/2000) e Comissão de Conciliação Prévia (Lei n.º 9.958/2000). Rio de Janeiro: Forense, 2000.

OLIVEIRA, Francisco Antonio de. Consolidação das Leis do Trabalho Comentada. 2.ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.

PAIVA, Mário Antônio Lobato de. A Lei do rito Sumaríssimo e das Comissões de Conciliação Prévia na Justiça do Trabalho vista pelos juristas. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

PALMA, João Augusto da. Jurisprudência do Sumaríssimo e da Conciliação Prévia. São Paulo: LTr., 2002.

RAMOS, Alexandre [et al.]. Procedimento Sumaríssimo e Comissão de Conciliação Prévia. Florianópolis: OAB/SC, 2000.

RUSSOMANO, Mozart Victor [et al.]. Consolidação das Leis do Trabalho Anotada. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

 

Obras publicadas:

•   Curso para exame de ordem – área trabalhista, volumes II e III, co-autoria com a Dra. Vólia Bomfim, Rio de Janeiro, Edições Trabalhistas.

•   Direito do Trabalho para a Área Fiscal, Editora Campus/Elsevier.

[1] O artigo 852-B, I da CLT reproduz o equívoco do art. 286 do CPC. Segundo J. J. Calmon de Passos acerca do pedido ser certo ou determinado, “temos que ele deve ser certo e determinado. Não se cuida de uma alternativa, mas de uma copulativa, pois ambas as qualidades lhe são imprescindíveis.” – PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. III: arts. 270 a 331. 2. ed. – Rio de Janeiro, Forense, 1977, p. 232

 

Referência  Biográfica

Isabelli Gravatá  –  Bacharel em Direito pela Faculdade Cândido Mendes – Centro . Mestra em Direito Público pela Unesa . Especialista em Direito Empresarial pela Faculdade Cândido Mendes – Centro. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes – UCAM . Ex-residente Jurídica da área trabalhista da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professora Universitária . Professora de Cursos Preparatórios para Concursos Públicos – Área jurídica e área fiscal (Rio de Janeiro e São Paulo) . Servidora pública do TRT da 1a Região . Presidente do Conselho Editoraial da Editora Impetus.


Em defesa do Judiciário

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OPINIÃO –

*Luiz Guilherme Marques –
O Consultor Jurídico (www.conjur.com.br) divulgou, em 29/04/2007, um artigo de GAUDÊNCIO TORQUATO intitulado Névoa na Justiça – Transparência do Judiciário brasileiro deixa a desejar.

No referido site foi mencionada a qualificação do articulista como jornalista, professor titular da USP e consultor político.

O texto é rico em informações, mas, no meu entender, ataca o Judiciário de forma injusta. O autor (pensei) ou não vive a realidade forense ou tem alguma birra contra os juízes.

Aliás, de um tempo para cá e, principalmente, no presente momento, tem sido cômodo falar e escrever verrinas contra o Judiciário.

Também, o clima criado por alguns setores da mídia propicia o linchamento da instituição que, na verdade, é a mais séria, qualificada e acreditável da vida republicana.

Mas o trabalho demolidor fica fácil, pois os juízes, voltados para suas funções, não aparecem nos jornais e na televisão, não sabem fazer propaganda institucional e muito menos idolátrica, como muitos homens públicos são especialistas em fazer. Não criam e nem incentivam fan clubs para aplaudi-los onde chegam. Simplesmente trabalham de verdade.

Tidos os juízes como únicos ou principais responsáveis pelas mazelas da vida forense, esquecem-se seus acusadores de levar em conta, por exemplo, as dificuldades criadas por alguns advogados quanto ao aspecto ético e até pelo despreparo profissional… Mais não devo falar sobre o assunto para não incidir na mesma indelicadeza praticada por muitos que analisam o Judiciário ofendendo uma classe inteira por conta de uns poucos profissionais realmente indignos.

Esquecem-se de considerar a verdade representada pelo interesse de determinados políticos em dificultar a atuação do Judiciário através de meios inclusive inconfessáveis, isso sem falar na edição de leis mal elaboradas ou inúteis…

Esquecem-se do desinteresse de muitos governos em pagar suas dívidas, instituindo o calote mais declarado, gerando verdadeira avalanche de ações que nunca terminam, e, quando isso acontece, ingressam na fila absurda dos precatórios…

Os críticos tendenciosos deveriam informar-se do quanto de dificuldades o Judiciário tem de vencer para realizar seu trabalho. Somente quem vive o dia-a-dia do foro tem noção do que representa trabalhar com as leis que temos e com limitação de recursos tecnológicos.

É fácil fazer críticas, ao invés de trabalhar pela melhoria das instituições; analisar, sem conhecimento verdadeiro do assunto, é tarefa que qualquer um pode se aventurar a fazer; mas, contribuir de forma realmente útil, é o que se espera de todos os que pretendem exercer a cidadania consciente.

E quanto aos profissionais da comunicação em geral, devem seguir o exemplo dos seus colegas mais gabaritados, que vão a fundo na pesquisa dos assuntos que abordam, para bem informar, ao invés de colher informes superficiais, os quais, muitas vezes, ao invés de ajudar a compreensão, confundem as pessoas…

Cada um tem o direito de falar e escrever livremente, numa sociedade democrática, mas tem o dever de conhecer o assunto que aborda.

 * Luiz Guilherme Marques: Juiz de Direito da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG) 

  Site: www.artnet.com.br/~lgm

Célula-tronco: o desafio da democracia

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OPINIÃO –

 

*Samantha Buglione –

O debate sobre células-tronco no Brasil teve um marco histórico com a primeira audiência pública do Supremo Tribunal Federal (STF), dia 20, sexta-feira. O objetivo foi reunir informações científicas para julgar a ação direta de inconstitucionalidade (Adin) 3510, ajuizada pela Procuradoria Geral da República (PGR) contra dispositivos da Lei de Biossegurança (Lei nº. 11.105/05), que versa sobre a utilização de células-tronco de embriões humanos em pesquisas e terapias.

A tese da PGR é a da inconstitucionalidade do artigo 5º e parágrafos da lei, por entender que não há permissão legal para a utilização dessas células, consideradas inviáveis pela ciência, ou seja, sem possibilidade de implantação em útero humano. O pressuposto da tese é que a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação. Essa tese, porém, apesar de ser bastante popular, é contestada nos círculos científicos, por não haver acordo ou dado empírico sobre o que é vida e mesmo o que é vida humana.

O consenso é que essas células são um estágio do desenvolvimento celular. A Resolução da Diretoria Colegiada nº 33 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) define como pré-embrião produto da fusão de células germinativas até 14 dias após a fertilização, in vivo ou in vitro, quando do início da formação da estrutura que dará origem ao sistema nervoso. Dentro das condições técnicas disponíveis não há qualquer possibilidade de que um dos embriões inviáveis, tratados na Lei de Biossegurança, venha a se tornar um ser humano.

Outro ponto a ser observado é se a ‘potencialidade’ da vida merece tutela jurisdicional nos moldes dos direitos fundamentais de pessoas vivas. Uma pedra tem potencialidade de se tornar uma escultura, mas nem por isso se tornará. Um óvulo tem potencialidade de se tornar, ao ser fecundado por um espermatozóide, um embrião. Um embrião tem potencialidade de ser um ser humano, mas não o é. A única resposta aceitável para o início da vida humana é a que remete a todo o processo de vida no planeta, ou seja, a uma regressão lógica e infinita.

É arriscado assumirmos uma ou outra definição moral sem considerar as implicações dessa decisão em termos de respeito aos direitos de seres humanos vivos, como saúde e dignidade, e de garantia do próprio saber científico. É perigoso que em sociedades democráticas e laicas a justificação última para os limites de uma ação se sustente em princípios morais singulares. Isso violaria o próprio direito fundamental à liberdade de crença. A audiência promovida pelo STF foi uma forma de garantir que as tensões morais sobre esse tema sejam debatidas a partir das ‘regras do jogo’ vigentes na nossa ordem social, ou seja, a de um Estado laico e democrático. E é sobre esse prisma que se deve analisar os conflitos sobre fatos e valores que envolvem o tema das células-tronco.

A angústia das incertezas laicas não impede o STF de tutelar mais ou menos determinado estágio da biologia humana. Em outros termos, é isso que acabará ocorrendo. A questão, porém, é saber a razoabilidade de proteger essas células-embrionárias nos termos da proposta da PGR. 


* Samantha Buglione:  A autora é Professora de bioética no curso de Direito na Univali e diretora executiva do Instituto Antigona.

Fonte: Resenha da Assessoria de Imprensa do TJSC, do dia 25/04/2007

A Constituição e seu papel frente às contingências da sociedade (pós) moderna.

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   *  Ronny Carvalho da Silva  – 

            Vivemos em uma sociedade cujas aberturas, às mais diferentes possibilidades de escolha, tornam a vida em coletividade cada dia mais complexa. Isso significa dizer que as relações humanas estão dia após dia se transformando em uma velocidade tal, que as estruturas do poder normativo, até então vigentes, já começam – se é que já não estão – mostrando-se ineficazes na sua tarefa de regulação das condutas humanas.

            A esse período de incertezas e imprecisões, convencionou-se chamar de Pós-modernidade, haja visto que a modernidade já nos deixou, com um dissabor de frustrações e projetos a realizar os quais pairam na penumbra das irrealizadas promessas de um período cheio delas (falsas ou não).

Habermas, jusfilósofo alemão, refuta a idéia de uma pós-modernidade. Com efeito, assim como em outras, na obra Der philosophische diskurs der moderne1, apregoa  a existência de uma modernidade, tardia, mas ainda vigente, cujos projetos ainda estão por se realizarem.

            Vive-se atualmente, e isso é inegável, numa sociedade altamente complexa, cujas possibilidades de escolhas são sempre maiores que as que efetivamente se podem realizar.  A isso, indiferente às discussões acerca da existência de um período pós-moderno ou não, se dá a certeza de o que se vislumbra no presente é uma transformação social, nas relações entre os seres, cuja arrogância, acredita tudo poder solucionar, mas que na prática, vem demonstrando sua hiposuficiência na solução dos conflitos surgidos nesse período de nossas vidas.

            Bem já aduziu o Prof. André Trindade, estudioso da sociedade contemporânea e das teorias sociais sistêmicas, apontando como um paradigma da modernidade (pós-modernidade), o papel do Direito frente às contingências desse nosso período marcado pelas incertezas e velocidade na troca das experiências sociais. Segundo o professor “a normatividade procura acompanhar a dinâmica social pós-moderna, no entanto é vencida pela  progressiva  adaptabilidade  e ampliação das trocas sociais/culturais (globalização).” 2

            Inegavelmente, as tradicionais formas de elaboração do direito e da normatividade estão se mostrando cada diz mais obsoletos, num sentido pragmático. Urge pois a busca de mecanismos jurídicos aptos à corresponderem aos anseios da sociedade hodierna, uma sociedade altamente complexa e globalizada.

            Nessa seara, eis que a Constituição avulta-se com inestimável importância na construção do moderno Direito. Seu papel na atualidade nunca foi tão debatido, e nunca se pôde verificar como agora o seu poder normativo, aplicado aos fatos da vida concreta.

            Diferentemente do que fora dito por Lassalle, em sua Über die Verfassung, em que pese sua contribuição ao estudo da Constituição enquanto reflexo do que denominou fatores reais do poder, não podemos entender ela como uma mera “folha de papel”, como insiste colocar.3 Devemos, antes, nos aproximar mais do que Hesse, combativamente buscou demonstrar na famosíssima Die normative Kraft der Verfassung,4 escrita justamente para refutar o ideário de Lassale, apontando o que convencionou chamar de Wille zur Verfassung. Assim, não somente a vontade de poder, mas preponderantemente a vontade de Constituição é o fator decisivo para se operar a força normativa da constituição.

            Diante de uma sociedade altamente complexa, globalizada, ressalta-se a importãncia da Constituição, com sua força normativa, no regramento das condutas e das relações humanas.

            Com efeito, mais precisamente, os princípios constitucionais têm demonstrado sua função, ao posssibilitar a abertura do sistema jurídico para uma melhor interpretação da realidade, aplicando-se o Direito a cada caso, per si, buscando minimizar as expectativas na pacificação dos conflitos, cada vez mais de interesses meta-individuais.

            Já em idos de 1975, Peter Häberle, constitucionalista contemporâneo, dá o tom da moderna interpretação constitucional voltada à sua efetivação nas sociedades modernas. Segundo ele: “Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade.” 5

                Não se pode, assim, olvidar que o grande ápice do conjunto normativo, senão melhor dizendo, o grande centro de irradiação do direito na atualidade acha-se nos princípios constitucionais.

            Os princípios constitucionais, dentro da visão pós-positivista de Paulo Bonavides, enquanto adepto à visão kelseniana, fazem “a congruência, o equilíbrio e a essencialidade de um sistema jurídico legítimo. Postos no ápice da pirâmide normativa, elevam-se, portanto, ao grau de norma das normas, de fonte das fontes. São qualitativamente a viga-mestre do sistema, o esteio da legitimidade constitucional, o penhor da constitucionalidade das regras de uma Constituição.” 6

            Tomando o seu verdadeiro lugar, que é o de centralizador e ápice do ordenamento jurídico, os princípios, de fato, consubstanciam-se como o baluarte da moderna construção jurídica, tendo sido apontados como a melhor forma de solução das lides atuais, que se sabe, envolvem questões que já não se findam no paradigma da sociedade individual-patrimonialista, mas sim, voltados às questões de interesse difuso, alicerçados nos modernos anseios humanitários internacionais.

            Nessa busca pelas soluções das contingências da sociedade moderna (ou pós-moderna), os princípios são formas de absorção dos anseios sociais, moldando o corpo normativo, muitas vezes paralisado pela lentidão dos modelos legislativos tradicionais.

            Nessa toada, Walter Rothenburg, bem aduziu acerca dos princípios e sua função desenvolvedora do ordenamento, voltado ao conteúdo axiológico da modernidade. Para ele, “trazendo em si o norte axiológico do ordenamento jurídico, os princípios reclamam retomada e aperfeiçoamento através de atividade normativa integradora, incorporando e garantindo desde logo um eventual desenvolvimento normativo já verificado, dotados que são os princípios de uma eficácia impeditiva de retrocesso.” 7

            Devido ao seu  alto grau de abstração, podem os princípios constitucionais amoldarem-se e, de maneira muito próxima às realidades, serem efetivamente normas mais justas e eficazes na obtenção da almejada homeostase social.

            A realização efetiva dos ideários previstos na Constituição somente ocorrerá tendo-se uma “vontade de constituição”, nos dizeres de Hesse, traduzida num engajamento maciço dos operadores do direito na extração do melhor sentido que se pode dar aos princípios constitucionais.

            Logo, deflui-se que o apregoado por Konrad Hesse em sua Die normative Kraft der Verfassung alcança sentido e concretude, na atualidade, ao complementar-se através do pensamento exposado por Peter Häberle em sua famosíssima Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten: a intrepretação pluralista e aberta coaduna-se com os anseios da atual sociedade, pós-moderna ou simplesmente moderna, mas altamente complexa, cujas expectativas e anseios se apresentam ao operador do direito a uma velocidade tal, que não se pode ficar alheio às exigências de uma realidade hiper complexa.

            A melhor forma do Direito lidar com essas prementes expectativas da sociedade altamente globalizada e ávida na solução de contingências, é a exploração máxima dos princípios constitucionais. Justamente é essa a função da Constituição hoje, a de oferecer respostas na medida exata e na mesma velocidade com que as contingências surgem, com vistas à tão sonhada homeostase social.

 NOTAS:

 (1) Cf. HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. (Der philosophische diskurs der moderne.) Tradução de Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

 (2) TRINDADE, André Fernando dos Reis. Autopoiese da União Européia: a organização circular do Sistema Jurídico Europeu. In: SCHWARTZ, Germano (org.). Autopoiese e Constituição – os limites da hierarquia e as possibilidades da circularidade. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 179.

 (3) Cf. LASSALE, Ferdinand. Über das Verfassungswesen. Berlim: Buchhandlung Vorwärts Paul Singer, 1907. (A Essência da Constituição. 6ª ed. Tradução de Walter Stönner. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001).

 (4) Cf. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

 (5) Cf. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.

 (6) BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 265.

 (7) ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. 2ª tiragem. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 82.

 BIBLIOGRAFIA:

 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.

HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Tradução de Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6ª ed. Tradução de Walter Stönner. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.

ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. 2ª tiragem. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.

SCHWARTZ, Germano (org.). Autopoiese e Constituição – os limites da hierarquia e as possibilidades da circularidade. Passo Fundo: UPF, 2005.

  

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

* Ronny Carvalho da Silva:  Pós-graduando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor do curso de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos-SP.

 

 


Greve e Interdito Proibitório

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* Levi Rosa Tomé  –

Resumo: O objetivo deste trabalho é demonstrar que, com a ampliação da competência material da Justiça do Trabalho, especialmente no que se refere à sua exclusiva atribuição para apreciar “as ações que envolvam exercício do direito de greve”, como previsto no artigo 114, II, da Carta Magna, todos os questionamentos jurídicos que dele decorram haverão de ser levados às barras da Justiça Laboral, ainda que a sua resolução envolva o conhecimento de matéria estranha à própria relação de trabalho, aí incluídas as ações possessórias que tenham por suporte fático o movimento grevista.

PALAVRAS-CHAVE: greve – competência material – interdito proibitório – Justiça do Trabalho.

 

1. A “Reforma do Poder Judiciário”

A Emenda Constitucional 45, de 08/12/04, trouxe a lume o que se convencionou chamar de “Reforma do Poder Judiciário”, cujo objetivo era empreender profundas modificações no sistema judiciário brasileiro, de molde a torná-lo mais célere e mais efetivo.

Depois de quase 12 (doze) anos de tramitação, depois de marchas e contramarchas, a muitos pareceu tratar-se a mencionada Emenda do verdadeiro “parto da montanha”, de onde bufos e grunhidos poderiam ser ouvidos, mas frustradas teriam sido as expectativas, em face do pequeno rebento que dela surgira.

Antônio Álvares da Silva já se perguntou: “terá valido a pena o grande percurso e a longa caminhada?” – mas ele mesmo já respondeu, com a percuciência de sempre – “A resposta não pode ser dada agora, já que os fatos históricos só se julgam a posteriori”.[1]

E tem razão o jurista mineiro. A história ainda está por ser contada. O tempo haverá de dizer se o esforço realizado foi o suficiente. Cora Coralina já teve ocasião de dizer que o tempo é tão poderoso que planta avencas no muro.[2]

Neste momento, quando ainda estão se assentando as primeiras impressões acerca do novo texto constitucional, de fato, é impossível avaliar a reforma empreendida, se tímida ou ousada, se suficiente ou insuficiente. Aliás, parece mesmo que a “reforma” é só o primeiro passo, uma espécie de ponta-pé inicial numa partida que deve ser encarada como uma “final de campeonato”.

A efetividade da prestação jurisdicional é imperativo do próprio Estado Democrático de Direito, disso se defluindo que, qualquer que tenha sido o balizamento constitucional trazido com a EC 45/04, a ele se deverá dar a maior amplitude possível, fazer dele instrumento de verdadeira revolução judiciária.

Com efeito, basta um mínimo de boa vontade para que se enxergue no “princípio da duração razoável do processo”, por exemplo, insculpido no artigo 5º, LXXVIII, da Constituição Federal, na sua redação reformada, fundamento capaz de inspirar e autorizar o legislador infraconstitucional a empreender todas as inovações legislativas que se fizerem necessárias, com vistas à concepção de um processo proficiente, de um método eficaz de solução de demandas. Mais do que isso –  basta este mesmo artigo constitucional para autorizar, em “interpretação conforme a constituição”, o próprio rejuvenescimento de velhos institutos processuais, ainda que nenhuma alteração legislativa seja realizada.

A “reforma”, em verdade, terá o tamanho ou a “grandeza” que lhe empreenderem os operadores do direito. Ao legislador caberá a disposição de reformular os institutos do processo com vistas a amoldá-los à nova ordem constitucional; aos aplicadores da lei, a coragem de dar-lhes a máxima efetividade possível.

 

“A Reforma do Judiciário, recentemente aprovada pelo Congresso Nacional, é apenas a etapa inicial de um processo onde a Reforma processual tem vital importância para melhorar a capacidade do Poder Judiciário de ofertar decisões em tempo razoável”.[3]

 

2. A ampliação da competência material da Justiça do Trabalho

Por outro lado, e partindo agora para o objetivo principal deste trabalho, é de se dizer que nesse mesmo contexto, ou seja, nessa mesma ordem de idéias, atribuindo a cada um a incumbência de dar o seu melhor para que a “Reforma” não seja apenas o “parto da montanha”, é que também se insere a ampliação da competência material da Justiça do Trabalho, que pelo artigo 114 da Constituição Federal, com a redação que lhe deu a EC 45/04, tornou-se competente para conhecer de todos os litígios que decorram da “relação de trabalho”, e não mais e apenas da “relação de emprego”, negócio jurídico este cada vez mais escasso no mundo globalizado.

Com efeito, os vários incisos em que se desdobrou o artigo 114 constitucional, depois da “Reforma”, na verdade estruturaram uma nova Justiça do Trabalho, não mais voltada para a relação de emprego, para a execução do contrato de trabalho e para a culpa contratual, e sim para o trabalho humano e a sua ampla proteção.

Reginaldo Melhado, juiz do trabalho no Paraná, prega a necessidade de uma espécie de desvinculação do Direito do Trabalho e do Direito Processual do Trabalho, em relação àquele conceito ortodoxo de subordinação jurídica que até a EC 45/04 permeava a competência trabalhista; inferindo que só assim a Justiça do Trabalho terá condições de abarcar e solucionar novas demandas, lastreadas em um novo modelo de relações produtivas.[4]

Gustavo Tadeu Alkmim, juiz do trabalho no Rio de Janeiro, ampara-se em José Saramago e em sua “justiça pedestre”, para invocar as principais qualidades da Justiça Laboral – simples, acessível, sensível -, como predicados necessários ao alcance de uma prestação jurisdicional ativa e efetiva – este, como dito antes, o principal objetivo da “Reforma”.[5]

E tais argumentos se mostram de absoluta pertinência.

Sem demérito ou desrespeito aos demais ramos de justiça e a seus dignos juízes, é inquestionável que muitas das demandas até então dirimidas fora do âmbito trabalhista, de há muito deveriam ter sido atribuídas à Justiça do Trabalho, que por sua especialização reunia melhores condições de conhecer de tais conflitos e até mesmo de empreender-lhes tratamento homogêneo, nisso homenageada a recém-valorizada teoria da “unidade de convicção”.

Com efeito, desarrazoada e contraproducente, por exemplo, era a situação verificada antes da EC 45/04, quando a Justiça do Trabalho tinha competência para obrigar o empregador a fornecer ao seu empregado o cinto de segurança, necessário à escalada de um poste (Súmula/STF 736), mas lhe escaparia uma tal competência se o trabalhador, pelo não fornecimento do mesmo equipamento de segurança, dali se despencasse.

Desrazão e contraprodução também verificadas no âmbito sindical, em relação ao qual a Justiça do Trabalho era o órgão incumbido de analisar questões afetas à negociação coletiva, à estabilidade do dirigente sindical, ao próprio enquadramento sindical, mas não poderia se envolver com o funcionamento do sindicato, com o sistema de custeio sindical, com a licitude da eleição sindical, com a criação de novos sindicatos, com a observância da unicidade sindical.

E o que dizer do habeas corpus relacionado ao depositário infiel, que tendo a sua prisão decretada nos lindes da Justiça do Trabalho, pelo desfazimento do bem que lhe foi confiado, valia-se, muitas vezes, de ramo judiciário estranho para a obtenção de liberdade, ao fundamento de que ao judiciário laboral não era atribuída “competência criminal”?

Nesse contexto, a EC 45/04 teve o mérito de homogeneizar e racionalizar a prestação jurisdicional trabalhista, na medida em que concentrou, num único ramo de justiça, o conhecimento de grande parte dos questionamentos advindos do trabalho humano e seus diversos consectários.

Aliás, com o advento da “Reforma”, aquela dicotomia que os estudiosos do processo do trabalho extraíam do texto constitucional, sobre a existência de uma competência originária, para lides entre trabalhadores e empregadores, e uma competência derivada, para “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho” [6], se não desapareceu por completo, teve os seus contornos grandemente alargados, para abarcar a “relação de trabalho” de modo genérico, não mais parametrizada pela subordinação jurídica, e todas as demais controvérsias dela oriundas.

Dito de outra forma, a competência trabalhista não mais se refere ao contrato de trabalho, basicamente, mas à relação de trabalho, ao trabalho humano de modo geral, assim como às demais controvérsias que tenham a sua gênese nesse tipo de relação jurídica.

3. A competência trabalhista para as questões envolvendo o exercício do direito de greve.

Nesse pensamento, o inciso II, do reformado artigo 114 constitucional, estabelece, explicitamente, ser da Justiça do Trabalho a competência para “as ações que envolvam exercício do direito de greve”, no que agiu acertadamente o constituinte derivado, harmonicamente à idéia-força que parece inspirar toda a modificação competencial promovida pela “Reforma” – a atribuição de competência material à Justiça do Trabalho, para todo e qualquer questionamento relacionado ao trabalho humano, pessoalmente prestado, e seus desdobramentos.

Afinal, se “o direito de greve é um dos meios essenciais à disposição dos trabalhadores e de suas organizações para promover e defender seus interesses econômicos e sociais” [7], inquestionável se afigura que a sua licitude e tudo o que diga respeito ao seu exercício, deva pertencer à competência material trabalhista, como, aliás, parece aflorar-se da própria redação do mencionado inciso II, do artigo 114 constitucional, que quando atribui à Justiça do Trabalho competência para conhecer das ações decorrentes do exercício do direito de greve, não faz qualquer exceção.

4. O interdito proibitório como ação decorrente do exercício do direito de greve.

Ultimamente têm chegado não só aos pretórios trabalhistas, mas também aos lindes da Justiça Estadual, ações possessórias propostas, sobretudo por entidades bancárias, com base no artigo 932 do CPC, visando livrar de “iminente” molestamento, a posse de suas próprias agências, o que poderia acontecer em função de movimento grevista deflagrado por seus empregados, que nesse desiderato poderiam turbar ou esbulhar a posse de seus prédios bancários, constrangendo empregados não aderentes ao movimento paredista, ou mesmo usuários do sistema bancário, impedidos de ingressarem nos respectivos recintos, para trabalhar ou para movimentar contas bancárias.

A despeito da especificidade deste tipo de ação, cuja finalidade é exclusivamente a proteção da posse, de forma “preventiva” no caso do interdito proibitório, isto não retira da Justiça do Trabalho a competência para conhecer dessa espécie de demanda.

Com efeito, numa tal circunstância, não há a menor dúvida de que a turbação ou o esbulho alegado, tem como único fato gerador a greve deflagrada no meio bancário – valendo repisar que o inciso II, do artigo 114 constitucional, atribui à Justiça do Trabalho o conhecimento meritório das “ações que envolvam exercício do direito de greve”, sem qualquer exceção.

O fato simplista de o interdito proibitório visar a tutela da posse, instituto de Direito Civil, só por si, nada quer dizer. A competência trabalhista não mais se pauta pelo contrato de trabalho, pela relação empregatícia, ou mesmo pelo Direito do Trabalho puramente considerado, mas sim pela “relação de trabalho” e, mais importante, por tudo que dela se origine.

Isto deve significar que a competência material trabalhista centra-se, hoje, no trabalho humano e na proteção de seu prestador, pouco importando se para que um tal objetivo seja alcançado deva o juiz do trabalho decidir questões possessórias, acidentárias, fiscais, administrativas. Tudo será plenamente possível, desde que tudo esteja lastreado, em última análise, na prestação de serviços pessoalmente desempenhada.

 

“O Direito do Trabalho não se superporá ao Direito Civil. Os direitos e os deveres dos contratantes continuam os mesmos do Direito Civil, Comercial, Consumidor, etc., pouco importando onde estejam alojados. No fundo de todos eles, há um elo fundamental que os prende a um elemento comum – o trabalho humano. Por isso, foram traduzidos para a competência trabalhista, em caso de controvérsia.” [8]

 Cândido Rangel Dinamarco, discorrendo sobre a conceituação concreta de competência, e para tanto inspirando-se em Celso Neves, explica que tal

 

“… consiste em tomar em consideração uma causa, um recurso ou uma fase procedimental, mediante raciocínios destinados à precisa descoberta do órgão que concretamente, naquele caso e naquela situação, exercerá a atividade jurisdicional. Tal será o juiz concretamente competente. E competência é, quando examinada por essa perspectiva, a relação de adequação legítima entre o órgão e a atividade jurisdicional a realizar (Celso Neves). Só é legítima a relação entre juiz e causa, juiz e recurso, etc., quando do sistema jurídico-processual como um todo emerge como competente esse juiz.”[9]

 

E a aferição dessa “adequação legítima” entre juiz e causa, em determinado caso e em determinada situação, por óbvio que não poderá ser procedida apenas pelos contornos aparentes e superficiais da demanda, e sim em função da efetiva dimensão social que dela se esplende. O contrário seria ignorar a própria essência da Reforma, no que tange à ampliação da competência trabalhista.

Esse parece ser o raciocínio desenvolvido pelo próprio STF, que em corajosa e sensata decisão, em sede de conflito de competência, de número 7.204-1-MG, desvencilhou-se exatamente dessa idéia restritivista, que atrela “matéria civil” a “jurisdição civil”, para entender que a ação postulando reparação de danos morais e materiais decorrentes do acidente de trabalho, é da competência da Justiça do Trabalho, nisso advogando a tese de que a competência trabalhista tem na sua essência o conflito trabalhista, mesmo que latente, e ainda que deva tal conflito ser dirimido à luz da legislação generalista.

Luiz Guilherme Marinoni, criticando as teorias Chiovendiana e Carnelutiana, a primeira dizendo que o juiz faz atuar a vontade concreta da lei, e a segunda inferindo que o juiz cria norma individual para o caso concreto, sustenta que antes de tudo o juiz deve compreender o caso concreto, dimensioná-lo diante do avanço cultural e tecnológico hoje reinante em todos os quadrantes da vida, para só depois empreender jurisdição, solucionar a demanda. [10]

E é disso que se trata aqui.

A reforma que se empreendeu com a EC 45/04, inclusive no que se refere à ampliação da competência trabalhista, exige do julgador uma visão mais perspicaz dos fatos sociais, um efetivo dimensionamento de sua magnitude, para só depois catalogar o caso concreto de acordo com a divisão competencial estabelecida pelo legislador.

5. A teoria da substanciação como elemento confirmador da competência trabalhista nos interditos proibitórios decorrentes de greve.

 É verdade, e não se nega, que a “elaboração dos grupos de causas” a partir dos quais se atribui competência aos diversos órgãos jurisdicionais, baseia-se, em grande parte, nos próprios elementos identificadores da ação, como previstos no artigo 301, § 2º do CPC – partes, pedido e causa de pedir -,[11] o que poderia autorizar a ilação de que, considerada a causa de pedir e o pedido nesse tipo de ação possessória – posse-molestamento-manutenção -, forçoso seria concluir pela competência material da Justiça Estadual, já que não identificado nesse trinômio qualquer dado trabalhista.

Mas aqui é preciso relembrar e até mesmo revitalizar a teoria da substanciação, francamente adotada pelo nosso sistema processual na individualização das ações, identificando na causa de pedir uma clara dicotomia – “causa de pedir remota” e “causa de pedir próxima” -, o que se depreende da expressão “o fato e os fundamentos jurídicos do pedido”, explicitada no inciso III, do artigo 282 do CPC, e que também se aplica às ações possessórias.[12]

Gelson Amaro de Souza explica que a causa de pedir

 

“É outro elemento identificador da ação e pode ser observado sob dois prismas diferentes. A causa de pedir remota e a causa de pedir próxima. A causa remota tem sido considerada o fato ou ato gerador da relação jurídica, tais como o contrato ou o ato ilícito, etc. A causa próxima, que é tida como fundamento jurídico do pedido, consubstancia-se no descumprimento ou violação da obrigação estampada na causa remota.” [13]

 

Quer isto significar, que para a completa determinação e/ou individualização da ação, inclusive para o efeito de estabelecer o juízo competente, é imperioso que se leve em consideração todos os aspectos da causa petendi – próxima ou remota -, e todos os fatos que sejam importantes à sua delimitação.

Cândido Rangel Dinamarco, discorrendo sobre este tema, principalmente sobre a necessidade de a tutela jurisdicional somente ser requerida quando em crise o direito alegado, explica que:

 

“A conseqüência é que a demanda deve necessariamente, além de individualizar fatos e propor seu enquadramento jurídico para a demonstração do direito alegado, descrever também os fatos caracterizadores da crise jurídica lamentada. Numa demanda de proteção possessória, o autor alega os fatos dos quais decorre seu direito a possuir o bem, as razões jurídicas por que tem esse direito e mais os fatos, imputados ao réu, caracterizadores do esbulho, da turbação ou da ameaça que vem a juízo lamentar.”[14] (grifo nosso)

 

Vicente Grecco Filho, citado por Jorge Pinheiro Castelo, é ainda mais explícito ao dizer que:

 

“é importante lembrar que integra a causa petendi como indispensável, em qualquer caso, o fato praticado pelo réu que seja contrário ao direito afirmado pelo autor e que exatamente esclarece o interesse processual, a necessidade de recorrer ao Judiciário. Cada fato diferente possibilita uma nova ação, se perdurar a possível lesão do direito do autor.”[15] (grifo nosso)

 

Transportadas as ponderações de Dinamarco e Grecco Filho para a situação aqui analisada, é de se inferir, forçosamente, que numa demanda possessória, que somente se aflorou por conta de uma questão estritamente trabalhista – a greve do setor bancário -, por óbvio que este fato compõe a causa petendi e, por sua importância, delimita a competência do órgão judicial que dela deva conhecer.

É dizer: a possibilidade de ocupação de uma agência bancária pelos próprios trabalhadores que ali possuem o seu centro de trabalho, motivados por questões puramente trabalhistas e concatenados por um movimento grevista, evidentemente que exibe uma textura jurídica muito diferente, por exemplo, da possibilidade de ocupação dessa mesma agência bancária por produtores rurais, enfurecidos pelos juros escorchantes que lhes são cobrados nos contratos bancários.

Há distinção de “causa petendi”, ao menos no que se refere aos fundamentos jurídicos do pedido – causa de pedir próxima -, daí a distinção de ações e de competências jurisdicionais.

Entendimento em contrário desconsidera o principal fato a ser conhecido pelo julgador – a própria greve e a sua abusividade.

 6. Conclusão

 Em linha de conclusão, nada mais se haveria de acrescentar, senão que rememorar o que já se expendeu nos itens anteriores: houve substanciosa ampliação da competência trabalhista, advinda com a EC 45/04, que no novel inciso II, do artigo 114 constitucional, é absolutamente explícita quanto à competência trabalhista para todos os dissídios decorrentes do exercício do direito de greve, aí incluídos, obviamente, aqueles de fundo possessório, como o interdito proibitório, desde que tenham no movimento paredista a sua gênese.

Entretanto, há ainda uma última questão que, a despeito de colocada no item que cuida do encerramento deste trabalho, em verdade fomenta o debate.

É que questionamentos como o aqui analisado têm chegado ao E. Superior Tribunal de Justiça, órgão incumbido de dirimir conflitos de competência suscitados por instâncias inferiores (CF, art. 105, I, “d”), e não têm merecido o tratamento que deveriam ter, “data venia”.

Interditos proibitórios manejados por empresas bancárias, cujo fundamento jurídico tem em conta, pura a simplesmente, a greve de seus trabalhadores, têm sido lançados à vala comum das ações possessórias, com atribuição de competência material à Justiça Estadual Comum, sem que se reconheça a devida importância do fato social que lhe dá suporte e que, por sua magnitude, mereceu tratamento competencial específico na própria Constituição Federal. [16]

Miguel Reale, ao discorrer sobre a sua “Teoria Tridimensional do Direito”, e ao extremar os seus três elementos estruturais (fato, valor e norma), explica que

 

“onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica etc.), um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor”.[17]

 

Na hipótese específica aqui tratada, tanto o constituinte originário, quanto o constituinte derivado, elegeram a greve como fato social da mais alta importância – classificando-o como direito do trabalhador (artigo 9º), fruto da sociedade plural em que vivemos e do Estado Democrático de Direito que construímos; sendo certo que, para viabilizá-lo, distinguiu a Justiça do Trabalho como o órgão jurisdicional especializado para solucionar os litígios decorrentes do seu exercício (artigo 114, II).

Por isso mesmo não se afigura razoável inferir que, mesmo explícito como foi o legislador, a norma por ele erigida possa comportar interpretação tão dissonante que retire da greve, como direito ou como fato, todo o valor que o legislador constitucional lhe empreendeu, para relegá-lo à condição de mero conflito possessório.

Como dito em linhas passadas, a “Reforma” terá o tamanho ou a “grandeza” que lhe empreenderem os operadores do direito. Para que seu objetivo seja realmente alcançado, para que se obtenha a tão pugnada efetividade da prestação jurisdicional, para que se consagre o direito à “razoável duração do processo” e para que este se converta em mecanismo de fortalecimento do Estado Democrático de Direito, é preciso certo desapego a velhos institutos ou velhos dogmas, não para desprezá-los ou desconsiderá-los, mas sim para reestruturá-los, interpretá-los com certa maleabilidade, certa transigência.

O contrário levará a tão sonhada “Reforma do Poder Judiciário” ao mesmo destino de tantas leis que neste país “não pegaram”, à sua própria ineficácia social, muito pior do que a ineficácia jurídica, à sua condição de mero “parto da montanha”, como referido no início deste artigo.

  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 http://www.stj.gov.br.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2003.

CORALINA, Cora. Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. São Paulo: Global, 2001.

SILVA, Antônio Álvares da. Pequeno Tratado da Nova Competência Trabalhista. São Paulo: LTr, 2005.

COUTINHO, Grejalbo Fernandes e outro (coordenadores). Nova Competência da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005.

COUTINHO, Grejalbo Fernandes e outro (coordenadores). Justiça do Trabalho: competência ampliada. São Paulo: LTr, 2005.

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2004.

SIQUEIRA NETO, José Francisco. Liberdade Sindical e Representação dos Trabalhadores nos Locais de Trabalho. São Paulo: LTr, 2000.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, Vol. II. São Paulo: Malheiros, 2001.

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. Vol. 1. São Paulo: RT, 2006.

CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2002.

MARCATO, Antonio Carlos (coordenador). Código de Processo Civil Interpretado. São Paulo: Atlas, 2004.

SOUZA, Gelson Amaro. Curso de Direito Processual Civil. Presidente Prudente: Data Juris, 1998.

CASTELO, Jorge Pinheiro. O Direito Processual do Trabalho na Moderna Teoria Geral do Processo. São Paulo: LTr, 1996.

 


 

[1] “Pequeno Tratado da Nova Competência Trabalhista”, LTr, 2005, pg. 19

[2] “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, Global, 2001, pg. 98

[3] Nelson Jobim, citado por Álvares da Silva, ob. cit. pg. 19

[4] “Nova Competência da Justiça do Trabalho”, LTr, janeiro/05, pg. 310

[5] “Justiça do Trabalho – Competência Ampliada”, LTr, maio/05, pg. 169

[6] Carlos Henrique Bezerra Leite, in, “Curso”, LTr, 2004, pgs. 124/125

[7] José Francisco Siqueira Neto, in, “Liberdade Sindical e Representação dos Trabalhadores nos Locais de Trabalho”, LTr, 2000, pg. 125.

[8] Antônio Álvares da Silva, in, ob. cit.,  pg. 109.

 [9] In, “Instituições”, Malheiros, 2001, vol. I, pg. 408.

[10] In, “Curso”, vol. 1, “Teoria Geral do Processo”, RT, 2006, pgs. 90/93.

[11] Cintra, Grinover e Dinamarco, in, “Teoria Geral do Processo”, Malheiros, 2002, pg. 234.

[12] “Embora exista polêmica discussão em doutrina e em jurisprudência, não há como afastar a incidência do art. 282, III, do CPC de nenhum tipo de ação. Mesmo das ações denominadas de reais (porque se referem a direitos reais), é mister, à luz da lei processual civil, que o autor diga qual é a origem de seu direito, sendo insuficiente, para os fins do dispositivo em comento, a descrição da situação que o levou a propor a ação.” Cassio Scarpinella Bueno, in, “CPC Marcato”, Atlas, 2004, pg. 857.

[13] In, “Curso de Direito Processual Civil”, Data Juris, 1998, pg. 51.

[14] In, ob. cit., pg. 126.

[15] In, “O Direito Processual do Trabalho na Moderna Teoria Geral do Processo”, LTr, 1996, pg. 196.

[16] “O autor busca impedir manifestações do movimento grevista e assegurar o livre acesso de funcionários e clientes a sua agência bancária. O pedido e a causa de pedir, flagrantemente, não têm natureza trabalhista, inexistindo necessidade de interpretação de acordo trabalhista ou de discussão a respeito da legalidade da greve. Dessa forma, a procedência do pedido dependerá, apenas, da verificação de abusos e de ilícitos civis cometidos pelo sindicato na condução da greve.” – Min. Carlos Alberto Menezes Direito, in, CC 59051-SC, em 11/05/06 - http://www.stj.gov.br.

 [17] In, “Lições Preliminares de Direito”, Saraiva, 2003, pg. 65.

 


 

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

* Levi Rosa Tomé: Especialista em Direito Processual Civil, Professor de Direito Processual do Trabalho nas Faculdades Integradas de Ourinhos e Juiz do Trabalho em Ourinhos-SP

 

 

Sobre a justificativa política da ação popular

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* Daniel Marques de Camargo –

 

DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. v.2, 2.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, vol. 1, p. 424.

O trabalho tem como referencial teórico a obra supracitada, de Cândido Rangel Dinamarco, no trecho que aborda os aspectos político-jurídicos mais importantes relacionados ao instituto da ação popular, e também a necessidade do concreto caráter lesivo do ato que se pretende impugnar.

A ação popular é remédio daquilo que se denomina jurisdição constitucional, que visa proteger interesses transindividuais, aprimorando a defesa do interesse público e da moral administrativa.

A fonte da ação popular é o direito romano. Em Roma já existiam ações que poderiam ser propostas por aqueles que possuíssem interesse pela coisa pública, mesmo considerando que àquela época ainda não estava bem delineada a noção de Estado.

No Brasil, houve a previsão na Constituição de 1934, todavia sem a regulamentação respectiva. A Carta de 1937, por razões sabidas, não abordou o assunto, e a Constituição de 1946 restabeleceu a ação popular, que foi posteriormente regulamentada pela Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965.

O artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal de 1988 estabelece que “Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.

Exige-se, por conseguinte, não somente a qualidade de nacional, mas a de cidadão, ou seja, a pessoa precisa estar na posse de seus direitos políticos. A cidadania implica a nacionalidade, na medida em que todo cidadão é também nacional; nem todo nacional, no entanto, é cidadão. Não podem ser impetrantes as pessoas jurídicas nem as físicas que não disponham de suas prerrogativas cívicas, seja porque nunca as adquiriram, seja porque delas decaíram, de modo provisório ou permanente.

Tem cunho de ação coletiva, porque o interesse diz respeito ao bem geral. A coletividade é a beneficiária da possível anulação do ato impugnado, e o cidadão atua em nome próprio mas por interesse alheio (substituto processual), diretamente relacionado à comunidade. Há autores (Celso Ribeiro Bastos, Luiz Alberto David Araújo, Vidal Serrano Nunes Júnior e José Afonso da Silva) que afirmam que o autor da ação popular age em nome próprio e no exercício de um direito seu, assegurado constitucionalmente, apesar de interessar diretamente à comunidade.

O estudo mostra a importância política da faculdade de pleitear a remoção, judicialmente, da eficácia de atos ilegítimos dos agentes públicos. O membro ativo da sociedade política alça-se à condição de um efetivo participante do fenômeno estatal e do processo que determina os destinos da coisa pública, isto é, do bem da coletividade.

É dada ênfase especial aos aspectos políticos que envolvem a função jurisdicional, e ainda à ação popular como um veículo eficaz de participação política do cidadão na vida da sociedade. Conforme a visão de Cândido Rangel Dinamarco, a tônica central está no âmbito político da ação popular, porque o cidadão é erigido em guardião dos interesses comunitários, legitimado que é para agir em favor da moralidade administrativa e do patrimônio comum.

É certo que o controle dos atos de outro Poder faz parte do sistema que estabelece entre as funções políticas do Estado (Executiva, Legislativa e Judiciária) a independência, a harmonia e especialmente o equilíbrio, um fiscalizando e “contendo” as atividades do outro. No entanto, também é preciso esclarecer que tal controle, no que concerne ao assunto em questão, não pode avançar além do necessário à verificação da legalidade dos atos administrativos, nunca acerca dos aspectos intrínsecos, para tratar da justiça ou não deles, da oportunidade ou não, da conveniência ou inconveniência. O objeto do controle, por conseguinte, há de se restringir aos aspectos legais, porque não se pode substituir a discricionariedade do administrador pela do juiz.

A lei que regula a Ação Popular fala em “anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos”. O entendimento mais razoável é o de que a lesividade pressupõe a ilegalidade. Do ponto de vista político, justifica-se a utilização do instituto para se buscar a integridade do patrimônio que pertence à coletividade (meros vícios não são suficientes à propositura da demanda). No que respeita ao aspecto técnico-jurídico, não se justifica a anulação de ato carregado de vício se disso não resultar dano.

Não é legítima nem cabível a propositura da ação popular quando se está diante de uma mera capacidade abstrata de causar dano hipotético, num futuro incerto e na simples suposição da ocorrência de circunstâncias apenas imagináveis, mas não comprovadas no processo.

Ato lesivo, portanto, é aquele que seja portador concreto de dano efetivo ao patrimônio comum. Não há de se permitir suposições, abstrações, elucubrações nem conjeturas como aptas a ensejar o manejo do remédio jurídico-constitucional.

Daí que se menciona a necessidade do concreto caráter lesivo do ato impugnado. Importa assinalar o entendimento de Hely Lopes Meirelles, que ao discorrer sobre a lesão poder ser efetiva ou potencial (latente), afirma que “ato lesivo é toda manifestação de vontade da Administração danosa aos bens e interesses da comunidade”, e a lesão potencial é aquela que a decisão administrativa fatalmente trará, quando vier a ser objeto de efetiva execução pelos órgãos do Estado. O que não se permite é a lesão hipotética, que poderia gerar uma sentença condicional, proibida pela lei processual civil.

Além disso, se o ato se realizou e não causou nenhum prejuízo, se prejuízo algum foi provado, ou se não foi sequer alegado, a declaração de eventual nulidade corresponderia a uma exagerada postura formal, que toda a moderna doutrina repele.

Cândido Rangel Dinamarco assinala que é incompatível com a garantia constitucional da ação popular, no contexto dos freios e contrapesos constitucionais equilibrados, a censura judiciária do mérito do ato administrativo que não seja causador de efetiva lesão concreta ao patrimônio público.

Referentemente à moralidade administrativa, é possível se vislumbrar com clareza a hipótese de ofensa independentemente de resultar lesão ao patrimônio público. Sob o manto da moralidade administrativa, são impugnáveis os atos que não resultam, necessariamente, num esvaziamento ou numa dispersão de recursos, mas ferem os princípios orientadores da conduta dos administradores.

Enfatizada a característica e a importância política do instituto da ação popular, ligada à participação daqueles que desfrutam dos direitos políticos nos destinos da coisa pública, fazendo com que cada cidadão seja um fiscal do bem comum, importa salientar que a verdadeira cidadania resulta no direito de fazer valer as prerrogativas que defluem de um Estado Democrático.

O exercício da cidadania é fundamental, pois sem ele não se pode falar em participação política dos indivíduos nos negócios do Estado e mesmo em outras áreas de interesse público, portanto não há que se falar em democracia.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
Daniel Marques de Camargo:   Advogado e professor titular de Introdução ao Estudo do Direito, Ciência Política e Teoria Geral do Estado, Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil das Faculdades Integradas de Ourinhos (FIO), Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Especialista em Processo Civil pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP), e Mestre em Direito pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro (FUNDINOPI), em Jacarezinho.

A pena de morte não é a solução

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OPINIÃO –  *Marcelo Di Rezende Bernardes –

De forma recente, por meio da divulgação de uma reportagem que realizou uma pesquisa em segmento da população brasileira, verificamos que mais da metade deste contingente, ávida pelo desejo da vingança, busca que o retorno célere da vetusta regra do “olho por olho”, “dente por dente”, “sangue por sangue”, seja estabelecido imediatamente em nosso país, via da utilização da pena de morte que seria impingida aos acusados de crimes bárbaros e chocantes.

Pois bem, em alusão aos inúmeros relatos de acontecimentos criminosos brutais e que geraram a morte fria de vítimas infantes até, em destaque, o caso onde uma criança foi queimada viva, ou outro tanto quanto pior, quando soubemos que um menino de seis anos foi arrastado por quilômetros em um carro, não restaria dúvida que quando solicitada a opinião da sociedade sobre a imposição de pena de morte, esta tenderia a pender, como de fato o foi, todavia, cremos, de forma errônea, de que esta sanção seria a panacéia para o fim de todos estes atos infames.

Antes de chegarmos ao cerne da questão, para aqueles que não militam na área do direito, deve ser lembrado que a pena capital no Brasil em verdade já existe, conforme está previsto na Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XLVII, que diz que "não haverá penas de morte, salvo em casos de guerra declarada”, ou seja, havendo guerra declarada, a medida pode ser adotada no País, por meio de julgamentos militares.

Temos, por certo, que o recrudescimento da violência em todo o país tem provocado a adoção de medidas legislativas açodadas e dissociadas do objetivo declarado, pois modestamente entendemos que a violência somente será eficazmente combatida, mediante a efetiva apuração dos fatos sob o manto dos princípios constitucionais pátrios, o que nos leva a concluir que o fim da impunidade está diretamente relacionado à queda dos índices de criminalidade.

Deixemos claro aqui que concordamos que seja evidente a sensação de insegurança das pessoas que vivem nos grandes centros de nosso país, todavia, também pensamos que não basta ao legislador tipificar a cada dia mais e mais delitos ou agravar a pena dos já existentes, e sim, compreender as causas desenhadas no fenômeno da violência, para se definir as políticas criminais corretas a serem seguidas.

É bem certo que não há quem não concorde, e aqui estamos nós incluídos, que existem determinadas pessoas que não são dignas de viver em sociedade, seja por um ou vários motivos e que são identificados na materialização de suas diversas atitudes cruéis. Por outro lado, embora admitamos que esta não seja a vontade de maioria, e por isso aqui colocamos o debate, cremos que o banimento perene destas pessoas de nosso convívio, sem executá-los como eles assim fizeram com suas vítimas, poderia ser discutido pela sociedade como alternativa de um novo uso da função da pena, que poderia ser viável na sua natureza perpétua.

Do contrário, isto é, se tão somente analisarmos e anuirmos que o almejado castigo fatal possa vigorar logo em nosso país, temos de igual forma que admitir a franca possibilidade de acontecimento de inúmeros erros judiciais, pois, se condenarmos um acusado, qualquer que seja, à pena capital e, verificada posteriormente a sua condição de inocente, não poderemos remediar em valor algum, a dor dos parentes que terão visto injustamente um ente querido ter sido condenado à uma sanção fatal e imutável.

E no estágio atual que o Poder Judiciário Brasileiro dormita, onde vários equívocos judiciais são noticiados e muitos outros são “abafados”, com certeza, já podemos aquj vaticinar que o surgimento da imposição deste tipo de pena, tal qual o seu próprio nome, já nascerá sem vida, vez que a nosso sentir, esse resultado poderia ser alcançado menos com alterações normativas e mais com o aparelhamento adequado dos órgãos estatais incumbidos da repressão ao crime, pois resta clarividente que cada vez mais, a incerteza quanto à cominação de pena em concreto fomenta a impunidade e assola o convívio social.

A solução, por óbvia há muito tempo, passa pela existência de um Estado muito mais presente e participativo, fornecedor de saúde, educação e, é claro, segurança, esta, que possa inibir a sensação de impunidade vigente em todo o país, onde sabemos que seja indiscutível que não é a dureza da pena que desestimula o bandido, e sim, a sensação de impunidade, seja para crimes de violência imediata, mas principalmente para os que causam danos ainda maiores, como os crimes de colarinho branco e de desvio de verba pública.

Assim, combatendo esta inércia estatal, vinda desde o século passado, ao invés de recrudescer penas, que pelo menos façamos cumprir as sanções já existentes em nossa legislação penal, obviamente sempre tendo respeitados os basilares direitos ao contraditório e à ampla defesa, para que não mais apareçam, vez por outra, aquelas notórias soluções mágicas ou únicas para acabar com o avanço, vigência e especialização de atos criminosos violentos, e que erroneamente nos levam a moldar um estado policial que acredita que a solução será majorar ou criar novas penas que acabarão com a violência.

Dentro deste breve contexto, nosso entendimento é de que a aplicação da pena como mera vingança estatal, deve ainda passar por detida e profunda reflexão de todos, em especial, àqueles que manifestaram de afogadilho ser a favor da sanção mortal, pois, se ainda não conseguimos atingir o elevado estágio do perdão incondicional a quem nos causa dor e sofrimento indizíveis, como bem nos ensinou Jesus Cristo, que ao menos não nos tornemos iguais ou até piores que nossos algozes, retribuindo a violência que nos é endereçada com a concretização de mais violência que, com certeza, em nada irá resolver para arrefecer a barbárie que vige com vigor em nosso país.

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA:

*Marcelo Di Rezende Bernardes: Advogado, Especializado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Católica de Goiás (UCG), Presidente da Associação dos Advogados Criminalistas de Goiás (AACG), Diretor da Associação Brasileira de Advogados, Seção de Goiás (ABA-GO), e Associado Titular do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).

 

 


Mais Poderes: A Estadualização da Lei Penal pode servir a outros interesses

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* Edson Pereira Belo da Silva     – 

 

 Após nova onda de inacreditáveis barbáries (passageiros queimados dentro de ônibus coletivo e de viagem, criança arrastada pelas ruas do Rio de Janeiro até a morte, milícias “ocupando” ou “suprindo” os espaços ou ausência do Estado, perda do controle da população carcerária, ataques as autoridades constituídas, crescimento da corrupção política, etc.), por coincidência, sempre nas principais Unidades Federativas, surgem propostas mirabolantes dos representantes eleitos pelo povo. Aliás, ressalte-se que, sempre em tempos de grave crise na área da segurança pública, criar ou desarquivar “propostas” é a principal atividade dessa classe política. Na verdade, tais “propostas”, em regra, é apenas a multiplicação dos problemas já existentes.

 

Se não bastasse a ânsia desenfreada de se criar novas leis para tentar coibir a criminalidade e reduzir a menoridade penal, no intuito exclusivo de se dar uma resposta apressada a grita da população, notadamente aos eleitores, os aludidos representantes popular lançaram, já há algum tempo, a idéia de que “é preciso alterar à Constituição Federal para dotar os Estados de competência para legislar em material penal ou em segurança pública”, sob o “engenhoso” argumento de que cada uma das 26 Unidades Federativas, mais o Distrito Federal, possui realidades bem diferentes”.

 

Com trágico episódio criminoso ocorrido em 7 de fevereiro de 2007, do qual foi acometido fatalmente o menino João Hélio Fernandes, (1) reacendeu-se a proposta em referência. Agora, tendo na “comissão de frente” ou como “destaque”, o governador fluminense Sérgio Cabral, (2) que deixa transparecer desprezar a função precípua dos parlamentares eleitos no seu Estado para atuar no Congresso Nacional.

É sabido que à União compete, privativamente, legislar sobre direito penal, civil, comercial, trabalho, eleitoral, processual, agrário, marítimo, aeronáutico e espacial, segundo dispõe o artigo 22, inciso, da Carta da República; de modo que, para se alcançar essa hipócrita e utópica idéia, faz-se necessário alterar o texto constitucional mediante a provação da respectiva Emenda. Para tanto, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) precisa ser discutida – intensamente – e votada em cada uma das duas Casas do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada caso obtenha, em ambas, três quintos dos votos de seus respectivos membros (artigo 60, “caput”, e § 2.º, da CF).

 

Vale ressaltar, contudo, que a promulgação da Emenda aprovada é feita pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, observando-se o respectivo número de ordem (artigo 60, § 3.º, da CF). Neste processo legislativo apenas cabe ao Presidente da República apresentar a PEC (artigo 60, “caput”, inciso II, da CF), além é claro de, naturalmente, exercer as influências políticas do cargo que ocupa, tanto em prol como contra a PEC, caso não tenha sido ele que a apresentou, bem assim mobilizar sua bases de apoio no Congresso Nacional conforme seu objetivo.

 

Portanto, o primeiro passo para tornar real a pretensão do atual governador do Rio é apresentar uma PEC ao Congresso; daí em diante é só fazer política no intuito de tentar aprová-la. Qualquer intenção de determinado ente federativo de legislar em matéria que foge de sua competência configura grave ofensa à Magna Carta, cuja qual deve ser reparada por ação direita inconstitucionalidade, com pedido de liminar, ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal (artigo 102, inciso I, alínea “a”, da CF, e Lei n.º 9.868/99).

 

Importante observar, todavia, que a Lei Complementar federal poderá autorizar os Estados-membros a legislar em matéria penal e processual penal (artigo 22, parágrafo único, da CF) relacionada a questões específicas, que tenham tão-somente interesse local, sem que, com isso, venham a modificar matérias fundamentais dos Códigos Penal e de Processo Penal.  

 

Trata-se, na realidade, da conhecida competência legislativa suplementar, que pode ou não ser delegada através da citada norma. Em outras palavras, a competência é privativa da União, como visto, porém ela pode ser delegada mediante lei. Destarte, desde que promulgada a Constituição vigente, o Congresso Nacional ainda não editou Lei Complementar delegando competência legislativa em matéria de sua competência privativa, especialmente a penal; de sorte que continuaram os Estados e Distrito Federal padecendo de legalidade e legitimidade para legislar até a edição de tal norma.

 

Caso a União delegue a mencionada competência legislativa a um determinado ente federativo, por força do princípio da igualdade federativa, é obrigada a estender também aos demais entes federativos a mesma competência legislativa. (3) Se o Rio, por exemplo, obter a “graça” desejada, os outros Estados, certamente, irão reivindicá-la. Não custa enfatizar que as Unidades Federativas, num passado distante, já possuíram competência para legislar em várias outras matérias (ver artigo 63, (4)  da Constituição Federal de 1891).

 

Mas, a nosso pensar, a sobredita mudança do texto constitucional pretendida pelo governador fluminense ou a edição da aludida Lei Complementar federal, além de ser uma tarefa quase impossível, do ponto de vista de reunir e convencer os parlamentares em torno de tal proposta, não deve mesmo prosperar.

 

Com a devida vênia, o atual Chefe do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro ainda não se deu conta de que o Brasil não é os Estados Unidos da América, e vice-versa, por inúmeros fatores, apesar deste último ser considerado uma Federação. (5) O sistema federativo em sua simplicidade, segundo o ensinamento do preclaro Dalmo de Abreu Dallari, consiste numa aliança ou união de Estados, baseada em uma Constituição, sendo que os Estados que ingressam na Federação perdem sua soberania no momento de ingresso, porém preservam uma autonomia política limitada. (6) Aliás, a soberania dos Estados é uma característica própria da Confederação. (7)

 Importar o sistema norte-americano ou tê-lo como um referencial em nosso território é lamentável. Só faltou pensar em consultar os legisladores americanos. O simples fato de cada um dos 50 Estados norte-americano legislar em múltiplas matérias não os tornaram justos, não impediram as aberrações jurídicas e atentados aos direitos civis, etc., cujos quais ainda estão frescos na mente da comunidade jurídica internacional. Note-se, por exemplo, o tratamento desigual dado aos afro-descendentes. A luta racial ainda não terminou naquele país, sendo que em cada Estado a situação é mais ou menos gravosa.

 

Vejamos um caso concreto: nos anos 60, alguns Estados vedavam o casamento ou a união interracial, a ponto de ser uma infração penal. Estas leis estaduais duraram por muitos anos, até que a Suprema Corte Americana, após analisar por quase 8 anos medida judicial que impugnavam àquelas legislações discriminatórias, revogou todas elas. O filme “Quebrando as Regras”, de 1998, baseado em fatos reais, retrata com fidelidade esses fatos.     

 

Quando nos posicionamos contrários à estadualização na norma penal – ou até mesmo outra matéria de competência privativa da União –, voltamos os nossos olhares para a falta de recursos e estrutura dos entes federados e sobremaneira, para a “moralidade política” da grande maioria dos nossos representantes políticos, no Congresso Nacional, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras Distrital e de Vereadores.

 

Essa ausência de moralidade é reconhecida “interna coporis”. Só para lembrarmos, em debate realizado pela TV Câmara, no dia 29 de janeiro último, com os três candidatos à Presidência da Câmara dos deputados, um deles disse com veemência: “Temos que sair das páginas policiais” (“ipsis litteris”). (8)  Se o próprio parlamentar está preocupado com a questão negativa que ele destacou, então o quê deve preocupar o povo brasileiro?

 Os parlamentos dos entes federativos (Estados, Distrito Federal e Municípios), na sua quase totalidade, estão desacreditados pela população e por muitos dos seus próprios membros. O parlamentar, atualmente, é visto com muita desconfiança, em especial por deixar transparecer ter perdido sua principal função: representar o interesse da sociedade. E a crise no Poder Legislativo parece não ter fim.

 

Diante desse quadro político-legislativo desolador, de que forma dar ou delegar competência para determinado ente federado?

 

Não obstante, se em Brasília as coisas vão de mal a pior, em vários sentidos, mesmo com a intensa e eficaz cobertura da mídia, como será então que andam as coisas nos entes federativos de baixa expressão política ou escassa notoriedade no cenário nacional?

 

Em quase todos os Parlamentos dos membros federativos, governadores e prefeitos “fazem à festa”, ou seja, conseguem aprovar o que bem entender, quando e como. “Verbi gratia”: há alguns anos, faleceu na capital federal, de morte natural, um importante deputado baiano (ex-presidente da Câmara), cujo pai dominava politicamente o seu Estado de “fio a pavio”. Para homenagear a memória do filho falecido o citado genitor consegui: (i) alterar o nome de Aeroporto Internacional Dois de Julho (data de independência da Bahia) para o nome do “de cujus”; (ii) criou um Município com o nome do filho, através da Lei estadual n.º 7.619/2000, a qual é objeto da Ação Direita de Inconstitucionalidade n.º 2440, ajuizada perante o STF; (9) (iii) também criou uma Fundação e uma Rodovia com o mesmo nome: (iv) modificou os nomes das principais Avenidas, Ruas, além das escolas, hospitais, etc. Tudo isso para endeusar e eternizar o nome de um pobre mortal, com a total complacência das Assembléia Legislativa do Estado e de inúmeras Câmaras de Vereadores (ambos entes federados), que se encarregaram somente de aprovar todas essas “leis relevantes para a sociedade”. Esses são apenas alguns dos desmandos que, não é de agora, já ocorrem igualmente pelo Brasil afora.

Por outro lado, há que se destacar o estado de miserabilidade da grande maioria dos entes federados, os quais vivem peregrinando por Brasília atrás – de um tostão – de uma verba suplementar ou adicional. O Estado de Alagoas, por exemplo, parece só existir nos mapas brasileiros e na sua Constituição, pois, há muito, está completamente falido, sem sequer poder as necessidades básicas de sua população. O Congresso Nacional já tinha conhecimento disso, tanto que um dos poucos senadores considerados, Jefferson Peres, fez a seguinte observação em seu um dos seus pronunciamentos no Senado: ”O Estado de Alagoas faliu, está literalmente em bancarrota. A receita não é suficiente para pagar a folha de pessoal e o déficit mensal é de R$ 20 milhões”. (10) A corrupção também está infiltrada nas instituições do Estado.

Oportuno ainda ressaltar que, além da notória ausência de recursos financeiros, que impedem a materialização dos direitos sociais (artigo 6.º, da Constituição Federal) de seu povo, quase a totalidade dos membros da Federação padecem com uma política retrograda, ineficiente, nepotista, autoritária, injusta, com serias dificuldades de cumprir e fazer cumprir a lei. É comum ouvir em muitos dos Estados e Municípios a seguinte expressão: “Aqui quem manda é fulano de tal ou a família de cicrano”.

Vale dizer que a maioria desses entes federados possuem uma espécie de “mandatário”, como vimos no exemplo citado no Estado da Bahia, o que indubitavelmente comprometeria – e já compromete – a independência das Assembléias Legislativas, que, assim como no Congresso Nacional, não conseguem punir nem mesmo seus próprios membros.

Com a considerável influência política que sofre os legislativos estaduais, qualquer questão polêmica poderia ser facilmente aprovada, como, “verbi gratia”, o aborto, a descriminalização do porte de substancias ilícitas entorpecentes para consumo próprio, redução da menoridade penal, ampliação da impunidade nos crimes políticos, etc. De maneira que, em cada membro federativo, teríamos uma legislação penal própria e de acordo com as suas realidades ou tradicionalismo regionais.

A “briga de galo” e o “jogo do bicho”, assinale, seriam liberados em muitos Estados, isso por causa do tradicionalismo, no primeiro caso, e da possibilidade de se aumentar à arrecadação, na segunda situação, ao passo que outros entes manteriam a restrição.

Gostemos ou não, a verdade é que a grande parte dos entes federativos é frágil nos aspectos político, econômico, educacional, enfim, carecem de amplo desenvolvimento. E sob essas reais condições como seriam a sua legislação penal ou processual penal, já que convivem com inúmeras diferenças sociais? Como seria, por exemplo, a legislação penal aprovada nos Estados de Roraima e Amapá, antigos territórios (artigo 14, do adct, da CF), em comparação com as Unidades Federativas das Regiões Sul e Sudeste?

Para nós, a uniformidade das legislações básicas (penal, civil, processual, etc.) para todos os entes, como ocorre, possui é claro algumas distorções, as quais, paulatinamente, podem ser corrigidas por que inexiste sistema normativo perfeito; do contrário, liberar a produção legislativa para cada membro da Federação é estabelecer o caos jurídico no país.

É preciso também despertar para o fato de os Municípios – entes federados, artigo 1.º, “caput”, da CF – também almejarem legislar nas matérias em que os Estados, eventualmente, venham adquirir competência, posto prevalecer, consoante frisamos acima, o princípio da igualdade federativa, onde  um ente não pode ser preterido pelo outro no julgo do Estado Federal. Bom, se em relação aos Estados a questão é praticamente impensável, então o que dizer com respeito aos Municípios?                      

O Poder Judiciário dos Estados, por sua vez, a quem caberia aplicar eventual lei penal, ou outras, aprovada pelos entes federativos, “enlouqueceria” com o efetivo controle das mais inusitadas normas jurídicas, haja vista a perda significativa da qualidade dos textos legislativos, por vezes intencional. E essa preocupação não é pra menos, dado que os textos das Leis aprovadas no Congresso (que reúne representantes de todos os membros federativos) apresentam substanciais deficiências, inclusive gramatical.

Sob essas singelas observações, temos que a vontade do governador do Rio de atrair para os Estados mais poderes ou competência, sobretudo para legislar em matéria penal, é tão-somente ideológica e no momento de manifesta comoção social, quando os políticos tentam, sem sucesso e a todo custo, mostrar serviço. Além do que, tendo em conta a elevação do índice da corrupção e das várias outras espécies de crimes, a ampliação ou delegação suplementar de competência para os entes federados poderá servir a outros interesses que não aqueles da população, conforme tem mostrado bravamente a mídia, principalmente.




(1) Noticia publicada no “site” oglobo.globo.com.br, em 07 de fevereiro de 2007.

(2) Ver www.oglobo.globo.com/rio/ancelmo, em 20 de fevereiro de 2007.

(3)Vide” Alexandre de Moraes, “Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional”. São Paulo: Atlas, 2002. p. 680-681.  

(4) “Cada Estado reger-se-á pela Constituição e pelas leis que adotar respeitados os princípios constitucionais da União”. Texto disponível no “site” www.presidencia.gov.br/legislação.

(5) Ver Professor Roberto Romano, em artigo denominado “Passado, presente e futuro da universidade brasileira”, publicado no “Jornal da Unicamp”, Edição 339, 2 a 8 de outubro de 2006, p. 6-7: “Os Estados Unidos são uma federação verdadeira. Há uma grande centralização do poder em Washington, mas há também uma efetiva autonomia dos municípios e dos estados para todas as políticas públicas. O que eles conseguem fazer, positiva ou negativamente, pode servir como modelo, mas tem de ser pensado sempre no critério de que não pode existir apenas uma cópia, como aconteceu com a reforma universitária da ditadura”.

(6) “Elementos de teoria geral do estado”. 11.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 227.

(7) Themostocles Brandão Cavalcanti. “Manual da constituição”. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. p. 62. 

(8) Notícia veiculada no “site” www.congressoemfoco.ig.com.br, em 20/01/2007.

(9) Informação veiculada no www.conjur.com.br, em 07/07/2000.

(10) Pronunciamento completo. Senado Federal. 12/08/1996.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

* Edson Pereira Belo da Silva é advogado, pós-graduado em direito, professor de processo penal, autor de inédita obra jurídica, membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP, articulista, conferencista e palestrante

Contato: edson@edsonbelo.adv.br