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Brigas entre chefe e subordinada nem sempre configuram dano moral

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DECISÃO: TST –  “Nem sempre o difícil relacionamento entre o chefe e o subordinado gera dano moral. O difícil relacionamento entre eles pode, eventualmente, ser ofensivo, se o tratamento que o chefe dispensa ao subordinado vem permeado pelo propósito de humilhar ou de reduzir sua importância no contexto da unidade profissional”. Balizada nessa linha de raciocínio, a Quinta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, acompanhando o voto do relator, ministro João Batista Brito Pereira, reformou decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG) que havia concedido R$ 100 mil de indenização por danos morais a uma ex-servidora do Banco do Brasil.

A dramática história relatada pela bancária aposentada está inserida em oito volumes do processo trabalhista iniciado em junho de 2001, revelando a conturbada relação entre chefe e subordinada, que culminou com pedido de indenização por danos morais e físicos em torno de R$ 700 mil. De um lado da contenda, uma advogada, admitida por concurso público como escriturária, que se disse perseguida de forma “criminosa” por seu chefe. De outro, o Banco do Brasil, que baseou sua defesa no fato de a empregada ter sido diagnosticada por psiquiatra como portadora de transtorno bipolar, o que a levaria a fantasiar exageradamente as situações vivenciadas no ambiente de trabalho.

A empregada entrou para os quadros do Banco do Brasil em 1984. Disse que, apesar de ter sido admitida como escriturária, desenvolveu por longos anos a função de digitadora, vindo a adquirir doença profissional conhecida por Lesão por Esforços Repetitivos (LER). Segundo consta na petição inicial, o mal teria atingido o braço direito, causando-lhe dores fortes, a ponto de ficar impossibilitada para o trabalho e ter sido afastada por diversas vezes pelo INSS com recomendação de submissão a tratamento pelo Centro de Reabilitação Profissional do instituto social.

As constantes licenças médicas, segundo ela, teriam desagradado à chefia, e a relação entre chefes e subordinada ficou tão conturbada que algumas vezes chegaram até mesmo às vias de fato. Na visão da empregada, a perseguição sistemática desenvolvida por seus superiores foi tão intensa que a levou a apresentar um quadro clínico de profunda depressão. Ela foi aposentada prematuramente, aos 36 anos, não pela LER, mas por ser portadora de transtorno bipolar. A doença, conhecida antigamente pelo nome de psicose maníaco-depressiva, caracteriza-se por alterações do humor, com episódios depressivos, eufóricos e maníacos.

Na ação trabalhista intentada contra seu empregador, a escriturária pediu, dentre outras verbas, o reconhecimento da culpa do Banco do Brasil pela aposentadoria precoce por invalidez, com indenização por danos morais de 100 salários de um advogado pleno do BB e por danos físicos no valor de R$ 500 mil, além de pensão para cobrir as perdas salariais que teria se fosse ativa.

O banco, em contestação, negou a ocorrência do dano moral e disse que as “perseguições” alegadas pela empregada não passavam de “delírios” provenientes da doença. Apresentou diagnóstico de psiquiatra atestando que a empregada sofria problemas de ordem emocional, inclusive com episódios de tentativas de suicídio. Concluiu alegando que a bancária teve atritos em todos os setores onde trabalhou.

O magistrado de primeiro grau ouviu testemunhas e analisou a farta documentação carreada pelas duas partes e concluiu pela existência do dano moral. “A empregada enfrentou ambiente hostil, de descaso e perseguição sistemática. Dizer que isso não passa de delírio, postura sintomática de seus males psíquicos, é prosseguir na conduta antijurídica de vilipendiar a reclamante, fazendo sangrar feridas que ainda não cicatrizaram”, destacou o juiz. O pedido de indenização por danos físicos foi julgado improcedente, mas o banco foi condenado a pagar R$ 100 mil pelos danos morais.

Houve recurso de ambas as partes ao TRT/MG, mas a condenação em danos morais e o valor arbitrado da indenização foram mantidos. “A empregada sofreu doença profissional que a impossibilitou parcialmente para o trabalho desde 1989 quando, também, foi constatado estar ela acometida de ansiedade e depressão. Tratava-se, portanto, de uma empregada já atingida pelo infortúnio e acometida de séria doença não profissional, ou seja, a depressão bipolar, que a levou a aposentar-se por invalidez, precocemente. Merecia, portanto, toda a atenção e a compreensão de sua chefia e dos seus colegas de profissão, devendo ser tratada com cortesia e, mesmo, com a ajuda e amparo de todos. A prova oral produzida, porém, confirmou sua alegação feita na inicial em relação ao rude tratamento recebido de seu chefe, fazendo-a enfrentar um ambiente hostil”, destacou o acórdão do TRT.

A matéria chegou ao TST por meio de recurso das duas partes: o agravo de instrumento da empregada não foi provido e o recurso de revista do Banco do Brasil recebeu provimento para, reformando o acórdão do regional, julgar improcedente o pedido de indenização por dano moral.

De acordo com o voto do ministro Brito Pereira, o TRT registrou no acórdão que o tratamento do preposto do banco dispensado à empregada não revelou situação de humilhação. Ao contrário, o TRT esclareceu que o Banco procurou readaptar a escriturária, que ficara impossibilitada parcialmente para o trabalho por algum tempo, além de confirmar que ela foi acometida de ansiedade e depressão bipolar, doença não profissional, que gerou a aposentadoria por invalidez.

“Do exame dos fatos extraídos do acórdão regional, vê-se que estão ausentes os pressupostos ensejadores do dever de indenizar, dado que o mau relacionamento ou as divergências de entendimentos no ambiente de trabalho, tal como narrados pelo Tribunal Regional, não passaram de meras divergências entre advogados, nem ficou revelado qualquer propósito de humilhar a reclamante no seio da unidade profissional onde ambos trabalhavam”, disse o ministro relator. Segundo ele, para a configuração do dano moral concorrem três pressupostos básicos: o dano propriamente dito; a culpa ou dolo do agente a quem se imputa a ação ou omissão; e o nexo de causalidade entre o dano e o comportamento do agente. “Na espécie, contudo, do que se extrai do acórdão recorrido, nem mesmo o dano se configurou, porque o sofrimento da reclamante não decorreu de ato do preposto do reclamado”, concluiu. (AIRR e RR 804/2001-100-03-00-0)

 

FONTE:   TST, 14 de junho de 2007

 


Cidadania e Meio Ambiente, à luz da Constituição Federal: uma reflexão necessária – Parte I

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*Clovis Brasil Pereira –

A proteção do meio ambiente, quer natural, quer artificial, é de fundamental importância  à sobrevivência da humanidade, e tem recebido atenção especial  nas legislações mais modernas, na maioria dos países do mundo.

No Brasil essa preocupação não é diferente e, a partir da Constituição Federal de 1988, o meio ambiente ganhou  notoriedade, ao ser guindado à condição de um direito assegurado na  própria carta magna.

Prevê a Constituição em seu artigo 225 que: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”.

Tal dispositivo constitucional atribui particularmente “à coletividade o direito de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Para o pleno exercício da proteção ambiental, o legislador  constituinte  criou um instrumento processual hábil para que os cidadãos brasileiros  possam  defender o meio ambiente de todas as  agressões que se repetem e se perpetuam em nosso país, deteriorando a fauna, a floresta, a água, o solo, o ar, dentre outros bens ambientais, inclusive  o meio ambiente artificial, essencial à vida humana,  notadamente nos grandes aglomerados urbanos.

Assim, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inc. LXXIII,  que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, criou a ação popular ambiental, ao prescrever in verbis que:

“Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.”

A partir de então, se tornou indispensável repensar o conceito de cidadania,  já que, pela Constituição então vigente,  cidadão era apenas aquele que estava habilitado para o exercício do voto, na época, o maior de 18 anos e alfabetizado.

Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, apenas  essas pessoas, qualificadas como cidadãos,  é que detinham a legitimidade ativa para proposição de  Ação Popular, disciplinada pela Lei nº 4.717/65.

O conceito de  cidadania no novo texto constitucional (art. 1º, inc. III), ganhou  uma nova dimensão,  mais elástico, mais abrangente, aparentemente  sem barreiras, notadamente  por ter sido colocado ao lado da dignidade da pessoa humana, e como  fundamentos   validados pelo Poder Constituinte, a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no País.

O novo cidadão idealizado  pelo Constituinte é muito diferente do conceito de cidadão trazido na Constituição de 1967, e na Emenda Constitucional nº 1, de 1969, promulgadas em pleno regime de exceção, onde  a tônica era o desrespeito aos mais comezinhos direitos civis e políticos.

Para o exame da legitimidade ativa, para a nova ação popular ambiental, e para a discussão do novo conceito de cidadão encampado pela Constituição vigente,  é importante um sumário retrospecto  do conceito de cidadania ao longo da História do Brasil, desde a Proclamação da Independência Política  do Brasil, até nossos dias,  notadamente, quanto  ao tratamento  que cada Constituição deu  para o desenvolvimento da cidadania, ora assegurando, ora negando,  o exercício dos diretos civis, direitos políticos e direitos sociais aos brasileiros.

É válido supor que  o texto constitucional de 1988 reproduziu o avanço da participação popular que,  por sua vez,  acabou redundando numa melhor organização da sociedade ou, pelo menos, criou as condições favoráveis para que tal organização possa ocorrer,  como resultado da maior  consciência da importância da participação política de cada brasileiro. 

 

Texto extraído da Dissertação de Mestrado do Autor , “A LEGITIMIDADE ATIVA NA AÇÃO POPULAR  AMBIENTAL”, defendida em agosto de 2006, na UNIMES – Universidade Metropolitana de Santos, perante a Banca Examinadora presidida pelo Professor Doutor  Celso Antonio Pacheco Fiorillo.

 

DADOS BIOGRÁFICOS:

CLOVIS BRASIL PEREIRA:  Advogado, Especialista em Direito Processual Civil, Mestre em Direito,  Professor  Universitário,  ministra cursos práticos de Atualização  Profissional nas Unidades da ESA – Escola Superior da Advocacia e em Curso Jurídicos, no Estado de São Paulo.  É  coordenador  e  editor responsável do Site  Jurídico   www.prolegis.com.br.     E-mail para contato:  prof.clovis@terra.com.br

 

 

 


 


Preso que estuda tem remissão do tempo de pena

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 DECISÃO  –   O estudo é tão importante para ressocializar um preso quanto o trabalho. A partir desse entendimento, a 3ª Seção do STJ vem garantindo a apenados de regime fechado e semi-aberto a remissão de pena prevista no artigo 126 da Lei de Execuções Penais, não só para os que trabalham, conforme expresso na lei, mas também para aqueles presos que se dedicam ao estudo.

O posicionamento está pacificado entre os ministros da 3ª  Seção – composta pela 5ª e 6ª Turmas. Na visão dos julgadores, a freqüência às aulas nos presídios serve como estímulo para ressocialização do apenado, mais do que qualquer trabalho “braçal”. Em tese, o condenado retornará à sociedade mais adaptado ao seu convívio.

Um dos primeiros casos sobre o tema foi julgado no STJ em 2003, na 5ª  Turma. Um preso gaúcho, cumprindo pena de 16 anos por homicídio, cursou aulas de alfabetização. Pleiteou e obteve a remissão na proporção de um dia de pena remido para cada seis de estudo, assim que comprovada sua participação e rendimento nas atividades.

O recurso que discutiu a hipótese de remissão pelo estudo chegou ao STJ depois que o Ministério Público contestou a aplicação do benefício. O relator à época, ministro Gilson Dipp, esclareceu que um dos objetivos da lei, com a remissão, é incentivar o bom comportamento do sentenciado e a readaptação ao convívio social.

Noutro caso, julgado pela 6ª  Turma em 2005, um preso do Estado de São Paulo pedia habeas-corpus ao STJ. O TJ paulista havia cassado a decisão da primeira instância pela qual ele teria 23 dias da pena remidos por ter comparecido a curso de alfabetização. O relator, ministro Hélio Quaglia Barbosa, também entendeu que a freqüência a aulas tem mais possibilidade de ressocializar o preso do que qualquer atividade laboral.

A remição pelo trabalho vem sendo concedida pelos juízos de execução penal à razão de três dias de trabalho para cada dia remido de pena, com jornada diária de seis a oito horas, o que significa que fica remido um dia de pena para cada 18 a 24 horas de trabalho.

No que se refere ao trabalho educacional e profissionalizante, os juízes têm levado em consideração a grande elaboração intelectual, o que dispensaria a exigência de jornada mínima de seis horas diárias. (Resp nº  445.942 e  HC nº 43.668).
ção do JORNAL DA ORDEM, 13 de junho de 2007

 


 

FONTE:  STJ – Reda

 

Jornal indenizará com 500 salários juiz acusado na Operação Anaconda

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DECISÃO:   Saiu a primeira condenação por dano moral causado após a Operação Anaconda, da Polícia Federal. O jornal O Estado de S. Paulo foi condenado a pagar 500 salários mínimos (R$ 190 mil), acrescidos de juros de 12% ao ano, ao juiz Ali Mazloum, da 7ª Vara Criminal Federal de São Paulo.

A sentença é do juiz Jomar Juarez Amorim, da 25ª Vara Cível Central de São Paulo.  O jornal pode recorrer ao TJ-SP.

A empresa jornalística também está obrigada a publicar a sentença no jornal e no seu saite, no prazo de dez dias, depois do trânsito em julgado. Na hipótese de descumprimento, haverá multa diária de R$ 50 mil.

A ação foi motivada por reportagem publicada na edição de 20 de dezembro de 2003, quando o jornal apontou que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal teriam encontrado documentos que comprovariam uma suposta remessa de dólares ao Líbano. A reportagem apontou o nome do juiz Ali Mazloum.

O juiz que sentenciou o caso entendeu que houve julgamento precipitado por parte do jornal. Ele afirmou, ainda, que "na tentativa de produzir jornalismo investigativo, um importante instrumento da democracia, o jornal caiu na inconseqüência e na leviandade".

O advogado Eduardo Ribeiro de Mendonça, que atua em nome do juiz, vai recorrer ao TJ-SP. Ele quer aumentar o valor da condenação. (Proc. nº 18066/2004)


FONTE:   Redação do JORNAL DA ORDEM, 13 de junho de 2007

Terminologia jurídica não pode ser utilizada por tribunais arbitrais

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DECISÃO – * TJ-DF – As denominações juiz, juiz arbitral, processo, citação e intimação não podem mais ser empregadas pelo Tribunal de Mediação e Justiça Arbitral do DF, ante o risco de induzirem o consumidor a erro.

Esse é o resultado de um acordo (Termo de Ajustamento de Conduta) firmado entre o MP-DFT e o Tribunal de Mediação, e homologado pelo juiz da 9ª Vara Cível de Brasília. O acordo levou em consideração o fato de "tais palavras estarem ligadas à área jurídica, sendo que tal instituição (Tribunal de Mediação e Justiça Arbitral do DF) não é órgão integrante do Poder Judiciário".

A ação, ajuizada pelo MP-DFT, ensejou também a proibição de utilização, em papéis ou no estabelecimento arbitral, de Armas e Símbolos Nacionais ou quaisquer outros signos que possam confundir o cidadão. Isso porque o próprio nome – tribunal – leva a um entendimento errôneo de que a instituição arbitral trata-se de órgão público, quando na verdade é de natureza privada.

A utilização da designação de juiz por parte do órgão arbitral também é rejeitada, diante das peculiaridades de tal cargo, entre elas, natureza pública e vitalícia, provido exclusivamente por meio de concurso público de provas e títulos realizado com a participação da OAB/DF, e obrigatoriedade de formação em Direito. Tais requisitos não são os mesmos exigidos para o desempenho do papel de árbitro – figura representativa dos tribunais arbitrais.

No acordo firmado, o Tribunal de Mediação e Justiça Arbitral comprometeu-se ainda a não mais convocar as partes com o objetivo de firmar compromissos, visto que a arbitragem só pode ser processada quando as partes comparecem diante do árbitro ou mediador de forma voluntária.

O Termo de Ajustamento de Conduta também estabelece que o órgão não pode indicar, sugerir ou estimular a inserção de cláusulas compromissórias em contratos de adesão, ou contratar serviços de arbitragem com qualquer das partes, antes de sua efetivação.

O descumprimento de quaisquer dessas obrigações motiva a aplicação de multa no valor de 500 mil reais, a ser aplicada pelo juízo competente. (Proc. nº 2004.01.1.052917-5).

 


 

FONTE:   TJ-DFT – Redação do JORNAL DA ORDEM, 13 DE JUNHO DE 2007
 

 

Judiciário: o último reduto…

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OPINIÃO  *Elias Mattar Assad –

O conselheiro da OABRJ, Fernando Augusto Fernandes, proferiu parecer dando pela absoluta ilegalidade do que se denominou "diligências de verificação", em sede de investigação policial, executada em escritório de advogado, ainda que com ordem de ministro da mais alta corte. Destaca que foram realizadas durante a noite, sem a presença de representante da OAB, onde vasculharam arquivos confidenciais, fotografaram o local e instalaram escutas ambientais.

Invoca o disposto no Art. 7º, II, do Estatuto da OAB: "ter respeitada, em nome da liberdade de defesa e sigilo profissional, a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, de seus arquivos e dados, de sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas ou afins, salvo caso de busca ou apreensão determinada por magistrado e acompanhada de representante da OAB" para a primeira conclusão: "a norma elegeu como regra a intangibilidade do escritório, proteção, aliás, indispensável ao sigilo necessário ao exercício da profissão. A única ressalva feita no dispositivo acima refere-se, exclusivamente, à possibilidade de violação do escritório ou da residência do advogado com a precípua finalidade de busca ou apreensão determinada por magistrado e acompanhada de representante da OAB." A necessidade de acompanhamento de representante da Ordem dos Advogados do Brasil se faz indispensável à validade do ato de violação do escritório, e sua razão de ser repousa, obviamente, sobre a inviolabilidade da profissão.

Num segundo momento, o parecerista invoca o artigo 5°, XI, da CF("durante o dia, por determinação judicial") observando que a diligência feita durante a noite é ilícita.

Quanto à instalação de escuta ambiental em escritório de advogado, como um dos objetivos dessa "diligência", asseverou: "deve-se ater ao fato de que a inviolabilidade da comunicação entre advogado e cliente (Art. 7°, II do EOAB), em observância ao núcleo fundamental do princípio da preservação da intimidade (Art. 5°, X, da CF), não comporta exceção alguma. O STJ, em recente decisão (HC 59.967/SP, Rel. ministro Nilson Naves), corroborou este posicionamento: "Conversa pessoal e reservada entre advogado e cliente tem toda a proteção da lei, porquanto, entre outras reconhecidas garantias do advogado, está a inviolabilidade de suas comunicações. 3. Como estão proibidas de depor as pessoas que, em razão de profissão, devem guardar segredo, é inviolável a comunicação entre advogado e cliente. 4. Se há antinomia entre valor da liberdade e valor da segurança, a antinomia é solucionada a favor da liberdade. 5. É, portanto, ilícita a prova oriunda de conversa entre o advogado e o seu cliente. O processo não admite as provas obtidas por meios ilícitos…"

Arremata: "É inadmissível que o Poder Judiciário convalide qualquer violação às garantias leg ais do livre exercício da advocacia, autorizando a invasão de escritórios com a finalidade de realizar investigações genéricas e instalar escutas ambientais, contrariando as exceções expressas da Lei 8.906/94, que autoriza o ingresso em tais locais apenas para realização de busca e apreensão determinada, através de mandado judicial… Incursões policiais feitas na calada da noite, tal qual costumavam proceder os estertores da democracia no recente período da ditadura militar, serão sempre ilícitas, ainda que tenham autorização judicial, e por isso, ilícitos serão quaisquer meios de prova obtidos através de tal expediente…" Nossos efusivos aplausos! Que o último reduto da legalidade e do estado de direito assim proclame…

 


 

Elias Mattar Assad (eliasmattarassad@sulbbs.com.br)é presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas.

Direito e meio ambiente

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* João Baptista Herkenhoff

             O zelo pelo meio ambiente insere-se dentro de uma específica visão de mundo e de homem.

             Se temos uma concepção hedonista da vida, se nosso horizonte de preocupações fecha-se nos limites de nossa própria casa, se o prazer pessoal e ilimitado é nossa referência – não há razão para que pensemos sobre meio ambiente. Se, ao contrário, nós nos vemos como partícula do universo, se nosso destino como pessoa projeta-se no destino comum dos seres, se raciocinamos numa perspectiva de futuro – gerações sucedem gerações, então, nesta compreensão do papel que desempenhamos no Universo – meio ambiente é tema que nos toca profundamente.

           O Direito não está alheio às questões ambientais. Há um ramo do Direito que se debruça justamente sobre o desafio de preservar a sanidade do ambiente em sua dimensão global, visando à sua sustentabilidade, quer para as gerações presentes, quer para as futuras gerações. Trata-se do Direito Ambiental.

 A Constituição Federal estabelece que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Este é considerado bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida. Cabe ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo.

 Miguel Reale escreveu muito inspiradamente em suas “Memórias”:

 "A civilização tem isto de terrível: o poder indiscriminado do homem abafando os valores da Natureza. Se antes recorríamos a esta para dar uma base estável ao Direito (razão de ser do Direito Natural), assistimos hoje a uma trágica inversão, sendo o homem obrigado a recorrer ao Direito para salvar a natureza que morre".

 O “Direito Ambiental” constitui parte da educação para a Cidadania e os Direitos Humanos. Em primeiro lugar porque a proteção do ambiente é a segurança da sobrevivência sadia das gerações futuras. Em segundo lugar porque a Ciência do Direito tende a ampliar a idéia de Direitos Humanos para além da espécie humana consagrando autênticos direitos da natureza.

 Muitas Faculdades de Direito incluem o “Direito Ambiental”, no currículo acadêmico, seja como disciplina obrigatória, complementar ou eletiva. Devido à importância desse estudo, o interesse por ele transpõe os muros do espaço jurídico, alcançando profissionais de várias áreas.

 A consciência ambiental disseminada na opinião pública assume especial relevância na atualidade, para que todos sejamos guardas da natureza, defendendo-a de agressões e esbulhos. A preservação ambiental convoca as três esferas de governo – federal, estadual e municipal. Igualmente, o compromisso com a defesa do ambiente reclama a atuação dos três poderes – legisladores que façam leis protetoras, autoridades do Executivo que estejam vigilantes, magistrados preparados para aplicar, com descortino, o Direito Ambiental nas suas decisões.

 Parece-me que estas reflexões são muito oportunas na “Semana do Meio Ambiente”.

  REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

 

João Baptista Herkenhoff é Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo – professor do Mestrado em Direito e escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Homepage: www.joaobaptista.com

 

 


Direito de Antena e Liberdade de Expressão

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  * Armando Rodrigues Coelho Neto –

Telecomunicação, radiodifusão e os vícios de hermenêutica. De como opressor cria o direito e define os oprimidos que dele não desfrutarão. Violência estatal contra o direito de informar e ser informado

INTRODUÇÃO

      “Desde a invenção do jornalismo no Império Romano, o Estado e sua polícia tentam impedir a liberdade de circulação de idéias e a livre comunicação, que são naturais como a circulação do sangue”, diz em editorial, o jornal Rádio Comunidade, edição 3, veiculado em outubro de 2002. Mais à frente, como que para chamar a atenção do leitor para perpetuação do absurdo, relata que, no “século XVII, a polícia inglesa levava o terror aos lares, na madrugada, prendendo os jovens que usavam a tipografia inventada por Guttenberg e que era um privilégio dos reis e da igreja”. E não fica por aí. No século passado, “a KGB, a famosa polícia secreta soviética, apreendia máquinas de datilografar de quem não era membro do partido único”. Como que para reafirmar o congelamento de uma cena, pontua o Brasil: “durante a ditadura militar, eram presos os mimeógrafos estudantis.”1

     O editorial nos reporta à cenas que pareciam fazer parte do passado, mas que lamentavelmente são cenas do dia-a-dia. De forma truculenta, ilegal, mediante constrangimento e cercados de dúvidas quanto a real motivação, agentes do Governo Federal, sejam eles representados pela Anatel ou pela Polícia Federal, vêm reproduzindo ações semelhantes, desenhando um quadro paradoxal quando confrontados com a Constituição Cidadã de 1988. Tudo para reprimir pequenas emissoras de rádio e televisão denominadas comunitárias. Acobertados pelo suposto manto da legalidade e pretensamente justificados pelo cumprimento do dever, tais agentes prendem cidadãos e lhes expropriam seus bens, enquanto comunidades são mutiladas de seus pequenos veículos de comunicação.

     Em síntese, a atualidade evidencia nada muito diferente do que ocorria nos tempos do Império Romano e da KGB. Á semelhança, pessoas são presas, constrangidas, seus bens são apreendidos, cabendo o registro de que estes últimos têm como destino o apodrecimento nos “porões da democracia”, conseqüência de ações ilegais da Anatel (que não tem poder para lavrar auto de apreensão)2, cujo trabalho conjunto com a Polícia Federal transcorre sem o devido processo legal3.

     A prática repressiva tem como fundamento prático, supostas interferências até na navegação aérea, como as exibidas ontem, 29 de maio, no Jornal Nacional da Rede Globo, que, aliás, não ouviu o outro lado ou qualquer das inúmeras entidades que congrega pequenas emissoras, assim como o fez nas demais reportagens que exibiu na edição de 29 de maio sobre a Operação Navalha. Mas, quem ousaria dizer sim, quando o pretenso discurso científico diz não? 

     O tema é tratado como se vivêssemos na idade da pedra ou diante de uma realidade irreversível, a justificar ironias do gênero: se tais rádios derrubassem aviões Sadan Hussein teria vencido a guerra.   

     Assim, ao suposto argumento factual incontornável, como se todas as pequenas emissoras estivessem instaladas na vizinhança dos aeroportos, aparecem também o apoio da mídia e interpretações distorcidas do ordenamento jurídico. Com esse aparato, está declarada a guerra contra direitos fundamentais do cidadão. Entre eles, o direito de informar e ser informado, de liberdade de expressão e de culto, cujo exercício não é crime, principalmente, como lembra o juiz Paulo Fernando Silveira4, quando o interessado requereu a autorização ao órgão governamental e dele não obteve resposta alguma. Ensina o magistrado que, em sendo o espectro eletromagnético bem de todos, cabe ao Governo Federal apenas o gerenciamento, não loteá-lo a quem bem entende. Os donatários, uma vez investidos nessa condição, sentem-se proprietários do bem público.  

     Na prática, O Governo Federal é omisso e atira as rádios na ilegalidade, tendo inclusive fechado escritórios nos estados, onde os interessados tentavam obter autorização para se enquadrar na lei hedionda. Alguns que conseguiram romper as barreiras oficiais tiveram seus pedidos paralisados por anos a fio.

     Eis o fato social, eis o ponto de partida na formação da idéia do Direito, “que surge das necessidades fundamentais das sociedades humanas, que são reguladas  por ele como condição essencial à sua própria sobrevivência”.5 No caso específico, o fato serve de pano de fundo para o debate sobre o que, nesta peça, chamaremos genericamente de radiodifusão comunitária ou uso de espectro eletromagnético, sobre o qual se abre um debate na esfera penal, vale dizer, no âmbito do Direito Penal, enquanto regulador das relações do indivíduo com a sociedade.6 Sem perder de vista, claro, que “os limites do Direito Penal são os limites do Estado”7. E, claro, o limite do Estado é a sua Carta Fundamental.

     Nos meios policiais, nos escaninhos da Anatel ou nos tribunais, as pequenas emissoras são tratadas por “rádios piratas”. Em outros círculos são simplesmente tratadas por “pequenas emissoras”, “rádios alternativas” e nos meios universitários são, singularmente, chamadas de “rádios livres”. Todas trazem uma marca comum, que é o fato de serem de baixa potência e estarem restritas a pequenas comunidades, embora com discursos distintos, que a restrição deste espaço não permite aprofundar.

     Com aquelas características, quando flagradas por agentes do Governo (Anatel ou Polícia Federal) fica aberto um longo debate que envolve vários diplomas legais a saber: Lei 9.612/78 de 19 de fevereiro de 1978, regulamentada pelo Decreto nº. 2.615, de 3 de junho de 1998; Portaria do Ministério das Comunicações de nº. 191, de 6 de agosto de 1998; Lei 4.117/62, antigo Código de Telecomunicações. Complementando o quadro jurídico, não se pode perder de vista a Constituição de 1988 e, finalmente, o Decreto 678, de 6 de novembro de 1992, que materializou a vinculação do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969.

     Sob o aparente fenômeno de uma antinomia jurídica, trataremos de contradições encontráveis na aplicação daqueles diplomas legais, sobre os quais pretendemos discorrer e, se possível, oferecer um contraponto ao pensamento vigente. A intenção é dar uma contribuição para melhor entender este grande paradoxo da Constituição Cidadã que, sistematicamente violada, acaba revelando a inconsistência de nossa Democracia. Para uma melhor compreensão desse processo e provocar uma maior reflexão sobre o problema, será inevitável uma incursão em palavras-chaves: teleologia, essência, princípio e bem jurídico.

ORDENAMENTO JURÍDICO

     Sob o ponto de vista legal em sentido estrito, a radiodifusão comunitária é tratada de forma específica na Lei 9.612/98 de 19 de fevereiro de 1998, que institui o sistema de radiodifusão comunitária e dá outras providências. É ela que no seu Art. 1º, define a questão: “Denomina-se Serviço de Radiodifusão Comunitária a radiodifusão sonora, em freqüência modulada, operada em baixa potência e cobertura restrita, outorgada a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação do serviço”.

     A Lei nº. 9.612 foi regulamentada pelo Decreto nº. 2.615, de 3 de junho de 1998 e pela Portaria do Ministério das Comunicações de nº. 191, de 6 de agosto de 1998. Referidos diplomas vieram, em tese, para explicitar os comandos democráticos da Carta Magna e atender aos anseios de cidadania da população brasileira. Tinha, em análise preliminar, o propósito de libertar as populações carentes das injustas, ilegais e abusivas intervenções do Ministério das Comunicações e das ações muitas vezes truculentas do Departamento de Polícia Federal.

     Ora, considerando a existência de uma norma específica tratando deste assunto, impõe a lógica primária que o tema deva ser tratado com base naquela lei. Não obstante isso, são incontáveis os enquadramentos criminais quanto ao uso de espectro eletromagnético, baseado em outros diplomas. Entre eles, a Lei 4.117/62, antigo Código de Telecomunicações, particularmente o Art. 70: “Constitui crime punível com a pena de detenção de um a dois anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, a instalação ou utilização de telecomunicações, sem observância do disposto nesta lei e nos regulamentos”.

     Outro diploma legal que vem sendo exaustivamente utilizado é a Lei 9.472/97, que institui o Serviço de Telecomunicações, que trata especificamente de telecomunicações. Vale dizer, até o momento, constatamos que, não raro, em detrimento das comunidades carentes, três diplomas legais vem sendo aplicados: Leis 4.117/62, 9.472/97 e 9.612/98. Com poucas exceções, os enquadramentos feitos baseados naquela legislação têm prosperado nos Tribunais, o que por si só vem a demonstrar uma flagrante contradição, ou a perda de referência dos direitos fundamentais. Noutras palavras, faz-se necessário analisar os conflitos decorrentes da aplicação de tantos dispositivos diferentes, não raro com interpretações distorcidas, forças pelo pensamento dos que estão a serviço dos grandes veículos de comunicação.

     Não obstante os três diplomas legais já mencionados, cumpre trazer à discussão o fato de que, consolidada formalmente a Democracia no Brasil, já no plano da nova Constituição de 1988, aparecem os dispositivos básicos sobre a liberdade de expressão e o uso do espectro eletromagnético, consubstanciados nos os artigos 5º, 215, 220. São eles:

“Art. 5º … IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

“Art. 215: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e difusão das manifestações culturais”.

Art. 220 da Constituição Federal:

“Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social”.

     Nunca é demasiado lembrar que, no plano constitucional, além do rigoroso espírito cidadão, o que inspirou a Carta Magna nesse segmento foi Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, o qual o Brasil assinou e se comprometeu a cumprir. Para tanto, superado o regime de exceção, o Decreto 678, de 6 de novembro de 1992 consolidou o ideário daquela convenção internacional. Vejamos o que diz aquele tratado, que foi recepcionado pela nova Carta.

Art. 13. Liberdade de pensamento e de expressão

  1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.
  2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:…
  3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências rádio-elétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.(Grifo nosso)

A ESSÊNCIA DA NORMA COMO QUESTÃO FUNDAMENTAL

      Teleologia, essência, princípio, bem jurídico são palavras que poderiam vir no final deste texto, por ser uma conclusão natural de um caminho. Elas  estão colocadas no início, por configurarem víeis inevitável, sob pena de não se chegar a lugar algum. São palavras-chaves indispensáveis para o debate sobre radiodifusão comunitária, na medida em que, no trato dessa questão, as palavras de ordem ou a principiologia das idéias se afiguram distorcidas, marcadas pelo preconceito, onde fatores políticos e econômicos têm se sobreposto à boa tradição hermenêutica. E, como corolário natural dessa anomalia, as sentenças judiciais trazem essa marca viciosa, não raro, em detrimento da Justiça.

     Usamos propositadamente o termo teleologia, porque não há como se discutir nenhuma vertente do direito, sem que se tenha a idéia exata do que está por trás de uma determinada realidade, particularmente as de natureza jurídica. E se nos fosse permitida uma colocação menos ortodoxa, falaríamos de teleologia como o conjunto das especulações aplicadas à noção de finalidade ou doutrina acerca das causas finais.8 Ou seja, a teleologia como doutrina que estuda os fins últimos da sociedade, humanidade e natureza ou, como ensinam alguns manuais, o para-quê de todas as coisas. Trata-se, portanto, de indicador que nos endereça para a essência daquilo que se pretende tratar, o ponto fundamental e determinante do sentido filosófico no qual se inspirou o legislador.

     Outra idéia introdutória assinalada vem através do termo princípio. Trata-se de dado da maior relevância no exame da questão da radiodifusão comunitária pelas razões já conhecidas, já que os resultados finais das lides a ela relacionados, são também viciados também nessa vertente. A propósito, Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele; disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, é o que ensina Maurício Ribeiro Lopes. 9

     Finalmente, com a regular compreensão da teleologia, da busca do essencial no trato do assunto e a principiologia como mandamento nuclear, cabe considerar dentro da perspectiva criminal que norteia a matéria, o conceito de bem jurídico e mais especificamente o bem jurídico protegido pela legislação específica no debate sobre a radiodifusão.

     É bem verdade que, em seu sentido amplo, a noção de bem jurídico ainda é indeterminada conceitualmente. Como também é provável que, em sendo o Direito um objeto cultural, criado pelo homem e dotado de conteúdo valorativo, está sujeito a essa própria dinâmica cultural do homem. Vale dizer, o Direito é dinâmico e não estático. Por assim ser, é possível que nisso resida a dificuldade de se conceituar bem jurídico, como conseqüência natural desse próprio processo dialético do Direito. É dentro dessa dinâmica que o próprio homem criminaliza ou descriminaliza condutas, aumenta ou reduz penas ao longo dos anos.

     De qualquer forma, mesmo inserido no burburinho e ou evolução de conceitos, existe um consenso quanto à existência de um valor atribuído a determinados interesses materiais ou não da sociedade. Para uma melhor compreensão, estamos diante de um esforço na busca de objetividade, considerando o bem jurídico como algo que a sociedade reconhece como sendo bom, do interesse de todos e que precisa ser coletivamente protegido. Visto sob a visão normativo-positivista, Binding considera bem jurídico tudo aquilo que é eleito pelo legislador como tal, ou seja, aquilo que está escrito na lei.10

 

            Ainda na busca da essência da norma e num esforço primário de didática esclarecedora, nossa discreta contribuição pessoal para o debate poderia advir de um exemplo singular. Que venha à baila para esse fim, o Estatuto da Criança e do Adolescente11 ou mesmo o Estatuto do Idoso12. Ora, se essas normas foram criadas com o objetivo de dar proteção ao menor e ao cidadão idoso, não vemos como algo possível, que se faça interpretação contrária aos interesses da criança ou de qualquer ancião. Conceber essa inversão seria uma verdadeira monstruosidade jurídica, tendo em vista ser vedado interpretação da norma, de forma contrária ao bem jurídico que ela visa proteger ou a finalidade para a qual foi criada.

TELECOMUNICAÇÕES E RADIODIFUSÃO

     Superados, mesmo que de forma superficial, as questões relacionadas a essência das normas que disciplinam o assunto, entendemos delas terem aflorado indicadores para a aplicação da lei, de maneira mais justa. Já neste ponto, a contribuição que se pretende dar é no sentido de um exame mais apurado de duas questões fundamentais, correspondentes a dois fenômenos: telecomunicações e radiodifusão.

     Durante a vigência plena do antigo Código de Telecomunicações, nem o legislador nem a lei fazia distinção entre essas duas vertentes do uso do espectro eletromagnético, ou seja, telecomunicações e radiodifusão eram tratadas de forma indistinta. E, nos últimos anos, “a diferença entre telecomunicações e radiodifusão vem se tornando cada vez mais tênue, por conta do processo de convergência tecnológica”, diz o jornalista e professor Gustavo Gindre, segundo quem, há no mundo uma tendência para unificação. Os Estados Unidos aprovaram leis em 1996 e o Reino Unido em 2003, num movimento que se repete em praticamente toda a União Européia.13 No Brasil, porém, essa diferença se mantém.  

     Como registrado acima, há uma tendência mundial de reunificação de conceitos, forçados pela tecnologia. Uma tendência que vem repercutindo no Brasil, ao ponto de a  Associação Brasileira de Roteiristas de Televisão, Cinema e Outras Mídias, através de manifesto, ter enfatizado a “urgente necessidade de uma Lei Geral para as Comunicações, que supere a atual diferença entre as Leis para Telecomunicações e a Leis para Radiodifusão.14 A propósito, três registros importantes: primeiro, se estudiosos e críticos clamam pela mudança e pela unificação, é porque essa diferença existe e é indiscutível. Segundo, a reunificação dos conceitos  na esfera internacional tem sido forçada pelas novas tecnologias. Terceiro, tal reunificação só tem ocorrido através de lei.  

     No Brasil, porém, vigorou durante muito tempo essa idéia de convergência, ou seja, telecomunicações e radiodifusão configuravam o mesmo fenômeno, até serem separados através da emissão de diplomas legais próprios. Aliás, e aqui vale o registro, tal separação ocorreu para atender os interesses dos grandes grupos econômicos da comunicação, não por qualquer outro motivo. Este também é o pensamento do professor Venício Artur Lima, criador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília (UnB). “Aparentemente, o poder político dos grupos que historicamente controlam a radiodifusão no Brasil é muito grande e seriam os seus interesses que estariam sendo preservados no anteprojeto de Lei”, afirmou a propósito de um novo projeto de comunicação no Brasil.15

     A avaliação dos estudiosos é que esses grandes grupos sempre desejaram ver regulamentado (e punido) o setor de telecomunicações, deixando livre a radiodifusão, com a robusta e polêmica bandeira da liberdade de expressão e de imprensa. Noutras palavras, argumentam os críticos, os grandes grupos queriam este segmento livre de regulamentação, abrindo, também, por conseqüência, uma rota de fuga para as eventuais penalidades. Ou seja, ver os dois temas tratados juntos sempre assustou os comunicadores, os titulares de rádios comerciais

     Distanciando-se um pouco daquele móvel, daquele espírito que em parte norteou a separação dos dois conceitos, o fato é que, pelas vias legais, telecomunicações e radiodifusão passaram a ser tratados de forma distinta, em diplomas legais diferentes. Consolidadas as idéias, temos que, quando se fala em telecomunicações, esta materialmente se desenvolve entre um emissor determinado e um receptor potencialmente ativo, ou seja, ocorre a interatividade do receptor em relação ao emissor. Esse processo interrelacional é mediado ou viabilizado por empresas especializadas, servindo como exemplo empresas como Telefônica, Telemar, as denominadas teles. 

     A propósito, o Decreto 97.057, de 10/11/8816, no artigo 11º “Circuito de Telecomunicação: conjunto de meios necessários a criar um enlace físico, ótico, ou radioelétrico, para a transmissão bilateral de sinais de telecomunicação entre dois pontos” (bilateralidade). Mesmo quando se refere a unilateralidade, este diploma refere-se a fator transmissivo relacionado à comunicação entre dois pontos.

      A Teleco, comunidade virtual composta por especialistas em telecomunicação, assim se pronuncia sobre este tema. “A Emenda Constitucional nº 8, ao introduzir a condição de exploração dos serviços públicos de telecomunicações pela iniciativa privada, acabou por diferenciar os serviços de telecomunicações e radiodifusão. O marco regulatório do setor de telecomunicações, a LGT, reforçou esta diferença ao manter a radiodifusão regida pela Lei n. º 4.117/62 e reafirmar a validade da Lei do Cabo para disciplinar uma das formas do serviço de TV por assinatura”.17

     Por outro lado, no caso da radiodifusão, o resultado final do processo fica em aberto, cujo receptor indeterminado, anônimo, é geralmente múltiplo e, diferentemente das teles, não depende de licença ou pagamento de contas para ter acesso à mensagem transmitida. É o caso do ouvinte do rádio que, basta ter um pequeno rádio adquirido até em camelôs, e estará apto a receber a informação. Trata-se de receptor passivo dentro do processo comunicacional e por isso não interage de forma efetiva, direta e imediata com o transmissor ou emissor, no caso, uma emissora AM ou FM de rádio. Ou seja, não ocorre interatividade entre emissor e receptor. Sem embargo, a comunicação radiofônica está a serviço do público, livre de ônus, diferentemente dos serviços de TV por assinatura ou de telecomunicações. 

      Sobre a radiodifusão, o registro feito pela Teleco vai no sentido de que, “Serviço de radiodifusão é definido como o serviço de comunicação eletrônica de massa, público gratuito, prestado diretamente pelo Estado ou por sua delegação pela iniciativa privada, com finalidade educativa, cultural, recreativa e informativa, é considerado serviço de interesse nacional, sendo permitido somente para exploração comercial, na medida em que não venha a ferir esse interesse e aquela finalidade”.18 Portanto, está evidente tratar-se de fenômenos absolutamente distintos.  

VÍCIOS DE INTERPRETAÇÃO

     O exercício singular percorrido até agora, onde se tenta buscar a essência da norma, com a perfeita identificação do bem jurídico protegido, poder-se-ia chamar de interpetação teleológica da norma. Para o caso específico, nunca é demasiado lembrar que a Constituição de 1988 é sabiamente chamada de Diploma da Cidadania, onde alguns bens foram elevados ao status constitucional, por sua relevância para a sociedade. Entre eles, o direito à informação, liberdade de expressão, fenômeno que se processa através da comunicação. Não basta criar ou definir o direito, faz-se necessário a garantia de seu exercício.

     Os meios de comunicação, segundo Jean D´Arcy19, são fatores determinantes para a formação das estruturas sociais e políticas. Ele trata a comunicação como necessidade humana fundamental. No específico, falamos de informação, comunicação, da liberdade de expressão, consolidação da cidadania, que se processa, em parte, através do espectro eletromagnético. A Constituição vigente é cidadã, sendo cediço na doutrina que o espírito da lei não pode ser invocado contra a liberdade. Vale dizer: é impositivo fazê-lo a favor. 

     Aquele espírito norteador surge como viés cidadão, democrático, libertário e nasceu muito antes da atual Constituição. Como já visto no item precedente, ele vem de 1969 com o Pacto de São José da Costa Rica, e, paradoxalmente, em plena ditadura militar. A essência do pacto é o direito à liberdade de pensamento e de expressão e ainda o direito de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza. Com o mesmo espírito, condena a censura prévia; e para proteção desses direitos, é taxativo ao rechaçar restrições ao direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências rádio-elétricas – grifo nosso.

     Na observância daqueles princípios, a Carta Magna de 1988 passou a dispor no Art. 220

“Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social”.

     Nunca é demasiado lembrar que o “direito regula sua própria criação, de modo que uma norma jurídica regula o procedimento pelo qual outra norma jurídica é produzida, e – em diversos graus – também regula o conteúdo da norma a ser produzida”, ensina Kelsen.20 Mas, não obstante a máxima constitucional, de que nenhuma lei poderá conter dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação por qualquer meio, o que se constata na prática é a existência de uma lei cheia de restrições, que prescreve até mesmo a obrigatoriedade de residência num raio de um quilômetro, como é o caso da Lei 9.612/98. Vale dizer, a lei configura o próprio embaraço e sua interpretação imposta aos tribunais, pelos controladores dos meios de comunicação, mais ainda.

     A flagrante contradição viola não apenas o espírito do Pacto de São José da Costa Rica de 1969, mas a própria Constituição de 1988. A essa idéia deve-se somar o sentido de obrigatoriedade do fiel cumprimento, como assinalou Hildebrando Accioly, em seu Manual de Direito Internacional, onde destaca a “primazia do direito internacional”, onde prevalece a regra do “pacta sunt servanda” (os pactos devem ser cumpridos). Assim, uma vez assinado, não depende da vontade arbitrária do Estado seu cumprimento, já que o direito internacional convencionado é superior ao do Estado.21

     Ora, em sendo a Constituição marcada pelo espírito cidadão, não se entende que dela possa derivar norma inferior ou dela derivada, que contrarie sua essência. Nenhuma interpretação contrária pode ser reconhecida, senão aquelas contidas em seus pilares. As reiteradas interpretações em contrário configuram vícios inaceitáveis, cuja eliminação muito contribuiria para uma aplicação mais justa da lei.

     Outro ponto a ser assinalado sobre este assunto, é que a nova Constituição separou os dois conceitos, ou seja, telecomunicações e radiodifusão, tratando-os não como sinônimos, mas como realidades distintas. A separação das idéias do ponto de vista conceitual ficou clara em tópico específico. Agora, sob a ótica positivista, temos que em 1997 veio o Código de Telecomunicações – Lei 9.472/97 e posteriormente, em 1998, foi promulgada a Lei de Radiodifusão, a de nº. 9.612/98. O risco de cair no lugar comum é grande, mas é inexorável reiterar que uma lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando com ela é incompatível e ou regule inteiramente a matéria. 

     Não obstante o lembrete sobre a clássica assertiva, lei posterior versus anterior, cabe considerar no caso específico a separação das idéias e ou conceitos já evidenciados. Nesse sentido, temos que, seguindo a tradição da Lei nº. 4.117/62 que institui o Código de Telecomunicações, o novo diploma, a Lei nº. 9.472/97, tinha como objetivo disciplinar o uso do espectro como um todo, ou seja, telecomunicação como gênero maior, no qual estaria incluso a radiodifusão. Veio, portanto, para dispor sobre a organização dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador.

     Mesmo tratados até 1997 num só diploma, para reiterar o positivismo normativo, fica claro o tratamento diferenciado quanto à telecomunicação e radiodifusão, servindo de exemplo o artigo 158: 

“Observadas as atribuições de faixas segundo tratados e acordos internacionais, a Agência manterá plano com a atribuição, distribuição e destinação de radiofreqüências, e detalhamento necessário ao uso das radiofreqüências associadas aos diversos serviços e atividades de telecomunicações, atendidas suas necessidades específicas e as de suas expansões”. 

        § 1° O plano destinará faixas de radiofreqüência para: 

        …. 

        II – serviços de telecomunicações a serem prestados em regime público e em regime privado; 

        III – serviços de radiodifusão; 

     O vértice diferencial é acentuado, na medida em que o legislador do Código de Telecomunicações trata telecomunicação e radiodifusão como particularidades distintas, de maneira que ao referir-se à telecomunicação o faz como serviço tarifado, em que o receptor, enquanto destinatário final do serviço, paga por aquele serviço. Ou seja, refere-se a um tipo de serviço cuja idéia mais comum é o da telefonia, por exemplo. De maneira contrária, a radiodifusão é tratada como um serviço gratuito para o seu destinatário final, bastando para tanto que tenha o seu aparelho receptor. Trata-se, portanto, do rádio ou da radiodifusão.

     Assim sendo, por serem temas e situações distintas, passaram a ser tratados por diplomas diferentes, de maneira que, quando se constata a aplicação do Código de Telecomunicações no caso de radiodifusão comunitária, isso causa perplexidade aos estudiosos. Afinal, parece não existir dúvidas de que o assunto deveria ser regido pelos brocardos lex posterior derogat legi priori (norma posterior revoga anterior) e lex specialis derogat legi generali (norma especial revoga a geral).

     A violação daqueles princípios tem sido constante, na medida em que, existindo uma lei específica para a radiodifusão comunitária (Lei 9.612/98), que é posterior e especial, não há que se falar na aplicação do código de telecomunicações (Lei 9.472/97). Mesmo diante de alguma similaridade factual de temas tratados supostamente em comum nas duas normas, o grande referencial ainda deve ser a Constituição vigente. Assim, sob qualquer vertente, o enquadramento dos temas de radiodifusão em outros diplomas legais se afigura inadequado, sujeito, no mínimo, à revisão.

     Quanto mais se avançar nessa questão, mais o estudioso irá se deparar com paradoxos. Mesmo diante das evidências aqui documentadas, na vida prática é comum a aplicação da Lei 9.472/97, e, muito particularmente no caso de pequenas emissoras em funcionamento sem autorização. Muitas autoridades policiais têm recorrido ao artigo 183. E, pasmem, esse entendimento vinha sendo ratificado, com o aval do Ministério Público, junto ao Poder Judiciário.

      Art. 183. Desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação: 

Pena – detenção de dois a quatro anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, e multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais). 

     Com propriedade, o Procurador da República Daniel Sarmento22 assinalou que o simples exame das penalidades previstas nesta lei são indicadoras de sua não aplicabilidade ao assunto. No caso concreto, verdadeiras engenhocas são tratadas como “emissoras piratas”, cujo custo total da aparelhagem – quando novos, na maioria das vezes, está longe de alcançar a cifra dos R$ 10 mil previstos no artigo 183. A propósito, lembrou aquele membro do Parquet, todas as vezes em que uma autoridade se depara com desproporcionalidade entre o fato e a pena, o aplicador está diante de uma lei inaplicável ao fato. E, os exemplos falam por si: o artigo 179 prescreve até multa de R$ 50 milhões! 

     Com o avanço dessas discussões e as inúmeras provocações tanto nas primeiras quanto nas segundas instâncias do Poder Judiciário em todo o País, finalmente o Superior Tribunal de Justiça, através da 6ª turma23, reconheceu o erro que durante anos estava sendo cometido. Assim, pontificou: a Lei 9472/98 não se aplica aos casos de radiodifusão comunitária. No entanto, manteve a idéia de criminalização da conduta, declarando a aplicabilidade da Lei 4117/62 para o que diz respeito ao tratamento penal da questão. Para tanto, reportou o leitor ao Artigo 70 desta Lei, que preceitua: 

     Art. 70: “Constitui crime punível com a pena de detenção de um a dois anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, a instalação ou utilização de telecomunicações, sem observância do disposto nesta lei e nos regulamentos”.

     Não obstante a manifestação daquela Corte, é fácil constatar que o artigo 70 fala em telecomunicações. E, nesse ponto, após tantas considerações a respeito das distinções feitas e, em observância ao princípio da tipicidade e que o Direito Penal não admite aplicações analógicas, torna-se inadmissível agir por presunção, ou seja, não é lícito presumir que tal dispositivo, ao referir-se à telecomunicações, esteja pretendendo alcançar a radiodifusão. Fere o princípio da legalidade, até porque, o fenômeno da radiodifusão comunitária não era até então conhecido. Fere um princípio temporal, pois seria o mesmo que tentar atingir com essa lei, a radiodifusão através da internet, fenômeno também inexistente no Ano de 1962.

     Mais uma vez a interpretação dominante se opõe ao interesse dos cidadãos menos afortunados. É incômodo, mas urge lembrar que, até hoje, tendo em vista os mesmos princípios (temporal e legalidade), os nossos Tribunais não têm sustentado inúmeros enquadramentos legais contra o organizado, no que tange ao emprego de tecnologia moderna, não contemplados pelo arcaico ordenamento jurídico-penal brasileiro. Mas, no que tange às pequenas emissoras, princípios comezinhos com da legalidade, interferência mínima, da insignificância, da proporcionalidade, temporariedade, razoabilidade e outros são esquecidos. Tudo isso a justificar que a discussão do fato social em comento e a interpretação da legislação vigente é viciada.

     Retome-se pois, o debate no campo da atipicidade, entendimento que encontra amparo em alguns segmentos do Ministério Público, que merecem transcrição: “…como defensor do regime democrático, da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, um membro do MPF,  não pode se transverter em  capitão de mato dos donos do espaço da radiofreqüência, caçar sem escrúpulos cidadãos que procuram exercer seus direitos e serem úteis à  sociedade, utilizando baixas potências sem prejudicar ninguém, contribuindo para o exercício democrático e para, informação de um povo com dificuldade de memória histórica”.24

     Nessa trilha a posição de Cláudio Fonteles25, para quem a Lei 9612/98 não contempla infração criminal.

     Mas, se por outro lado, aceitássemos sem reservas ou restrições o pontificado do STJ , estaríamos, na grande maioria dos casos, diante do exercício de radiodifusão de baixa potência. Majoritariamente, emissoras com menos de 100 watts, embora como regra haja o referencial de 25 watts, o mais comum entre as emissoras dessa espécie. Ora, tal fenômeno quando contraposto aos 5 mil watts das emissoras comerciais, se transformariam numa fração diminuta, perdendo o caráter de ilicitude, com fundamento no princípio da insignificância ou da bagatela. É de se reconhecer que o princípio da insignificância penal não se encontra expresso no nosso direito positivo, mas é vasta a jurisprudência no sentido de sua aplicação, até em observância a outros norteadores da aplicação do direito, como a razoabilidade, da proporcionalidade ou adequação social.

     Sem embargo, cabe registrar, aquele Tribunal, com certa regularidade, tem aplicado tal princípio nos crimes de contrabando e descaminho, cuja pena varia de um a quatro anos26. Pode-se incluir nessa lista o tráfico de entorpecentes (quantidade ínfima)27, e outros como peculato, crimes contra a fauna. No caso, não existe uma relação quantitativo-numérica, mas  a situação in concreto, a lesividade objetiva do bem protegido. Nessa linha, vale o registro específico: “2- Não se tipifica o crime previsto no art. 70 da Lei 4711/62, quando ausente potencialidade lesiva em transmissões de rádio comunitária de pouco alcance”. 28 

     No caso em estudo, a comparação dos watts dá a dimensão do problema, seria cabível a aplicação do princípio da insignificância, teoria que enfrenta resistência naquela R. Corte, cujo entendimento, in casu, quanto ao baixo potencial ofensivo ou intensidade de dano, refletiria apenas “na dosimetria penal”29. Todavia, o entendimento da R. Corte suplica revisão no caso específico, visto não ser praxe dos laudos da Anatel a aferição de danos, nem comprovação de interferências. Como regra, transcreve a legislação. Destarte, o posicionamento da R. Corte se consolida em detrimento de postulados humanizados e cidadãos que prosperam: “3. É aplicável o princípio da insignificância quando a conduta dos acusados teve escassa nocividade à tutela jurisdicional e pequena relevância ao sistema jurídico”.30

CONCLUSÕES

     Do Império Romano, passando pela polícia inglesa do século XVII; da polícia russa e sua KGB; da polícia política da Ditadura Militar no Brasil até a ditadura do populismo Lulista, ficou evidenciado um quadro que se perpetua no tempo. A radiodifusão comunitária como vítima desse fenômeno, sofre a ação repressiva da Anatel e da Polícia Federal, cujos atos vem sendo ratificados, em parte, pelo Poder Judiciário. É flagrante a agressão ao legítimo exercício do fundamental direito à comunicação em sua dimensão binária, o de informar e ser informado.31

     Mas, em recente ação impetrada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, os membros do Ministério Público recorreram à obra A informação – analise de uma liberdade frustrada, de Jorge Xifra-Heras, escrita por R. A. Amaral Vieira. “O direito à livre expressão se esvazia na ausência de canais que lhe dêem vida; de nada vale o direito subjetivo à livre expressão ou à impressão livre, se as condições objetivas tornam o direito a editar um privilégio de minorias econômicas”.32

     Tudo decorre da forma de interpretação do ordenamento jurídico existente, um fator que tem sido decisivo na perpetuação do conflito. Parte dos vícios que concorrem para a cristalização do corrente dominante foi aqui apontada e síntese desses vícios passa a compor as conclusões desse artigo.

     a) Em 1962 foi aprovado Código de Telecomunicações (4.117/62). Em 22/11/ 1969, o Brasil assinou e se comprometeu a cumprir o Pacto de São José da Costa Rica. Em 1988 veio a nova Constituição, inspirada em princípios de cidadania daquele tratado, o pacto foi ratificado em 6/11/1992. Consolidou-se o espírito democrático da nova Carta, no tocante à liberdade de expressão (Decreto 678/92). Em 1997 veio o novo Código de Telecomunicações (Lei 9.472/97) e, finalmente, em 19/02/1978, foi promulgada a Lei 9.612/98 que disciplinou de forma específica a radiodifusão.

     b) As pequenas emissoras cumprem um papel social relevante que as grandes emissoras mesmo que quisessem não conseguiriam suprir. E, muito embora as alegadas interferências, tecnicamente possíveis, estão longe da visão catastrófica disseminada pelas grandes emissoras comerciais. Sem embargo, interferências são uma questão de ajuste, nada que o avanço tecnológico não possa corrigir.

     c) O uso de espectro eletromagnético tem fundamento no Pacto de São José da Costa Rica de 1969, acordo internacional recepcionado pela Constituição de 1988 que transcreveu textos quase literais em seus dispositivos, no que tange à radiodifusão e liberdade de expressão. Ambos vedam edição de leis que lhes estabeleçam restrições. Com o espírito cidadão, qualquer interpretação contrária configura ilegalidade.

     d) Materializando aquele espírito da Carta Magna, dois diplomas legais foram expedidos, um sobre telecomunicações (Lei 9472/97) e outro sobre radiodifusão (Lei 9612/98). Não se justifica aplicar a lei de telecomunicações sobre radiodifusão. Vale o princípio lex posterior derogat legi priori (norma posterior revoga anterior) e lex specialis derogat legi generali (norma especial revoga a geral).

     e) Telecomunicação e radiodifusão são tratados de forma distinta na Constituição. A primeira tem características de bilateralidade, é onerosa e o destinatário ou usuário é específico. Já a radiodifusão tem destinatário difuso sem ônus e que não interage de forma direta com o difusor.

     f) A Lei de Telecomunicação, dirigida a fenômeno distinto, prevê penas pesadas, o que macula o princípio da proporcionalidade das penas, o que reforça a tese da inaplicabilidade da Lei 9472/97 para a radiodifusão. O artigo 179 prescreve multa de R$ 50 milhões.

     g) A radiodifusão comunitária, por ser fenômeno novo, do fim da década de 80, não está contemplada pela Lei 4711/61, antigo Código de Telecomunicações. Isso traz a questão para o campo da atipicidade e fere o princípio da legalidade. Por outro lado, o Direito Penal não admite analogia.

     h) Interpretações forçadas e viciadas, para tentar adequação fato e norma, se esvaem diante do princípio da insignificância, diante do diminuto condão ofensivo dos poucos watts das mini-emissoras frente ao troar da imensa potência das grandes emissoras.

     i) Em sendo a Constituição de espírito cidadão, não se entende que dela possa derivar norma inferior ou dela derivada, que contrarie sua essência. As reiteradas interpretações em contrário configuram vícios fatais e inaceitáveis, cuja eliminação muito contribuiria para uma aplicação mais justa da lei.

     j) Diante do exposto, frente ao exagerado apego à forma, sob o argumento do interesse da União, ainda assim deixará sem resposta uma questão, sem qualquer ironia: da mesma forma que o Governo Federal não deve interferir na comunicação entre uma criança e um adulto em quartos diferentes através de uma babá eletrônica, faz sentido a reunião de uma Câmara Federal para decidir se uma longínqua comunidade dos sertões brasileiros deve ou não ter direito a uma pequena emissora?  

     Paira sobre o tema a desigualdade de tratamento, ao arrepio dos próprios postulados que formalmente inspiram nosso ordenamento jurídico, em detrimento do exercício da liberdade de expressão, do direito à informação e de comunicar, do exercício da cidadania. E, se os contrapontos ora oferecidos não são suficientes para alterar essa realidade, é porque o assunto não reside necessariamente no campo do Direito, mas sim numa luta de classes, onde o opressor cria o direito e define os oprimidos que dele não desfrutarão. Mesmo que disso resulte num ataque à Constituição.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Armando Rodrigues Coelho Neto: Delegado de Polícia Federal, Especialista em Direito Penal.

Da inconstitucionalidade do Art. 285-A do CPC, com redação dada pela Lei nº 11.277/2006

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*Alberto Nogueira Júnior –  

Um dos significados atribuídos ao princípio do contraditório é o de assegurar às partes a igualdade de oportunidades de expor argumentos e produzir provas a fim de poderem vir a influenciar a formação do convencimento do órgão julgador.

Assim, na jurisprudência do Eg. STF, e apenas com propósito meramente exemplificativo, vejam-se as decisões proferidas quando do julgamento do RE no. 252.245-7-PR, 2a. Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, dec. un. pub. DJU 06.9.2001, e do HC no. 83.255-SP, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, dec. p. maioria pub. DJU 12.3.2004, p. 38, no primeiro caso, tendo se entendido haver sido ferido o princípio do contraditório porque decidiu-se agravo de instrumento sem prévia concessão de oportunidade para que os agravados se manifestassem, a pretexto de urgência; no segundo, tendo-se por intimado o órgão do Ministério Público Federal a partir do dia em que recebidos os autos do respectivo recurso no setor de protocolo do órgão, com isto evitando-se que o Parquet dê ao procedimento o ritmo que lhe aprouver, e, assim, que as partes adversárias sejam postas em situação de desvantagem processual injustificada. (1)

Dentro desta perspectiva, não há como deixar de se reconhecer a inconstitucionalidade patente da norma contida no art. 285 – A do CPC, com a redação dada pela Lei no. 11.277, de 07.02.2006. (2)

Buscou-se, sem dúvida, estender à primeira instância a norma estabelecida no art. 557, "caput" e § 1o. – A do CPC; mas tal extensão não era possível, tendo em vista que, no procedimento recursal ali estatuído, já existe a figura do réu, o que não se dá na hipótese prevista no novo art. 285 – A do CPC; e isto faz toda a diferença do mundo.

Perceba-se que será sobre o mérito propriamente dito, o "fundo do direito" que a decisão de primeira instância poderá rejeitar a inicial, declarando sua total improcedência.

Apelando o autor, e sendo mantida a sentença, apenas então o réu será citado para impugnar a apelação, e, então, o recurso subirá ao Tribunal.

Ora, ao julgar a apelação, o Tribunal poderá entender que não havia a total improcedência apontada pelo juízo de primeira instância, mas sim, parcial improcedência.

Sem que o apelado – que apenas tornou-se réu depois de sentenciada a causa e intimado da respectiva apelação – tenha podido exercer qualquer atividade processual, no sentido de poder vir a influenciar na formação do convencimento do órgão jurisdicional de primeira instância.

E o reconhecimento da parcial improcedência já será apto a adquirir eficácia de coisa julgada material, especialmente quando estiver em vigor o disposto no art.162, § 1o. do CPC, com a redação dada pela Lei no. 11.232, de 22.12.2005.

Mas poderá se dar, também, que o Tribunal entenda que a ausência, total ou parcial, de improcedência, dependa de dilação probatória – que, naturalmente, ainda não pôde ser realizada.

E nesta hipótese, não poderá o Tribunal instaurar e presidir essa atividade instrutória, ali mesmo, em segundo grau, em que pese o disposto no art. 560, parágrafo único do CPC, sendo evidente que o contrário implicaria em supressão de instância.

Os autos deverão retornar, assim, à Vara de origem, podendo até limitar-se ao Juízo de primeiro grau que proceda à atividade instrutória, na forma de diligência.

E o réu se veria na mais completa impossibilidade de exercer plenamente seu direito ao contraditório e à ampla defesa, visto que não poderia contra-atacar, reconvindo; tampouco, diante daquele âmbito restrito de cognição objetiva a ser exercida, teria oportunidade para opor quaisquer exceções ou objeções.

Voltando os autos ao Tribunal – agora, com a atividade probatória desenvolvida, a título de diligência, pelo Juízo monocrático, o Tribunal poderá concluir, então, que realmente o caso era de total improcedência; ou que era de parcial procedência, ou de parcial improcedência, daria no mesmo; ou de total procedência.

Em todas essas hipóteses, o réu – apelado será afetado, em sua situação jurídica, sem que tenha podido exercer plenamente sua defesa, seja ampliando a matéria objeto da decisão, reconvindo, oferecendo pedido contraposto, ou alegando alguma das hipóteses previstas no art. 269, IV do CPC; seja ampliando a profundidade da cognição exercida, através de sua atividade probatória, delimitada segundo as margens fixadas em sua defesa, e não de acordo com aquelas traçadas pelo Tribunal; no limite, nem mesmo poderá o réu excepcionar o Juízo – absurdo dos absurdos.

Mas os autos poderão também baixar para que o Juízo de primeira instância proceda com o regular desenvolvimento do processo.

Poderá se ter por contestada a ação, tendo-se em foco as contra – razões de apelação oferecidas pelo réu – apelado, tomando-se a resposta do réu, dada sob a forma daquelas contra – razões, como se contestação fora ?

Acredito que não, e não só porque há várias formas de o réu responder ao pedido do autor, mas, principalmente, porque quando daquela espécie de resposta que foram as contra – razões de apelado, o réu não poderia ter se manifestado sobre coisa alguma além daquilo que consistiu no objeto da apelação, o mérito, tal como circunscrito pelo autor e pela sentença.

Uma última observação, a reforçar a série de prejuízos impostos ao réu.

Disse que o Tribunal, se entender que ainda não haveria a total ou parcial improcedência, por falta de dilação probatória suficiente, não poderia proceder a essa dilação, sob pena de supressão de instância.

Com isto, o réu, que teve contra si julgado o mérito, acabará em situação mais danosa do que o réu que, tendo sido citado e tendo participado, ou não, do processo, teve proferida sentença terminativa.

Isto porque, quanto às sentenças terminativas, o Tribunal poderá passar ao julgamento do mérito propriamente dito, se a causa encontrar-se "madura", na forma do que dispõe o art. 557, § 1o. do CPC.

Como justificar, então, que quando o juízo de primeiro grau haja prolatado sentença terminativa, possa o Tribunal adentrar o mérito, contudo, se o juízo monocrático houver proferido sentença de mérito, então o Tribunal não poderia faze-lo, por supressão de instância ???

Que lógica há nisso ?

Creio que, a esta altura, haja motivos bastantes para se ter o art. 285 – A do CPC, com a redação dada pela Lei no. 11.277, de 07.02.2006, como inconstitucional, dada a absurda situação de desvantagem processual a que é o réu jogado.

E penso que também restou demonstrado o prejuízo que a sociedade inteira acaba por sofrer, quando se procede a reformas pontuais e casuísticas, olvidando-se de pensar-se o sistema jurídico como um todo.

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NOTAS DE REFERÊNCIA

1. RE no. 252.245-7-PR, 2a. Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 06.9.2001: "(…) DEVIDO PROCESSO LEGAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. NORMAS LEGAIS. CABIMENTO. A intangibilidade do preceito constitucional que assegura o devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da tese de que a ofensa à Carta Política da República suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal apreciar a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora se torne necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito: o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais. AGRAVO. CONTRADITÓRIO.No procedimento próprio do agravo, pouco importando a espécie de ação que lhe tenha dado origem, deve ser observada a garantia constitucional do contraditório, abrindo-se prazo ao agravado para apresentação de contraminuta."; HC no. 83.255-SP, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 12.3.2004, p. 38: "DIREITO INSTRUMENTAL. ORGANICIDADE. As balizas normativas instrumentais implicam segurança jurídica, liberdade em sentido maior. Previstas em textos imperativos, hão de ser respeitadas pelas partes, escapando ao critério da disposição. INTIMAÇÃO PESSOAL – CONFIGURAÇÃO. Contrapõe-se à intimação pessoal a intimação ficta, via publicação do ato no jornal oficial, não sendo o mandado judicial a única forma de implementá-la. PROCESSO – TRATAMENTO IGUALITÁRIO DAS PARTES. O tratamento igualitário das partes é a medula do devido processo legal, descabendo, na via interpretativa, afastá-lo, elastecendo prerrogativa constitucionalmente aceitável. RECURSO – PRAZO – NATUREZA. Os prazos recursais são peremptórios. RECURSO – PRAZO – TERMO INICIAL – MINISTÉRIO PÚBLICO. A entrega do processo em setor administrativo do Ministério Público, formalizada a carga pelo servidor, configura intimação direta, pessoal, cabendo tomar a data em que ocorrida como a da ciência da decisão judicial. Imprópria é a prática da colocação do processo em prateleira e a retirada à livre discrição do membro do Ministério Público, oportunidade na qual, de forma juridicamente irrelevante, apõe o "ciente", com a finalidade de, somente então, considerar-se intimado e em curso o prazo recursal. Nova leitura do arcabouço normativo, revisando-se a jurisprudência predominante e observando-se princípios consagradores da paridade de armas."

(2) "Art. 285 – A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada. § 1o. – Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de 5 (cinco) dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação. § 2o. – Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso."

 

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Alberto Nogueira Júnior  –  Juiz federal no Rio de Janeiro (RJ), mestre e doutor em Direito pela Universidade Gama Filho, professor adjunto da Sociedade Educacional São Paulo Apóstolo – SESPA (UniverCidade)


Casamento: nem direitos nem deveres, só afeto

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* Maria Berenice Dias

Vínculos afetivos não são uma prerrogativa da espécie humana, pois o acasalamento sempre existiu entre os seres vivos, seja em decorrência do instinto de perpetuação da espécie, seja pela verdadeira aversão à solidão, a ponto de se ter por natural a idéia de que a felicidade só pode ser encontrada a dois, como se existisse um setor da felicidade ao qual o sujeito sozinho não tem acesso. Alerta Giselda Maria Fernando Novaes Hironaka que não importa a posição que o indivíduo ocupe na família, ou qual a espécie de grupamento familiar a que ele pertence, o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores, e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade.

Mesmo sendo a vida aos pares um fato natural, em que os indivíduos se unem por uma relação biológica, trata-se a família muito mais de um grupo cultural, com uma estruturação psíquica em que cada um ocupa um lugar, uma função. Lugar do pai, lugar da mãe, lugar dos filhos, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente. E, segundo Rodrigo da Cunha Pereira, é essa estrutura familiar, que existe antes e acima do Direito, que interessa investigar e trazer para o Direito.

Tanto o Estado como a Igreja acabaram se apropriando desse fenômeno, visando, cada uma dessas duas instituições, a atender a seus próprios interesses. Enquanto a Igreja fez do casamento um sacramento, atribuindo-lhe, com a máxima crescei-vos e multiplicai-vos, a função reprodutiva, como forma de povoar o mundo de cristãos, o Estado viu a família como uma verdadeira instituição. Essa visão institucional acompanha a própria estruturação do Estado, uma vez que, tendo este o dever de promover o bem de todos, conforme proclama o inc. IV do art. 3º da Constituição Federal, acaba por pontificar em seu art. 226: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

A organização da sociedade dá-se em torno da estrutura familiar, e não em torno de grupos outros ou dos indivíduos em si mesmos. O Estado delega à família a formação dos cidadãos, tarefa que acaba quase sempre onerando exclusivamente a mulher, havendo um certo descomprometimento tanto do homem como das entidades públicas e entes governamentais em subsidiar os meios necessários para assegurar o futuro da sociedade assumindo o encargo de formar e educar crianças e jovens.

Ainda que não haja uma definição na lei do que seja casamento, sempre foi tido como fundamento da sociedade, base da moralidade pública e privada, conforme Laurent. O casamento gera o “estado matrimonial”, em que os nubentes ingressam pela vontade, mas sua forma nasce da lei, que estabelece suas normas e seus efeitos. Segundo Salvat, as pessoas têm a liberdade de realizá-lo, mas, uma vez que se decidem, a vontade delas se alheia e só a lei impera na regulamentação de suas relações.

Esse interesse estatal na manutenção do casamento é que, em um primeiro momento, levou à consagração de sua indissolubilidade, à sua obrigatória identificação pelo nome do varão, bem como ao estado universal de comunhão de bens e, por conseqüência, à relativização da capacidade da mulher. Reproduziu o legislador civil o perfil da família do início do século, que se caracterizava como heterossexual, matrimonializada, patriarcal, hierarquizada e patrimonializada. Mesmo após a aceitação da possibilidade de rompimento do vínculo matrimonial, com a Lei do Divórcio – que alterou o regime legal dos bens e tornou facultativa a adoção do nome do cônjuge -, permaneceram inalterados os direitos e deveres recíprocos, bem como os direitos e os deveres atribuídos distintamente a cada um dos consortes.

Apesar do extenso rol, a doutrina reconhece que a lei não cogita de todos os deveres inerentes a ambos os consortes, prevê os mais importantes, isto é, aqueles reclamados pela ordem pública e pelo interesse social, assertiva que, por si só, mostra que a tônica é o interesse de ordem pública, sem se dar a mínima atenção ao interesse dos seus próprios partícipes, que, ao certo, deveria ser prevalente.

Os mútuos direitos e deveres estão postos no art. 231 do Código Civil, sendo o primeiro deles o de fidelidade recíproca, que representa a natural expressão da monogamia, não constituindo tão somente um dever moral, mas é exigido pelo direito em nome dos superiores interesses da sociedade. Tão significativa é a imposição desse dever, que a própria lei penal consagra o adultério como delito (art. 240 do CP).

Porém, mesmo sendo indicada na lei como requisito obrigacional a mantença da fidelidade, trata-se de direito cujo adimplemento não pode ser exigido em juízo. Ou seja, desatendendo um do par o dever de fidelidade, não se tem notícia de ter sido proposta, na constância do casamento, demanda que busque o cumprimento de tal dever. Tratar-se-ia de execução de obrigação de não-fazer? E, em caso de procedência, de que forma poderia ser executada a sentença que impusesse a abstinência sexual extramatrimonial ao demandado?

Ademais, se eventualmente não cumprem um ou ambos os cônjuges dito dever, tal em nada afeta a existência, a validade ou a eficácia do vínculo matrimonial. Mas não é só. Cabe figurar a hipótese de não ser consagrado dito dever em norma legal. Seria de admitir-se que deixou de existir e de se poder exigir a fidelidade, quem sabe o mais sagrado compromisso entre os cônjuges? Deixaria de haver a possibilidade de se buscar a separação se não estabelecido em lei esse direito-dever ou dever-direito dos consortes?

A monogamia – que é só monogamia para a mulher, conforme alerta Engels – não foi de modo algum um fruto do amor sexual individual, mas uma mera convenção decorrente do triunfo da propriedade privada sobre o condomínio espontâneo primitivo. A constituição da família pelo casamento tem por finalidade a procriação de filhos, que têm de ser filhos do patriarca, pois estão destinados a se tornar os herdeiros da sua fortuna. Ainda assim, a monogamia foi um grande progresso histórico, pois é o único em que o amor sexual pode se desenvolver, continua Engels.

Pode-se assim dizer que a fidelidade, enquanto dever de um e direito do outro, vige durante o casamento, mas só serve de fundamento para justificar a busca do seu término. A imputação da culpa pelo descumprimento do dever de mútua fidelidade não permite buscar seu adimplemento durante a constância do vínculo matrimonial, concedendo tão-só um direito à separação.

Vincular a separação ao rígido pressuposto da identificação de um responsável justificava-se no sistema originário do Código Civil, que consagrava a insolubilidade do vínculo matrimonial, que sequer o desquite desfazia, e mesmo assim só era admitido ante a comprovação de causas taxativamente previstas na lei. Após a consagração do divórcio, é de se reconhecer a dispensabilidade da imputação de culpa pelo rompimento do vínculo afetivo. Mas cada vez mais vêm a doutrina e a jurisprudência – atentando na realidade social e muito à frente da estática legislação – desprezando a perquirição da culpa para chancelar o pedido de separação, como já tive a oportunidade de sustentar em sede doutrinária e em vários julgamentos, no sentido de que Basta um dos cônjuges ter por insuportável a vida em comum para dar ensejo ao rompimento do casamento, sendo despicienda a comprovação da culpa de qualquer deles pelo fim do vínculo afetivo. Essa postura acabou prevalecendo ao menos no Tribunal gaúcho, que abandonou a vã tentativa de punir alguém, passando a considerar dispensável a perquirição da culpa, sempre de difícil comprovação, uma vez que a separação de fato já revela a falência da arquitetura conjugal, não sendo preciso avançar em outra motivação, pois traduz a ruptura do afeto e do amor. Como assevera Luiz Edson Fachin, Não tem mais sentido averiguar a culpa como motivação de ordem íntima, psíquica. Objetivamente é possível inferir certas condutas, não raro atribuídas, de modo preconceituoso, mais à mulher que ao homem. A conduta, porém, pode ser apenas sintoma do fim.

Basta a simples manifestação de vontade de um para ensejar o término do casamento, sem a necessidade de imputar ao outro a responsabilidade pelo fim do amor, e nem mesmo para fins alimentares se mantém a necessidade de perquirição da culpa. Não é pressuposto para sua concessão a “inocência” do par, bastando comprovar a necessidade de um de perceber e a possibilidade do outro de alcançar-lhe alimentos, como forma de preservação da dignidade da pessoa humana, mesmo que esta pessoa não tenha sido digna na sua relação interpessoal…

Portanto, se a fidelidade não é um direito exeqüível e a infidelidade não mais serve como fundamento para a separação, nada justifica a permanência da previsão legislativa, como um dever legal, até porque ninguém é fiel porque assim determina a lei, ou deixará de sê-lo por falta de uma ordem legal.

Os outros recíprocos direitos e deveres igualmente não resistem a uma análise acerca de sua efetividade. Impõe o inc. II do art. 231 do CC a obrigação de vida em comum no domicílio conjugal. No entanto, ainda que tal seja previsto como dever mútuo, tem o varão o direito de fixar o domicílio da família (inc. III do art. 233 do CC), sendo que o domicílio da mulher casada é o do marido (parágrafo único do art. 36 do CC). Esse tratamento desigualitário, ao garantir como direito o domicílio comum, mas sujeitando um cônjuge à vontade do outro, ao certo é imposição que não foi recepcionada pelo atual sistema jurídico, que consagra a igualdade como princípio maior.

Cabe lembrar que na expressão “vida em comum”, constante desse mesmo dispositivo legal, não está inserido o nominado debito conjugale, infeliz locução que nada mais significa do que vida sexual ativa. Porém, não há como visualizar um verdadeiro desdobramento temporal à solenização do matrimônio para se reconhecer que o casamento se consuma quando do exercício da sexualidade, a ponto de a mantença do estado virginal ensejar a anulação do casamento, como admite o Direito Canônico. O casamento consuma-se e aperfeiçoa-se no ato de sua celebração, somente podendo ser desfeito se verificado algum dos vícios que ensejam a desconstituição dos atos jurídicos em geral ou se houver infringência aos incs. I a VIII do art. 207 do CC. A possibilidade procriativa não pode ser condição para a validade do casamento, e a falta de filhos não compromete a higidez do consórcio matrimonial. A se ter como exigência a fertilidade, o não-advento de prole deveria autorizar a anulação ou dissolução do casamento, o que obrigaria, inclusive, a desconhecer a possibilidade de ocorrência do casamento in extremis.

Ainda que imponha o inc. III do art. 231 do CC o dever de mútua assistência, e seu inc. IV o dever de sustento, guarda e educação dos filhos, compete ao marido prover a manutenção da família, encargo que lhe é imposto pelo inc. IV do art. 233 do CC. A mulher é mera colaboradora do marido nos encargos de família, competindo-lhe tão-só velar pela sua direção material (art. 240 do CC). Só dispõe ela da obrigação de contribuir para as despesas do casal se tiver rendimentos próprios (art. 277 do CC), devendo o varão reembolsar-lhe as despesas que efetivar se o casamento ocorreu sob o regime da separação de bens. Por conseqüência, só se pode considerar sujeito à prática do delito de abandono material (art. 244 do CP) o homem. Ora, o tratamento desigualitário por critério sexista impõe que se tenham por derrogados tais dispositivos, por afronta à norma constitucional que veda discriminação em razão do sexo.

Quanto aos direitos atribuíveis distintamente ao marido (arts. 233 a 239 do CC) e à mulher (arts. 240 a 255 do CC), cabe questionar se essa previsão diferenciada de encargos atentando no sexo do par permanece no sistema jurídico, ante o princípio da isonomia solenemente consagrado na Constituição Federal. A igualdade constitucional posta tanto no caput do art. 5º quanto em seu inc. I e, pleonasticamente, no § 5º do art. 226 não deixa dúvida de ser essa a idéia central consagradora da Carta Magna. Pensar diferente é agredir, a uma só vez, a letra da Lei Maior, seu espírito e a História. O absurdo dessa desequiparação vislumbra-se tanto na consagração do varão como chefe da sociedade conjugal e seu representante (art. 233 do CC) como na atribuição exclusivamente à mulher de velar pela direção moral da família (art. 240 do CC).

Assim, a par de se terem por não recepcionadas pelo atual sistema jurídico normas que concedem prerrogativas ou impõem tratamento diferenciado ao casal, tem-se de reconhecer a falta de vigência de todos os dispositivos infraconstitucionais que concedem direitos e impõem deveres diferenciados, sendo de todo despicienda sua mantença no bojo da legislação civil. Não é a imposição legal de normas de conduta que consolida ou estrutura o vínculo conjugal, mas simplesmente a sinceridade de sentimentos e a consciência dos papéis desempenhados pelos seus membros que garantem a sobrevivência do relacionamento, como sede de desenvolvimento e realização pessoal.

De qualquer sorte, no atual estágio das relações afetivas, inquestionável que o fundamental é a absoluta lealdade recíproca, viés que deve pautar todos os relacionamentos, principalmente quando existente um projeto de comunhão de vidas, uma identidade de propósitos, sendo a cumplicidade a razão mesma de seu surgimento e permanência.

Não há como deixar de ver que se esboçam novos modelos de família, mais igualitárias nas relações de sexo e idades, mais flexíveis em suas temporalidades e em seus componentes, menos sujeitas à regra e mais ao desejo. Talvez esteja na hora de se abandonar a expressão “cônjuge”, que tem origem na palavra jugum, nome dado pelos romanos à canga que prendia as bestas à carruagem, daí o verbo conjugere designar a união de duas pessoas sob o mesmo jugo, a mesma canga. Talvez seja o caso de se resgatar a palavra “amante”, que significa tanto a pessoa que ama como quem é o objeto do amor de alguém, expressão que melhor identifica a razão de as pessoas ficarem juntas, ou seja, porque se amam.

Quem sabe é de se apropriar do conceito de Savatier à “união livre”, pois somente a liberdade enseja a forma mais pura para a mantença de um relacionamento afetivo e no qual não há fidelidade, obediência, assistência obrigatória. Tudo isso, dado por amor, não deve durar senão enquanto puder durar esse amor. Os amantes nenhum compromisso assumem para o futuro; a independência de ambos é sagrada. Nas páginas de sua vida nada se escreve com tinta indelével.

Em lugar de direitos e deveres previstos inocuamente na lei, melhor se o casamento nada mais fosse do que um ninho, em que se estabelecem laços e nós de afeto, servindo de refúgio, proteção e abrigo, pois, como diz Michele Perrot, O que se gostaria de conservar da família, no terceiro milênio, são seus aspectos positivos: a solidariedade, a fraternidade, a ajuda mútua, os laços de afeto e de amor. Belo sonho.

 

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA:

MARIA BERENICE DIAS, Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam.

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