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Psicologia como prova judicial

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* Fernanda Obata, Juliana de Almeida Salvador, Mônica Yuri Mihara, Valéria Viana e Viviane Peres Rúbio.  

INTRODUÇÃO 

O presente estudo versa sobre a viabilidade da Psicografia, como meio de prova em nosso ordenamento jurídico. Para a compreensão deste tema tão polêmico, faz-se necessário conceituarmos a palavra “prova”, destacarmos os meios de prova legais, ou seja, admitidos em direito, assim como as chamadas “provas proibidas”, que são defesas em nosso sistema jurídico, e compreendem as denominadas “provas ilícitas” e “provas ilegítimas”.

O trabalho se limitará à seara jurídica, a fim de que aspectos religiosos, morais, subjetivos e científicos não influenciem a análise da questão.

Ressalta-se que a prova psicografada não é disciplinada pelo nosso sistema legal, tampouco é proibida, sendo que todas as aplicações são feitas com base em estudos de cada caso individualmente.

Versaremos neste trabalho sobre os argumentos prós e contra de alguns estudiosos do direito, assim como citaremos alguns casos em que foi utilizada a prova psicografada em favor dos acusados.

Por derradeiro, concluiremos o estudo, colocando quais seriam as conseqüências da prova psicografada no ordenamento jurídico, e como ela deveria ser aplicada, para bem servir ao Estado, e sem que com isso, acarrete prejuízo às partes envolvidas no processo, respeitando os princípios constitucionais.

PROVA

Conceito de Prova: a palavra “prova, segundo o Dicionário Aurélio Básico, é descrita como “aquilo que atesta a veracidade ou autenticidade de alguma coisa; Aquilo que atesta ou garante uma intenção, um sentimento; testemunho, garantia; Atividade realizada no processo com o fim de ministrar ao órgão judicial os elementos de convicção necessários ao julgamento; Cada um dos meios empregados para formar a convicção do julgador; O que leva à admissão de uma afirmação ou da realidade de um fato [….].

MEIOS DE PROVA NO DIREITO

Meio de prova engloba tudo quanto possa ser utilizado, direta ou indiretamente, à demonstração da verdade que se busca com o processo. Logo, temos exemplificativamente a prova documental, testemunhal e a pericial.

Isso porque, vigora no sistema processual o princípio da verdade real, em que não pode haver qualquer limitação quanto à apresentação de provas, sob pena de cercear a convicção do magistrado. A doutrina e a jurisprudência são unânimes em afirmar que os meios de prova elencados nos artigos 185 e 239 do Código de Processo Penal, são meramente exemplificativos, sendo possível a produção de provas distintas daquelas ali enumeradas.

Contudo, há limitações quanto à liberdade de produção de provas, previstas no Código de Processo Penal, isto é, quanto ao estado das pessoas (artigo 155), em que somente se provam mediante certidões, e quando as infrações não deixarem vestígios (artigo 158), em que é obrigatória a realização de exame de corpo de delito; artigo 406, parágrafo  2º, que proíbe a produção de prova documental na fase de oferecimento das alegações escritas, no procedimento do Júri e outras, assim como as provas obtidas por meios ilícitos.

PROVAS PROIBIDAS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO

As provas proibidas são aquelas defesas pelo sistema legal, e compreendem as provas ilícitas e as provas ilegítimas. Para distinguirmos as duas espécies de provas, há de se analisar seus respectivos conteúdos, pois enquanto a prova ilícita fere norma de essência material, como por exemplo, conseguir uma confissão mediante tortura, a prova ilegítima refere-se àquela prova que infringe norma de cunho processual, como por exemplo, a realização de busca domiciliar sem o devido mandado judicial.

Há terceira espécie de prova proibida, não menos importante, derivada de meio ilícito, em que se obtém uma informação verídica, mas sua origem foi ilícita.

PROVA PSICOGRAFADA

Em princípio, vale dizer que a prova é um conjunto de atos praticados pelas partes e por terceiros com a finalidade de produzir um estado de certeza no magistrado que julgará o caso concreto, bem como para ajudar na formação da convicção dos jurados para quando se tratar de casos de competência do Tribunal do Júri.

Ressalta-se que a psicografia é a escrita do espírito através do médium. Desta forma, dentre os meios de prova do processo penal, a prova psicografada é tida como uma prova documental, conforme se depreende do artigo 232 do Código de Processo Penal: “Consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares”.

Assim sendo, quando a lei faz referência a “quaisquer escritos”, entende-se que os escritos psicografados devem ser considerados como documentos.

Ademais, no que concerne à classificação das provas, a prova psicografada quanto ao seu valor é considerada uma prova não plena, visto que por si só não é suficiente para esclarecer todas as dúvidas e, conseqüentemente, insuficiente para a condenação.

Nesse ínterim, nos processos submetidos a julgamento de juízo singular o acolhimento ou não do documento psicografado dependerá mais da formação religiosa do juiz, das suas experiências no decorrer da vida que substanciam seu livre convencimento, que sempre é motivado, do que qualquer outro fato, conforme entendimento de Renato Marcão.

Já em relação ao julgamento dos crimes de competência do Tribunal do Júri (jurados), o acolhimento ou não da referida prova tem uma menor restrição, visto que os jurados não motivam seus votos.

CONTRA A PROVA PSICOGRAFADA

Argumentos de alguns juristas a respeito:

“No sistema jurídico brasileiro não há como normatizar o uso de documento psicografado como meio de prova; seja para permitir ou para proibir: O Estado é laico.

De prova ilícita não se trata.

Se não está submetido ao contraditório quando de sua produção, entenda-se, quando da psicografia, a ele estará exposto a partir da apresentação em juízo.

Como prova documental, a credibilidade de seu conteúdo, em razão da fonte, não pode ser infirmada com absoluta certeza, tanto quanto não pode ser fielmente confirmada, não obstante a existência de relatos a respeito de autorias atestadas por grafologistas (…)”.

( Por Renato Marcão)

“(…) malgrado a legislação ordinária não cogite da existência de pessoa após a morte, evidentemente, que não haverá paridade entre os sujeitos processuais e a defesa (…)

Se o Estado brasileiro é laico, não se pode aceitar como meio de prova fruto de determinada doutrina religiosa, em detrimento de toda uma diversidade de concepções religiosas ou não.

(…) Diante do exposto, forçoso é concluir que a mensagem psicografada caracteriza-se como documento particular, o que não se admite como prova judicial, por afrontar o ordenamento jurídico pátrio, sobretudo no artigo 5º, caput (igualdade) e incisos VI, VIII e LV, da Constituição Federal”.

(Por Roberto Serra da Silva Maia)

 “(….) surge mais um problema prático relacionado com a própria doutrina espírita: a aceitação do que diz o espírito ou o próprio médium como sendo algo verídico e justo. Nesse ponto, alguns juristas espíritas consultados defendem a confirmação da prova, via perícia grafotécnica.

Voltando à doutrina espírita, esta divide os espíritos que se manifestam em diversas classes: daqueles de terceira ordem, denominados espíritos imperfeitos; passando pelos de segunda ordem (bons espíritos); até chegar nos de primeira ordem, os espíritos puros ou superiores. Como afirmar que a informação psicografada foi transmitida por um espírito que se enquadra entre os últimos? Como enquadrar a idoneidade da mensagem transmitida? Como ter certeza que a prova foi transmitida por um espírito de segunda ou primeira ordem? As perguntas formuladas são de difícil resposta (…)”.

                                                                                                                                                      (Por Flávio Tartuce)

A FAVOR DA PROVA PSICOGRAFADA

No que se refere aos meios de prova no processo penal brasileiro, segundo Antônio Carlos Silva Ribeiro, não há limitação, em decorrência do princípio da verdade real. Assim sendo, infere-se que os meios de provas não são exclusivamente aqueles previstos em lei, admitindo-se também as provas inominadas.

Todavia, não são aceitas as provas proibidas, ou seja, as provas ilícitas e ilegítimas. Sendo assim, são provas ilícitas todas aquelas que violarem normas legais ou princípios do ordenamento material e são provas ilegítimas todas aquelas que violarem princípios do ordenamento processual.

Nesse sentido, no que concerne às provas psicografadas, não há no ordenamento jurídico vigente qualquer regra que proíba a apresentação de documento produzido por psicografia, para que seja valorado como prova em processo penal, segundo entendimento de Renato Marcão.

Desta forma, defende-se a validade da mensagem psicografada como prova, mas deve-se levar em consideração algumas cautelas.

A primeira cautela diz respeito à possibilidade de fraude. Para que isso não aconteça deve ser avaliada a credibilidade do médium, sendo inquestionável sua mediunidade psicográfica, como acontece, por exemplo, com Chico Xavier, ao passo que grande parte das pessoas conhecia a seriedade de seu trabalho.

Além do mais, uma segunda cautela a ser tomada é em relação à grafia, para ver se esta corresponde à entidade comunicadora através de um exame pericial. Neste exame serão confrontadas as grafias da mensagem psicografada e a grafia da pessoa quando viva.

Ressalta-se que este exame é respaldado cientificamente, pois são comparados vários hábitos gráficos como, por exemplo, direção, velocidade, ligações, cortes do “t”, pingo do “i”, espaçamento gráfico e muitos outros pontos característicos.

Nesse sentido, “se o perito encontrar número de pontos característicos que permitam proclamar a identificação da autoria de mensagem psicografada, teremos então um laudo pericial expedido por um expert em grafismos”, como menciona Ismar Estulano Garcia.

Em virtude dos argumentos referidos por esta corrente, pode-se afirmar que a psicografia pode ser utilizada como meio de prova judicial, mas com uma certa cautela.

A PARANORMALIDADE NA JUSTIÇA BRASILEIRA

O primeiro caso em que a Justiça brasileira foi chamada a decidir ocorreu no campo do Direito Civil, em 1944, quando a Sra. Catarina Vergolino de Campos, viúva do escritor Humberto de Campos, ingressou em juízo com uma ação declaratória contra a Federação Espírita Brasileira e o médium Francisco Cândido Xavier, exigindo o pagamento de direitos autorais sobre as obras psicografadas por aquele médium e atribuídas a seu falecido esposo. Pretendia a suplicante que se declarasse judicialmente se as obras eram da lavra do espírito de Humberto de Campos e, em caso afirmativo, a quem pertenciam os direitos autorais.

Na hipótese contrária a Federação Espírita Brasileira e Francisco Cândido Xavier deveriam ser passíveis de sanção penal e proibidos de usar o nome de Humberto de Campos em qualquer publicação literária estando ainda sujeitos ao pagamento por perdas e danos.

A ação foi julgada improcedente por sentença prolatada pelo Juiz de Direito, Dr. João Frederico Mourão Russel, sob fundamento de que o Poder Judiciário não é órgão de consulta para decidir sobre a existência ou não de um fato e, na hipótese dos autos, sobre a  atividade intelectual de um morto. Inconformada a autora agravou da decisão, a qual, no entanto, foi mantida por seus jurídicos fundamentos, pelo Tribunal de Apelação do antigo Distrito Federal, tendo sido relator o Ministro Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa.

O nosso Direito Civil, no seu Artigo 10, estabelece que "a existência da pessoa natural termina com a morte" e, por conseguinte, não cogita da continuidade da pessoa física após a morte e praticando atos que gerem conseqüências jurídicas. Ainda que, um dia se prove, cientificamente, a sobrevivência pos-mortem, terá o legislador que decidir se os atos praticados pelo espírito terão ou não repercussão no mundo jurídico.

À luz da Parapsicologia e do direito, a atividade literária ou artística de um agente  no campo da psicografia, psicopictografia e psicomusicografia, é a ele atribuída, embora em razão de sua crença espírita, declare que seus autores sejam escritores, pintores, músicos  falecidos.

No Brasil, psicógrafos e psicopictógrafos, em razão de sua crença espírita, acreditam que as suas produções se originam de intelectuais e artistas desencarnados. Por isso, a eles não se aplica o disposto no Art. 185 do Código Penal, que define como crime, “atribuir falsamente a alguém, mediante uso de nome, pseudônimo ou sinal por ele adotado para designar seus trabalhos, a autoria de obra literária científica ou artística”.



No nosso Direito Penal, há quatro casos cuja decisão judicial que se fundamentaram em comunicações mediúnicas psicografadas por Francisco Cândido Xavier nas quais os pretensos espíritos das vítimas de homicídio inocentaram os respectivos réus:

a) crime de homicídio, ocorrido em Goiânia de Campina, Goiás, no dia 8 de maio de 1976, praticado por José Divino Gomes contra Maurício Garcez Henriques.
b) crime de homicídio, acorrido em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 1º de março de 1980, praticado por José Francisco Marcondes de Deus contra a sua esposa;
c) crime de homicídio, ocorrido na localidade de Mandaguari, Paraná, no dia 21 de outubro de 1982, praticado pelo soldado da Polícia Militar, Aparecido Andrade Branco, vulgo "Branquinho" contra o deputado federal Heitor Cavalcante de Alencar Furtado.

No primeiro caso, o Juiz de Direito da 6ª. Vara Criminal de Goiânia, Dr. Orimar de Bastos, absolveu o réu, sob fundamento de que a mensagem psicografada de Francisco Cândido Xavier, anexada aos autos, merece credibilidade e nela a vítima relata o fato e o absolveu.
            
No segundo caso, o advogado do réu, devidamente autorizado pelo Juiz, entregou aos jurados cópias de três mensagens psicografadas por Francisco Cândido Xavier, onde o espírito da vítima afirmava que o seu esposo a matara acidentalmente. Por unanimidade, o tribunal do júri absolveu o réu, o qual, em novo julgamento, após cinco anos, foi absolvido.

No terceiro e último caso, embora admitida como prova a mensagem psicografada por Francisco Cândido Xavier, na qual o espírito da vítima inocentava o réu pelo tiro que deste recebera, o Tribunal do Júri, por cinco votos a dois, o considerou culpado, tendo o Juiz de Direito, Dr. Miguel Tomás Pessoa Filho, condenado o réu a oito anos e vinte dias de reclusão.

 

CONCLUSÃO 

O presente trabalho trata de um tema polêmico e atual. Isso porque há muitas discussões acerca da possibilidade de utilizar a psicografia como meio de prova judicial, em que alguns a admitem e outros não.

A princípio, vale dizer que não é comum este meio de prova nos processos judiciais, já que poucos são os casos concretos em que esse meio de prova é utilizado.

De acordo com os argumentos apresentados por ambas as correntes no decorrer deste estudo, interessante é que cada um reflita, visto que não há ainda conclusões perfeitas e acabadas quanto a este tema, que envolve o sobrenatural e o imaterial.

Assim sendo, caso se depare com a psicografia num processo judicial, necessário que cautelas sejam tomadas, como exemplo, analisando a credibilidade do médium, bem como se a grafia do “espírito” realmente corresponde à grafia de sua pessoa quando viva através de um laudo pericial.

Ademais, é de extrema importância que o julgador não esteja adstrito ao laudo pericial. Até porque, a psicografia pode ser levada em consideração para a responsabilidade penal, desde que esta não seja a prova principal, mas sim subsidiária e em harmonia com o conjunto de outras provas não proibidas pelo direito.

Em suma, a psicografia, na busca da verdade real, pode ajudar no convencimento, seja do juiz ou dos jurados no Tribunal do Júri aos crimes a que cada um compete, mas desde que em conjunto com outras provas e respeitando os princípios gerais do direito, para que ao fim possa chegar a sentença sem acarretar prejuízo às partes envolvidas no processo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal– 2ª ed.- atualizada e ampliada- São Paulo-Saraiva, 1998.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa.

GARCIA, Ismar Estulano. Psicografia como prova judicial. Revista Jurídica Consulex. 229: 24, 2006.

MAIA, Roberto Serra da Silva. Psicografia como meio de prova no Processo Penal. Revista Jurídica Consulex. 229: 28, 2006.

MARCÃO, Renato. Psicografia e prova penal. Revista Jurídica Consulex. 229: 26, 2006.

RIBEIRO, Antônio Carlos Silva. Curso Preparatório para Exame de Ordem da OAB. São Paulo: Táticos Cursos Jurídicos, 2004.

TARTUCE, Flávio. Utilização da prova psicogrrafada no juízo cível. Revista Jurídica Consulex. 229: 33, 2006.

 

 

REFERÊNCIA BIOGRAFICA

Trabalho realizado no V Congresso de Iniciação Científica, promovido pelas FIO (Faculdades Integradas de Ourinhos), estudo interdisciplinar de tema polêmico e contemporâneo, a saber “Psicografia como prova judicial”, elaborado pelas alunas  do 8º Termo, FERNANDA OBATA, JULIANA DE ALMEIDA SALVADOR, MÔNICA YURI MIHARA, VALÉRIAVIANA e VIVIANE PERES RÚBIO,  sob a orientação do Prof. Luiz Fernando Quinteiro de Souza. – Outubro de 2006

 


Recentemente, em maio de 2006, a imprensa nacional noticiou que, na cidade de Viamão (RS), o Tribunal do Júri absolveu Iara Marques Barcelos, acusada de mandar matar o tabelião Ercy da Silva Cardoso, executado dentro de casa, com dois tiros na cabeça na noite de 1º de julho de 2003, em face de uma carta ditada pela vítima ao médium Jorge José Santa Maria, da Sociedade Beneficiente Espírita Amor e Luz.

Responsabilidade civil do Estado na prestação do serviço de segurança pública

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* Kiyoshi Harada

Sumário: 1. Introdução. 2. Teoria da responsabilidade objetiva do Estado. 3. O conteúdo do § 6º do art. 37 da CF. 4. Responsabilidade civil do Estado por omissão. 5. Responsabilidade civil do Estado e o serviço de segurança pública.

1. Introdução

Na Carta outorgada de 1824 (art. 179, 29) e na Constituição Imperial de 1891 (art. 82) vigorava o princípio da responsabilidade dos funcionários públicos por abusos ou omissões praticados no exercício de suas funções. Imperava o princípio da irresponsabilidade do Estado por atos de seus servidores.

Nas Constituições de 1934 (art. 171) e de 1937 (art. 158) passou a vigorar o princípio da responsabilidade solidária, possibilitando ao prejudicado mover a ação contra ambos ou contra um deles, a critério do interessado.

A Constituição de 1946 (art. 194) adotou o princípio da responsabilidade objetiva do Estado por danos causados por servidores públicos, cabendo ação regressiva contra o agente público causador do dano, em caso de culpa deste.

A responsabilidade objetiva do Estado sofreu alargamento com o advento da Constituição de 1988, que passou a estender a responsabilidade civil objetiva às pessoas jurídicas de direito privado, prestadores de serviços públicos.

De fato, prescreve o § 6º do art. 37 da CF:

‘§ 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa’.

A inclusão das concessionárias de serviços públicos foi uma medida acertada, porque elas fazem às vezes do poder público, na execução de serviços não essenciais do Estado.

2. Teoria da responsabilidade objetiva do Estado

A responsabilidade civil do Estado, por atos comissivos e omissivos de seus agentes, é de natureza objetiva, isto é, prescinde da comprovação de culpa.

Houve uma evolução da responsabilidade civilística, que exige a culpa subjetiva do agente, para a responsabilidade pública, isto é, responsabilidade objetiva. Essa evolução ocorreu em virtude do reconhecimento de que o Estado, além de dispor de força infinitamente maior que a do particular, goza de privilégios e prerrogativas não exercitáveis pelo particular.

Dessa forma, se colocasse o cidadão em posição de igualdade com o Estado em uma relação jurídica processual, evidentemente, haveria um desequilíbrio de tal ordem que comprometeria a correta distribuição da justiça.

A responsabilidade objetiva do Estado comporta exame sob o ângulo de três teorias objetivas: a teoria da culpa administrativa, a teoria do risco administrativo e a teoria do risco integral, conforme preleciona Hely Lopes Meirelles[1].

Pela teoria da culpa administrativa a obrigação do Estado indenizar decorre da ausência objetiva do serviço público em si. Não se trata de culpa do agente público, mas de culpa especial do Poder Público, caracterizada pela falta de serviço público. Cabe à vítima comprovar a inexistência do serviço, seu mau funcionamento, ou seu retardamento. Representa o estágio de transição entre a doutrina da responsabilidade civilística e a tese objetiva do risco administrativo.

Pela teoria do risco administrativo basta tão só o ato lesivo e injusto imputável à Administração Pública. Não se indaga a culpa do Poder Público mesmo porque ela é inferida do ato lesivo da Administração. Basta a comprovação pela vítima do fato danoso e injusto, decorrente de ação ou omissão do agente público.

Essa teoria, como o próprio nome está a indicar, é fundada no risco que o Estado gera para os administrados no cumprimento de suas finalidades que, em última análise, resume-se na obtenção do bem comum. Alguns membros da sociedade atingidos pela Administração Pública, no desempenho regular de suas missões, são ressarcidos pelo regime da despesa pública, isto é, a sociedade como um todo concorre para realização daquela despesa, por meio do pagamento de tributos. Daí porque, pode-se afirmar que o risco e a solidariedade fundamentam essa doutrina, que vem sendo prestigiada, entre nós, desde a Carta Política de 1946. Ela se assenta exatamente na substituição da responsabilidade individual do agente público pela responsabilidade genérica da Administração Pública. Cumpre lembrar, entretanto, que a dispensa de comprovação de culpa da Administração pelo administrado não quer dizer que o Poder Público esteja proibido de comprovar a culpa total ou parcial da vítima para excluir ou atenuar a indenização.

Finalmente, pela teoria do risco integral a Administração responde invariavelmente pelo dano suportado por terceiro, ainda que decorrente de culpa exclusiva deste, ou até mesmo de dolo. É a exacerbação da teoria do risco administrativo que conduz ao abuso e à iniquidade social, como bem lembrado por Hely Lopes Meirelles na obra retro citada. Essa teoria jamais vincou na doutrina e na jurisprudência e, por isso mesmo, nunca foi acolhida pelas diferentes Cartas Políticas de nosso País.

3. O conteúdo do § 6º do art. 37 da CF

Desde a Constituição de 1946 (art. 194) vem sendo adotada a teoria do risco administrativo, combinado com o princípio da ação repressiva.

O Estado responde objetivamente por dano causado por seu agente, em substituição à responsabilidade deste, sem indagação de culpa. E o ônus financeiro da assumpção dessa responsabilidade objetiva é suportado por toda sociedade, que provê os cofres públicos por meio de tributos. Daí a teoria do risco administrativo, que fundamenta toda a doutrina da responsabilidade objetiva do Estado.

Para a caracterização do direito à indenização, segundo a doutrina da responsabilidade civil objetiva do Estado, devem concorrer as seguintes condições:

a) A efetividade do dano. Deve existir concretamente o dano de natureza material ou moral suportado pela vítima. Como se sabe, a Constituição Federal de 1988 consagrou, expressamente, a indenização por dano moral, prescrevendo a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem das pessoas (art. 5º, V).

b) O nexo causal. Deve haver nexo de causalidade, isto é, uma relação de causa e efeito entre a conduta do agente e o dano que se pretende reparar. Inexistindo o nexo causal, ainda que haja prejuízo sofrido pelo credor não cabe cogitação de indenização.

c) Oficialidade da atividade causal e lesiva imputável ao agente do Poder Público. A responsabilidade civil objetiva do Estado, que é distinta da responsabilidade legal ou contratual, decorre da conduta comissiva ou omissiva de seu agente, no desempenho de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las. Indispensável que o agente pratique o ato no exercício da função pública ou a pretexto de exercê-la, sendo juridicamente irrelevante se o ato é praticado em caráter individual.

d) Ausência de causas excludentes. A doutrina da responsabilidade objetiva adotada pela Carta Política está fundada na teoria do risco administrativo e não na teoria do risco integral. Por isso a responsabilidade do Estado não é absoluta. Ela cede na hipótese de força maior ou de caso fortuito. Da mesma forma, não haverá responsabilidade do Estado em havendo culpa exclusiva da vítima[2]. No caso de culpa parcial da vítima impõe-se a redução da indenização devida pelo Estado[3].

Resumindo, o Estado sempre responderá objetivamente pelo dano causado ao particular, por ação ou omissão de seus agentes, desde que injustamente causado.

O Estado, depois de ressarcida a vítima, promove a ação regressiva contra o agente público causador do dano, se houver dolo ou culpa deste.

Em termos de prevenção contra abusos praticados por agentes públicos é salutar a inclusão destes no pólo passivo, sempre que houver imputação de dolo ou culpa a ser comprovada em juízo.

O agente público que viola dever legal passa a ser responsável por essa conduta e, por conseguinte, sujeita-se à sanção. A responsabilidade outra coisa não é senão o estado de sujeição à sanção jurídica.

É preciso frear os comportamentos de agentes públicos que corporificam o Estado, agindo de forma irresponsável, fazendo tábula rasa aos direitos e garantias individuais, principalmente, na área do Direito Tributário. Praticam ilegalidades e abusos cada vez mais freqüentes, levando à ulterior condenação do Estado. Os recursos financeiros para satisfação dessa condenação, como não poderia deixar de ser, saem da própria sociedade de que participa o demandante vitorioso.

Daí a vantagem, até mesmo de ordem financeira, de mover a ação, também, contra o agente público para que, em execução de sentença, apenas ele arque com a indenização pelo ato ilícito cometido.

4. Responsabilidade civil do Estado por omissão

É preciso ter em mente que a doutrina da responsabilidade objetiva do Estado adotada pela Constituição Federal está fundada na teoria do risco administrativo e não na teoria do risco integral. Por isso, a responsabilidade do Estado não é absoluta.

Na responsabilidade do Estado por omissão é preciso que esta omissão seja comprovada. Se alguém foi assaltado, por exemplo, não se pode responsabilizar o Estado alegando falta de policiamento, pura e simplesmente. Diferente seria se o policial estivesse passivamente assistindo à ação do assaltante.

É oportuno lembrar que existem casos em que o princípio da responsabilidade objetiva do Estado não pode ser levado ao extremo, ao ponto de acarretar a responsabilidade automática do poder público pela simples comprovação do nexo causal entre o dano verificado e o comportamento comissivo ou omissivo do agente público.

Nas hipóteses de depredações por multidões, de enchentes e vendavais que venham provocar danos aos particulares, suplantando os serviços públicos existentes, é imprecindível a prova de culpa da Administração, para legitimar a indenização. É o que tem decidido os tribunais[4].

No episódio da inundação do túnel do Anhangabaú, por exemplo, ocorrido alguns anos atrás, onde dezenas de veículos foram danificados, não se pode simplesmente responsabilizar o poder público municipal. Impõe-se a indagação de culpa da Administração Pública Municipal. Até que ponto a omissão do órgão público (não acionamento das bombas ou seu funcionamento deficiente e anormal) foi a causa eficiente da inundação ocorrida? Dado o inusitado volume de águas, qualquer ação do Poder Público seria insuficiente para conter a invasão do túnel pelas águas? Essa situação era previsível? E se era previsível essa situação, não seria o caso de a autoridade competente promover a oportuna interdição do túnel? São indagações que devem ser analisadas e respondidas com segurança para definir a responsabilidade da Administração, de conformidade com o artigo 43 c.c os arts. 186 e 187 do Código Civil.

Nem sempre, os danos são decorrentes diretamente da atuação ou omissão do agente público, o que refogem da hipótese contemplada no § 6º do art.37 da Constituição Federal.

Outrossim, em alguns casos especiais, embora inexistente uma relação direta de causa e efeito entre a conduta do agente público e o resultado danoso, porque este foi provocado por terceiro, a jurisprudência tem responsabilizado objetivamente o Estado. É o que aconteceu, por exemplo, no julgamento do RE nº 109.615-2-RJ, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 2-8-96, p. 25.785:

‘O Poder Público, ao receber o estudante em qualquer dos estabelecimentos da rede oficial de ensino, assume o grave compromisso de velar pela preservação de sua integridade física, devendo empregar todos os meios necessários ao integral desempenho desse encargo jurídico, sob pena de incidir em responsabilidade civil pelos eventos lesivos ocasionados ao aluno.

A obrigação governamental de preservar a intangibilidade física dos alunos, enquanto estes se encontrarem no recinto do estabelecimento escolar, constitui encargo indissociável do dever que incumbe ao Estado de dispensar proteção efetiva a todos os estudantes que se acharem sob a guarda imediata do Poder Público nos estabelecimentos oficiais de ensino. Descumprida essa obrigação, e vulnerada a integridade corporal do aluno, emerge a responsabilidade civil do Poder Público pelos danos causados a quem, no momento do fato lesivo, se achava sob a guarda, vigilância e proteção das autoridades e dos funcionários escolares, ressalvadas as situações que descaracterizam o nexo de causalidade material entre o evento danoso e a atividade estatal imputável aos agentes públicos’.

Tratava-se, no caso de um ferimento causado em uma aluna de dez anos  de idade por uma colega, que portava uma agulha de injeção. A vítima veio sofrer perda total do globo ocular direito, com deformidade traumática permanente e

percentual incapacitatório para o trabalho, de 75%. Embora reconhecendo ausente qualquer parcela de responsabilidade da servidora municipal (Professora da Escola Pública) na eclosão do evento o v. acórdão entendeu irrelevante essa circunstância, porque o Estado responde objetivamente pela falta dos recursos necessários ao funcionamento regular e satisfatório dos estabelecimentos públicos de ensino. Influiu no julgamento o fato de não ter sido prestado socorro imediato à vítima, bem como, a demora da comunicação do evento aos pais da aluna vitimada.

Esse mesmo acórdão cita jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, versando sobre caso análogo, RJTJSP-93/156:

‘Ao receber o menor estudante, deixado no estabelecimento de ensino da rede oficial para as atividades de aprendizado, a entidade pública se investe no dever de preservar a sua integridade física, havendo de empregar, através dos mestres e demais servidores, a mais diligente vigilância para evitar qualquer conseqüência lesiva, que possa resultar do convívio escolar.

E responde, no plano reparatório, se , durante a permanência no interior da unidade de ensino, o aluno vem, por efeito da inconsiderada atitude de colega, a sofrer a violência física, restando-se lesionado de forma irreversível.

A responsabilidade, ai, é inerente à extensão dos cuidados exigidos para a custódia do menor vitimado. E, com respeito ao ente estatal, se filia ao princípio consagrado no art. 107 da CR, configurando-se pela simples falha na garantia de incolumidade, independentemente da culpa concreta de qualquer servidor’.

O mesmo entendimento deve ser aplicado em relação aos prisioneiros vitimados por companheiros de cela, no interior de estabelecimentos prisionais, a menos que se comprove a culpa exclusiva das vítimas ou de terceiros. É dever do Estado manter a incolumidade física da pessoa que se encontre sob sua custódia.

5. Responsabilidade civil do Estado e o serviço de segurança pública

Dispõe o art. 144 da CF:

‘Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I – polícia federal;

II – polícia rodoviária federal;

III – polícia ferroviária federal;

IV – polícias civis;

V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.’

Depreende-se que, por meio dos órgãos enumerados nos incisos I a V, cabe ao Estado manter a ordem pública e garantir a propriedade privada e a integridade física do cidadão.

Na reparação de danos decorrentes da omissão do Estado, além do nexo causal entre o ato omissivo e o dano verificado, impõe-se, a verificação da omissão voluntária do Poder Público.

Se em uma rodovia federal ocorre, por exemplo, um acidente de veículo causado por um animal de porte, que atravessou a pista, indaga-se, cabe responsabilizar o Estado alegando falta de policiamento? Diferente seria a hipótese de o acidente ter ocorrido próximo ao posto policial, onde a presença de animal ou animais nas cercanias da rodovia fosse visível aos policiais.

Outrossim, no exame de responsabilidades decorrentes de movimentos multitudinários, que provocam a intervenção dos órgãos de segurança pública, é difícil precisar o limite de atuação policial a ser exigida para a não caracterização da omissão de prestação do serviço de segurança pública.

Essa é uma matéria que impõe exame caso a caso, à luz do enunciado do art. 144 da CF, que considera a segurança pública um dever do Estado, mas ao mesmo tempo, uma responsabilidade de todos os indivíduos.

Os casos decidido pelos tribunais, envolvendo reparação de danos decorrentes de movimentos multitudinários, demonstra a necessidade de prova da omissão policial e alguns dos julgados exigem a culpa subjetiva de agentes públicos como veremos a seguir.

a) Na ação movida por um cidadão que se viu prejudicado em seu patrimônio por movimentos de multidão em sua propriedade durante a Revolução de 1930, o Supremo Tribunal Federal assim decidiu: ‘Responde o Estado pelos danos verificados no movimento revolucionário de 1930, pela falta de garantia e assistência policial aos particulares’[5].

b) O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, também, sufragou a mesma tese: ‘Responsabilidade civil do Estado – Danos causados durante a Revolução de 1930 – Depredação de jornal, cometida pelo povo – Indenização a cargo do Estado, por força dos arts. 15 e 159 do Código Civil.[6] Desde que o Estado falhe na sua missão de garantir à propriedade particular, não empregando os meios ao seu alcance para obstar assaltos ao povo, torna-se, por omissão, responsável pelos danos causados’ [7].

Interessante notar que mesmo após o advento da Constituição de 1946, na qual ficou consignada a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, a jurisprudência tende a adotar a tese da culpa dos agentes públicos na manutenção da ordem pública, em casos de movimentos de massa:

c) ‘O Estado não responde civilmente por danos causados por multidão, a não ser que se prove ter havido, de sua parte, omissão na falta de diligência’[8].

d) ‘Sem prova de que o Estado foi omisso, tardio ou desidioso na prestação de garantias, nos esforços para o restabelecimento da ordem, não pode ser compulsado a ressarcir os prejuízos resultantes de depredações feitas pela população a estabelecimento comercial’[9].

e) ‘Responsabilidade civil do Estado – Fábrica invadida e depredada por piquete grevista composto de operários estranhos a seus quadros – Providências não tomadas pela polícia no sentido de impedir manifestações grevistas, não obstante tempestivamente notificada das ocorrências – Responsabilidade do Poder Público pelos danos verificados – Ação de indenização procedente’[10].

f) ‘Responsabilidade civil do Estado – Movimento Revolucionário – Exigência de prova de culpa das autoridades responsáveis pela ordem pública. A responsabilidade do Estado por atos de seus servidores pressupõe a injúria objetiva e subjetiva. Consiste esta na culpa do agente da administração pública’[11].

O exame da jurisprudência permite concluir que, ao teor do art. 144 da Constituição Federal, o particular não está imune de responsabilidade no que tange à segurança pública.

Na ocorrência de movimento multitudinário capaz de prejudicar seu patrimônio ou sua integridade física compete-lhe avisar os órgãos de segurança pública, para a devida proteção. Se o movimento eclodiu de repente, ou em diversos lugares ao mesmo tempo, como no caso dos recentes ataques comandados pelo PCC, parece-nos que é de se aplicar a tese da irresponsabilidade do Estado, eximindo-o da obrigação de indenizar os particulares eventualmente prejudicados.

Sabemos que nesse lamentável episódio, onde houve embate entre a facção criminosa e as forças de segurança, algumas agências bancárias foram depredadas e muitos ônibus foram incendiados. Só que esses fatos ocorreram em diversos locais da cidade de São Paulo e até de forma simultânea. Não seria razoável exigir que a polícia estivesse presente em cada rua e em cada esquina, vinte e quatro horas do dia.

Mas, se provocado pelo interessado, cabe a Justiça decidir se, ante os fatos narrados e comprovados, houve ou não omissão policial. O certo é que, no caso, não se poderia aplicar literalmente o disposto no § 6º do art. 37 da CF alegando omissão do Estado, sem indagação de culpa subjetiva dos policiais encarregados da segurança pública.

Notas de rodapé

[1] Direito administrativo brasileiro, 20ª ed. . São Paulo: Malheiros,., 1995, p. 556.

[2] RTJ-99/1155; RTJ-91/377.

[3] RTJ-55/50.

[4] RDA-255/328; 259/149; 297/301; RT-54/336; 275/319.

[5] RDA-5/155-159;

[6] O art. 15 corresponde ao art. 43 do atual Código Civil e o art. 159 corresponde aos artigos 186 e 187 do novo código.

[7] RT – 178/123-124.

[8] RT – 251/299-300.

[9] RF–187/155-120.

[10] RT–297/301-303.

[11] RDA–10/128-137.

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
 
KIYOSHI HARADA: Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Membro do Conselho Superior de Estudos Jurídicos da Fiesp. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
Email:kiyoshi@haradaadvogados.com.br
site: www.haradaadvogados.com.br

A penhora do faturamento de empresa devedora e as conseqüências do ato na execução trabalhista

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  * Paulo Mazzante de Paula

Sumário:  1. Introdução. 2. A ordem legal. 3. O critério da proporcionalidade e os demais princípios. 4. A função social e o interesse coletivo. 5. A prisão civil. 6. Conclusão.

1. INTRODUÇÃO   

É possível a penhora de percentual do faturamento da empresa na execução trabalhista, visto que há fundamentação legal na Lei das Execuções Fiscais, na recente alteração do Código de Processo Civil e, finalmente, na orientação jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho.

O artigo655, inciso VII e § 3º, do Código de Processo Civil, foi alterado pela Lei nº 11.382, de 06 dezembro de 2006. Aliás, a Lei das Execuções Fiscais, artigo 11, § 1º, já autorizava a penhora sobre estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, advertindo que “excepcionalmente, a penhora poderá recair sobre estabelecimento comercial, industrial ou agrícola…”.

O Tribunnal Superior do Trabalho, Seção de Dissídios Individuais 2, sobre o assunto editou a orientação jurisprudencial nº 93, no sentido de que “é admissível a penhora sobre a renda mensal ou faturamento de empresa, limitada a determinado percentual, desde que não comprometa o desenvolvimento regular de suas atividades.”

Segundo Sérgio Pinto Martins[1], as orientações jurisprudenciais ainda não são súmulas, ou seja, “elas devem sofrer um processo de maturação, de verificação da sua redação, de discussão, para, posteriormente, se o TST assim entender, transformarem-se em súmulas. A Orientação Jurisprudencial será, portanto, a súmula de amanhã”.

É cediço que, no caso de omissão, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, desde que compatível com o texto consolidado, nos termos do artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho.

Segundo o autor Cleber Lúcio de Almeida[2], “à execução trabalhista, portanto, são aplicáveis a CLT, a legislação processual trabalhista, a Lei n. 6.830/80 e o CPC, nesta ordem”. E complementa: “A prevalência da Lei n. 6.830/80 sobre o CPC na definição das fontes subsidiárias do processo de execução resulta do fato de que o art. 889 da CLT, sendo norma própria do processo de execução, sobrepõe-se ao art. 769 da CLT, que é norma relativa ao processo de conhecimento”.  

A aplicação do dispositivo legal é desafio ao Magistrado, que deverá analisar o caso com cautela e reflexão, visto que continua em vigor o artigo 620 do Código de Processo Civil, no sentido de que, “quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”.

O Juiz do Trabalho deverá analisar os princípios da efetividade, economia processual e da celeridade, e confrontá-los com o princípio geral da menor onerosidade ao devedor.

A Constituição Federal, ademais, tem como princípio constitucional a livre iniciativa (art. 1º, inciso IV) e assegura o livre exercício da atividade econômica como princípio geral (art. 170 e § 1º), o que deverá ser dosado pelo Juiz por ocasião da aplicação da medida.

O crédito trabalhista goza de superprivilégio, nos termos dos artigos 186 do Código Tributário Nacional e 100, § 1º-A, da Constituição Federal, porém não poderá ferir o direito líquido e certo do devedor de sofrer o pedido de execução pelo modo menos gravoso possível, inclusive com a indicação de bens passíveis de penhora, aptos para a garantia da satisfação da execução trabalhista, nos termos dos artigos 652, § 3º, e 668 do Código de Processo Civil.

O Superior Tribunal de Justiça[3], por fim, restringe a penhora sobre o faturamento da empresa, exigindo os seguintes procedimentos essenciais: a) a medida é de caráter excepcional; b) inexistência de outros bens; c) esgotamento de todos os esforços na localização de bens; d) observância dos artigos 677 e 678 do Código de Processo Civil; e) fixação de percentual que não inviabilize a atividade econômica da empresa.

2. A ORDEM LEGAL

A ordem legal da gradação da penhora contida no artigo 655 do Código de Processo Civil pode, inicialmente, parecer que é absoluta, pois se trata de condição para a validade da nomeação de bens feita pelo devedor para a penhora, nos termos do artigo 656, I, do Código de Processo Civil.

Os artigos 620 e 655, ambos do Código de Processo Civil, entretanto, serão analisados de forma harmônica, evitando-se prejuízo, como, por exemplo, eventual quebra da empresa e, principalmente, primando pela continuidade da atividade da empresa devedora.

O Superior Tribunal de Justiça opinou sobre a gradação dos bens sujeitos à penhora, ressaltando que se trata de “norma que há de ser interpretada em consonância com o princípio geral que se acha consagrado no art. 620 do CPC”[4].

Portanto, excepcionalmente, a ordem legal pode ser relativa para a nomeação do bem à penhora, observando sempre a forma menos onerosa para o devedor. 

A doutrina confirma que “a gradação legal estabelecida para efetivação da penhora não tem caráter rígido, podendo, pois, ser alterada por força de circunstância e atendidas as peculiaridades de cada caso concreto, bem como o interesse das partes litigantes”[5].

O extinto 2º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo[6] decidiu que “na efetivação da penhora incumbe ao magistrado aferir as circunstâncias de cada caso concreto e decidir com cautela e reflexão, mormente porque as normas instrumentais não possuem caráter absoluto, a ponto de afetarem a sobrevivência de uma firma ou o normal desenvolvimento produtivo do patrimônio do devedor”.

O Tribunal Regional do Trabalho da 2º Região[7] concedeu liminar para reduzir a penhora do faturamento da empresa Companhia Docas do Estado de São Paulo – Codesp para o percentual de 10% (dez por cento), argumentando que “a penhora em dinheiro, conquanto seja o primeiro na ordem de preferência legal, deve ser efetuada com cautela nas hipóteses de possibilidade de inviabilizar o regular funcionamento da empresa, principalmente quando coloca em risco o pagamento dos salários dos demais funcionários”.

O devedor, por outro lado, deverá ofertar bens para a garantia da dívida trabalhista, ou solicitar a substituição dentro do prazo legal, sob pena de sofrer a excepcional medida da penhora sobre o faturamento da empresa. Não demonstrada a existência de outros bens, deverá ser aplicado o ordenamento legal, conforme previsão do artigo 882 da Consolidação das Leis do Trabalho.

O executado poderá requerer a substituição da penhora por outros bens e ainda por fiança bancária ou seguro garantia judicial, conforme autorizam os artigos 668, 656, § 2º, e 668, todos do Código de Processo Civil, com alteração também introduzida pela Lei nº 11.382, de 06 de dezembro de 2006.  

3. O CRITÉRIO DA PROPORCIONALIDADE E OS DEMAIS PRINCÍPIOS

O autor Walter Claudius Rothenburg[8] explica que “a composição (modulação) de princípios guia-se pela proporcionalidade (razoabilidade)” e também “rigorosamente falando, talvez a proporcionalidade não seja um princípio autônomo, mas um critério”.

Portanto, o critério ou, então, o princípio da proporcionalidade impede excessos na aplicação dos princípios constitucionais e permite a valoração e a ponderação das regras e princípios aplicados ao caso judicialmente analisado.

O Tribunal Regional Federal[9] proferiu decisão diante do princípio da proporcionalidade e do artigo 620 do Código de Processo Civil, no sentido de que se trata de medida excepcional, “que somente deve ser requerida pelo credor e deferida pelo juiz na hipótese de se demonstrar à inexistência de outros bens que possam suportar os atos materiais de execução”.       

O artigo 8º da C.L.T. determina que a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais, decida com base nos princípios gerais do direito, especialmente do direito do trabalho, impedindo que o interesse particular prevaleça sobre o interesse público.

Nos termos do artigo 765 da C.L.T., é princípio do direito do trabalho o da celeridade do processo, determinando que o Magistrado fiscalize o andamento rápido das causas.

Referido princípio tem ligação estreita com o princípio da economia processual, conforme a lição de Humberto Theodoro Júnior[10], no seguinte sentido: “Toda execução deve ser econômica, isto é, deve realizar-se de forma que, satisfazendo o direito do credor, seja menos prejudicial possível ao devedor”.

A lição, aliás, vem retratada no próprio artigo 620 do Código de Processo Civil, que retrata um direito subjetivo do executado de responder pelo modo da menor onerosidade. Trata-se, portanto, de uma norma cogente, ou seja, um direito do executado e não uma mera faculdade judicial.                        

Por outro lado, o processo do trabalho tem que buscar a efetividade do recebimento do crédito trabalhista, aplicando-se, no caso de dúvida, o princípio mais favorável ao empregado e, também, atentando para o risco assumido pelo empregador no desempenho da atividade econômica (art. 2º da C.L.T.).

4. A FUNÇÃO SOCIAL E O INTERESSE COLETIVO             

O Juiz tem o livre convencimento e a ampla liberdade na direção do processo, motivo pelo qual deve utilizar-se de certos dados e informações para decidir sobre a penhora, ainda mais quando se trata de medida extrema. Ora, no caso da penhora de percentual do faturamento da empresa, deverá analisar o balanço da própria executada, evitando excessos ou prejuízos irreparáveis.

Trata-se de medida extrema, visto que o faturamento constitui capital de giro do devedor, fundamental para o desenvolvimento regular da empresa, como, por exemplo, produção, salário, matéria prima, encargos, débitos etc..

Evidente a função social da empresa na vida comunitária, razão por que o Magistrado deverá analisar a situação da coletividade interessada e não a de um trabalhador isolado. Ademais, “o direito do trabalho tem marcada função social, o que influi na sua interpretação, de modo que ao operar a norma o intérprete deve considerar os fins sociais a que aquela se destina, traço presente em todo direito, mas que se acentua no direito do trabalho”[11].

O autor Jorge Luiz Souto Maior[12] afirma que, para tanto, “há de se identificar a existência de interesses que não representam o interesse de qualquer parte, mas da sociedade como um todo: o interesse público”.

O Juiz é responsável pela consolidação da referida justiça social e a jurisprudência complementa o assunto: “Na efetivação da penhora incumbe ao Magistrado aferir as circunstâncias de cada caso concreto, e decidir com cautela e reflexão, mormente porque as normas instrumentais não possuem caráter absoluto, a ponto de afetarem a sobrevivência de uma firma ou o normal desenvolvimento produtivo do patrimônio do devedor”[13].

5. A PRISÃO CIVIL 

No caso de a penhora recair sobre estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, o Magistrado nomeará administrador de empresa ou de outros estabelecimentos, na forma do artigo 677 do Código de Processo Civil.

Por outro lado, efetivada a penhora de percentual do faturamento da empresa, deverá ser nomeado depositário, de preferência um dos diretores,  para o cumprimento futuro da decisão judicial (artigos 665, inc. IV, c.c. 666, ambos do CPC).

O encargo de depositário poderá ser recusado pelo sócio-proprietário, ora devedor (Súmula 319 STJ), porém, se aceitou o encargo tem de cumpri-lo, independentemente da ação de depósito, bem como sob pena de prisão, que será decretada no próprio processo (Súmula 619 STF).

A questão da prisão civil não é pacífica, pois o artigo 5º, inciso LXII, da Constituição Federal, assegura que não haverá prisão civil por dívida[14], sendo concedida ordem de habeas corpus, com base na emenda nº 45/04 e no Pacto de São José da Costa Rica, levando-se em conta que “a infidelidade do depósito de coisas fungíveis não autoriza a prisão civil”[15]. 

A jurisprudência complementa: “Não se caracteriza a condição de depositário infiel quando a penhora recair sobre coisa futura, circunstância que, por si só, inviabiliza a materialização do depósito no momento da constituição do paciente em depositário, autorizando-se a concessão de habeas corpus diante da prisão ou ameaça de prisão que sofra”[16].

O devedor poderá recusar o encargo e, nesta hipótese, “é inadmissível a restrição de seu direito de liberdade”[17].

6. CONCLUSÃO

a) A penhora do faturamento da empresa é medida extrema e excepcional, que será deferida pelo Juiz na hipótese de inexistência de outros bens para a garantia da execução, bem como nas hipóteses de leilões negativos e ausentes outros bens para a substituição. 

b) O Superior Tribunal de Justiça[18] tem considerado a penhora de faturamento da empresa como espécie do gênero da penhora de estabelecimento, bem como distinta da penhora em dinheiro.

c) A penhora sobre o faturamento de empresa ficará condicionada ao limite que não inviabilize a atividade econômica da empresa. O percentual, inicialmente, era de 30% (trinta por cento)[19] e, atualmente, cerca de 20% (vinte por cento)[20], 10% (dez por cento)[21] ou 5% (cinto por cento)[22], e não poderá comprometer o desenvolvimento regular da atividade comercial, industrial ou agrícola.

d) A ordem legal prevista no artigo 655 do Código de Processo Civil, no caso vertente, não é absoluta, ou seja, deverá ser analisada com a proporcionalidade prevista no artigo 620 do mesmo dispositivo legal. A doutrina[23]  afirma que o dispositivo legal é verdadeiro “princípio de justiça e eqüidade”, bem como a jurisprudência destaca “a relativização da ordem de penhora estabelecida pelo art. 655, de modo a atender às peculiaridades do caso concreto”[24].

e) A Justiça do Trabalho tem marcada função social e, em tudo quanto a ela se relacione, deverá prevalecer o interesse público.  

f) Caso necessário, o Juiz nomeará administrador de empresa, de preferência um dos diretores, para o encargo de depósito mensal do faturamento do estabelecimento comercial.

g) O encargo de depositário poderá ser recusado pelo sócio.

h) O sócio que aceitou o encargo tem de cumprir integralmente a ordem judicial, sob pena de prisão.

i) A questão da prisão civil não é pacífica.

j) Trata-se de um avanço para a efetividade do processo de execução, proporcionando melhores condições para o recebimento do crédito, o que, utilizado com moderação, será de excepcional eficácia para a consolidação da medida ora discutida.    



[1] Comentários às súmulas do TST, Editora Atlas, 2005, São Paulo,  pág. 01.

[2] Direito Processual do Trabalho, Editora Dey Rey, 2006, Belo Horizonte, p. 869.

[3] Resp nº 912.564, Min. José Delgado, DJ 18.04.07.

[4] STJ, RMS nº 28-SP, 2ª T., rel. Min. Ilmar Galvão, DJU 25.06.90.

[5] Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil, 19ª edição, Forense, Rio de Janeiro, p. 202

[6] AI nº 438.283, 1ª Câmara, Relator Juiz Renato Sartorelli. 

[7] Mandado de Segurança nº 10546.2006.000.02.00-1, Juíza Sonia Maria Prince Franzini, SDI.

[8] Princípios Constitucionais, 2º edição, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor,  2003, p. 41/42. 

[9] 4º região, Agr. 96.04.120565/RS, DJU 2, 05.06.96, p. 38.336.

[10] Curso de Direito Processual, 19º edição, Rio de Janeiro, Forense, 1997, volume II, nº 637, p. 13.

[11] Iniciação ao Direito do Trabalho, Amauri Mascaro Nascimento, 32ª edição, São Paulo, LTr, p. 63.

[12] O Direito do Trabalho como Instrumento de Justiça Social, São Paulo, LTr., p. 225.

[13] AI nº 438.283, 1ª câm., Rel. Juiz Renato Sartorelli, ac. 18.09.95, in JUIS – Saraiva, nº 5, 3º  trimestre/96.

[14] Acórdão nº 01855-2002-000-15-6, TRT/15ª região, Juiz Relator designado Luiz Carlos Cândido Martins Sotero da Silva.

[15] RHC 18799, STJ, Ministro José Delgado, DJ 08.06.2006.

[16] TST, SDI-2, Orientação Jurisprudencial 143.

[17] TST, SDI-2, Orientação Jurisprudencial 89.

[18] 2ª turma, Resp. 123.469, SP., Rel. Min. Adhemar Maciel, DJU 1 de 29.09.97, p. 48.170.

[19] RT. 695/107,  j. 25.8.92.

[20] AgRg no Resp 804656/RJ, Min. Francisco Falcão, 1ª turma, DJ 10.04.2006.

[21] Resp 802035/PR, Min. Humberto Martins, 2ª turma, DJ 24.11.2006.

[22] Resp 885777/RJ, Min. José Delgado, 1ª turma, DJ 02.04.2007.

[23] Código de Processo Civil interpretado, coordenador Antonio Carlos Marcato, Jurídico Atlas, São Paulo, 2004, p. 1844. 

[24] STJ. RMS 47, 2ª turma, Min. Carlos Velloso, DJ. 21.5.90, p. 4427.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Paulo Mazzante de Paula é Advogado, Especialista em Direito Processual Civil, Mestrando pela Unespar/Fundinop e Professor de Direito do Trabalho das Faculdades Integradas de Ourinhos (FIO): e-mail: pmp.adv@globo.com

Constituição e Democracia: Um Paradoxo Necessário*

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* Leonardo Freire Pereira

 

Na verdade, o tema dessa palestra é muito mais abrangente do que o título propriamente dito. Nosso objetivo, portanto, é abordar uma série de polêmicas e controvérsias que cercam o estudo do Direito Constitucional nos dias atuais e questionar, inclusive, o valor da Constituição em nossa sociedade.

 

Todos os temas, acredito eu, são bastante instigantes e, certamente, não serão resolvidos nesse encontro. Eu venho muito mais para questionar alguns dogmas do direito constitucional do que pra dar quaisquer respostas conclusivas.

 

Constituição, democracia, direitos fundamentais, poder constituinte, poderes constituídos, separação de poderes, direito, sociedade, justiça, enfim, é esse mix de dogmas, que tem como cerne a constituição e a democracia, que serão tratados nesse curto espaço de tempo.

 

Vamos a eles: a Constituição é a lei fundamental e suprema de um Estado, e a democracia é o governo da maioria. Pois bem, deixando o simplismo do conceito de lado, vamos analisar alguns aspectos realmente pertinentes à Constituição e à Democracia.

 

Para analisar o sentido da democracia, voltamos à Antiguidade e à tipologia aristotélica das formas de governo. A classificação de Aristóteles inovou porque partia não só de critérios quantitativos, mas também qualitativos, concluindo que o governo podia ser exercido de maneira legítima ou ilegítima, por um único governante, por um grupo de governantes ou ainda por todo o povo.

 

Formas legítimas

(buscam o interesse geral)

Formas ilegítimas

(buscam o interesse de alguns)

Governo de um sóMonarquiaTirania
Governo de uma minoriaAristocraciaOligarquia
Governo de todosRepúblicaDemocracia

 

Reparem que, para a maioria dos tradutores, a democracia era a mais desvirtuada das formas de governo, pois representava a idéia de um governo de todos, mas na verdade esse “todo” beneficiava apenas alguns. Por conta disso há tradutores que classificam de demagogia essa forma de governo. Aristóteles, aliás, criticava esse governo de todos porque para ele “havia homens para os quais o mais digno era ser escravo”. Uns nasceram para governar, outros para ser governados.

 

Essa nota introdutória foi importante para amadurecer as idéias que vão despertar mais adiante, e, a partir de agora, apenas para efeito de entendimento do conteúdo da apresentação, vamos aceitar a democracia como a simples “regra da maioria”.

 

Agora, para tratar da Constituição, volto aos primeiros delineamentos do constitucionalismo, que foi um movimento político e jurídico que surgiu com as idéias iluministas do século XVIII – indivíduo, razão, natureza, progresso e felicidade – com objetivo de estabelecer, no dizer de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “governos moderados, limitados em seus poderes, submetidos a Constituições escritas" **.

 

Substitui-se o governo dos reis pelo governo das leis. Esse governo moderado, com poderes limitados, pressupunha, além da Constituição, uma teoria de separação de poderes, que teve como precursor John Locke, seguido por Montesquieu, que eternizou seu pensamento n’ O Espírito das Leis.

 

Enfim, uma lei proveniente do poder constituinte – cujo titular é o povo – que prescrevesse as atribuições dos poderes constituídos e, ainda, limitasse as demais leis. Uma lei que, por um princípio de rigidez constitucional, impusesse limites ao próprio legislador.

 

E, para garantir essa rigidez constitucional, num dado momento, surge, também, a necessidade de se criar um Tribunal Constitucional que exercesse o controle de constitucionalidade das leis. A princípio, esse seria o mais “poderoso” dos poderes: o poder que decide em última instância. E não decide em última instância porque é infalível; mas é infalível porque decide em última instância. Após a última palavra do Judiciário, não tem pra quem reclamar.

 

A análise da atual conjuntura política brasileira nos leva a crer que o Executivo é o mais poderoso, o mais importante dos poderes do Estado. Em tese isso não é verdade, pois a maioria das decisões importantes tomadas pelo Executivo estão sob a chancela do Legislativo. Aí vocês vão dizer: O Presidente nomeia os Ministros do STF. É verdade, mas o Senado pode rejeitar o nome indicado. A mesma coisa com os Ministros dos Tribunais Superiores, o Procurador-Geral da República, o Diretor do Banco Central: depende do Senado. “– Ah, mas ele pode celebrar tratados internacionais!” A vigência desses tratados está sujeita à aprovação do Congresso. “ – Ah, ele pode decretar o estado de defesa!” Mas tem que submeter o decreto interventivo, de imediato, ao Congresso. “– Ah, ele pode editar medida provisória com força de lei!” Também tem que submeter de imediato ao Congresso. “– Ah, ele pode decretar o estado de sítio, ele pode declarar guerra, pode celebrar a paz!” Não, nada disso pode sem a anuência do Congresso. Ou seja, as funções do Poder Executivo, se bem analisadas, mostram que o Presidente da República não tem tanta força jurídico-constitucional como parece ter.

 

Pior é o Judiciário, que se curva diante das vontades do Palácio do Planalto. As interpretações do STF, acredito eu, em determinadas matérias têm sido desastrosas, quase sempre em favor do governo. O Ministro Nelson Jobim, isso consta dos anais do STF, já foi até chamado, pelo Ministro Marco Aurélio, de líder do governo no STF, o que representa uma aberração contra o princípio de separação de poderes.

 

Não faltam exemplos dessa afirmação.

 

A medida provisória do apagão, que impunha limites individuais, deslocava competência processual, conferia poder de polícia às concessionárias de energia elétrica, enfim, suprimia uma série de garantias, foi declarada constitucional pelo STF.

 

Recentemente, o TSE editou resolução impondo a chamada verticalização das coligações, agindo como se fosse Poder Legislativo típico. Nesse episódio, chamado a decidir, o STF sequer apreciou o mérito, interpretando o inc. I do art. 101 de forma restritiva. Melhor explicando, o STF entendeu que sua competência se restringia ao controle de constitucionalidade de lei e ato normativo, nunca de resolução.

 

Por outro lado, o mesmo STF, entende que pode exercer o controle de constitucionalidade de emenda à Constituição. Ou seja, nessa situação, interpretação extensiva: as emendas estão entre os atos normativos federais passíveis de controle; naquela, interpretação restritiva ao mesmo dispositivo: resolução não é ato normativo federal.

 

Não vejo lógica nesses posicionamentos, mas como advém da alta cúpula do Judiciário, não há o que fazer com o descontentamento.

 

Mas então, diante dessa “preponderância” de Legislativo e Judiciário, por que o Executivo tem tanta relevância no cenário político nacional. Por que os demais poderes se curvam a ele? Porque o Executivo tem o poder econômico, tem uma estrutura administrativa recheada de cargos e mordomias à sua disposição. E é aí que reside o verdadeiro poder do Executivo. Seu poder de negociação encontra campo fértil na omissão e no entreguismo dos demais poderes.

 

Nossa Constituição foi elaborada, todos sabem, para um sistema parlamentarista. Vou abrir um parênteses, apenas pra situar aquele momento histórico. Em 1987, todas as probabilidades apontavam que o sistema parlamentar seria adotado pela Assembléia, mas no dia da votação, decidiu-se pelo Presidencialismo, contrariando todas as expectativas. Aliás, a rejeição do parlamentarismo foi uma das grandes surpresas promovidas pelo Legislador Constituinte de 1988. É por isso que nós temos uma Constituição presidencialista, com estrutura parlamentarista.

 

Por isso, por conta dessa estrutura, o Presidente da República tem tantas limitações ao exercício do governo. No entanto, as limitações são meramente formais, de fato, o Presidente da República, seja Fernando Henrique, seja Lula ou Serra, não terão verdadeiros limites ao seu poder.

 

E, é por essas e outras que, hoje, a teoria da separação de poderes, com o sistema de freios e contrapesos, que busca o controle de um poder pelo outro, está completamente desvirtuada e isso não é escondido de ninguém.

 

Vamos ao constitucionalismo. Esse movimento, em cerca de três décadas, espalhou constituições escritas por quase toda Europa ocidental. Noutras palavras, e guardadas as devidas proporções, o constitucionalismo surgiu como um modismo de grande vulto. E, aqui, surge o primeiro contraponto entre o constitucionalismo e a democracia, que são as limitações impostas pelo poder originário ao poder reformador.

 

Aquele conceito de que a democracia é a regra da maioria cai por terra, quando observamos as limitações formais à reforma. Com regras específicas para apresentação do projeto e quorum diferenciado para aprovação. Esse quorum qualificado, de três quintos, afronta a regra da simples maioria.

 

Pior são as limitações materiais, que impedem, numa situação de normalidade jurídica, alterações pontuais do texto constitucional, condicionando as futuras gerações, como se o direito não fosse dinâmico.

 

Essas limitações explicitam a preocupação do poder constituinte originário em relação à implosão da Constituição. É o fechamento das portas desse chamado edifício constitucional aos derrotados na Assembléia Constituinte. É um mecanismo de autovinculação, de pré-comprometimento, de cautela em relação às paixões dos governantes que vem pela frente.

 

É como se votos de 1987 valessem mais do que os de hoje.

 

Essa preocupação é, em muitos casos, plausível. No entanto, o modelo constitucional adotado pela Assembléia Constituinte brasileira de 1987, a qual promulgou a Carta de 1988, exagerou nas limitações. Basta observar o § 4o do art. 60 e a quantidade de cláusulas pétreas que podem ser extraídas desse contexto.

 

O Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello diz que nossa Constituição apresenta um verdadeiro porre de direitos, e eu acrescento dizendo que é um porre de direitos pétreos, imutáveis.

 

Pra se ter uma idéia, a Constituição francesa pós-revolução, trazia como única cláusula pétrea a forma republicana de governo, o que representava o fechamento das portas do edifício constitucional aos monarcas absolutistas, tidos como inimigos da Constituição.

 

Ainda hoje, o poder reformador francês não sofre uma enorme quantidade de limitações. Se o mais liberal dos partidos ganha as eleições, governa com um programa liberal; se quem ganha são os comunistas, legislam com leis comunistas. Isso reflete a vontade do povo naquele determinado momento e não dez, vinte, trinta, quarenta, cinquenta, cem anos atrás.

 

Nossa Constituição, por outro lado, limita a própria sociedade. Limita a evolução dos tempos. É bem verdade que, dogmática, reflete o momento histórico em que foi elaborada, ou seja, saíamos de um regime ditatorial e, por conta disso, buscávamos positivar a maior quantidade de direitos possível, como se a simples positivação valesse alguma coisa.

 

Essa situação me permite o atrevimento de dizer que nossa Constituição representa muito mais o medo e a desconfiança do povo à época, do que efetivamente uma carta de direitos.

 

Treze anos depois, a sociedade está contrariada pelos seus próprios super direitos. Eu sou rigorosamente contra, mas pesquisa recente mostra que uma porcentagem considerável da população defende a pena de morte, a prisão perpétua, a pena de trabalho forçado, a diminuição da maioridade penal…

 

Quer dizer, se o parlamento efetivamente refletisse a vontade popular, teríamos cerca de 80% dos votos pela aprovação de emenda que permitisse a prisão perpétua, mas o projeto não poderia, sequer, ser deliberado.

 

Às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, ecoa pelos bastidores políticos especulação sobre a apresentação de dois projetos de emenda. Uma, para que a aposentadoria compulsória dos Ministros do STF fosse aos 75 anos e não mais aos 70. Essa situação abarcaria quatro Ministros, que não mais se aposentariam no curso do próximo mandato presidencial. Com isso, o próximo Presidente da República, que ao que tudo indica não será o candidato oficial do Planalto, não poderia nomear nenhum Ministro. A outra emenda fixaria, no Brasil, o regime parlamentarista, o que esvaziaria os poderes do Presidente eleito.

 

Por mais ilegítimos e casuísticos que esses projetos possam parecer, desde que sigam o procedimento legislativo próprio para apresentação e aprovação, não há como questionar sua validade.

 

Apesar de já estar abordando as cláusulas pétreas da constituição brasileira, convém mencionar um exemplo norte-americano que dá conta dos riscos da rigidez constitucional. Como vocês sabem, uma das maiores dificuldades para sedimentar a união das colônias norte-americanas que formaram os Estados Unidos, era a questão da escravidão. O sul, agrícola, dependia do trabalho escravo; o norte, industrializado, defendia a abolição da escravidão.

 

Entretanto, a manutenção da escravidão foi assegurada por três cláusulas pétreas. De acordo com Oscar Vieira, o art. I, seção 9, proibia ao Congresso declarar ilegal o comércio de escravos até 1808, inclusive por intermédio de emenda; o art. I, seção 2, obrigava a distribuição de representantes pelos distritos, conforme o número de “pessoas livres” em cada Estado e “três quintos de todas as outras pessoas”; o art. IV, seção 2, cláusula 3, obrigava que os estados “devolvessem” os escravos fugitivos, proibindo a descriminalização desta prática.

 

Vejam o absurdo: durante quatro décadas, a escravidão – e não a liberdade – era uma garantia constitucional imutável, uma cláusula pétrea. Depois de 1808 podia abolir, mas até lá, a constituição garantia a segregação racial, o direito de propriedade de um ser humano sobre outro, como cláusulas pétreas.

 

Apesar de muitos entenderem que a legitimidade e a legalidade andam juntas, eu entendo que esses exemplos negam essa teoria. E eu fecho essa distinção com outros dois exemplos que parecem implodir qualquer dúvida a esse respeito: 1o) a lei da anistia das multas eleitorais, que respeitou todo procedimento legislativo ordinário e não possui qualquer vício de forma: é perfeitamente legal, mas ilegítima, por beneficiar os próprios legisladores. 2o) Vamos imaginar que, na véspera do primeiro turno das eleições presidenciais, o candidato do PDT, Anthony Garotinho, atual Secretário de Segurança do Estado do Rio, houvesse desistido da disputa. Muitos eleitores não ficariam sabendo, votariam nele, esses votos seriam considerados nulos e, na porcentagem de votos válidos, o atual Presidente teria sido eleito logo no primeiro turno. Essa situação também seria perfeitamente legal, mas ilegítima. Representaria uma traição ao povo. Daí porque eu aceito com muito bons olhos a distinção entre legitimidade e legalidade.

 

Vamos à democracia. E, pra começar, esqueçam aquele primeiro conceito de que a maioria decide. Aliás, Carl Schimitt, que é um dos mais respeitados estudiosos da teoria da constituição, faz uma séria crítica ao dogma democrático de que a maioria decide.

 

Porque a maioria, de fato, não decide. Uma aristocracia decide e a dita maioria escolhe uma, dentre as opções que lhe são postas.

 

Nós escolhemos o melhor, dentre aqueles que foram previamente escolhidos em eleição fechada, em convenção partidária, na qual a grande massa não tem acesso.

 

Essa é, noutras palavras, a mesma crítica que Weber faz à democracia plebiscitária, que parece ser um mecanismo de democracia direta, onde o povo atua como legislador, mas na verdade é outro engodo. E é engodo por quê? Porque o povo, ao “decidir”, simplesmente diz sim ou não. Ele não participa do chamado jogo parlamentar. Aquela história “eu aprovo o seu projeto, se você aprova minha emenda”; “eu aprovo sua emenda, se você rejeitar as emendas do outro partido”. E assim por diante. No plebiscito não existe isso. É sim ou não, e pronto.

 

Mesmo na iniciativa popular para elaboração de leis, os requisitos do projeto são tão complexos que, ao perceber a movimentação popular, um deputado apresenta o projeto e colhe os louros do clamor popular que impulsionava aquela colheita de assinaturas. Portanto, todos esses mecanismos são extremamente questionáveis.

 

A própria obrigatoriedade do voto, o sistema de representação partidária e a eleição proporcional, precisam ser repensadas, sobretudo a partir da estrondosa votação do Dr. Enéas, que nos obriga a apressar a reforma partidária, com dispositivos que impeçam aberrações. O grande mérito do PRONA foi saber utilizar a legislação eleitoral. Em termos de estratégia, eles foram fantásticos. Mas isso é legítimo? Quem foi eleito com 200 votos acha que é; quem não foi com 130 mil acha que não.

 

Na minha leitura, a democracia busca consagrar o princípio da igualdade por meio de regras meramente formais. E talvez nem exista outra forma de ser democrático.

 

Rui Barbosa, na década de 20, em sua Oração aos Moços, descreve o que entendia ser o verdadeiro sentido da igualdade: Tratar com igualdade aos desiguais é desigualdade flagrante e não igualdade real.

 

Mas quem é igual e quem é desigual? Essa resposta é muito subjetiva. É mais ou menos a mesma coisa que dizer que o meu direito termina onde começa o seu. Todo mundo já falou ou já ouviu falar isso. Mas onde é que começa o direito de um e acaba o do outro? Essa resposta também pode ser extremamente subjetiva, não há como dar resposta absoluta.

 

Nos Estados Unidos, por exemplo, no famoso caso Hernandez X Nova Iorque – Hernandez era um imigrante mexicano –, e a Promotoria impugnou a presença dos jurados que falavam espanhol, justificando que aquilo era para evitar as divergências entre o que diziam as testemunhas e a tradução dos intérpretes.

 

Como nos Estados Unidos essa disputa étnica é bastante acirrada, os advogados do Hernandez reclamaram a inconstitucionalidade da medida, alegando que o tratamento dado ao réu e aos jurados não era isonômico.

 

A Suprema Corte entendeu que aquela impugnação, acatada pelo Tribunal, não feria qualquer dispositivo constitucional, pelo contrário, evitava tumulto processual, porque todos os jurados iriam prestar atenção no intérprete e não diretamente na testemunha. Se falassem espanhol, alguns prestariam atenção no intérprete, outros na testemunha e aí, poderia surgir um conflito, com várias versões para um único fato.

 

Por isso eu acredito que a igualdade entre os indivíduos vem estabelecida por regras. Eu, enquanto ser humano, sou igual ao Senador Antônio Carlos Magalhães. Porém, ele tem imunidade parlamentar, tem foro privilegiado e só pode ser julgado pela prática de crime comum, se autorizado pelo Senado. Comigo a situação é diferente, mas com todos os Senadores, o tratamento é igual.

 

Se eu resolvo ir ao cinema, me deparo com uma fila enorme, com vários estudantes pagando meia entrada, vejo uma bilheteria preferencial vazia e, por questão de isonomia, quero comprar nessa bilheteria e ainda pagar meia, o bilheteiro vai olhar na minha cara e perguntar: “– Você é aposentado, deficiente ou gestante? Você é estudante? Então você é um idiota que está na fila errada e não tem direito a desconto”.

 

Por que ele vai me dizer isso? Porque a regra da igualdade no cinema é a seguinte: idoso, deficiente e gestante têm fila preferencial; estudante paga meia. Essa é a igualdade, estabelecida pela lei, uma regra formal, mas que abrange a todos, sem favorecimentos pessoais.

 

A mesma coisa em relação ao voto. Quem tem direito de votar no Brasil? Os brasileiros, maiores de dezesseis anos, que estejam no gozo dos direitos políticos. O que nossa Constituição está dizendo para os estrangeiros? Aqui você não dá palpite, se não estiver bom volte para o seu país. Pros adolescentes de quinze anos? Você é criança, política é assunto de adulto. Pros condenados? Vocês são a escória da sociedade, não se metam onde não são chamados.

 

Essa é a regra de igualdade estabelecida pela constituição. É possível viver sem essas regras formais? Positivamente não, senão minha filha de dez meses teria direito de voto. É possível diminuir essas formalidades? Sem dúvida, mas sempre vai haver um grupo excluído. Ademais, a questão não é discutir se a limitação do art. 14 é ou não saudável, o objetivo é apenas mostrar que ela existe, que a democracia não é o governo de todos. É o governo de todos legitimados pelo direito positivo.

 

E essa dificuldade de definir a igualdade ou a democracia, é apenas a pontinha dum iceberg, que esconde tantas outras matérias de difícil interpretação. O que é vida? Ninguém pode definir com certeza absoluta. Então como nos posicionar em questões relativas à eutanásia, aborto, transfusão de sangue nas testemunhas de Jeová?

 

Certa vez, numa discussão acerca da transfusão, um juiz determinou, contrariando a vontade da família, mas acatando prescrição médica, que fosse feita uma transfusão de sangue numa pessoa que era testemunha de Jeová. O fundamento da decisão, o direito à vida.

 

Um tempo depois, a paciente, recuperada, foi até o Fórum, procurou o juiz, e disse que a sua vida tinha acabado no dia em que ele recebeu sangue de outra pessoa, pois no meio religioso no qual ela convivia ele não era mais aceita. Na cabeça dela e de toda sua comunidade religiosa, era mais digno morrer.

 

Outro exemplo: a tortura é crime hediondo. Num Estado de Direito seria inaceitável a oficialização da tortura como forma de obter confissão. Mas imaginem a seguinte situação. Bin Laden, pra usar um terrorista da moda, afirma que armou uma bomba de enorme poder de destruição numa grande metrópole brasileira, e toda a população dessa metrópole vai ser dizimada por força dos efeitos da bomba. A polícia prende Bin Laden. Como é que faz pra descobrir onde está a bomba e proteger toda uma população? Convence o Bin Laden a colaborar com a preservação da raça humana? Tortura? Deixa tudo explodir?

 

Uma questão muito controvertida hoje, diz respeito às inseminações artificiais. O indivíduo que nasce de inseminação artificial tem direitos hereditários, por mais que a mãe tenha isentado o doador de sêmen de qualquer responsabilidade, o direito do nascituro é indisponível. Mas e a situação do doador, que simplesmente contribuiu com a doação de material genético?

 

Na França, com o objetivo de evitar abortos indiscriminados, há uma lei que garante às grávidas que não pretendem ser mães, na acepção do termo, todo tratamento médico, desde o acompanhamento pré-natal até o parto. Quando nasce, a criança é posta à adoção e a mãe tem a garantia de nunca ser identificada.

 

Um indivíduo protegido por essa lei reclamou ao Tribunal Constitucional francês seu direito constitucional de saber quem é sua mãe genética e o pedido foi negado, sob o argumento de que, apesar do direito reclamado ser um direito individual, a insegurança que essa decisão iria causar à sociedade deveria ser considerada para garantir o sigilo da informação, pois se esse precedente fosse aberto, muitas mulheres deixariam de procurar o serviço público de saúde e recorreriam a um aborto clandestino.

 

Como vocês podem ver, nessa dinâmica toda do direito, e aqui eu enfoquei apenas direitos ditos constitucionais, não se pode estagnar. A evolução do direito deve ser considerada. A polêmica é que incendeia as discussões e apimenta o direito.

 

A sociedade evolui e leva consigo o direito. Quem pensa que é o direito que molda a sociedade está enganado. Já na antiga mesopotâmia, os caudeus, que viviam às margens do Tigre e do Eufrates, portanto, numa região fértil e próspera, podia viver da agricultura e da pecuária e era um povo pacífico. Já os assírios, viviam em região montanhosa, onde não era possível cultivar e nem criar nada.

 

Em conseqüência, os assírios eram um povo bárbaro, saqueador, que se caracterizava pela violência e crueldade das suas ações. E, mesmo nessas condições, as leis dos assírios eram muito mais rígidas que as leis dos caudeus. Logo, a sociedade é que molda o direito. Aqui mesmo, vários são os exemplos: após a morte da atriz Daniela Perez, foi promulgada a Lei dos Crimes Hediondos. E o que isso resolveu? Nada, a violência só aumentou de lá pra cá.

 

Pra finalizar, vou deixar no ar mais uma dúvida. Dúvida que, diga-se de passagem, eu procuro disseminar em todas as aulas, seminários, palestras e conferências que participo.

 

O art. 14 da nossa Constituição estabelece como mecanismos de exercício da soberania popular o voto, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Essa soberania está intimamente ligada ao Poder Constituinte, sobretudo num Estado Democrático de Direito, que reconhece o direito de insurreição. Esse direito, ou ainda, esse poder de insurreição, se contrapõe aos poderes constituídos do Estado, e um grande exemplo disso é o voto do Ministro Nelson Hungria, em Mandado de Segurança impetrado em 1956 pelo Presidente Café Filho, que na época, sofria um inconstitucional processo de afastamento.

 

Observem o teor do voto:

 

Contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente valerá uma contra-insureição com maior força. E esta, positivamente, não pode ser feita pelo Supremo Tribunal, posto que este não iria cometer a ingenuidade de, numa inócua declaração de princípio, expedir mandado para cessar a insurreição. Aí está o nó górgio que o Poder Judiciário não pode cortar, pois não dispõe da espada de Alexandre. O ilustre impetrante, ao que me parece, bateu em porta errada. Um insigne professor de Direito Constitucional, doubie do exaltado político partidário, afirmou, em entrevista não contestada, que o julgamento deste mandado de segurança ensejaria ocasião para se verificar se os Ministros desta Corte “eram leões de verdade ou leões de pé de trono”. Jamais nos incalcamos leões. Jamais vestimos, nem podíamos vestir, a pele do rei dos animais. A nossa espada é um mero símbolo. É uma simples pintura decorativa – no teto ou na parede das salas de justiça. Não pode ser oposta a uma rebelião armada. Conceder mandado de segurança contra esta seria o mesmo que pretender afugentar leões autênticos sacudindo-lhes o pano preto de nossas togas. Senhor Presidente, o atual estado de sítio é perfeitamente constitucional, e o impedimento do impetrante para assumir a Presidência da República, antes de ser declaração do Congresso, é imposição das fôrças insurrecionais do Exército, contra a qual não há remédio na farmacologia jurídica. Não conheço do pedido de segurança.

 

O que o Judiciário decidiu foi não decidir, fugir da responsabilidade. O STF, guardião da Constituição, acovardou-se e deixou de guardá-la. Verifica-se, aqui, a manifestação do poder constituinte, que submete Executivo, Legislativo e Judiciário à sua vontade.

 

Imaginem a situação da Argentina, onde o povo se rebelou contra o caos proporcionado pelos poderes constituídos. De que resolveria uma ordem judicial para que os manifestantes retornassem pacificamente para suas casas? Nada.

 

E nesses dois casos, como em quaisquer outros de insurreição, não há mecanismo jurídico, não há constituição, não há cláusula pétrea capaz de restabelecer a normalidade. Por isso podemos dizer que em situações de normalidade social, jurídica e constitucional, as cláusulas pétreas são completamente desnecessárias e, no descontrole institucional, elas são absolutamente inúteis.




 * Transcrição da palestra proferida pelo Prof. Leonardo Freire Pereira na Universidade de Santo Amaro – UNISA.

 

 ** Ferreira Filho, p. 7.

 

Referência  Biográfica

Leonardo Freire Pereira  –  Advogado. Diretor do Departamento de Assistência Judiciária da Prefeitura de Guarulhos. Coordenador do Procon Municipal de Guarulhos. Professor de Direito Constitucional na Universidade Cruzeiro do Sul. Professor de Direito Constitucional e Direito do Consumidor na Universidade Guarulhos. Especialista em Direitos da Cidadania pela Universidade Guarulhos. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutorando em Direito do Estado na Universidade de São Paulo. Membro da Associação Brasileira dos Constitucionalistas – Instituto Pimenta Bueno.

Cidadão, objeto fiscal

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OPINIÃO  * Íves Gandra da Silva Martins –
Diogo Leite de Campos, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em seu estudo “A jurisdicização dos impostos: garantias de terceira geração”, inserido no livro “O tributo – Reflexão multidisciplinar sobre sua natureza” (coordenação minha, Editora Forense, edição de 2007), escreve: “A degradação da pessoa dos cidadãos vai mais longe: estes são vistos como meros objetos da atividade administrativa”. E continua: “O contribuinte deve estar invisível, enquanto a Administração lhe mede os bens e os rendimentos ….” até ao mais pequeno torrão”, parafraseando Lactâncio: “deve mover-se se esta lho exigir; pagar quanto a tal for obrigado. É objeto, não sujeito”.

O estudo jurídico do eminente catedrático coimbrão de renome internacional conclui que só há justiça quando o direito se faz entre iguais, isto é, quando “o Estado é participado, definido e controlado diretamente pelos cidadãos”.

À evidência, nada há de mais distante da justiça tributária do que a política de arrecadação e coação adotada pela República Brasileira, “democrática” mais no nome, do que na realidade dos atos praticados pelos detentores do poder.

De início, impõem, sem consultar o povo, a mais alta carga tributária dos países emergentes, e das mais altas do mundo civilizado, ofertando em troca apenas um plano assistencialista, que muitas vezes incentiva o ócio (bolsa-família) e migalhas de serviços públicos, normalmente de péssima qualidade, como se verifica em boa parte dos setores da saúde e educação.

Em compensação, os tributos pagos pelo “cidadão-objeto” abarrotam os bolsos dos detentores do poder, seja em subsídios diretos, seja nas fantásticas benesses dos benefícios indiretos, que levam parlamentares e membros de outros poderes a gozar de ajudas de custo, verbas de gabinete, carros, empregados, tudo pago pelo Tesouro, sem necessidade de recolher sobre estas verbas imposto de renda, como qualquer “cidadão-objeto” do segmento não-governamental.

Por outro lado, tudo se justifica pela necessidade de apoio dos partidos “políticos”, meros conglomerados de interesses, que mudam de nome, tanto quanto seus senadores, deputados e vereadores eleitos mudam de legendas, como, no século XVIII, os condutores das diligências mudavam de cavalos, em cada entreposto. Quando o governo multiplica Ministérios, Secretarias, cargos de confiança – como as células cancerosas multiplicam-se, nos organismos humanos não tratados-, por mais que se arrecade, a receita é sempre insuficiente para o tamanho de uma máquina esclerosada que não pára de crescer.

Ministérios, Secretarias são disputados não em função da especialidade dos que deveriam servir ao povo, mas em função das verbas que o Presidente lhes destina, para que o seu detentor -aliado de ocasião e conveniência- possa manipulá-las. Estas verbas são resultantes dos tributos pagos pelo “cidadão-objeto”, que nada controla diretamente e vê grande parte delas ser veiculada por medidas provisórias.

Nem mesmo o artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal é respeitado. Leia-se: “LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (grifos meus).

Para que, entretanto, o “cidadão-objeto” não se defenda, apesar de a ampla defesa administrativa e judicial ser garantida pela “Constituição Cidadã” de Ulisses Guimarães, concebem-se, sem qualquer pudor, os mais arbitrários projetos. E o “cidadão-objeto” vê seus direitos decrescerem, numa degradação –na feliz expressão de Diogo Leite de Campos- como nem nos tempos do regime militar se viu. Projetos como execução fiscal sem participação do Judiciário; de redução de direitos de defesa, nos Conselhos de Contribuintes, perante o qual o advogado do “cidadão-objeto” não pode participar das sessões secretas, mas o advogado dos detentores do poder tem presença garantida; vinculação das decisões dos conselheiros ao teor das Instruções Normativas emanadas da administração superior, que proíbe a apreciação de matéria constitucional; desobediência dos agentes da Secretaria da Receita Federal, que autuam profissionais liberais e outros trabalhadores, que se organizam em sociedades fundamentados na garantia constitucional de livre associação, reiterada no art. 129 da Lei 11.196/05 (que converteu a Medida Provisória do Bem), além de muitas outras ações deste jaez – demonstram que, na República Fiscal Brasileira, caminhando para a plena ditadura do Fisco, o cidadão é mesmo, e cada dia mais, um mero objeto, um “patrimônio personificado”, que deve ser confiscado em prol de se manter o alto nível de subsídios e mordomias dos detentores do poder.

Não sem razão, o Brasil cresce pouco. Continua, apesar de toda a sua potencialidade, recebendo poucos investimentos estrangeiros, se comparados com outros emergentes de nosso nível, e corre o risco, ao menor sintoma de reversão do “boom econômico” mundial, de mergulhar numa crise sem precedentes, em que as empresas desaparecerão sufocadas pelo peso da Administração esclerosada, cujos feitores estão ai para pisotear o “cidadão-objeto”.

Pergunto-me: com os novos anteprojetos redutores dos direitos do contribuinte e que instituem arrecadação arbitrária para aumento do nível impositivo, para onde vamos? Transformar-nos-emos em “escravos-objeto”?


DADOS BIOGRÁFICOS
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS:  Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária – CEU.
Site: www.gandramartins.adv.br

Planos econômicos. Reposiçãodos índices expurgados

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  * Felícia Ayako Harada

Nestes últimos dias fomos consultados por pessoas desesperadas para obtenção de reposição de expurgos inflacionários ocasionados pelos mirabolantes planos econômicos que assolaram este país e que excluíram índices no cálculo da correção monetária nas cadernetas de poupança.

O que hoje se questiona em juízo é a obtenção da correção monetária pelos índices reais já apurados pela justiça referente aos Planos Bresser, Verão, Collor I e II.

Quanto ao Plano Bresser, implementado em 16.06.1987, trouxe ele uma substituição da OTN pela LBC, ocasionando uma redução de 8.04%. Pela OTN, as cadernetas de poupança, cujo aniversário se dava até o dia 15 do mês, deveriam ter uma correção da ordem de 26,06% e, na realidade, tiveram correção no índice de 18,02%. Daí a diferença faltante de 8,04% na correção.

Considerando que a responsabilidade do pagamento das diferenças é dos bancos depositários e se trata de direitos pessoais, a prescrição é de vinte anos (prescreve em 16.06.2007). Esclareça-se, neste passo, que o despacho citatório deve ser dado até o dia 15 de junho. Daí a veiculação de que a prescrição é 31 de maio, pois, seria impossível ao advogado correr no dia 15 de junho para ingressar com a competente ação.

Porém, há uma discussão, se o banco depositário é autarquia ou empresa pública a prescrição seria de cinco anos, e, se ente federal, a competência é da justiça federal.

Quanto ao Plano Verão, instituído 15 de janeiro de 1989 pela MP 32/89 expurgou do índice de correção monetária um percentual de 20,37%. As contas poupança que aniversariaram até o dia 15 daquele mês sofreram a redução. Se o banco depositário for privado, a prescrição do direito de reaver as diferenças se dará em 15 de janeiro de 2009.

Apenas para exemplificar, um saldo existente na poupança de NCz$ 3.529,36 em janeiro de 1989, daria hoje uma diferença a recuperar acrescida de juros no importe de R$ 12.205,00, aproximadamente.

A ação cabível é a ordinária de cobrança e é necessária a prova da existência da conta à época, o seu saldo e, se possível, o anterior de dezembro de 1988 e o posterior, de fevereiro de 1989. Em alguns casos, o banco depositário fez o pagamento.

Quanto ao Plano Collor, já se decidiu, em alguns casos, que a responsabilidade pelo pagamento das diferenças suprimidas seria do Banco Central. Existe uma ação do IDEC ainda tramitando onde se discute de quem é a responsabilidade, se do banco privado se do Banco Central. Se se decidir que ela é do Banco Central a prescrição é de cinco anos. Recente julgamento, em sede de embargos de divergência (REsp 602.568 –DF Rel.Ministro João Otávio de Noronha .data do julgamento.06/02/2007) é no sentido da prescrição em cinco anos:

EMENTA. PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. “PLANO COLLOR”.CADERNETA DE POUPANÇA.CORREÇÃO MONETÁRIA.PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. DECRETO N.20910/32.

Igualmente, aos planos anteriores, instituiu o Plano Collor nova sistemática de apuração da correção monetária, suprimindo das contas-poupança os índices:

a)Para março/1990 = 84,32 %;
b)Para abril/1990 = 44,80 %;
c)Para maio/1990 = 2,49 %;
d)Para fevereiro/1991 = 14,11 %.

Aqui, como nos planos anteriores, se deve atentar para o fato de que alguns bancos depositários aplicaram a correção corretamente, devendo o poupador verificar atentamente o seu extrato da conta à época. Porém, a maioria das contas com aniversário até o dia 15 do mês, não recebeu tal correção. Para se ter uma idéia de valores, exemplificando, para um saldo em março de 1990 de NCz$ 250.000,00, hoje se teria uma diferença já acrescida de juros no valor de R$ 41.546,96.

Assim, o poupador, antes de qualquer conjectura, deve providenciar todos os extratos do período para se chegar a um cálculo mais real, se, realmente, o poupador tem direito à reposição dos expurgos inflacionários e se valerá a pena buscar a diferença suprimida. Aqui, é bom lembrar que valores pequenos podem ser buscados perante o Juizado Especial Cível, dependendo do caso, estadual ou federal, não necessitando de advogado.

 

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

FELICIA AYAKO HARADA:  Sócia fundadora da Harada Advogados Associados. Juíza arbitral pela Câmara do Mercosul. Membro do Instituto de Direito Comparado Brasil-Japão-IDCBJ e do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos-Cepejur.


Breve Ensaio das Provas Ilícitas e Ilegítimas no Direito Processual Penal Brasileiro

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* Marco Antônio Garcia de Pinho
            

Sumário: INTRODUÇÃO. 1. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A PROVA. 2. PRINCÍPIOS LIGADOS ÀS PROVAS. 3. LIMITES À ATIVIDADE PROBATÓRIA. 4. ADMISSIBILIDADE DA PROVA. 5. DA INADMISSIBILIDADE DAS PROVAS. 6. PROVAS ILÍCITAS, ILEGÍTIMAS, ILÍCITAS POR DERIVACAO E PROVA EMPRESTADA. 6.1 Provas Ilícitas. 6.2 Provas Ilegítimas. 6.3 Provas Ilícitas por Derivação. 6.4 Prova Emprestada. 7. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA – Fruits of the Poisonous Tree Doctrine. 8. INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS, DE TELEMÁTICA, INFORMÁTICA E GRAVAÇÕES CLANDESTINAS. 8.1 Interceptação: considerações gerais. 8.2 Interceptação telefônica (“grampeamento”) e de dados stricto sensu. 8.3 Documentação das interceptações, seu valor probante e prazo. 8.4 Escuta telefônica. 8.5 Interceptação ambiental. 8.6 Escuta ambiental. 8.7 Gravações clandestinas (telefônicas e ambientais). 9. INTERCEPTAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

 

RESUMO
Este trabalho trata da importante questão das provas ilícitas e ilegítimas no processo penal apresentando, de maneira clara e didática, os pontos de maior importância acerca deste singular tema cada vez mais presente no dia-a-dia dos nobres operadores do Direito.   

ABSTRACT
This work  discuss the important issue of false evidence at criminal proceedings, introducing, in a clear and didactic way, the most important points regarding this singular subject, ever more present in the day-to-day of law practitioners.
Palavras-chave: Processo penal. Prova. Ilícita. Ilegal. Keywords: Criminal proceedings. False evidence.


 
INTRODUÇÃO

"(…) a arte do processo não é senão a arte de administrar as provas."    J. Bentham

As provas no processo desempenham um papel importantíssimo qual seja o de apurar os fatos no processo e no universo social, visto que o julgamento fundado em provas, não constitui trabalho isolado do juiz, mas, ao contrário, é imerso no ambiente social em que se desenvolve, estando, assim, fortemente impregnado por fatores sociais, políticos, culturais e religiosos. Daí, não ser possível desconsiderar nos procedimentos probatórios seu caráter social, vez que sua finalidade não está limitada à formação do convencimento do juiz, mas visa, preponderantemente, à obtenção do consenso do grupo social em nome do qual será pronunciado o decisum.

Mas o que é prova?

Prova é aquilo cujo escopo é estabelecer uma verdade por verificação ou demonstração. A finalidade da prova é o convencimento do juiz, que é o seu destinatário. Não se busca a certeza absoluta, a qual, aliás, é sempre impossível, mas a certeza relativa suficiente na convicção do magistrado.

O certo é que as provas servem à formação do convencimento do juiz e, ao mesmo tempo, cumprem também o papel de abonar perante a sociedade a decisão abraçada pelo magistrado.

A prova, porém, para servir de sustentáculo a uma decisão judicial, há de ser obtida por meios lícitos, que não contrariem a moral e os bons costumes, que estejam dentro dos limites éticos do homem.

É importante a lembrança que o Pacto de São José da Costa Rica, a chamada Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, parte do sistema constitucional da República Federativa do Brasil, que consagra o valor da vida privada e familiar, do domicílio e das correspondências, preceitua, nos seus artigos 9° e 11: “ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”, garantindo a todas as pessoas o direito à proteção legal contra tais atos.

Se assim não bastasse, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, em seu artigo 12, estabelece que “ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação”, assegurando, também que contra tais intromissões ou ataques, toda pessoa tem direito à proteção da lei.

A simples palavra prova (do Latim probatio) comporta amplas conotações e é sabido que a nova ordem, inaugurada com a Carta Maior em 1988, inovou em vários aspectos garantistas. Não existem, contudo, direitos absolutos e a dicotomia entre a necessidade premente de se entregar a prestação jurisdicional a um e o respeito aos direitos de outro, é um dos pilares do estudo em tela.

As provas ilícitas, neste contexto, se sobressaem face à sua relevância jurídica quando produzida e utilizada no processo.

A atividade probatória e seus resultados desempenham nítida função de persuasão sobre a sociedade, indicando que as decisões judiciais, fundadas que são em provas, são verdadeiras e, por isso, justas.

Constituem, em outras palavras, um mecanismo de legitimação, por meio do qual a decisão deixa de parecer arbitrária para se tornar aceitável.

É justamente por isso que os temas relacionados à prova judiciária se encontram inevitavelmente submetidos à tensão entre os interesses da sociedade e da verdade e, como conseqüência disso, o ponto de partida no tratamento da questão da prova ilícita deve ser o reconhecimento de limites à atividade cognitiva do juiz.

Esperamos, com este modesto trabalho, longe de tratar exaustivamente sobre o tema, desanuviar, ainda que de forma tênue, a problemática atinente ao tão atraente tema da ilicitude das provas no processo penal pátrio.

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A PROVA

É da pena de um dos maiores processualistas mundiais, o Mestre italiano Francesco Carnelutti que “as provas servem para se voltar ao passado, para se fazer, ou melhor, para se reconstruir a história”.
Provar deriva do verbo probare (examinar, verificar e demonstrar).

Na linguagem jurídica é manifestar, fazer patente, pôr em evidência, demonstrar a certeza de um fato ou a verdade do que se alega.  Por isso se afirma que provar é convencer o espírito da verdade a respeito de alguma coisa.

Segundo ensinamento de Carnelutti,  provar indica uma atividade do espírito dirigida à verificação de um juízo. Corresponde à cogitação do convencimento de outrem acerca da verdade referente a determinado fato.

A palavra prova vem do latim probus, com o significado de bom, correto e honrado. A prova é o elemento integrador da convicção do juiz, daí sua relevância no campo do direito processual.

Originariamente, a prova era banhada em superstição. O Homem possuía uma visão muito limitada da vida social e lidava com um conceito de delito ligado à idéia de ofensa a alguma divindade.

Somente quando o Estado aparece consolidado, é que a lei propriamente estabelece a prova.

No sistema da prova legal, a lei deveria determinar concreta e pontualmente os fatos a serem provados, e de que modo, carecendo o juiz de liberdade para julgar, pois só lhe era dado aplicar um mero raciocínio lógico.

Com a evolução da liberdade dos povos nos regimes políticos, esse sistema tornou-se superado pelo da prova livre.

Quanto aos meios de prova, nem todos se reputam lícitos: a dignidade humana e o respeito aos direitos fundamentais deveriam servir de freio às exacerbações probatórias.

No tocante ao momento de valoração da prova, exige-se uma maior preparação em todos os níveis, exatamente para evitar que a liberdade erroneamente utilizada possa conduzir a um abuso do Judiciário.

A melhor opção, hoje, parece ser a liberdade probatória delimitada por algumas diretrizes. O Estado deve restringir, proibir ou impedir a utilização de determinados meios de prova ou o seu uso em relação a certos fatos, e tudo em prol da defesa dos valores sociais, dentre os quais avultam a liberdade, a intimidade e tantos outros valiosos princípios de nossa Constituição Cidadã.

2. PRINCÍPIO LIGADOS ÀS PROVAS

Nas palavras do emérito Professor Leandro Cadenas Prado, “Os princípios são o início de tudo, proposições anteriores e superiores às normas, que traçam vetores direcionais para os atos do legislador, do administrador e do aplicador ao caso concreto.”

No que tange à temática das provas, tem-se, em especial, os seguintes Princípios-Gerais, dentre os quais podemos identificar:

i – auto-responsabilidade das partes: cada parte assume as conseqüências por suas ações e omissões na produção das provas, haja vista ser essa uma faculdade processual;

ii – audiência contraditória: é a base do importante princípio constitucional do contraditório, forte se infere do artigo 5º, LV, CF/88, prevendo que, sempre que produzida uma prova, seja dada oportunidade de manifestação à outra parte, ainda que a produção tenha sido levada a efeito com base em determinação judicial ex officio. Em nosso sistema, não existe hierarquia de provas, ou seja, a priori, a determinação de meios de prova mais ou menos relevantes para a resolução das questões mais controvertidas;

iii – comunhão ou aquisição dos meios de prova: uma vez produzida a prova, ela passa a integrar o processo, não pertencendo mais à parte que a produziu, que perde a legitimidade. Por esse princípio, a prova produzida pelas partes passa a integrar um conjunto probatório unitário, entre as partes, no intuito de influir no convencimento do julgador;

iv – oralidade: por esse princípio, dá-se prevalência à palavra falada sobre a escrita. O princípio da oralidade é expressamente previsto nos Juizados Especiais;

v – concentração: como meio de economia e agilidade processual, deve-se buscar concentrar a produção das provas em audiência, em especial nos procedimentos sumário e sumaríssimo;

vi – publicidade: como regra, as provas devem ser produzidas publicamente, salvo se sob segredo de justiça;

vii – não-auto-incriminação: consubstanciado no brocardo latino nemo tenetur se detegere. O acusado nunca pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo. Tal princípio é fundamento para o direito constitucional ao silêncio e também se funda na não-obrigatoriedade de que o investigado ou réu colabore na reconstituição de crime ou de qualquer outra prova em favor de sua incriminação;

viii – livre convencimento motivado: é a principal teoria adotada pelo Código de Processo Penal no que concerne à valoração das provas, que será livre pelo juiz, desde que devidamente motivada (art. 157,  CPP);

ix – vedação das provas obtidas por meios ilícitos: como garantia do due process of law, ninguém poderá ser condenado com base em prova ilícita, de acordo com o artigo 5º, LVI,  CF/88;

x – liberdade probatória: como o processo penal tem por objetivo a busca da verdade real dos fatos ocorridos, há grande liberdade na produção das provas, deferindo-se, inclusive, ao magistrado, a iniciativa para sua produção (art. 156,  CPP). No entanto, essa liberdade não é absoluta, havendo algumas limitações a tal princípio;

xi – proporcionalidade: mitiga a proibição das provas obtidas por meios ilícitos. Sua fundamentação reside na idéia de que a luta contra a criminalidade, sendo um bem jurídico inegavelmente valioso, justifica, em certas ocasiões, que a utilização de uma prova ilícita seja admissível, desde que haja notória preponderância entre o valor do bem jurídico tutelado em relação àquele que a prova respeita.

É possível dizer, portanto, que a vedação à prova ilícita não é absoluta, devendo ceder nos casos em que se oponha a interesse de maior relevância.

3. LIMITES À ATIVIDADE PROBATÓRIA

Pelo fato de a atividade probatória desempenhar um importante papel na sociedade, os procedimentos probatórios devem-se submeter a regras: lógicas, psicológicas, éticas, jurídicas, etc., cuja inobservância acarretaria uma verdadeira fratura entre o julgamento e a sociedade.

O método probatório judiciário estabelece procedimentos adequados às operações relacionadas à colheita do material probatório e, em certas situações, ao valor da prova obtida.

Esses limites probatórios podem ter fundamentos processuais (lógicos, epistemológicos) ou extraprocessuais (políticos).

No primeiro caso, excluem-se provas impertinentes ou irrelevantes ou, ainda, exige-se que determinados fatos sejam provados de certa forma (como, por exemplo, podemos citar o exame de corpo de delito).

No segundo, que é de fundamental interesse, impede-se a introdução ao processo de provas obtidas com violação de direitos fundamentais.

4. ADMISSIBILIDADE DA PROVA

Argumentam os defensores desta tese que a prova obtida por meios ilícitos não poderá ser alijada do feito, a não ser no caso de a própria lei assim o ordenar. A prova, portanto, para ser afastada, há de ser ao mesmo tempo ilícita e ilegítima. Advoga esta corrente que o problema da admissibilidade ou inadmissibilidade da prova não se refere ao modo como foi obtida. Se ela no processo for consentida pela lei, in abstracto, sendo totalmente sem relevância o emprego dos meios para a sua obtenção.

Fernando de Almeida Pedroso,  dentre os nacionais, é filiado a esta corrente doutrinária. Apóia-se no argumento de que se o fim precípuo do processo é a descoberta da verdade real, aceitável é que, se a prova ilicitamente obtida mostrar essa verdade, seja ela admissível, sem olvidar-se o Estado da persecução criminal contra o agente que infringiu as disposições legais e os direitos do réu. As regras de admissibilidade servem para designar os critérios jurídicos de seleção dos elementos que podem ser empregados no processo.

A noção de admissibilidade é importante no que se refere à questão de validade e eficácia dos atos processuais, assim como a nulidade. Entretanto, a nulidade é pronunciada em julgamento posterior à relação do ato; por outro lado, a admissibilidade decorre de apreciação feita antecipadamente, impedindo que a irregularidade se consume.

A inadmissibilidade, por operar em momento anterior à prática ou ao ingresso do ato no processo, impede a produção de qualquer efeito válido, aproximando-se mais da idéia de inexistência (jurídica) do ato vedado pela lei processual.

A distinção entre a prova nula e a prova inadmissível é bem clara e pode ser exemplificada: a colheita de uma prova testemunhal, sem que se dê a oportunidade de reperguntas a uma das partes, pode vir a ser declarada nula, mas, se não tiver ocorrido prejuízo para aquela mesma parte, não se cogitará da invalidação do ato ou, então, reconhecida a nulidade, o ato poderá ser renovado, com observância do contraditório, e nada impedirá a valoração do novo depoimento pelo juiz; ao contrário, o testemunho que viole o sigilo profissional ou a confissão utilizada como prova da materialidade do delito são todos proibidos e, por isso, inadmissíveis, não podendo jamais produzir efeitos sobre o convencimento judicial.

A admissibilidade destina-se a evitar que meio de provas inidôneos tenham ingresso no processo e sejam considerados pelo juiz na reconstrução dos fatos.

5. DA INADMISSABILIDADE DAS PROVAS

Sustenta essa corrente que toda e qualquer prova obtida por meios ilícitos deve ser de pronto rejeitada.

Ada Pellegrini Grinover  afirma que, nesses casos, incide a chamada “atipicidade constitucional”, isto é, a desconformidade do padrão, do tipo imposto pela Carta Magna. E, também, porque os preceitos constitucionais relevantes para o processo têm estatura de garantia, que interessam à ordem pública e à boa condução do processo. A contrariedade a essas normas acarreta sempre a ineficácia do ato processual, seja por nulidade absoluta, seja pela própria inexistência, porque a Constituição tem como inaceitável a prova alcançada por meios ilícitos. Como a apuração da verdade processual deve conviver com os demais interesses protegidos pela ordem jurídica, daí a razão de os diversos ordenamentos jurídicos preverem a exclusão de provas cuja prática possa representar atentado à integridade física e psíquica, dignidade, liberdade e privacidade, à estabilidade das relações, à segurança do próprio Estado, etc.

São acessos em que razões externas justificam o sacrifício do ideal de obtenção da verdade. É por esta razão que diversos ordenamentos jurídicos restringem a liberdade de prova.

Verifica-se uma tendência ao alargamento do campo das proibições de prova, com base na constatação de que o ordenamento é uno e, assim, a violação de qualquer de suas regras, com o propósito de obtenção de provas, deve conduzir ao reconhecimento da ilegalidade das mesmas e, em conseqüência, a sua inaptidão para a formação do convencimento judicial.

A evolução dos diversos sistemas nesse sentido não tem sido, entretanto, fácil nem uniforme, pois em tais situações a ilicitude se refere, geralmente, a momento pré-processual, indiferente para a correção do acertamento dos fatos, além do que acarretaria outro tipo de sanção (penal, administrativa, etc.), não se justificando, por isso, a exclusão da prova, com prejuízo evidente para a apuração da verdade processual.

Verifica-se no direito inglês que a regra prevalente é a da irrelevância dos métodos com os quais foi obtida a prova. Nos Estados Unidos, que seguia o modelo inglês, coube à jurisprudência a consideração da inadmissibilidade da prova obtida ilicitamente.

Na justificativa dessa mudança de orientação, fundamental na matéria tratada, a maioria dos juízes da Suprema Corte observou que a previsão de sanções civis, penais ou administrativas não constitui freio suficiente à atuação ilegal da polícia porque, em primeiro lugar, na maioria dos casos, os abusos são cometidos contras pessoas das classes menos favorecidas, que não teriam recursos para suportar ações de ressarcimento; segundo, porque a repressão penal dependeria da iniciativa dos mesmos órgãos de persecução aos quais se destinavam as provas obtidas ilicitamente e, em um sistema dominado pela oportunidade da ação penal, dificilmente tal ocorreria.

Finalmente, seria muito otimismo esperar que os próprios organismos policiais aplicassem penalidades disciplinares em seus membros, incentivando-os a somente agir dentro da lei.
Por tais motivos, entendeu-se que somente a exclusão das provas conseguidas ao arrepio da lei seria eficaz impedimento a tais abusos.

O interesse pelo tema é crescente, resultando em previsões legais e constitucionais a respeito da inadmissibilidade das provas advindas de procedimentos ilícitos.

6. PROVAS ILÍCITAS, ILEGÍTIMAS, ILÍCITAS POR DERIVACAO E PROVA EMPRESTADA

Genericamente, as provas ilícitas são as vedadas, proibidas, obtidas com violação à lei, e podem ser divididas em provas ilícitas propriamente ditas e provas ilegítimas.

A nomenclatura é bastante variada, fazendo menção à prova proibida, ilícita, ilegal, ilegítima, obtida por meio ilícito, ilegalmente obtida, faltando uniformidade, etc.

6.1 Provas Ilícitas

Adotamos aqui a terminologia empregada pela Constituição brasileira de 1988, que, por sua vez, foi haurida da melhor doutrina; assim, de modo genérico, podemos conceituá-las como sendo aquelas vedadas e inadmissíveis no processo.

De se ressaltar, entretanto, que, de fato, devemos analisar o caso in concreto, havendo, pois, circunstâncias que podem justificar tal variedade de nomenclatura. São chamadas provas ilícitas aquelas cuja obtenção viola princípios constitucionais ou preceitos legais de natureza material, v.g. a confissão obtida mediante tortura. Desse modo, vê-se que serão ilícitas todas as provas produzidas mediante a prática de crime ou contravenção, as que violem normas de direito civil, comercial, administrativo, bem como aquelas que afrontem princípios constitucionais.

O ilustre Mestre Humberto Theodoro Júnior  leciona que é certo que o compromisso do processo é com a verdade real. Salienta, contudo, que a atividade processual não poderá ficar distraída ou impassível à conduta ilícita da parte para influir na atividade do próprio órgão judicante. Assevera, ainda, que quando veda a prova obtida ilicitamente, o que tem em mira o preceito constitucional não é o fato processual em si mesmo, mas a necessidade do coibir e desestimular a violação às garantias que a Carta Magna e o ordenamento jurídico que a complementa instituíram como regras indispensáveis à dignidade humana e à manutenção do império da lei.

6.2 Provas Ilegítimas

Quando a norma afrontada tiver natureza processual, a prova vedada será chamada de ilegítima.

Havendo produção de uma prova ilegítima, haverá sanção prevista na própria lei processual, podendo ser decretada a nulidade da mesma, forte se infere do artigo 564, IV, do Codex. Por outro lado, as provas obtidas com violação ao direito material são inadmissíveis no processo a teor da regra constitucional inserta no inciso LVI do artigo 5º da CF/88.

São aquelas produzidas externamente, e com sanções específicas previstas no direito material.

Dessa forma, em havendo produção de uma prova ilícita, como tortura, violação de domicílio ou de correspondência, ao infrator será imputada uma sanção prevista na legislação penal. Assim, se, por exemplo, um documento for juntado na fase de alegações finais, na primeira parte do procedimento do júri, tal prova não poderá ser aceita, considerando-se ilegítima, pois o artigo 406, § 2º, do CPP proíbe a juntada de quaisquer documentos nessa fase do processo.

Outra significativa diferença entre provas ilícitas e ilegítimas está no momento de sua violação.

Naquela, ocorre transgressão à lei no momento da sua violação.

Nesta, ocorre no momento de sua colheita, de sua produção, de forma externa ao processo, podendo ser anterior ou concomitante a este.

Se a prova violar norma de direito processual será considerada ilegítima; violando norma ou princípio de direito material, será considerada ilícita.

6.3 Provas Ilícitas por Derivação

Tem-se, aqui, de uma situação singular.

A questão das provas ilícitas por derivação, isto é, aquelas provas e matérias processualmente válidas, mas angariadas a partir de uma prova ilicitamente obtida é, sem dúvida, uma das mais tormentosas na doutrina e jurisprudência. Trata-se da prova que, conquanto isoladamente considerada possa ser considerada lícita, decorra de informações provenientes da prova ilícita.

Nesse caso, hoje, nossos tribunais vêm tomando por base a solução da Fruits of the Poisonous Tree, adotada pela US Supreme Court.  Esse entendimento, na doutrina pátria, é adotado, dentre outros autores, por Grinover e Gomes Filho. Já Avolio, também tratando com maestria sobre o assunto, concluiu não ser possível a utilização das provas ilícitas por derivação no nosso Direito pátrio.

Há pouco mais de 10 anos, em maio de 1996, o STF confirmou sua posição quanto à inadmissibilidade das provas derivadas das ilícitas, posicionamento, hoje, ainda mais pacífico tendo à frente a Ministra Ellen Gracie e os Ministros como Gilmar Mendes, Peluzo e Joaquim Barbosa.

A prova ilícita por derivação se trata da prova lícita em si mesma, mas cuja produção decorreu ou derivou de outra prova, tida por ilícita. Assim, a prova originária, ilícita, contamina a prova derivada, tornando-a também ilícita.

É tradicional a doutrina cunhada pela Suprema Corte norte-americana dos “Frutos da Árvore Envenenada” – Fruits of the Poisonous Tree – que explica adequadamente a proibição da prova ilícita por derivação.

Finalmente, de se ressaltar que a presença de uma prova ilícita ou ilegítima no processo não o vicia de nulidade. A prova, sim, é nula e deve ser desentranhada dos autos. No entanto, o restante do processo, desde que não contaminado, continua válido. Conforme sugere a expressão inglesa, a teoria é no sentido de que as provas ilícitas por derivação devem ser igualmente desprezadas, pois contaminadas pelo vício de ilicitude do meio usado para obtê-la. A contaminação, entretanto, não atinge a prova colhida durante o processo penal se a prova ilícita instruiu apenas o inquérito policial. 

6.4 Prova Emprestada

Diz-se emprestada a prova produzida em um processo, e depois trasladada a um outro, com o fim de nele comprovar determinado fato.

Pode ser qualquer meio de prova: o depoimento de uma testemunha, um laudo médico, um documento, enfim, todo meio de prova.

Quanto a sua natureza, formalmente é tratada como prova documental, conservando, contudo, o seu caráter jurídico original. Podem surgir algumas controvérsias quanto à eficácia da prova emprestada.

Alguns autores alegam que a prova emprestada não tem a mesma força probante que teve no processo do qual é originária.

Ada Grinover entende que, para sua admissibilidade no processo é necessário que tenha sido produzida em processo formado entre as mesmas partes e, portanto, submetida ao contraditório; também que tenha sido produzida perante o mesmo juiz, concluindo que, na ausência desses requisitos, a prova emprestada é ilegítima, sendo inadmissível no processo, tanto quanto a prova obtida por meios ilícitos, a teor do inciso LVI do artigo 5º da CF.

7. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA

– Fruits of the Poisonous Tree Doctrine –

A denominação de teoria ou doutrina “dos frutos da árvore envenenada” – também utilizada no singular, “fruto da árvore envenenada” – literal tradução do inglês (Fruit of the Poisonous Tree), diz respeito a um conjunto de regras jurisprudenciais nascidas na Suprema Corte norte-americana e consagra o entendimento de que o vício de origem que macula determinada prova transmite-se a todas as provas subseqüentes.

As provas obtidas por meios ilícitos derivados constituem espécies das chamadas provas vedadas, que podem ser ilícitas ou legítimas.

Segundo a teoria do fruto da árvore envenenada, o vício da planta é transmitido a todos os seus frutos, ou seja, a prova ilícita por derivação contaminaria todo o processo. Apesar das evidentes dificuldades que se apresentam para uma solução uniforme a tais situações, dadas as particularidades de cada caso concreto, Antônio Magalhães Gomes Filho, pensa ser impossível negar a priori a contaminação da prova secundária pela ilicitude inicial, não somente por um critério de causalidade, mas principalmente pela razão da finalidade com que são estabelecidas as proibições em análise.

Com efeito, de nada valeriam tais restrições à admissibilidade da prova se, por via derivada, informações colhidas com a violação ao ordenamento pudessem servir ao convencimento do juiz.

Nesta matéria, importa ressaltar o elemento profilático, evitando-se condutas atentatórias aos direitos fundamentais e à própria administração concreta e leal da justiça penal.

Foi exatamente sublinhando tal finalidade, implícita na vedação da utilização das provas ilícitas, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 69.912.0-RS, reconheceu que a ilicitude de interceptação telefônica contaminara as demais provas, todas oriundas, direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta (Fruits of the Poisonous Tree), nas quais se fundara a condenação do paciente.

De se ressaltar que se sustenta um argumento relacional, ou seja, para se considerar uma determinada prova como fruto de uma árvore envenenada, deve-se estabelecer uma conexão entre ambos os extremos da cadeia lógica; dessa forma, deve-se esclarecer quando a primeira ilegalidade é condição sine qua non e motor da obtenção posterior das provas derivadas, que não teriam sido obtidas não fosse a existência da referida ilegalidade originária.  Estabelecida a relação, decreta-se a ilegalidade. O problema é análogo, diga-se, ao Direito Penal quando se discute com profundidade o tema do nexo causal.

É possível que tenha havido ruptura da cadeia causal ou esta se tenha enfraquecido suficientemente em algum momento de modo a se fazer possível a admissão de determinada prova porque não alcançada pelo efeito reflexo da ilegalidade praticada originariamente.

8. INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS, DE TELEMÁTICA, INFORMÁTICA E GRAVAÇÕES CLANDESTINAS

Nas legislações de todo o mundo civilizado erigem-se rígidos limites para a atividade eletrônica em prol das universalmente consagradas inviolabilidades do sigilo das comunicações e da privacidade do indivíduo.

Quando se trata especialmente da utilização dos seus resultados no processo, as barreiras garantidoras dos direitos individuais assumem, nas vedações probatórias, um contorno publicístico, sob a óptica do devido processo legal, de garantias em nome da jurisdição.

Os mesmos princípios que informam o estabelecimento da inadmissibilidade e ineficácia das provas obtidas por meios ilícitos atuam, pois, em relação às captações eletrônicas da prova, com conseqüências, todavia diversas para as interceptações telefônicas e as gravações clandestinas.

8.1 Interceptação: considerações gerais

A interceptação, ato ou efeito de interceptar (de inter e capio), tem, etimologicamente, entre outros, os sentidos de: “1. Interromper no seu curso; deter ou impedir na passagem; 2. Cortar, interromper: interceptar comunicações telefônicas”, conversa telefônica, a um simples toque de uma tecla.

A variedade de formas de instalação e meios de transmissão de escutas no século XXI, das mais simples às dotadas de raios infravermelhos, bluetooth, wifi, é impressionante.

Juridicamente, as interceptações, lato sensu, podem ser entendidas como ato de interferência nas comunicações telefônicas, quer para impedi-las, com conseqüências penais  quer para delas apenas tomar conhecimento, nesse caso, também com reflexos no processo.

A gravação da conversa interceptada não é, necessariamente, elemento integrante do conceito de interceptação.

A simples escuta, desacompanhada de gravação, pode ser objeto de prova no processo penal, desde que não configure violação à intimidade.

Assim, tanto as interceptações como as gravações poderão ser lícitas ou ilícitas, na medida em que obedecerem ou não aos preceitos constitucionais e legais que regem a matéria. E, a revelarem-se ilícitas, seus resultados devem ser considerados inadmissíveis no processo, e ineficazes enquanto provas.

A respeito da interceptação, cumpre estabelecer algumas distinções tendo em vista as diversas modalidades de captação eletrônica das provas:
a) interceptação telefônica stricto sensu;
b) interceptação telefônica conhecida por um dos interlocutores, ou escuta telefônica;
c) interceptação de conversa entre presentes, ou interceptação ambiental;
d) interceptação da conversa entre presentes conhecida por um dos interlocutores, ou escuta ambiental;
e) gravação da própria conversa telefônica, ou gravação clandestina; e,
f) gravação de conversa pessoal e direta, entre presentes, ou gravação clandestina ambiental.

8.2 Interceptação telefônica (“grampeamento”) e de dados stricto sensu

A polêmica, com reflexos especialmente constitucionais no que tange às provas ilícitas, situa-se na análise pormenorizada dos dispositivos referentes à tutela do direito à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem das pessoas, à inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, e à inadmissibilidade, no processo, das provas obtidas por meios ilícitos.

A interceptação telefônica, em sentido estrito, é a captação da conversa telefônica por um terceiro, sem o conhecimento dos interlocutores, pois, interceptação não é um procedimento ilícito em si mesmo. Com efeito, a CF/88, diversamente do que ocorre no caso da interceptação de correspondência, ressalva a possibilidade de que essa se faça licitamente, desde que judicialmente, com finalidade específica, nas hipóteses previstas em lei.

Como distingue Grinover, é aquela que se efetiva pelo grampeamento, ou seja, pelo ato de “interferir numa central telefônica, nas ligações da linha do telefone que se quer controlar, a fim de ouvir e/ou gravar conversações”.

Reputa-se lícita a interceptação telefônica, desde que realizada dentro dos parâmetros estabelecidos pelo ordenamento jurídico. Na maioria dos ordenamentos jurídicos, a sua execução depende de ordem judicial.

O provimento que autoriza a interceptação se reveste de natureza cautelar, pois visa à fixação dos fatos, assim como se apresentam no momento da conversa. Enseja, pois, evitar que a situação existente ao tempo do crime venha a se modificar durante a tramitação do processo principal, e nesse sentido, visando a conservar, para fins exclusivamente processuais, o conteúdo de uma comunicação telefônica, pode ser agrupado entre as cautelas conservativas.

Exige-se, para tanto, os requisitos que justificam as medidas cautelares. Quanto ao fumus bonis juris, a questão é delicada, pois, da mesma forma que ocorre com a busca domiciliar, a autoridade concessora da medida deve dispor de elementos seguros da existência de um crime, de extrema gravidade, que ensejaria o sacrifício da privacidade.

No tocante ao periculum in mora, deve ser considerado o risco ou prejuízo que da não realização da medida possa resultar para a investigação ou instrução processual. Importante ressaltar, entretanto, que o STF tem admitido como lícita a gravação de conversação telefônica nos casos em que o autor da gravação é um dos interlocutores, ainda que sem o conhecimento do outro interlocutor, se a gravação é feita com a finalidade de documentar a conversa em caso de posterior negativa,  ou em caso de investida criminosa de interlocutor insciente.

De se ressaltar que não vemos qualquer inconstitucionalidade na Lei n. 9.296, que regulamenta as hipóteses nas quais serão possíveis as interceptações telefônicas, incluindo-se, ali, a interceptação do fluxo de comunicações em sistema de informática e telemática.

A telemática estuda a manipulação e utilização de informação por meio do uso combinado do computador e dos meios de comunicação, como ocorre, por exemplo, com a comunicação via Internet.

A possibilidade de autorização judicial também para a interceptação do fluxo de comunicação de informática e telemática, como ali previsto, é perfeitamente constitucional, e vem completar o rol de proteção do inciso XII do artigo 5º da CF, estabelecendo que, em todas as hipóteses ali mencionadas, a quebra do sigilo exigirá autorização judicial fundamentada e que haja indícios razoáveis de autoria ou participação em crime punido com pena de reclusão, bem como que a prova do delito não possa ser feita por outros meios.

8.3 Documentação das interceptações: seu valor probante e prazo

A conversa telefônica interceptada, que é o objeto da prova, pode ser provada por vários meios, até pelo testemunho do interceptador. Em se tratando, todavia, de interceptações autorizadas por autoridade judiciária, o resultado da operação técnica deve revestir-se de forma documental. No caso, tanto a gravação, que permite a reprodução sonora do objeto da prova e sua escuta, como a degravação, isto é, a transcrição da conversa, devem ser introduzidas no processo como meio de prova.

A doutrina recomenda, também, a documentação das etapas de operações desenvolvidas, ainda que não obtenham êxito, por meio da lavratura dos termos e autos.

Para Ada Pellegrini Grinover, o valor probante da interceptação, “nada tem a ver com a admissibilidade desse meio de prova”.

A questão vai repercutir no momento probatório da sua valoração pelo juiz. Isso porque a interceptação, como foi visto, é uma operação técnica, que visa a colher coativamente uma prova.

Assim, quando o objeto da interceptação recair diretamente sobre o fato a ser provado, a prova resultante será direta; quando recair sobre fato diverso, que poderá conduzir ao fato que se pretende revelar ou evidenciar será indiciária.

Portanto o juiz, ao proferir a decisão, conforme a identidade das vozes possa ser afirmada seguramente ou apenas reconhecida como provável, irá valorar o resultado da interceptação, respectivamente, como prova ou como indício.

O prazo máximo da interceptação será de 15 dias, prorrogáveis por mais 15 (art. 5º), devendo as diligências ser registradas em autos apartados, preservando-se o sigilo de todo o procedimento (art. 8º).

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC n. 83.515RS, Rel. Min. Nelson Jobim, em 16.9.2004 (Informativo STF n. 361, 22.9.2004), fixou entendimento no sentido de ser possível a renovação do prazo de 15 dias por mais de uma vez, quando complexa a investigação, desde que comprovada a indispensabilidade do procedimento.

8.4 Escuta telefônica

Para a efetivação da interceptação telefônica, alguns doutrinadores entendem que se deve levar em conta o aspecto de haver consentimento de um dos interlocutores para se falar, especificamente, em escuta telefônica, o que, no entanto, não desnatura a característica de interceptação telefônica, uma vez realizada por terceiro.

Podemos dizer que a escuta telefônica ocorre quando um terceiro faz a captação com consentimento de apenas um dos interlocutores, por exemplo, no caso de familiares que autorizam a polícia a ouvir as conversações com os seqüestradores.

Ada Pellegrini Grinover preceitua que a doutrina configura a hipótese como uma espécie de direito do indivíduo ao controle de seu próprio telefone: assim, por exemplo, os familiares da pessoa seqüestrada, ou a vítima de estelionato, ou ainda aquele que sofre intromissões ilícitas e anônimas, através do telefone, em sua vida privada.

8.5 Interceptação ambiental

Interceptação ambiental é a captação sub-reptícia da conversa entre presentes, efetuada por terceiro, dentro do ambiente onde se situam os interlocutores, com o desconhecimento desses. Não difere, substancialmente, da interceptação stricto sensu, pois em ambas as situações ocorrem violações do direito à intimidade. Assim, é preciso ainda considerar que o direito ao segredo da comunicação é o gênero, ao qual pertence a espécie interceptação. Se o emitente da conversação tem ciência da presença e identidade de um terceiro (diverso do destinatário) não se verifica qualquer lesão do direito ao segredo, e, portanto, inexiste interceptação.

Também não pratica interceptação o terceiro, ignorado pelos interlocutores, que escuta uma comunicação exteriorizada de modo a permitir que seja perceptível por qualquer circunstante, pois aqui faltaria o requisito da violação do direito à reserva da comunicação.

Embora a razão das normas de vedação probatória consista, precipuamente, na tutela dos cidadãos em face de formas de percepção do som insidiosas e difíceis de prevenir, como, propriamente, as realizadas com auxílio de tecnologia moderna ou de ponta, algumas situações bastante singelas podem ser consideradas. Destarte, quem escuta uma conversa reservada simplesmente encostando o ouvido a uma porta está praticando uma violação do direito ao segredo. Da mesma forma quem, em vez de escutar com os próprios sentidos, registra a conversa servindo-se de um gravador oculto.

Ainda que, como argumenta o autor com uma hipótese, aquele que escuta diretamente e grava conversação desenvolvida em língua que lhe é estranha não esteja propriamente interceptando (porque não percebe o sentido da comunicação), esta circunstância não se transmite ao mandante da gravação, que, inequivocamente, pratica uma interceptação ambiental, que se verifica, assim, pela violação do direito à reserva.

8.6 Escuta ambiental

Se interceptação ambiental é a captação da conversa entre dois ou mais interlocutores por um terceiro, que se encontra no mesmo local ou ambiente em que se desenvolve o colóquio, escuta ambiental é essa mesma captação feita com o consentimento de um ou alguns interlocutores. A gravação é feita pelo próprio interlocutor. Se a conversa não era reservada, nem proibida a captação por meio de gravador, por exemplo, nenhum problema haverá para aquela prova.

Em contrapartida, se a conversação ou palestra era reservada, sua gravação, interceptação ou escuta constituirá prova ilícita, por ofensa ao direito à intimidade (CF, art. 5º, X), devendo ser aceita ou não de acordo com a proporcionalidade dos valores que se colocarem em questão. Essa modalidade de interceptação se sujeita à mesma disciplina das interceptações ambientais.

As interceptações e escutas ambientais podem ser realizadas com gravador, não descaracterizando a sua natureza de interceptação lato sensu.

8.7 Gravações clandestinas (telefônicas e ambientais)

No que concerne à gravação clandestina, o traço básico seria a gravação de uma conversa por meio de um dos interlocutores, pela via telefônica, sem o conhecimento do destinatário. Não haveria, portanto, a presença de um terceiro estranho à relação comunicativa.  Importante acórdão  sobre o tema da prova, a gravação clandestina e sua admissibilidade vem delinear os temas atuais propostos, especialmente porque contém preciosos fundamentos, tanto para admiti-la quanto para rejeitá-la, mas, hoje, tem prevalecido a sua admissão junto ao STF.

A gravação clandestina não se pode enquadrar no conceito de interceptação. Consiste no registro da conversa telefônica (gravação clandestina propriamente dita) ou da conversa entre presentes (gravações ambientais) por um de seus participantes, com o desconhecimento do outro.

O tema apresenta maiores dificuldades de solução. Com efeito, as legislações, em geral, e também a brasileira, não prevêem normas específicas sobre a matéria.

Sugerem  alguns autores, assim, ressalvando-se o caso de violação de segredo, por descaber o recurso à analogia in malam partem, que “poderão ser aplicadas à espécie as mesmas soluções jurídicas previstas para a correspondência epistolar, posto que as conversações telefônicas nada mais são que a expressão moderna e oral do mesmo fenômeno de comunicação.”

A prova obtida por meio de gravação clandestina seria irrestritamente admissível. Qualquer pessoa pode gravar sua própria conversa, o que se proíbe é a divulgação indevida. Isso porque, em nosso ordenamento, a comunicação do teor da carta ou de outros dados, pelo destinatário a terceiro, sem o assentimento do remetente, não configura crime contra a inviolabilidade da correspondência, embora possa tipificar o de divulgação de segredo.

Nesse ponto, a tutela penal se dirige a um segundo momento do direito à intimidade, qual seja, o direito à reserva. Enquanto o direito ao segredo (direito ao respeito da vida privada) está em impedir que a atividade de terceiro se dirija a desvendar as particularidades da privacidade alheia, o direito à reserva (direito à privacidade) surge, sucessivamente, em prol da defesa da pessoa contra a divulgação de notícias particulares legitimamente conhecidas pelo divulgador. Divulgar, segundo a maioria dos penalistas, é tornar público o que pressupõe comunicação a um número indeterminado de pessoas.

Para Celso Delmanto, contudo, o núcleo da conduta prevista no artigo 153 do Código Penal brasileiro é o comportamento de divulgar e não o resultado da divulgação, bastando, pois, para tipificá-¬lo, que se narre o segredo a uma só pessoa. Será ilícita, portanto, a divulgação da conversa confidencial como prova penal incriminadora, podendo, contudo, haver justa causa que descaracterize a ilicitude.

A doutrina tem-se limitado a considerar lícita a divulgação de gravação sub-reptícia de conversa própria apenas quando se trate de comprovar a inocência do acusado, o que não deixa de constituir manifestação da teoria da proporcionalidade.

Assim, por exemplo, nos casos de extorsão, a prova é válida para comprovar a inocência do extorquido, mas, segundo Ada Pellegrini Grinover, se afigura ilícita quanto ao sujeito ativo da tentativa de extorsão.

Quanto às declarações espontâneas do indiciado ou réu, clandestinamente gravadas, constituem, prova ilícita em razão da violação do direito à intimidade e, concomitante¬mente, do princípio do nemo tenetur se detegere – não auto-incriminação – visto que o acusado, se soubesse que se encontrara diante da autoridade, poderia ter-se reservado o direito de permanecer calado.

9. INTERCEPTAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA

O direito à intimidade, à privacidade, à honra e todas as suas formas de manifestação, ou seja, a inviolabilidade de domicílio, das comunicações e da correspondência, que se constituem em apenas algumas das várias modalidades de exercícios dos aludidos direitos, podem, como regra, ser limitados, por não configurarem nenhum direito absoluto.

 É o que ocorre, v.g., com relação ao sigilo de correspondência, cuja inviolabilidade é até prevista como crime. Desde que presente autorização judicial, poderá haver quebra do mencionado sigilo porque devidamente prevista em lei, justificada por necessidade cautelar, no curso da investigação ou instrução criminal, tal como ocorre em relação às comunicações telefônicas. As cartas particulares, interceptadas ou obtidas por meios criminosos, não serão admitidas em juízo, salvo para defesa de direito de seu destinatário.

A doutrina tem entendido que a interceptação de correspondência constitui prova ilícita mesmo quando a apreensão de cartas ocorre em busca e apreensão, ainda que judicialmente autorizada, entendendo que o art. 240, § 1º, f, do CPP não foi recepcionado pela CF, que garante, sem exceções, a inviolabilidade da correspondência em seu artigo 5º, XII.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema por nós abordado é dos mais polêmicos na seara processualista, sendo certo que a jurisprudência e a doutrina não são unânimes sobre o assunto, e, passadas quase duas décadas de vigência do texto constitucional, ainda há resistências à proibição absoluta do ingresso no processo, de provas obtidas com violação de direito material.

A par de todas as conclusões que se dirigem no sentido da proteção da intimidade e da liberdade dos acusados, não se pode perder de vista a aplicação justa e eficaz da lei penal no combate à criminalidade, especialmente aquela organizada, e é por isso que a doutrina e a jurisprudência, no Brasil e no mundo, vêm preconizando a regulamentação precisa das interceptações telefônicas, como eficiente instrumento de investigação policial, e contundente meio de prova processual, à altura da sofisticada tecnologia empregada pelos criminosos.

Há uma crise da Justiça, caracterizada pela impunidade, que, evidentemente, não se resume à falta de eficientes meios de prova.

Foge à lógica do razoável permitir, hoje, em pleno ano de 2007, que a preservação da intimidade de criminosos impeça a sua punição, dependendo do caso. Há que se ter mais critérios objetivos e bom senso com boa-fé em razão de quem necessita da prova para demonstrar a veracidade do direito material, como a boa-fé do captador da prova, o modo de obtenção necessário, o motivo relevante, o valor proeminente e a unicidade da prova.

Em não havendo quaisquer atividades contrarias à lei ou mesmo à moral e bons costumes, o direito à intimidade assumiria um caráter absoluto, mas, se houvesse qualquer atividade ilícita, lato sensu, que permitisse a contraposição de valores em conflitos, estaria o juiz autorizado a admitir tais provas e valorá-las utilizando-se para isso, da razoabilidade e proporcionalidade.

Dessa forma, os limites da licitude probatória, diante da análise da problemática das provas ilícitas deverão ser analisados de acordo com tais critérios objetivos.

Por ora, entendemos que a regulamentação da matéria, como já preconizava a ilustre Professora Ada Pellegrini Grinover há mais de duas décadas, tornou-se uma necessidade impostergável. Essa é a condição para um processo justo, que enseje mais adequada tutela das liberdades fundamentais.

Não devemos em regra admitir no processo as provas obtidas por meios ilícitos, mas, por outro lado, se a prova ilicitamente obtida favorecer a defesa, o próprio direito de defesa pode ser usado para limitar o direito à intimidade ou correlato. Por exemplo: não podemos admitir que um inocente seja condenado só porque a única prova que ele possui de sua inocência foi obtida ilicitamente.

Entendemos não ser razoável a postura inflexível de se desprezar toda e qualquer prova ilícita. A prova é a alma do processo e visa a demonstrar ao Julgador uma verdade histórica ocorrida de modo a formar sua convicção para que possa bem julgar a causa e sabemos que os meios de prova elencados no Código de Processo Penal não são taxativos. Qualquer meio de prova estará apto a demonstrar um fato, desde que legal e moral.

As provas obtidas por meios ilícitos são inadmissíveis, em regra, porém, a teoria da proporcionalidade permite a utilização de provas ilicitamente obtidas em casos excepcionais e graves, tanto em favor quanto em desfavor do réu, vez que nenhuma norma constitucional tem caráter absoluto.

O que se pode seguramente afirmar é que, embora a vedação constitucional às provas ilícitas esteja a serviço da proteção de direitos fundamentais do cidadão contra arbítrios do Estado, casos há em que essa vedação, tomada de forma absoluta, levará a situações conflitantes, protegendo-se um direito fundamental de alguém que ameaça solapar os fundamentos basilares da sociedade constituída.

Ainda que não se possa estabelecer uma graduação entre os direitos fundamentais, é possível e até necessário que sejam relativizados para atender à necessidade de convivência desses direitos dentro do sistema jurídico, possibilitando a defesa da sociedade em situações extremas, sempre tendo na idéia de proporcionalidade o vetor a orientar a flexibilização.

É nessa esteira de raciocínio que, à luz de Günter Jakobs, se alude a um direito penal de terceira velocidade, no qual se poderia flexibilizar as garantias individuais em situações extremas, mas sempre de forma temporária e emergencial, como um direito penal de guerra, necessário para defender a manutenção do próprio Estado Democrático de Direito, em função de ameaças como a delinqüência patrimonial profissional, a delinqüência sexual violenta e reiterada, a criminalidade organizada e o terrorismo.

Em relação às conseqüências da decretação da ilicitude da prova, os tribunais têm entendido que a presença de uma prova ilícita no inquérito policial ou no processo não enseja sua anulação, desde que existam outros elementos de prova suficiente para justificar a continuidade das investigações ou do processo. Da mesma forma, existindo provas suficientes fundamentando a sentença, esta será válida, ainda que no processo exista uma prova ilícita.

Finalmente, ainda que o processo ou o inquérito possa ter seguimento, mesmo sendo verificada a existência de uma prova ilícita em seu bojo, no nosso modesto entender, o mais adequado seria que essa prova fosse desentranhada dos autos, já que sua permanência poderia contaminar o espírito do julgador, sobretudo quando se tratar do tribunal do júri, composto por juízes leigos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TUCCI, Rogério Lauria. Princípios e regras orientadoras do processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1986.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

MARCO ANTONIO GARCIA DE PINHO: Pós-Graduado Especialista em Direito Público pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais e Centro Universitário Newton Paiva, MG.  Pós-Graduado Especialista em Direito Processual pela Unama e Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes & Ada Pellegrini Grinover, SP.  Pós-Graduando em Direito Privado pelo Instituto Praetorium e Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, MG.  Consultor jurídico bilíngüe. –  Belo Horizonte – 2007

O costume como parâmetro da aplicação da justiça e da criação da lei

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  * Emmanuel Gustavo Haddad

Aprendemos que o costume é fonte do direito, mas não será ele o próprio direito?

Primeiramente, cabe ressaltar que é uma palavra derivada do latim consuetudo, designa tudo que se estabelece por força do uso e do hábito[1].

Podemos afirmar que o costume tem força de Lei, no que diz respeito à tecnologia jurídica, a qual vem mostrar o princípio da regra não escrita, que se introduziu pelo uso, com o consentimento tácito de todas as pessoas que admitiram sua força como norma a seguir na prática de determinados atos.

Em outras circunstâncias, o costume é considerado Lei, a qual o uso estabeleceu e que se conserva sem ser escrita, por uma longa tradição. Assim, “o costume é a prática social reiterada e considerada obrigatória”[2].

A Lei, por sua vez, difere do costume por ser um preceito escrito, elaborado por um órgão competente, com forma estabelecida. É em seu conceito jurídico, a regra jurídica escrita, instituída pelo legislador, no cumprimento de um mandato, que lhe é outorgado pelo povo. Também é derivada do latim lex, de legere – escrever, atribuindo-se por sua etimologia o que está escrito[3].

A realidade é que o costume é o verdadeiro direito, pois é a primeira manifestação da ética de um povo, uma espécie de ética natural. O direito nada mais é, que a expressão genuína da consciência de uma sociedade e não um produto do legislador. O legislador não cria o direito, apenas o traduz em normas escritas existentes no espírito do povo (costume). Por este prisma, o direito deve ser o espelho do costume.

Exemplo disso é o do cheque pós-datado, vulgarmente conhecido como pré-datado. O costume, neste caso, descaracterizou o cheque como ordem de pagamento à vista, e o Poder Judiciário não pôde deixar de conhecer deste fenômeno imposto pela grande maioria das pessoas em seus atos de comércio.

Pode-se dizer que o uso e o costume de emitir cheque pós-datado criou o instituto do cheque como promessa de pagamento, diferente do regulamento legal, que é a ordem de pagamento à vista.

Outro exemplo que pode ser citado, é a Lei da União Estável, que surgiu da observação de que na sociedade brasileira existe um grande número de famílias que se formam a partir da união do homem e da mulher, fora do matrimônio. E, como o direito estuda os fenômenos sociais ocorridos com freqüência na sociedade, obrigou o legislador a elaborar a Lei do Concubinato.   

Observa-se, então, que a norma abrange o costume, possuindo uma função transformista. Partindo-se do pressuposto de ser o direito um permanente compromisso entre liberdade e segurança, não o considerando como a expressão de um valor absoluto ou de um saber jurídico verificável em cada hipótese concreta, mas como um produto de prudente combinação de fatores sócio-científicos, fáticos e axiológicos, circunstanciais, de conveniências e oportunidades, que não fazem da norma jurídica um modelo definitivo [4].

Utilizando-se do silogismo da norma para saber sua designação, verifica-se que os cidadãos são os seus genuínos destinatários, haja vista que a juridicidade da norma decorre do fato de pertencer a um sistema jurídico e não a sanção[5]. Desta forma, o costume se apresenta como a norma constante não escrita e obrigatória, só diversa da lei em seu aspecto formal. É necessário frisar que o costume deve ser ao mesmo tempo, lícito, justo e útil.

Problema que paira é o da aplicação do costume na justiça. Como fazer sem que haja uma lei que o prescreva?  A solução está nas mãos dos juristas, eles são os porta-vozes da comunidade. Neles se manifestam uma aguda capacidade para intuir as exigências do desenvolvimento social. São os primeiros a adquirir consciência do desajuste entre o direito vigente e as novas circunstâncias sociais. E o que fazem? São escravos da lei, porém precisam ter em mente que se acabou a neutralidade de só se fazer o que a lei manda. Assim, busca-se uma formação humanística e não legalista, para que saiba o que é e o que pode ser a presença do direito e da justiça no desenvolvimento da pessoa humana e nas relações sociais [6]. Em outras palavras, o juiz é destinado a proteger os direitos humanos.

De outro norte, nota-se que o mundo moderno vive em estado de alerta, impedindo a formação de costumes, obrigando a solução dos problemas através somente da legislação, que pode ser ditada e modificada rapidamente. Entretanto, esta conclusão não significa suprimir todo o valor do costume.

Está superada também a teoria que aspira a formar o direito científica e racionalmente em sua totalidade. Deve-se buscar uma solução de equilíbrio entre ambas as tendências opostas, reconhecendo que a norma jurídica se inspire a ser aceita e cumprida em uma comunidade, adaptando suas modalidades e características na parte em que os costumes não se chocam com os princípios que lhe dão fundamento. Os usos e costumes coletivos são com efeito, a fonte inspiradora de inumeráveis leis, sentenças e doutrinas, as quais são convertidas em direito, uma vez que o legislador, o jurista e o magistrado as traduzem em normas escritas.

Dizer que o costume é uma fonte subsidiária ao julgador, o qual deve ser aplicado em caso de omissão de lei, conforme prescreve o artigo 4º, da Lei de introdução ao Código Civil, é a mesma coisa que impedir a evolução da sociedade e de seus usos e costumes.

O costume não deve ser utilizado apenas como Segundum Legem, Praeter Legem, mas também contra a lei, por ser uma expressão do direito, pela maneira como se exprime, se conhece, se revela na comunhão social. Pode ainda revogar uma lei, pois, se um costume começa a ser aplicado no direito e a lei que antes regulava tal ato entra em desuso, não haveria razão de sua vigência, esperando a elaboração de uma nova legislação para sua revogação, e sim sua revogação pela aplicação do costume.

O que adiantaria ter uma norma sintaticamente eficaz, por apresentar condições técnicas de atuação, mas semanticamente inefetiva, por ser regularmente desobedecida, por não mais se adaptar ao tempo, ao local, às convicções e aos pontos de vista valorativos da sociedade, correndo o risco de ser aplicada contra uma coletividade[7]. Porque, então, não assumir que a lei se revoga no todo ou em parte, de forma expressa ou tácita por força do costume ou do desuso geral.

Dessa maneira, se o poder legiferante agisse em total sintonia com o povo, a lei refletiria um desejo da comunidade. Pois, o direito surge do arbítrio humano e da convivência social, uma vez que o costume é a norma jurídica oral, resultante da consciência coletiva do povo, e não dá vontade única do legislador em criar leis, haja vista, que em direito, a maioria das coisas não consistem em leis, mas sim em costumes.           

Daí vem à possibilidade da sociedade criar o direito, pois, ao contrariar uma norma escrita, a vontade popular não só diz que essa norma não lhe serve, como também inspira o legislador e os aplicadores do direito a seguirem os avanços sociais.

Assim sendo, o costume é mais sábio que o próprio legislador e que o próprio aplicador do direito juntos, pois, estes terão que levar em consideração o costume de um povo, que são as práticas usuais tornadas regras no meio social.

Deste emaranhado, é que está nascendo o direito alternativo, inovador, e que vem sendo aplicado por alguns juízes e criticados por outros.

Esses Juízes “alternativos” estão acompanhando de frente a evolução do direito, pelo uso e costumes, e aplicando bem o poder de decidir, deixando de lado a lei nua, crua e fria. Estão eles analisando o costume e o caso concreto, empregando assim a verdadeira justiça, sem cometer excessos ou omissões, buscando um julgamento justo, que o nosso ordenamento recomenda em qualquer circunstância.

Desta maneira, os legisladores não podem legislar para uma sociedade tão díspar como a nossa sem conhecer as suas especificidades, usos e costumes. A norma jurídica não pode ser asséptica, a-histórica, a-temporal, a-costume, a-uso. O direito não tem razão em si mesmo, senão quando comprometido com a realidade social, o uso, costume e hábitos de uma comunidade.

A dinâmica da realidade social, o uso e o costume, ultrapassam a atividade legislativa criadora do direito positivo, pois este é um mero referencial para a aplicação de Justiça no sentido formal do termo. Entretanto a justiça, efetivamente, não tem se realizado no sentido material. Em outras palavras, tem-se um excessivo apego à lei e não à justiça. A lei tem sido feita como fim e não como meio.

Assim, o costume deve estar sempre em primeiro plano para a aplicação da justiça e para a criação das leis, o que não acontece. Possuímos um furor legislativo sem igual em nosso ordenamento, mas que não acompanha a evolução de nossa sociedade, criando injustiças que parecem até serem justas, por estarem fundamentadas em leis. “A maior das injustiças é parecer ser justo sem o ser”[8].

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DE PLÁCIDO E SILVA. Dicionário Jurídico, 12.ed. São Paulo: Forense, 1996.

ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Enciclopédico de Direito. São Paulo: Brasiliense.

DE PLÁCIDO E SILVA. Dicionário Jurídico, 12.ed. São Paulo: Forense, 1996.

BLANCO, Pablo Lopez, La ontología jurídica de Miguel Reale.  São Paulo: Saraiva, 1975.

BOBBIO, Noberto, Teoria del la norma giuridica. ed. Torino. Giappichelli: 1958.                    

DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 1996.

DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada.  São Paulo: Saravia, 1994.

PLATÃO Diálogos.         



[1] DE PLÁCIDO E SILVA. Dicionário Jurídico, 12.ed. São Paulo: Forense, 1996.

[2] ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Enciclopédico de Direito. São Paulo: Brasiliense.

[3] DE PLÁCIDO E SILVA. Dicionário Jurídico, 12.ed. São Paulo: Forense, 1996.

[4] BLANCO, Pablo Lopez, La ontología jurídica de Miguel Reale.  São Paulo: Saraiva, 1975.

[5] BOBBIO, Noberto, Teoria del la norma giuridica. ed. Torino. Giappichelli: 1958.                    

6 DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 1996.

[7] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada.  São Paulo: Saravia, 1994.

[8] PLATÃO Diálogos.         


FONTE BIOGRÁFICA:

Emmanuel Gustavo Haddad: Advogado, Especialista em Direito Processual Civil – UNIVEM, Professor da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos, Presidente da Comissão de Ética e Disciplina da 58ª Subseção da OAB – Ourinhos/SP – (eghaddad@uol.com.br)

 

O prazo para cumprimento da sentença que condena a pagar quantia certa: como se conta e quem deve ser intimado desse prazo?

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Claudionor Siqueira Benite

1. Introdução

A tendência é buscar fórmulas ágeis para a solução dos conflitos de interesses submetidos à intervenção do órgão jurisdicional. Nesse sentido converge a comunidade jurídica.

Padrões obsoletos e formalismos exagerados devem ser desprezados frente ao ideal de uma justiça rápida e efetiva. A marcha nesse sentido inicia-se quando o legislador meche na estrutura do sistema processual civil, abolindo o modelo dual de procedimento.  Nunca houve mesmo uma justificativa plausível para esse modelo, idealizado ao tempo do Império Romano.

O jurisdicionado – consumidor de justiça – nunca compreendeu muito bem esta exigência imposta pelo sistema de promover duas ações para alcançar o mesmo fim, quando despido de um título com força executiva. Primeiro a ação de conhecimento para o acertamento do direito, que terminava com a sentença; e depois a outra, executiva, que iniciava a partir da sentença e nela se fundava. Esse sistema foi difundido e adotado por todos os ordenamentos jurídicos da família romano-germana, a exemplo do Brasil.

O modelo procedimental brasileiro, até antes das primeiras reformas iniciadas no ano de 1994 era, sem dúvida, arcaico, formalista e burocratizante.

Não basta, porém, um pronunciamento célere do órgão jurisdicional às causas que lhe são submetidas à solução, como quis o constituinte derivado, elegendo como direito e garantia fundamental a razoável duração do processo[i] – como se o normativo constitucional, por si só, bastasse para solucionar o problema da morosidade da prestação jurisdicional. Além de rápida, a prestação jurisdicional deve ser efetiva. Esse é o ideal.

Com esse desiderato, o processo começa a ser compreendido como instrumento de efetiva realização do direito subjetivo material, não como um fim em si mesmo que o justifique.

Restrito ao cumprimento de sentença, o sistema processual cível brasileiro, num primeiro momento, sofre a primeira alteração com a Lei n. 8.952/94, abolindo a exigência da actio iudicati para a ação que tenha por objeto específico o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, munindo o aplicador da lei de várias medidas, ditas de apoio, que asseguram a entrega da prestação específica ou o resultado prático equivalente[1]. Vale lembrar que essa formal procedimental para cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer já era prevista no art. 84, da Lei n. 8.078/90.

Logo depois, com o segundo ciclo de reforma, veio a Lei n. 10.444/02, estabelecendo que na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de entrega de coisa, o Juiz, ao conceder a tutela específica, fixará o prazo para o cumprimento da obrigação, fundindo num só processo as fases cognitivas e executivas.

Finalmente, com o terceiro ciclo de reforma, e com certeza não será o último[2], entra em cena a Lei n. 11.232/05, para também estabelecer a unicidade de procedimento para a ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de pagar quantia, pois agora, prolatada a sentença que condene ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, o vencido ou devedor terá o prazo de 15 dias para cumprimento voluntário, do contrário estará sujeito à multa de dez por cento que incidirá sobre o montante da condenação e, a requerimento do credor, observado o disposto no art. 614, inciso II, do CPC, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação[3].

Tal como sucede com o cumprimento de sentença que condena a fazer, não fazer e entregar coisa, também a que condena ao pagamento de quantia não mais exige uma nova ação ex intervallo. O legislador estabeleceu o sincretismo processual, fundindo num único processo as fases cognitiva e executiva. Alerte-se, porém, que o processo de execução autônomo não foi abolido, reservado que está para a execução de título executivo extrajudicial e alguns judiciais, como exemplo, a sentença penal condenatório; a sentença estrangeira homologada pelo STJ e a sentença arbitral.

A doutrina encarregará de dar aos novos dispositivos o exato sentido e aplicabilidade, o que muito contribuirá para firmar o posicionamento judicial.  

O presente trabalho ficará restrito à análise da contagem do prazo para o cumprimento da obrigação de pagar quantia e quem deve ser intimado desse prazo.

2. O prazo do art. 475-J, caput, do CPC: Como se conta e quem deve ser intimado desse prazo?

 É de 15 (quinze) dias o prazo concedido ao devedor para cumprir, voluntariamente, a obrigação de pagar quantia, assim reconhecido em sentença, com vem previsto no art. 475-J, caput, do CPC, sob pena de sofrer execução. Assim é por força de interpretação literal do art. 475-I, do CPC, pois está expresso nesse dispositivo que o cumprimento de sentença far-se-á nos termos dos arts. 461 e 461-A, referindo-se às tutelas específicas de fazer, não fazer e entregar coisa, respectivamente, mas por execução, tratando-se de obrigação de pagar quantia. O legislador preferiu manter o termo execução se necessário ao cumprimento forçado da sentença que condena ao pagamento de quantia.

Como se conta e quem deve ser intimado desse prazo?

Em primeiro lugar, prolatada a sentença cível que condene ao pagamento de quantia, deve-se analisar se ela está revestida de todos os requisitos legais que lhe confere exeqüibilidade.

Preceitua o art. 586, do CPC, com a redação atual dada pela Lei n. 11.382/06, que a execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em titulo de obrigação certa, líquida e exigível[4]. Portanto, terá força executiva o título judicial desde que revestido dos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade.

Obrigação certa é aquela que não deixa dúvida do que é devido (an debeatur); líquida será a obrigação quando estabelecida e apurada a quantia devida (quantum debeatur), e exigível se não estiver sujeita a termo ou condição.

Assim, proferida a sentença que reconheça a obrigação de pagar (obrigação certa) e condene ao pagamento, abrem-se três alternativas ao vencido: cumpri-la, voluntariamente; dela recorrer ou manter-se inerte.

No primeiro caso, havendo cumprimento voluntário, extingue-se o processo, como determina o art. 794, I, do CPC.

Na segunda hipótese, poderá o vencido interpor recurso de apelação[5], no prazo de 15 dias[6], cuja contagem obedece ao disposto no art. 506, incisos I a III do CPC.

Sendo recebido o recurso em seu duplo efeito não será possível exigir o cumprimento da sentença, porque suspensos estarão os seus efeitos. Vale dizer, a sentença ainda não é exeqüível. O título, portanto, carece do requisito de exigibilidade, até que ocorra pronunciamento definitivo do órgão jurisdicional, que se traduz na coisa julgada.

Se recebido o recurso apenas no efeito devolutivo[7], poderá o vencedor promover a execução provisória. Trata-se de uma faculdade do credor, tanto assim que o §3º, do art. 475-O, do CPC, diz que ao requerer a execução provisória, o credor deverá instruir a petição com determinadas peças. Portanto, o credor, se quiser, poderá requerer a execução provisória, desde que observando certas condições inerentes a esta espécie de execução, na forma do art. 475-O, incisos I a III, do CPC.

Restará, ainda, verificar se o título judicial contempla uma obrigação líquida. Se a sentença condenatória é do tipo genérica, incumbe ao credor liquidá-la, na forma disciplinada nos arts. 475-A a 475-H, do CPC, sem o que não poderá iniciar a fase executiva, pois ausente o requisito de liquidez.

A liquidação de sentença (rectius: liquidação da obrigação contida na sentença) está reservada somente para os casos que necessite arbitramento (CPC, art. 475-C) ou quando para determinar o valor da condenação houver necessidade de alegar e provar fato novo (CPC, art. 475-E). Se líquida a obrigação de pagar ou quando a determinação do valor da condenação depender apenas de cálculo aritmético, incumbe ao credor instruir o requerimento de cumprimento da sentença com a memória discriminada e atualizada do cálculo, como preceitua o art. 475-B, do CPC, quer se trate de execução definitiva ou provisória.

Quanto à última alternativa, a inércia do vencido acarretará, fatalmente, o trânsito em julgado da sentença, operando a coisa julgada. A partir do momento que a sentença se torna exeqüível, começa a fluir do prazo de 15 dias para cumprimento, voluntário, da obrigação, sob pena de incidência da multa de 10% e o prosseguimento dos autos, agora para realização de atos executivos.

Reconhecida a obrigação de pagar quantia, por sentença transitada em julgado ou pendente recurso de apelação despido de efeito suspensivo e sendo líquida a obrigação por depender apenas de simples cálculo de atualização, como se conta o prazo de 15 dias, previsto no caput do art. 475-J, do CPC, para cumprimento voluntário?

Certo é que, prolatada a sentença ou o acórdão mister que as partes tomem conhecimento do ato judicial, o que se faz por meio do ato processual denominado de intimação, pelo qual se dá ciência a alguém para que faça ou deixe de fazer alguma coisa (CPC, art. 234).

Em regra, no Distrito Federal e nas Capitais dos Estados e dos Territórios, consideram-se feitas as intimações pela só publicação dos atos no órgão oficial (CPC, art. 236), assim também nas demais comarcas, se houver órgão de publicação dos atos oficiais, caso contrário serão intimados os advogados das partes pessoalmente ou por carta registrada, conforme o caso (CPC, art. 237).

Não dispondo a lei de outro modo, as intimações serão feitas às partes, aos seus representantes legais e aos advogados pelo correio ou, se presentes em cartório, diretamente pelo escrivão ou chefe de secretaria (CPC, art. 238). Frustrada a intimação pelo correio, far-se-á por meio de oficial de justiça (CPC, art. 239). A Lei n.11.419, de 19.12.2006, acrescenta parágrafo único ao art. 237, do CPC, prevendo a possibilidade de intimação eletrônica, a ser regulamentado por lei, respeitada a vacatio legis de 90 dias.

De qualquer forma, os prazos para as partes, para a Fazenda Pública e para o Ministério Público, contar-se-ão da intimação (CPC, art. 240), excluindo-se o dia do começo e incluindo o do vencimento (CPC, art. 184), e fluem a partir do primeiro dia útil após a intimação (CPC, art. 184, §2º, c/c o art. 240, parágrafo único).

Em síntese, sem a prévia intimação da parte ou de seu representante ou, ainda, do advogado constituído pelas partes, o ato não gera efeitos.

Diante disso, conclui-se que o prazo de 15 dias para o cumprimento da obrigação de pagar, na forma prescrita no art. 475-J, do CPC, conta-se da intimação da sentença ou, se impugnada mediante recurso recebido no duplo efeito, da baixa dos autos à instância de origem[8], em face da regra de competência funcional disciplinada no art. 475-P, incisos I a III, do CPC.

Interposto, tempestivamente, recurso da sentença condenatória e sendo recebido apenas no efeito devolutivo, o prazo de 15 dias contar-se-á da intimação do requerimento de execução provisória promovida pelo credor. Assim é porque, tratando-se de ato facultativo exclusivo do credor, o devedor somente saberá que foi manejada a execução depois de intimado do ato.  Aliás, nesse caso, o devedor deverá depositar a quantia a ordem do juízo em conta bancária remunerada, ou nomear bens a penhora, posto que, se efetuar o pagamento estará cumprindo a obrigação, prejudicando o julgamento do recurso em decorrência do disposto no art. 794, I, do CPC. Ao contrário, depositando ou nomeando bens, eventual pedido de levantamento ou de atos que importem alienação de domínio, enquanto pendente recurso, exige, por parte do credor, prestação de caução idônea, arbitrada de plano pelo Juiz (CPC, art. 475-O, III).

Humberto Theodoro Junior, em extenso artigo doutrinário, sob o título “As vias de Execução do Código de Processo Civil Brasileiro Reformado”, sustenta que é do trânsito em julgado que se conta o dito prazo, pois é daí que a sentença se torna exeqüível. Se, porém, o recurso pendente não tiver efeito suspensivo, e, por isso, for cabível a execução provisória, o credor poderá requerê-la, com as cautelas respectivas. Se o trânsito em julgado ocorrer em instância superior (em grau de recurso), enquanto os autos não baixarem à instância de origem, o prazo de 15 dias não correrá, por embaraço judicial. Será contado a partir da intimação às partes, da chegada do processo ao juízo da causa[9].

A partir do momento em que a sentença se torna exeqüível, quer porque operou a coisa julgada, ou pendente recurso desprovido de efeito suspensivo, começa a fluir o prazo de 15 dias, independente de intimação, segundo entendimentos de Athos Gusmão Carneiro[10] e Araken de Assis[11]. 

Outros há que defendem a necessidade de intimação da sentença exeqüível, sendo feita na pessoa do advogado do devedor[12]. No mesmo sentido, porém defendendo que a intimação se dê na pessoa do devedor[13].

Parece mais consentâneo com o princípio do contraditório que se realize, primeiro, o ato de intimação da sentença transitada em julgado ou da baixa dos autos à instância de origem, bem como de eventual requerimento de execução provisória, para que tenha início a contagem do prazo de 15 dias para cumprimento voluntário da obrigação, na forma prescrita no caput, do art. 475-J, do CPC.

Assim, prolatada a sentença e feita a devida publicação, as partes devem ser intimadas desse ato, na forma prevista em lei. Começa então a fruir o prazo recursal. Não interposto recurso, opera-se a coisa julgada. Da certidão do serventuário informando o trânsito em julgado, a partes serão intimadas, fluindo a partir daí o prazo de 15 dias para o devedor cumprir voluntariamente a obrigação. Caso não a realize, a multa de 10% incidirá automaticamente, podendo o credor requerer a expedição de mandado de penhora e avaliação.

Se interposto o recurso no prazo e sendo recebido somente no efeito devolutivo, faculta-se ao credor promover a execução provisória. Se assim o fizer, o devedor será intimado e a partir deste ato inicia-se a contagem do prazo de 15 dias, não para cumprir a obrigação, porém, para depositar a quantia exigida ou nomear bens a penhora, pelas razões já expostas retro.

Por fim, se o recurso interposto for recebido no duplo efeito, o prazo de 15 dias para cumprimento espontâneo da obrigação somente iniciará da intimação da baixa dos autos ao juízo da causa[14], muito embora possa ter ocorrido o trânsito em julgado do acórdão ainda quando o processo se encontrava na instância superior. Esse embaraço decorrente do trâmite judicial não pode causar prejuízo ao devedor.

A segunda ordem de indagação é a de saber quem deverá ser intimado da sentença exeqüível.

Sobre o tema, Luiz Rodrigues Wambier; Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, em artigo doutrinário intitulado: “Sobre a necessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da sentença, no caso do artigo 475-J do CPC, inserido pela Lei n. 11.232/2005”, após citar o posicionamento de vários doutrinadores[15], posicionam, com substanciosa fundamentação, que é necessária a intimação pessoal do devedor para que cumpra a sentença e não de seu advogado[16].

Os autores citados justificam o posicionamento, num primeiro plano, amparados na exegese literal do caput, do art. 475-J, do CPC, sustentando que inexiste na referida regra jurídica qualquer disposição no sentido de que basta, para que tenha início o prazo de 15 dias, a intimação do advogado do réu. Diferente do que ocorre para o caso de apresentação de impugnação à execução, porque o §1º, do art. 475-J, é expresso no sentido de que a intimação se dê na pessoa do advogado, e isto se justifica porque se trata de ato para o qual se exige capacidade postulatória.

Por outro ângulo, após distinguirem atos processuais que exigem capacidade postulatória de atos materiais de cumprimento de obrigação, os mesmos autores reforçam o posicionamento, asseverando que o cumprimento de obrigação não é ato cuja realização dependa de advogado, mas é ato da parte, ou seja, o cumprimento ou descumprimento do dever jurídico é algo que somente será exigido da parte e não de seu advogado, salvo se houver exceção expressa.

Sob a ótica constitucional do processo, por fim, arrematam com fundamento no princípio do contraditório, que, em resumo, assegura às partes o direito de informação a respeito dos atos processuais, e no princípio do devido processo legal, que abarca todas as demais regras processuais, inclusive aquelas relativas às figuras do Juiz, do Ministério Público e do Advogado[17].

Transitada em julgado a sentença, porque não houve interposição de recurso, ou se houve, restou mantida a condenação, ainda que parcial, parece mais consentânea com a ordem jurídica, a posição dos que defendem a necessidade da intimação do devedor para o cumprimento da obrigação, mesmo que por meio de simples publicação do ato no órgão oficial (CPC, arts. 236 e 237).

Com esse raciocínio defendemos a necessidade de duas intimações: a primeira para dar conhecimento da prolação da sentença, abrindo o prazo recursal que exige capacidade postulatória; a segunda para certificar o trânsito em julgado da sentença ou a baixa dos autos ao juízo da causa, quando então tem inicio a contagem do prazo de 15 dias para cumprimento da obrigação, ato pessoal do devedor e não do seu advogado, cuja inércia dará ensejo a aplicação automática da multa de 10% e, a requerimento do credor, inicia-se os atos executivos.

Tratando-se de execução provisória[18], instruída com as peças indispensáveis (§3º, do art. 475-O, do CPC), inclusive com memória discriminada do cálculo atualizado do saldo devedor, imprescindível que o devedor seja intimado pessoalmente, por mandado ou correio com aviso de recebimento[19], do requerimento do credor. Afinal estará havendo uma antecipação dos atos executórios por iniciativa exclusiva do credor, quando ainda pendente recurso recebido apenas no efeito devolutivo.

Intimado do requerimento da execução provisória, observada a contagem na forma prescrita no art. 241, c/c o art. 184, ambos do CPC, o devedor poderá, no prazo de 15 dias, manter-se inerte ou efetuar o depósito do valor, bem como oferecer bem à penhora para o fim de impugnar a execução. Não teria sentido efetuar o pagamento se pendente de julgamento recurso de apelação, pois pagar importa no cumprimento da obrigação, prejudicando o julgamento do recurso.

Por outro lado, efetuado o depósito a ordem do juízo, eventual pedido de levantamento somente será deferido mediante prestação de caução idônea, arbitrada de plano pelo Juiz, o mesmo ocorrendo se o credor pretender alienar bens penhorados, como determina o inciso III, do art. 475-O, do CPC. A dispensa da caução fica reservada para as hipóteses contempladas nos incisos I e II, do §2º, do art. 475-O, do CPC.

Por fim, na execução provisória, por coerência, também não pode haver a incidência da multa de 10%, prevista no caput do art. 475-J, do CPC, caso o devedor, intimado do requerimento do credor, não cumpra, voluntariamente, a obrigação no prazo de 15 dias, pela mesma razão do que foi dito quanto a efetuar o pagamento da quantia, se pendente de julgamento recurso de apelação. O cumprimento de obrigação de pagar é o pagamento da quantia devida. Ora se isso ocorrer, fatalmente, o julgamento do recurso restará prejudicado. Por isso, não se pode exigir do devedor, na hipótese de execução provisória, o cumprimento da obrigação, na acepção jurídica do termo, no prazo de 15 dias, sob pena de incidência da multa de 10% sobre o montante da condenação.

Somente o tempo mostrará o posicionamento que  deverá prevalecer na exegese judicial, que é, de fato, o que importa. 


[1] Confira: CPC, art. 461 e seus parágrafos.

[2] Ainda quando preparava o presente artigo, o Projeto de Lei n. 4.497/04, que tratava de alteração no Livro II, referente ao Processo de Execução fundado em título executivo extrajudicial, converteu-se na Lei n. 11.382/06, publicada no dia 06.12.2006, para começar a vigorar já no próximo dia 22.01.2007. Será este o quarto ciclo de reforma?

[3] Confira o Art. 475-J. Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação.

[4] Reserva-se para outra oportunidade crítica à redação do novel artigo. Porém, melhor seria se o legislador dissesse que “a execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título que represente obrigação certa, líquida e exigível.” Afinal, o título, seja judicial ou extrajudicial, é apenas a forma instrumental que agasalha a obrigação.

[5] CPC, art. 513.

[6] CPC, art. 508.

[7] As hipóteses possíveis de recebimento de recurso de apelação apenas no efeito devolutivo estão arroladas nos vários incisos do art. 520, do CPC.

[8] Evidente que, no caso, trabalha-se com a hipótese do acórdão ter mantido a sentença condenatória ao menos parcialmente.

[9] THEODORO JUNIOR, Humberto. Revista iob de direito civil e processual civil, v. 8, n. 43, set/out.,2006, p.64

[10] GUSMÃO CARNEIRO, Athos. Nova execução. Para onde vamos? Vamos melhorar. RePro 123, p. 118.

[11] ASSIS, Araken. Cumprimento de sentença. Rio de janeiro: Forense, n. 79, 2006, p. 212.

[12] ALVIM, J. E. Carreira (José Eduardo Carreira). Alterações do código de processo civil. 3. ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 158; ALVIM, J. E. Carreira e ALVIM CABRAL, Luciana Gontijo Carreira. Cumprimento da sentença. Curitiba: Juruá, 2006, p. 66.

[13] CÂMARA, Alexandre Freitas. A nova execução de sentença. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 114.

[14] Desde que mantida a sentença condenatória total ou parcialmente, por óbvio.

[15] Dentre os vários, Cássio Scarpinella Bueno entende que, tendo havido recurso, o prazo em questão tem início após a intimação das partes acerca da baixa dos autos, bastando que a intimação, neste caso, se dê na pessoa de seus advogados. (BUENO, Cássio Scarpinella. A nova etapa da reforma do código de processo civil. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 78). Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery também defendem que a intimação para o cumprimento da sentença deve ser feita aos advogados (NERY Jr, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. CPC comentado, 9.ed. RT, 2006, p. 641).

[16] WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALVIM WAMBIER, Teresa Arruda e MEDINA José Miguel Garcia. Revista iob de direito civil e processual civil. Porto Alegre: Síntese, v.7, n. 42, jul/ago., 2006. pp. 71/76.

[17] Idem ibdem, pp. 73/76.

[18] Sendo este ato, repita-se, facultativo e exclusivo do credor.

[19] Não se aplica a exceção prevista na alínea “d” do art. 222, do CPC, porque, no caso, não se trata de um processo de execução, mas simples fase complementar do processo de conhecimento.



[i] CF, art 5º LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.


 

 

Claudionor Siqueira Benite: Advogado, Mestre em ciência jurídica, Professor na Faculdade de Direito do Norte Pioneiro e das Faculdades Integradas de Ourinhos.

 

 

FONTE BIOGRÁFICA:

A tragédia da Gol e seus reflexos jurídicos e sociais

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  * Marta Neves.

A queda do Boeing da Gol, vôo 1907, em 29 de setembro de 2006, que partiu de Manaus com destino ao Rio de Janeiro, certamente é uma das tragédias mais marcantes e que ainda vem repercutindo no cenário nacional.

Muito embora já tenham se passado mais de três meses desde o terrível acidente, ainda pairam no ar muitas dúvidas e especulações a respeito, o que lamentavelmente vem induzindo a alguns a tirarem proveito da delicada situação à custa da dor e da angústia dos parentes das respectivas vítimas, inflamando-se de insensibilidade e falta de respeito ao luto e à dor pela repentina perda.

Em que pesem opiniões contrárias, com as quais comungam os que vêem a possibilidade de acordo nas indenizações aos familiares, e ressaltando que não estou aqui tecendo qualquer comentário defensivo ou pessoal, mas tão-somente jurídico e opinativo, sem pretender causar qualquer juízo de valor, entendo que a referida empresa aérea não possui qualquer culpabilidade neste episódio, senão vejamos.

 

De fato, numa análise preliminar do Código de Defesa do Consumidor, até se poderia ventilar a responsabilidade objetiva da Gol, como claramente prevê o artigo 14, da Lei 8.078/90 :

 

Art. 14 – O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

 

Entretanto, no mundo jurídico, à toda regra cabe sua respectiva exceção e, como não poderia deixar de ser diferente, temos na continuidade deste mesmo artigo, mais especificamente no inciso II, do § 3º, a possibilidade de exclusão da culpabilidade nos seguintes termos:

          

Art. 14 – (omissis).

§ 3º – O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

I – (omissis);

II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. (grifei)

 

Ora, pelo que se sabe até o presente momento, a aeronave da Gol obedecia rigorosamente o plano de vôo traçado pelos órgãos oficiais o que, em princípio, possibilitaria um trajeto seguro aos passageiros desde a partida até o destino final.

 

Ao que tudo indicada, e cuja tese ainda não foi derrubada, permanecendo inalterada até que se prove o contrário, a queda do Boeing foi causada pela(s) empresa(s) americana(s), o que por uma questão ética aqui me restrinjo a não citar nomes pois, como inicialmente informado, o presente artigo tem caráter meramente opinativo. Em suma, e é o que realmente interessa, a responsabilidade pelo desastre aéreo foi exclusivamente causada por culpa de terceiros.

 

Portanto, e tomando por fundamento a minha experiência como advogada em Direito do Consumidor, acredito plenamente que a Gol está excluída do campo da responsabilidade objetiva e, uma vez confirmada esta tese perante os tribunais pátrios, o processo que porventura for ingressado aqui no Brasil será fatalmente indeferido em desfavor de quem estiver buscando a indenização.

 

Mas ainda prosseguindo no campo da especulação, e para que não pairem mais dúvidas acerca das levianas informações obtidas por meio de pessoas que estão se passando por profissionais experientes, e ainda muito embora se esteja fartamente mostrando a isenção da culpabilidade da Gol, há também comentários no sentido de que esta empresa aérea vem buscando uma composição junto aos familiares, resguardada pelas seguradoras que a aeronave possuía ao tempo do evento danoso.

 

De qualquer forma, deve-se ter toda a cautela possível nestes casos, pois o valor oferecido aqui em nosso país é ainda muito aquém do devido e, mesmo que a proposta pareça tentadora, uma mera especulação na casa de R$ 1.000.000 (um milhão de REAIS), é ainda muito abaixo da indenização fixada pelos tribunais estrangeiros, arbitrada em torno de U$2.000.000 (dois milhões de DÓLARES) por vítima, o que é claro dependendo da avaliação pessoal caso a caso.

 

Justifica-se a disparidade da apontada diferença de valores por uma razão óbvia: é que nos Estados Unidos, país eminentemente capitalista, a preocupação maior da imposição de uma penalidade elevada é de se impedir a reincidência da tragédia e, por via oblíqua, se estaria evitando desgastes no mercado financeiro provocados por uma possível queda na bolsa, além, é claro, de preservar que outras famílias passem pelo mesmo sentimento penoso e destruidor.

 

Muito longe e ao contrário dessa realidade ocorrida lá, aqui no Brasil lamentavelmente a questão ainda é vista sob a ótica banalizadora da “industrialização do dano moral”.

 

Ora, é fato que a dor não tem preço! Isso todos sabemos. Porém, não precisamos cair no descaso, como vem reiteradamente ocorrendo nas relações consumeristas do dia-a-dia. Isso sem se falar na demora dos julgamentos das demandas judiciais aqui propostas, que perduram anos e anos…diferentemente da realidade americana. Por aqui nem sempre se tem o prazer de ver o veredicto final, deixando-se para os herdeiros aquilo que poderia ter sido usufruído em vida pelo autor da ação.

 

Comentários subjetivos à parte, de uma forma ou de outra estamos diante do cerne de toda a questão duvidosa que gira em torno da apontada especulação e que vem dando azo a levianas informações sem qualquer cunho fático ou jurídico.

 

Num momento como este, é profundamente lamentável e desrespeitador que alguns estejam se passando por pessoas gabaritadas na matéria, ferindo a moral e os bons costumes dos excelentes profissionais jurídicos que trabalham com afinco e seriedade nesta área.

 

Pelo que vem ocorrendo, os meus profundos sentimentos, pois, além de advogada, e foi isso inclusive que me incentivou a estudar o Direito, também fui muito mal assessorada juridicamente por ocasião do falecimento do meu marido.

 

Por derradeiro, deixo desde já minhas escusas pelo desabafo, mas não poderia me furtar de dividir com vocês algumas palavras de esclarecimentos de ordem legal e de solidariedade aos entes que ainda estão sem a devida e responsável assistência jurídica.

 

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA:

MARTA NEVES  é professora universitária, mestre em direito e advogada militante em Direito do Consumidor da Opice Blum Advogados Associados (www.opiceblum.com.br), em São Paulo/SP, em parceria com o escritório norte americano do Dr. Newton B. Schwartz, com larga experiência em ações indenizatórias de acidentes aéreos (Millon Air – Equador – 1998; Aeromexico – Califórnia – 1998; Chile Air – Chile – 1998; Silk AirCalifórnia – 1999; Trans Peru – Chicago – Illinois – 1999; Bolivian Helicopter – Bolívia – 1999; Eastern China Air – Inner Mongólia – 2004; Siberian Airlines – 2006).