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Uma visão acerca da interpretação e aplicação das normas internacionais de direitos humanos conforme a CF/88

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Introdução

 

No Direito brasileiro, as normas internacionais de Direitos Humanos trazem consigo fortes peculiaridades. Tratados e convenções foram ratificados pelo Estado brasileiro ao longo dos anos e, como “divisor de águas”, conferiu o poder reformador, através da EC nº 45/04, status de norma constitucional àqueles que forem aprovados por maioria qualificada (3/5).

No plano da hermenêutica constitucional, doutrina e jurisprudência trouxeram certo suporte para a construção de conceitos e termos capazes de conferir harmonia ao ordenamento jurídico.

Por outro lado, a prática constitucional tem demonstrado grandes divergências quanto à efetiva aplicação das normas de direitos humanos, em especial no que diz respeito à tutela jurisdicional dos direitos das pessoas com deficiência.

O presente artigo traz como objetivo um esclarecimento maior acerca desta realidade. Para tanto, serão tecidas algumas considerações acerca da natureza jurídica das normas internacionais de direitos humanos que passaram a vigorar no Brasil antes e depois da EC nº 45/04.

 

1. Normas Internacionais de Direitos Humanos anteriores à EC nº 45/04

 

Em relação às normas internacionais de direitos humanos aplicáveis no Brasil, podemos destacar: Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos2; Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais3; Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH4; Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher5.

Tomando como referência a CADH, esta tem sido considerada como fonte de Direito em diversas áreas, merecendo destaque o Direito Processual Penal.

Contudo, uma relevante discussão jurídica foi levantada no Brasil: a “prisão civil do depositário infiel”. Nesse tema, podemos afirmar que, aparentemente, existe um conflito de normas.

No plano interno, traz o texto constitucional uma regra originária que, de forma excepcional, autoriza a prisão civil em discussão6.

Por outro lado, a CIDH não menciona tal possibilidade, trazendo apenas a prisão pelo inadimplemento de obrigação alimentar como uma das exceções de prisão civil7.

O Judiciário, após o julgamento desta questão em diversas instâncias, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal – STF8, fixou um

entendimento que, no Brasil, prisões civis de depositários infiéis não são admissíveis. A doutrina esclarece: a CADH é uma norma “supralegal”9.

Entretanto, uma dúvida razoável poderia surgir:

“Se a CADH possui natureza supralegal, ou seja, está acima das leis e abaixo da CF/88, diante deste aparente conflito, não deveria prevalecer a regra constitucional?”

Aqui, a hermenêutica constitucional traz os esclarecimentos necessários:

No plano internacional, o Brasil adota o princípio da prevalência dos Direitos Humanos10. Com base no princípio da Unidade da Constituição e da ponderação, a prisão do depositário infiel é uma regra excepcional que, embora expressamente prevista no texto constitucional, não está em harmonia com o ordenamento jurídico, razão pela qual deve ser afastada.

Por fim, de forma bastante assertiva, prescreve a súmula vinculante nº 25 do STF que tal prisão é ilícita11. Mais um esclarecimento: a) não é inconstitucional (o texto constitucional expressamente autoriza); b) não é ilegal (existe previsão expressa no Código Civil12); c) é ilícita (viola o ordenamento jurídico brasileiro).

 

2. Normas Internacionais de Direitos Humanos posteriores à EC nº 45/04

 

Em relação aos “bastidores” desta mudança trazida pelo poder reformador, merece destaque os estudos feitos por Flávia Piovesan acerca da natureza jurídica das normas de direitos humanos13.

Com a promulgação da EC nº 45/04, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, as normas internacionais de direitos humanos receberam um tratamento especial: se forem aprovadas em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por 3/5 (três quintos) dos parlamentares de cada casa, serão consideradas “Emendas Constitucionais”.

Como exemplo, podemos mencionar a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas Com Deficiência, ratificada pelo Brasil em 25/08/2009.

No que diz respeito à tutela jurisdicional das pessoas com deficiência, dentre as diversas ações propostas com o objetivo buscar a efetivação de direitos fundamentais assegurados pela presente norma internacional, destacamos aqui uma discussão jurídica:

 

“A possibilidade jurídica de, por analogia, conceder horário especial a servidores estaduais e municipais, independente da compensação de horário, que tenham cônjuge, filho ou dependente com deficiência.”

 

Sobre o tema, há grande divergência dentro do próprio judiciário: para alguns magistrados, não é tarefa do judiciário o reconhecimento de tais direitos, pois, seria uma forma de exercício do chamado “ativismo judicial”; para outros, a “judicialização” de demandas com

esta representam o acesso efetivo à justiça assegurado por Estados Constitucionais14.

Por fim, importante registrar que esta discussão está no STF sob o tema nº 1.097 de repercussão geral, aguardando decisão do plenário15.

 

Conclusões

As normas de direitos humanos possuem grande relevância jurídica diante da finalidade de conferir ao indivíduo sua efetiva dignidade.

No Brasil, apesar desta divisão acerca das normas internacionais, a efetivação dos direitos humanos é o vetor de interpretação e aplicação capaz de nos apontar, na visão de Konrad Hesse, qual é a “Vontade da Constituição”16.

Nesse sentido, caberá ao intérprete e aplicador do direito a missão de construir uma ampla visão acerca desta temática.

 

Referências Bibliográficas

 

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 1991.

 

MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil: teoria do processo civil, volume 1, 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

 

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

 

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

 

 

Heitor Miranda de Souza

Transação em matéria tributária no âmbito federal

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O instituto da transação é conhecido e aplicado em diversos ramos do direito como forma alternativa de solução de controvérsia e mecanismo de alívio da função jurisdicional em razão de sua capacidade de diminuir o acúmulo de demandas judiciais.

Oriundo no Direito das Obrigações, a transação é um negócio jurídico no qual as partes de uma obrigação resolvem extingui-la mediante concessões recíprocas devendo necessariamente haver a convergência de vontades das partes, a controvérsia sobre a relação jurídica, o ânimo de extinguir essas controvérsias e a concessão mútua das partes.

Transação, sob o aspecto semântico, quer dizer pacto, ajuste, convenção e decorre do verbo transigir (transigere em latim), que significa concluir um ajuste, eliminar uma desavença. Surge no âmbito do direito privado e posteriormente se expandiu para os demais ramos do direito chegando ao ramo do direito tributário, o qual nos debruçamos neste artigo.

No direito tributário a transação foi consagrada expressamente no Código Tributário Nacional como forma de extinção do crédito tributário (art. 156, inciso III), condicionando sua viabilidade através de lei a ser promulgada pelo ente tributante prevendo as condições de sua admissibilidade (art. 171), em que pese estar prevista desde 1951 na Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei nº 1.341/51) por ser, à época, o órgão responsável por promover as execuções fiscais.

Transcorrido mais de 50 anos desde o seu permissivo legal temos pouquíssimas leis de transação tributária em vigor e no âmbito da União Federal, só em 2020, através da Lei nº 13.988, objeto de nosso estudo, a transação tributária ganhou destaque no meio jurídico nacional e se tornou possível.

Um estudo realizado pela Faculdade de Direito da Faculdade Getúlio Vargas de São Paulo concluiu que apenas 22,22% dos Estados haviam editado leis de transação tributária enquanto nos municípios com mais de 500 mil habitantes o percentual era de 61,70%, representando, na prática, uma pífia utilização de tal mecanismo, razão pela qual a análise desse instituto é realizado em doutrina bibliográfica diante da reduzida quantidade de jurisprudência sobre o assunto.

Indiscutível que a transação tributária tem sua relevância jurídica e econômica e por essa razão proporciona vantagens em decorrência de sua implantação, tal como o combate a cultura da litigiosidade, conforme professa Carla de Lourdes Gonçalves tratando da legislação federal em tela; “A litigiosidade tributária no Brasil é um inegável problema, e a demanda pela implementação de mecanismos alternativos na resolução de conflitos tributários encontrou na Lei 13.988/2020 um importante movimento na busca por uma Administração Pública mais consensual a nível federal. Essa lei prevê diferentes momentos, competências e, principalmente, modalidades de transação. No que afeta especificamente o processo judicial tributário, é possível mencionar a possibilidade de transações individuais, cujos termos são propostos pelos contribuintes, e aquelas públicas, desenhadas em editais publicados pela PGFN e sujeitos à adesão dos interessados”.

Por certo o Poder Judiciário não pode ser a única via para solucionar conflitos, seja pela crise na prestação jurisdicional, seja pela necessidade de uma justiça célere, que só é possível através de mecanismos ágeis e menos onerosos que possibilitam uma solução satisfatória para o conflito.

O Código Tributário Nacional dispõe que a transação tributária extingue o crédito tributário, implicando, portanto, na resolução da lide, sendo essa sua peculiaridade e seu requisito, qual seja, a transação é terminativa, não possibilitando, dessa forma, a transação preventiva, conforme nos ensina Paulo de Barros Carvalho1:

“Ao contrário do que sucede no direito civil, em que a transação tanto previne como termina o litígio, nos quadrantes do direito tributário só se admite a transação terminativa. Há de existir litígio para que as partes, compondo seus mútuos interesses, transijam”.

Por seu turno o legislador do Código não especifica as proporções semânticas do vocábulo “lítigio”, determinando se tratar de conflito de interesses deduzido judicialmente ou controvérsias meramente administrativas, restando ser esse esclarecimento objeto dos diplomas legais produzidos pelos entes tributantes.

 

Há críticas em razão da transação estar disposta no Código Tributário Nacional como hipótese de extinção do crédito tributário. Isso porque, sob o aspecto formal, o que extingue o crédito tributário é o pagamento do que foi transacionado. Como já vimos, a transação, por imposição legal, extingue o litígio, mas não necessariamente extingue o crédito tributário no mesmo momento, pois essa extinção depende da obrigação pactuada (pagamento, parcelamento, diferimento, moratória, compensação, dação em pagamento, entre outros).

Pode-se assim afirmar que a transação tributária tem natureza contratual, pois prescinde da composição de vontades e das mútuas concessões entre as partes envolvidas na relação jurídica tributária. Todavia tal concepção de sua natureza não é compartilhada por alguns juristas que entendem que a transação não confere amplos poderes para os sujeitos da obrigação negociarem o crédito tributário, como ocorre na transação do direito privado, embora não se restrinja a um simples ato unilateral da autoridade fazendária, podendo ser melhor definida como um ato unilateral por iniciativa do contribuinte.

No que concerne a transação tributária federal, objeto de nossa análise neste artigo, a mesma foi originada da conversão da Medida Provisória nº 899/2019, tornando-se a Lei nº 13.988/2020. Embora esta lei também tenha introduzido a transação de débitos não tributários, de titularidade da União, suas autarquias e fundações públicas, o escopo de nossa análise se limita apenas a aplicação da transação aos débitos tributários.

Conforme explanado na Exposição de Motivos que justificou a edição da já citada Medida Provisória, o instituto da transação contribui para o aumento da efetividade da recuperação dos créditos tributários federais, assim como estimula a diminuição de litígios tributários.

Outro aspecto que justifica o instituto da transação em matéria tributária é que esta modalidade permite uma melhor dosagem da negociação de dívidas, cumprindo o mister da justiça fiscal, uma vez que os parcelamentos extraordinários reiterados não tem demonstrado êxito neste sentido.

Não podemos nos divorciar da constatação de que os parcelamentos especiais beneficiam majoritariamente os devedores com mais capacidade de pagamento em detrimento dos contribuintes que tem menor capacidade financeira. Dessa forma a transação tem condições de atingir os créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação, contribuindo para um efetivo incremento da arrecadação tributária.

Soma-se a tudo isso a extinção de litígios, administrativos e judiciais, dotados de relevantes e variadas controvérsias jurídicas, proporcionando a redução de custos, inclusive aos contribuintes.

Com efeito, dessa forma a transação tributária atende ao princípio da igualdade ao incentivar os contribuintes com capacidade financeira limitada, proporcionando a regularidade fiscal destes, possibilitando a justiça fiscal.

Outros princípios constitucionais tributários observados pela transação são da isonomia, vez que a autoridade fiscal deve aplicar a lei de transação com equidade, sem buscar perseguições ou favorecimentos personalíssimos, atendendo assim a capacidade contributiva, o princípio da eficiência administrativa, considerando que a transação proporciona a resolução de conflito e a efetivação da arrecadação tributária e o princípio da razoável duração do processo, tendo em vista a morosidade das lides tributárias, seja no âmbito administrativo ou judicial.

Tratando especificamente da norma federal, a já citada Lei nº 13.988/2020, essa estabelece os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária (art. 1º).

São três as modalidades de transação previstas na norma em comento, quais sejam, a) transação na cobrança da dívida ativa; b) transação no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica; c) transação no contencioso tributário de pequeno valor.

Quanto a transação na cobrança da dívida ativa, esta se aplica aos créditos inscritos em dívida ativa e não pagos pelo devedor. Nessa modalidade é possível a concessão de descontos apenas em relação aos créditos considerados irrecuperáveis ou de difícil recuperação. Essa classificação se dá em razão de situação de crise econômico-financeira do sujeito passivo, sendo o percentual do desconto e o prazo de pagamento calculado com base na sua capacidade de pagamento.

Não há uma definição de créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação no texto da lei, havendo tão somente disposição no artigo 14, inciso V, de alguns parâmetros que devem ser seguidos pelo Procurador Geral da Fazenda Nacional para regulamentar esta modalidade de transação.

Em relação a transação no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica, a mesma se aplica aos grandes litígios tributários, seja no âmbito administrativo ou na esfera judicial, que são típicos da complexidade da legislação tributária e sua aplicabilidade.

As definições de controvérsias relevantes e disseminadas estão previstas em Portaria do Ministério da Economia2 sendo consideradas controvérsias disseminadas aquelas relativas as mesmas matérias que estejam em curso em ao menos três tribunais regionais federais distintos; casos que existam mais de cinquenta processos de mesma matéria, todos envolvendo sujeitos passivos distintos; as controvérsias que já sejam objeto de incidente de resolução de demandas repetitivas já conhecida pelo tribunal processante, ou ainda as controvérsias que envolvam parte significativa de contribuintes de determinado setor econômico ou produtivo. Quanto as controvérsias relevantes, são aquelas que somadas produzem um impacto econômico igual ou superior a um bilhão de reais; aquelas que sejam objeto de decisões divergentes entre as turmas ordinárias e a câmara superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, ou aquelas que sejam objeto de sentenças ou acórdãos divergentes.

Por fim, no que concerne a transação no contencioso tributário de pequeno valor, esta se aplica aos créditos de até 60 (sessenta) salários mínimos, para pessoas físicas, microempresas e empresas de pequeno porte. Dessa forma busca-se reverter os custos da cobrança em benefíciodas partes e solucionar o problema relacionado à disseminação de pequenas demandas

Quanto a sua forma, na modalidade de transação na cobrança da dívida ativa, o acordo pode ocorrer por iniciativa do contribuinte, através de proposta individual ou por adesão. Nas outras duas

modalidades de transação apenas é possível sua efetivação por adesão. Na adesão a União propõe o acordo, mediante a expedição de edital, no qual são fixadas todas as condições da proposta, que é dirigida a todos os devedores que satisfaçam os respectivos requisitos, implicando a adesão na aceitação daquelas condições impostas.

Por seu turno, na proposta individual, a proposta é de iniciativa do sujeito passivo (devedor) ou de iniciativa da União dirigida especificamente a determinado devedor. Caso haja consenso o acordo é formalizado3.

Convém destacar que qualquer das modalidades de transação está condicionada ao compromisso do devedor em assumir as seguintes condições: a) não utilizar a transação de forma abusiva, para limitar, falsear ou prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa econômica; b) não utilizar pessoa natural ou jurídica interposta para ocultar ou dissimular a origem ou a destinação de bens, direitos e valores, os seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários de seus atos; c) não alienar nem onerar bens ou direitos sem a devida comunicação ao órgão da Fazenda Pública competente, quando exigido em lei; d) desistir das impugnações ou dos recursos administrativos que tenham por objeto os créditos incluídos na transação e renunciar a quaisquer alegações de direito sobre as quais eles se fundem; e) renunciar a quaisquer alegações de direito, atuais ou futuras, sobre as quais se fundem ações judiciais, inclusive as coletivas, ou recursos que tenham por objeto os créditos incluídos na transação, por meio de requerimento de extinção do respectivo processo com resolução de mérito (artigo 487, III, “c”, do CPC).

Dentre as condições acima elencadas, trago luz aos compromissos do devedor de desistir, inclusive, das alegações futuras em ações judiciais, bem como, que deverá requerer a extinção com resolução de mérito destas ações. Essa condição impossibilita eventual ajuizamento futuro de ação judicial para rediscutir a questão no caso de ocorrer a rescisão da transação.

Neste sentido cumpre destacar que, embora a sentença homologatória da transação esteja prevista como espécie de sentença extintiva com resolução de mérito, no art. 487, III, b, do CPC/15, a transação tributária nos termos da lei em comento não depende de homologação judicial, podendo ser inclusive realizada extrajudicialmente, por meio de processo administrativo.

No mais, os demais compromissos, tais como os de não utilização da transação como meio de burlar o princípio da livre concorrência, ou ainda, de não utilizar interposta pessoa para ocultar bens ou direitos em desfavor da Fazenda Pública, assim como não alienar bens em prejuízo de créditos da União, estão em consonância com o princípio da boa-fé, norteador do comportamento do aderente, evitando ações fraudulentas.

Um aspecto importante da norma em análise é a vedação, a nosso ver correta, da adesão da transação que tenha como parte o devedor contumaz, conforme definido em lei específica. Mesmo que ainda não aplicável, pois inexiste norma que defina devedor contumaz, a primeira proibição se mostra adequada, vez que a conduta do devedor contumaz esta associada ao contribuinte que, de forma intencional e reiterada, deixa de adimplir com as suas obrigações tributárias mesmo possuindo capacidade de pagamento, apropriando-se, de certa forma, de recursos que deveriam ser públicos.

Ademais, tal vedação atende ao princípio da isonomia, considerando que essa prática nociva à sociedade culmina em concorrência desleal com os contribuintes que cumprem rigorosamente com

sua obrigação tributária, evitando que a transação torne-se um meio de estimular o inadimplemento dos débitos tributários.

Outras vedações também constam na lei, cujos valores não podem sofrer redução caso sejam transacionados, tal como a multa penal, os créditos do Regime do Simples Nacional, até que seja editada lei complementar autorizativa, e do FGTS, enquanto não autorizado por seu Conselho Curador.

A lei prevê também as hipóteses de rescisão da transação (artigo 4º, caput), estabelecendo ainda que o termo do acordo pode prever hipóteses adicionais (artigo 4º, inciso VI). São elas: a) o descumprimento das condições, das cláusulas ou dos compromissos assumidos; b) a constatação, pelo credor, de ato tendente ao esvaziamento patrimonial do devedor como forma de fraudar o cumprimento da transação, ainda que realizado anteriormente à sua celebração; c) a decretação de falência ou de extinção, pela liquidação, da pessoa jurídica transigente; d) a comprovação de prevaricação, de concussão ou de corrupção passiva na sua formação; e) a ocorrência de dolo, de fraude, de simulação ou de erro essencial quanto à pessoa ou quanto ao objeto do conflito, f) a ocorrência de alguma das hipóteses rescisórias adicionalmente previstas no respectivo termo de transação, e g) a inobservância de quaisquer disposições desta Lei ou do edital.

Importante observar que, por ser a transação tributária estabelecida em lei, configurando portanto um ato jurídico válido, perfeito, as hipóteses de rescisão deste instituto somente se darão nestas descritas em lei, não sendo possível outra forma de rescisão.

A legislação de regência traz ainda a possibilidade de suspensão de exigibilidade do crédito tributário, ao prever que, nas hipóteses de o acordo de transação envolver concessões, como parcelamento ou moratório do débito, deve-se aplicar os incisos I e VI, do artigo 151 do Código Tributário Nacional. Nestes casos, a exigibilidade do débito permanecerá suspensa no curso do acordo de transação.

Note que há disposição na lei afirmando, como regra geral, que a transação não suspende a exigibilidade dos créditos transacionados (art. 12), o que seria dispensável, considerando que a transação está prevista como hipótese de extinção do crédito tributário e não de suspensão da sua exigibilidade, conforme disposto no art. 156, inciso III do Código Tributário Nacional. Todavia é imperiosa a referida exceção expressa na norma (conceder a suspensão da exigibilidade aos créditos transacionados – art. 12, §§ 1º e 2º) tendo em vista que a lei em análise não institui propriamente parcelamentos ou moratórias.

Quanto aos limites da transação, a discricionariedade do que pode ser acordado, a lei foi taxativa, até mesmo por razões de segurança jurídica e atento ao princípio da estrita legalidade. Entre as concessões previstas, (art. 11), é permitido descontos nas multas, nos juros e nos encargos legais, mas apenas dos créditos irrecuperáveis e de difícil recuperação, excluindo desse benefício os demais créditos, embora se admita o oferecimento de prazos e formas de pagamento especiais, incluídos o diferimento e a moratória e ainda, o oferecimento, a substituição ou a alienação de garantias e de constrições.

Evidente que muitos são os desafios da transação tributária recentemente em vigor, embora sua regulamentação afasta diversas discussões que existiam a partir da análise dos seus elementos dispostos no Código Tributário Nacional. Como exemplo temos os efeitos da transação tributária, pois tratando-se de uma hipótese de extinção do crédito, que envolva concessões mútuas entre as partes, a exemplo da transação no Direito Privado, não possui todos os elementos para tanto.

Outra peculiaridade que difere do âmbito do Direito Privado é que a transação tributária não confere ampla liberdade à autoridade fiscal, não permite qualquer concessão ao devedor que entender cabível. Mas há determinada discricionariedade da autoridade fiscal para transacionar. Por ser o objeto da transação um crédito tributário, portanto público, oriundo de uma obrigação compulsória, igualmente suas concessões devem atender os limites estabelecidos em lei, ainda que outorgada certa discricionariedade à autoridade.

Certo é que a transação acabou de nascer para o Direito Tributário sob o aspecto normativo e de regulamentação, já introduzindo diversas inovações no sistema tributário, de modo que com o incremento de mais estudos, doutrinas, normas e o arcabouço jurisprudencial que se formará em torno deste instituto fará com que a ciência do Direito Tributário só tenha a ganhar.

 

 

Marco Aurélio Ferreira Pinto dos Santos, advogado, especialista em Direito Tributário, Presidente da Comissão de Direito Tributário da 57º Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil – Guarulhos (Gestão 2010/2012 e 2013/2015), Coordenador do Núcleo de Direito Tributário da Comissão de Cultura da 57º Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil – Guarulhos (Gestão 2019/2021).

Algumas considerações sobre a Desconsideração da Personalidade Jurídica – aplicação da regra do Art. 50 do código civil.

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Autor: Professor Reinaldo Monteiro

Não há que confundir pessoa natural com pessoa jurídica de direito privado. A primeira decorre de um fato natural, que é o nascimento com vida. A segunda surgiu do comando legislativo. São as associações, as sociedades, as fundações, as organizações religiosas, os partidos políticos e as empresas individuais de responsabilidade limitada (Art. 44 do código civil). Não obstante nascer da vontade humana adquire personalidade jurídica que a individualiza, se distinguindo das pessoas que a criaram. A personalidade jurídica da pessoa jurídica não é um fato natural. É alcançada com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo. Todas as modificações que vier a atingir o ato constitutivo devem ser levadas à averbação (Art. 45 do código civil).

Porém, é importante destacar que a lei assegura existência jurídica às sociedades desprovidas de personalidade jurídica, como é o caso da sociedade em comum e da sociedade em conta de participação. Enquanto a primeira tem caráter temporário, transitório, pendente da inscrição dos atos constitutivos (Art. 986 do código civil) a segunda, jamais adquirirá personalidade jurídica, ainda que ocorra a inscrição dos atos constitutivos (Art. 993 do código civil). Será sempre sociedade despersonificada.

As sociedades e as empresas individuais de responsabilidade limitada são sempre representadas pelas pessoas naturais, com poderes específicos de representação. É condição “sinequa non” a indicação do modo como se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente (Artigo 46, III Código Civil).

Atento a possibilidade de desvirtuamento da pessoa jurídica (entendendo como a práticade atos, para fins escusos e de interesse exclusivo e particular dos sócios), adoutrina desenvolveu a teoria da desconsideração da pessoa jurídica, que, posteriormente foi agasalhadapelo ordenamento jurídico brasileiro e vem sendo aprimorada por inserções legislativas.

 

Art. 50 do código civil.

 

Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

 

§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

A redação do Artigo 50 do código civil, guarda semelhança com a descrita no Art. 28 do código de defesa do consumidor.

 

Art. 28 do código de defesa do consumidor.

O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

A desconsideração da personalidade jurídica é uma forma de enquadrar, limitar e coibir o uso indevido da pessoa jurídica, mormente, em prejuízo de terceiros. Impõe aos sócios e administradores que,observem no cumprimento de suas obrigações para com a pessoa jurídica, os princípios da separação patrimonial – imprescindível para a saúde financeira da pessoa jurídica – e da probidade.

A limitação de responsabilidade atribuída aos sócios na adoção do modelo societário, por exemplo, da sociedade limitada possui os seus contornos definidos na limitação da responsabilidade pelas obrigações sociais, significando que os sócios não respondem com seus patrimônios pessoais pelas dívidas que a sociedade vier a contrair, dentro da normalidade do exercício de gestão.

A desconsideração é ato excepcional. Trata-se de exceção ao princípio da responsabilidade limitada dos sócios, decorrente da modalidade societária escolhida. A sua aplicação está limitada pelos contornos trazidos pelo legislador. De fato, as regras dos Artigos 50 do Código Civil e 28 do Código de Defesa do Consumidor autorizam o Juiz retirar o privilégio da autonomia patrimonial e atingir o patrimônio pessoal dos sócios e dos administradores para a satisfação dos direitos de terceiros que foram prejudicados com os atos que beneficiaram direta ou indiretamente os sócios e/ou administradores.

 

Convém salientar que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não visa destruir ou questionar o princípio da separação da personalidade jurídica da sociedade da dos seus sócios. Trata-se de medida excepcional que é aplicada nos contornos da lei civil (artigo 50 CC) ou do direito consumerista (artigo 28 do CDC).

A aplicação da teoria exige a presença de um dos dois elementos: desvio de finalidade, constatada pela prática de atos distintos ao objeto social, trazendo prejuízo a terceiros; e a confusão patrimonial, materializada pela impossibilidade de se saber o que pertence ao sócio e o que é da sociedade.

Acrescente a posição esclarecedora do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 279273/SP , de 04/12/2003:

“A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).”

A desconsideração da personalidade jurídica importa na retirada momentânea da autonomia patrimonial da sociedade, para estender os efeitos de suas obrigações aos bens particulares de seus sócios.

O juiz não tem competência para decretar ou decidir pela dissolução, total ou parcial da pessoa jurídica, nos casos de fraude relativa à autonomia patrimonial e sim decretar a desconsideração da personalidade jurídica, na forma prevista no art. 50 do Código Civil ou art. 28 do Código de defesa do consumidor, em atendimento ao requerimento da parte prejudicada pelo desvio financeiro ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo.

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), apreciando o RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.CPC/2015. PROCEDIMENTO PARA DECLARAÇÃO. REQUISITOS PARA A INSTAURAÇÃO. OBSERVÂNCIA DAS REGRAS DE DIREITO MATERIAL.DESCONSIDERAÇÃO COM BASE NO ART.50 DO CC/2002. ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DESVIO DE FINALIDADE. CONFUSÃO PATRIMONIAL. INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR. DESNECESSIDADE DE SUA COMPROVAÇÃO, assim se posicionou:

1. A desconsideração da personalidade jurídica não visa à sua anulação, mas somente objetiva desconsiderar, no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem, com a declaração de sua ineficácia para determinados efeitos, prosseguindo, todavia, incólume para seus outros fins legítimos.

2. O CPC/2015 inovou no assunto prevendo e regulamentando procedimento próprio para a operacionalização do instituto de inquestionável relevância social e instrumental, que colabora com a recuperação de crédito, combate à fraude, fortalecendo a segurança do mercado, em razão do acréscimo de garantias aos credores, apresentando como modalidade de intervenção de terceiros (arts. 133 a 137) 3. Nos termos do novo regramento, o pedido de desconsideração não inaugura ação autônoma, mas se instaura incidentalmente, podendo ter início nas fases de conhecimento, cumprimento de sentença e executiva, opção, inclusive, há muito admitida pela jurisprudência, tendo a normatização empreendida pelo novo diploma o mérito de revestir de segurança jurídica a questão. 4. Os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica continuam a ser estabelecidos por normas de direito material, cuidando o diploma processual tão somente da disciplina do procedimento. Assim, os requisitos da desconsideração variarão de acordo com a natureza da causa, seguindo-se, entretanto, em todos os casos, o rito procedimental proposto pelo diploma processual. 6. Nas causas em que a relação jurídica subjacente ao processo for cível-empresarial, a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica será regulada pelo art. 50 do Código Civil, nos casos de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial. 7. A inexistência ou não localização de bens da pessoa jurídica não é condição para a instauração do procedimento que objetiva a desconsideração, por não ser sequer requisito para aquela declaração, já que imprescindível a demonstração específica da prática objetiva de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. 8. Recurso especial provido.

 

REINALDO MONTEIRO

Reinaldo Monteiro, advogado, especializados em direito empresarial. Atua na área coorporativa. Professor universitário de direito civil e empresarial.

A inclusão digital como direito fundamental

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POR: Lucas da Luz Pereira

 

1. O início da internet

Com o surgimento da internet e novos meios de comunicação, o ser humano avançou muito tecnologicamente em um curto espaço de tempo. Em 1866, o primeiro cabo intercontinental foi instalado para o tráfego de telegrafia e, posteriormente, surgiram os cabos para telefonia e transmissão de dados. Em um lapso de 100 anos, o primeiro satélite artificial, Sputnik, foi lançado; a primeira transmissão ao vivo aconteceu, via satélite, entre Estados Unidos da América e Europa; o primeiro computador foi construído. Grandes mudanças aconteceram em diversas áreas com a facilidade de acesso à informação e ao conhecimento. Estar conectado aos outros é uma necessidade básica dos seres humanos desde o início de sua existência como espécie. Nos diferenciamos de outros seres vivos pela nossa complexa capacidade de raciocinar. O ser humano, através a inteligência, é capaz de criar realidades e conceitos intangíveis, como o tempo, a verdade, a moralidade e a virtude. Conceitos que foram criados há muito tempo e são transmitidos entre gerações através da comunicação até os dias de hoje.

A internet surgiu a partir das pesquisas militares durante a Guerra Fria, que ocorreu entre 1947 e 1991. A disputa entre os dois grandes blocos ideológicos, União Soviética e Estados Unidos, que exerciam um enorme controle e influência no resto do mundo, resultou na inovação na área tecnológica. Era imprescindível que se inventassem um meio de proteger informações sigilosas. Qualquer vazamento poderia ser o motivo que resultasse na derrota de uma das superpotências. Desta forma, o objetivo era criar um modelo de troca e compartilhamento de informações que permitisse a descentralização delas. Em 1969, foi criada então a ARPANET – Rede da Agência para Projetos de Pesquisa Avançada, uma rede de computadores que era utilizada para transmissão de dados militares sigilosos e interligação dos departamentos de pesquisa nos Estados Unidos.

A partir desse momento, todos os anos novos computadores se juntavam à rede. A finalidade militar deixou de ser a principal. Em 2001, o número de hosts na rede mundial ultrapassou 15 milhões. Aos poucos a internet chegava à casa das pessoas ao redor do mundo. A rede de computadores começou a ser utilizada para comércio, bancos, prestadores de serviços. A facilidade de se comunicar permitiu que negócios ocorressem totalmente através da internet. Uma informação compartilhada por uma pessoa em qualquer lugar do mundo poderia ser vista por qualquer um que tivesse acesso à rede mundial de computadores.

O avanço tecnológico contribuiu para que a informação e a transmissão de conhecimento se difundissem muito rapidamente. Com a internet, surgiram cursos universitários transmitidos online, museus virtuais, diversos sites que armazenam todos os tipos de informações como o Wikipedia e até ferramentas de visualização do globo terrestre como o Google Earth. Ao ponto de que hoje é possível, através da ferramenta Google Maps, simular um passeio por praticamente qualquer rua ou estrada do mundo.

Esse desenvolvimento só foi possível porque a cada nova pessoa que é atingida pelas novas tecnologias, a difusão de informação aumenta exponencialmente. A globalização e a democratização da informação permitiram que um conjunto de pessoas que provavelmente nunca teriam qualquer tipo de contato, pudessem trabalhar de forma homogênea para desenvolver e criar conjuntamente. Com o conhecimento difundido, é muito mais fácil e rápido que uma nova tecnologia que é criada do zero seja aprimorada e melhorada. Isto porque o desenvolvimento feito de maneira aberta e de domínio público permitem a contribuição de muitas pessoas. Desta forma, o avanço dos meios de comunicação acaba resultando no próprio avanço da tecnologia de informação e comunicação.

Ocorre que, o avanço exponencial da internet não foi possível desde o primeiro momento. Isto porque inicialmente, com sua finalidade militar e por seu custo elevado, o acesso era muito restrito. Com o passar do tempo e com o surgimento de novas tecnologias e projetos para difusão da internet, o acesso à internet tomou proporções inimagináveis. A criação do World Wide Web, mais conhecida como “WWW”, tornou possível que a navegação na internet ocorresse de maneira gratuita. Nesse mesmo sentido, o projeto GNU permitiu que softwares fossem disponibilizados sem qualquer tipo de oneração. Esse ambiente proporcionou a democratização da informação e conhecimento, que foram imprescindíveis para a globalização e evolução da tecnologia e de diversas áreas.

2. O acesso à informação através da internet e a inclusão digital

A internet permite que qualquer pessoa que tenha acesso à rede mundial de computadores possa acessar um universo de informações sobre qualquer assunto. Aliada à digitalização dos conteúdos de texto, áudio, vídeo, as pessoas podem ter acesso à informação até mesmo de forma offline. As músicas podem ser ouvidas em aparelhos celulares, computadores e armazenadas nos dispositivos. Os textos são acessados na internet a todo momento e livros inteiros podem ser lidos através de e-books. Os vídeos, que antes só eram acessados através do cinema e televisões, hoje podem ser vistos em qualquer celular.

Nesse sentido surgiu o conceito da inclusão digital. Apesar de ser algo muito recente, o termo é derivado do conceito de inclusão social, que foi começou a ser utilizado após a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. A inclusão social tem como objetivo a universalização de direito formais e materiais. Ao longo dos anos novos grupos que eram excluídos através de práticas sociais, culturais e históricas, reivindicaram essa luta, como por exemplo os negros, índios, mulheres, comunidade LGBT etc.

A inclusão digital é também uma luta social frente a necessidade humana de se inserir nas possibilidades das tecnologias de informação e comunicação. Uma pessoa que é excluída desse universo digital sofre grandes impedimentos e consequências em diversos âmbitos, como educação e comunicação, tendo em vista que tecnologias de informação e comunicação são imprescindíveis para as demandas da sociedade atual. Tudo ao nosso redor tem influência das novas tecnologias, desde grandes reuniões envolvendo os líderes mundiais, até o comércio de um pequeno produtor rural. Todos nós estamos interligados através dessa grande rede de informações.

É inegável que se trata de um ambiente complexo e o acesso à informação as vezes não é tão simples como na teoria. A infraestrutura de telecomunicações por exemplo é imprescindível para as tecnologias de informação e comunicação. Para países com grande território, o investimento para essa infraestrutura é bem alto, mas que pode ser feito de forma gradativa até atingir totalidade da população. O acesso à celulares e produtos de informática pela população mais pobre muitas vezes não ocorre em decorrência por exemplo da alta tributação sobre o mercado das telecomunicações, a fiscalização concorrencial ineficiente e o custo dos produtos que a cada ano estão mais caros. Desta forma, conclui-se que o principal fato que gera a exclusão digital da população é o econômico, impedindo a estes o acesso aos bens da tecnologia da informação e comunicação.

As tecnologias de informação e comunicação se tornaram, portanto, um novo aspecto da vida do ser humano. É uma necessidade que antes não era vista pelo Direito e que hoje não pode ser ignorada porque se tratar de algo fundamental na vida de qualquer pessoa. A inclusão digital deve abarcar desde instituições do governo até o pequeno produtor rural no interior do país. É claro que a forma de acabar com a exclusão digital é diferente para uma pessoa que mora na periferia na região Sudeste e para um índio na região Norte do país. São abordagens e processos que demandam análises e soluções diferentes.

A Organização das Nações Unidas (ONU) já estipulou como uma das metas do milênio que os países devem usar projetos de infraestrutura como oportunidades para aprendizado tecnológico; adotar novas tecnologias e associá-las à qualidade de seu sistema de ensino superior; promover empreendimentos na área de ciência, tecnologia e inovação.

O acesso à informação e aos meios digitais são valores sociais que devem ser recepcionados pelo Direito, é uma forma de potencializar a capacidade do ser humano de se expressar, de produzir, de difundir conhecimento. O Direito deve sempre se atualizar com as novas demandas sociais e culturais, e com a evolução tecnológica da informação e comunicação não deve ser diferente. Garantir a inclusão digital é permitir que cada um de nós possamos cada vez estar mais perto de realçar outros direitos do nosso cotidiano, como a liberdade, igualdade, dignidade, liberdade de expressão etc. A inclusão digital como direito fundamental é uma necessidade histórica, é o reflexo da evolução social. Os fenômenos da tecnologia afetam nossa percepção do mundo, influenciam nas interações sociais, no nosso desenvolvimento como espécie. Desta forma, é imperioso que o Direito tutele a inclusão digital como um valor inerente ao ser humano.

 

 

Lucas da Luz Pereira

Advogado; Formado em Direito pela Faculdade Damásio de Jesus. Especialista em Direito Empresarial na Economia Digital pela PUC-SP; Pós-graduando em Direito Tributário pela PUC-SP.

A advocacia além dos tribunais começa com uma atitude intencional de curiosidade.

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POR: Adriana Aguiar Brotti 

 

Os conflitos são inerentes às relações humanas e as emoções desencadeadas tendem a restringir ou ampliar, tanto a intenção quanto a compreensão de cada pessoa envolvida. Quando o fluxo natural da comunicação é interrompido pelos conflitos, acredita-se tradicionalmente, que os mesmos devem ser submetidos e deliberados pelo Poder Judiciário através de uma ação judicial.

O litígio como único caminho para solucionar conflitos configura uma cultura de sentença, na qual delega-se ao Estado o poder de decidir a controvérsia. Na maioria dos casos não atende efetivamente a necessidade das pessoas, principalmente quando se trata de demandas de direito das famílias. Essa “ cultura da sentença ou litígio” resulta de uma lacuna na formação dos bacharéis em Direito, pois nos cursos não há ainda disciplinas que os preparem para desenvolver habilidades comportamentais, que equilibrem razão e emoção.

Acreditamos que a base da advocacia se firma na inteligência e na estabilidade emocional. Caso essa base não seja bem desenvolvida, o profissional terá dificuldades para exercer uma advocacia consensual.

Na advocacia consensual, o profissional não se limita a demandar judicialmente e sim, entende a necessidade de seu cliente, buscando ir além das respostas tradicionais.

Esperamos reforçar aqui que o papel do advogado não deve ser reduzido a um simples ajuizador de ações. O conhecimento técnico jurídico não pode mais ser sustentado como o único pilar da advocacia. É fundamental a consciência sobre os saberes complementares ao direito, para que se alcance uma comunicação ativa, empática e que resulte em uma negociação com valores. O objetivo é que a advocacia atue de modo a atender interesses e necessidades de seus clientes, humanizando as soluções.

Assim, além do pilar do conhecimento técnico, chamamos a atenção para um segundo pilar da advocacia, igualmente importante, que é o do aperfeiçoamento pessoal que inclusive, é apontado como um dever do advogado.

Nos termos do Código de Ética e Disciplina:

“Art. 2º. O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce.

Parágrafo único.São deveres do advogado:

[…]”.

IV – empenhar-se, permanentemente, em seu aperfeiçoamento pessoal e profissional;

[…]”.

Entendemos que alcançar a excelência na advocacia significa então considerar os dois pilares e ambos exigem do profissional atitudes intencionais de atenção, abertura, curiosidade, generosidade e de não julgamento frente a todos os saberes e tipos de conflitos existentes. O êxito da missão do advogado perante a sociedade também está atrelado ao seu autoconhecimento. Segundo afirma Daniel Goleman, psicólogo e estudioso das ciências comportamentais, são cinco os elementos que compõem a inteligência emocional na advocacia: autoconsciência, autocontrole, motivação, habilidades sociais e empatia.

Fato é que o exercício da advocacia traz inúmeros desafios comuns a todos os advogados, e talvez o maior deles seja administrar a rotina e cuidar da inteligência emocional, porque mesmo em meio aos caos, é exigido que o profissional:

· seja capaz de abordar negociações difíceis;

· estabeleça uma comunicação clara e que transmita confiança;

· atenda as necessidades urgentes dos clientes;

· mantenha-se calmo mesmo diante de situações de falta de decoro e etiqueta daquelas pessoas com as quais se relaciona;

· desenvolva habilidades que possam se tornar diferenciais na prestação de seus serviços;

· acompanhe as constantes mudanças e incertezas do mercado;

· alcance alta performance;

· mantenha o bem-estar e sua humanidade.

Para um profissional que serve a sociedade, administrando a justiça e solucionando conflitos, pergunta-se: é possível operar com excelência na advocacia sem acolher sua própria humanidade e conectar-se com seus clientes?

Acolher a própria humanidade significa sair do padrão piloto automático das atividades e das emoções (ou seja, da padronização das ações e da prisão de crenças limitantes e de emoções não tratadas). Somente assim, é possível acessar a sabedoria de todos os recursos interno e externo para um existir mais lúcido na vida pessoal e profissional.

Assim, o convite que fazemos é o de atendermos nossos clientes não mais de uma forma apenas profissional, mas também de forma empática, e com o conhecimento da pertinência dos métodos consensuais de solução de conflitos.

A advocacia do futuro é aquela que entrega uma experiência única, diferenciada aos seus clientes. Vai além dos tribunais, buscando oportunidades, conectando-se com as pessoas e que mantém de forma genuína, a curiosidade sobre todos os métodos que possam agregar no esforço de pacificar as relações humanas.

Não cabe ao advogado apegar-se ou rejeitar um ou outro método de solução de conflitos, até porque os modelos adversarial e não adversarial vão sempre coexistir. Na verdade, cabe a ele identificar qual o modelo mais adequado para cada caso concreto.

Atualmente para corroborar com a cultura da paz são muitos os métodos à disposição da advocacia, como: mediação, conciliação, negociação, arbitragem (sistema híbrido), práticas colaborativas, dentre outros. Contudo, para muitos profissionais que não se colocam genuinamente interessados nas necessidades da sociedade, acabam não acolhendo oportunidades como: influenciar produtivamente, pela via consensual, o desfecho das soluções, com fundamentos e argumentos válidos; alcançar maior celeridade, sem reduzir seus honorários e, ainda, permitir que o cliente tenha uma nova experiência na advocacia.

Os métodos adequados de solução de conflitos, reinauguram a função essencial da advocacia, possibilitando que além da postura combativa, enérgica, a advocacia também possa assegurar os direitos de seus clientes, assumindo uma postura resolutiva, capaz de dialogar e construir as soluções dos conflitos, inclusive com a colaboração dos próprios clientes.

O Código de Processo Civil incentiva e valoriza a adoção dos meios consensuais, inserindo o tema em diversos dispositivos. Para que a abordagem autocompositiva prospere é fundamental que haja abertura para novos conceitos que gerem soluções mais ágeis e criativas. É de suma importância o estudo com maior profundidade, sobre todos os métodos adequados de solução de conflitos, de modo a diferenciá-los, destacando suas vantagens e desvantagens, o que faremos em outra oportunidade. Com isso, asseguraremos o compromisso de difundir a cultura de paz, focada na gestão de conflitos humanos, porque todas as histórias importam.

Referências bibliográficas

SANCHES, Ji. Inteligência emocional na advocacia como diferencial para o sucesso. Originalmente publicado em < https://www.aurum.com.br/blog/inteligencia-emocional-na-advocacia/ Acesso em: 04 de Outubro de 2021.

TARTUCE, Fernanda. Mediação no Novo CPC: questionamentos reflexivos. In Novas Tendências do Processo Civil: estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. Org.: Freire, Alexandre; Medina, José Miguel Garcia; Didier Jr, Fredie; Dantas, Bruno; Nunes, Dierle; Miranda de Oliveira, Pedro (no prelo). Disponível em www.fernandatartuce.com.br/artigosdaprofessora. Acesso em 08 de Outubro de 2021.

 

 

Adriana Aguiar Brotti advogada, graduada em Direito pela Universidade de Guarulhos – UNG; MBA em Direito de Família pelo Centro Universitário Salesiano São Paulo, Mediadora pela CAMCESP, Radialista, Coordenadora do Núcleo de Estudos de Direito de Familia da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB Guarulhos e Instrutora de Mindfulness pelo Mindfulness Trainings International

O instituto refúgio à luz do discurso sociopolítico e jurídico do Brasil

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 INTRODUÇÃO

O processo migratório é uma realidade milenar e que se acentua após a 2ª Guerra Mundial. Os pilares contemporâneos do instituto jurídico refúgio surgem com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), entretanto, ao longo do tempo, novas interpretações sociojurídicas ampliaram o alcance do instrumento assecuratório, permitindo que o estrangeiro busque refúgio não apenas por se sentir perseguido, mas também porque o país em que vive constitui cenário de grave e generalizada violação aos direitos humanos.

No presente trabalho, adotou-se o método de revisão de literatura, doutrina e jurisprudência, incluindo consultas a instrumentos internacionais e à legislação interna, com ênfase à Convenção de Genebra, à Lei brasileira de Refúgio (9.474/1997) e à Lei de Migração (13.445/2017). O problema de pesquisa consiste em analisar o discurso sociopolítico e jurídico adotado pelo Brasil para a concessão de refúgio.

2 REFUGIADOS: ASPECTOS UNIVERSAIS

2.1 A proteção internacional da pessoa humana

O entendimento jurídico, bem como a percepção social do instituto refúgio, vincula-se à trajetória histórica das sociedades, em especial, as ocidentais que lutaram para estabelecer e normatizar a compreensão acerca dos direitos humanos.  A temática protetiva do indivíduo se fez presente nas lutas pela independência norte-americana (século XVIII), na Revolução Francesa (século XVIII), bem como nas revoluções libertárias estruturadas na América Latina (século XX).

Analisando os movimentos sociais supracitados, contabiliza-se cerca de três séculos até se chegar à conceituação hodierna do instituto refúgio, foco do presente estudo. Isso porque é a consolidação do estado-nação que estabelece o marco jurídico constitucional de cada país, no que diz respeito aos direitos e deveres do cidadão.

Considerável número de juristas, a exemplo de Trindade (2003) e Swinarski (1992), concorda que a proteção internacional da pessoa humana está alicerçada no seguinte tripé: o Direito Internacional Humanitário, o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Internacional dos Refugiados.

Embora o instituto refúgio esteja no cerne da pesquisa, faz-se necessário breve síntese acerca do instituto jurídico asilo, que precede o refúgio. Isso porque alguns ainda confundem a adequação de cada um desses instrumentos frente ao caso concreto.

Relevante observar que ambos derivam da mesma fonte jurídica moderna:  o artigo 14, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH, 1948), tratando o direito de asilo em sentido amplo, abarcando, assim, tanto as hipóteses de asilo político (territorial ou diplomático), como as de refúgio, in verbis:

Artigo 14 (DUDH, 1948)

 

  1. Todos os seres humanos têm o direito de procurar e de se beneficiar de asilo noutros países.
  2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

 

 

Na Constituição da República Federativa do Brasil   (CRFB/1988), o asilo político está assegurado no inciso X, art. 4º, textualmente:

 

Art. 4°- A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

X- concessão de asilo político.

Depreende-se, portanto, que o asilo político, subdividido em duas espécies: diplomático e territorial, é instrumento protetivo do indivíduo perseguido por suas crenças, opiniões e filiação política, ou por atos que possam ser considerados delitos políticos. Tem caráter principiológico, sendo um dos pilares que rege as relações internacionais do Brasil, entretanto é ato discricionário do Poder Executivo, seja do ponto de vista jurídico ou doutrinário, conforme dispõem o art. II, do Decreto nº 42.628/1957, que promulga a Convenção sobre Asilo Diplomático;  e o art. I,  do Decreto nº 55.929/1965, promulgando a Convenção sobre Asilo Territorial,  respectivamente:

Decreto nº 42.628/1957. (…).  Art. II – Todo Estado tem o direito de conceder asilo, mas não se acha obrigado a concedê-lo, nem a declarar por que o nega.

Decreto nº 55.929/1965. (…) – Art. I – Todo Estado tem direito, no exercício de sua soberania, de admitir, dentro de seu território, as pessoas que julgar conveniente, sem que, pelo exercício desse direito, nenhum outro Estado possa fazer qualquer reclamação.

No mesmo sentido, ensina a doutrina contemporânea de Araújo (2018, p. 536):

Discricionariedade administrativa é a faculdade que a lei confere à Administração para apreciar o caso concreto, segundo critérios de oportunidade e conveniência, e escolher entre duas ou mais soluções, todas válidas perante o direito.

O instituto refúgio, por sua vez, ganha contornos específicos, a partir do período entre as Primeira e Segunda Guerras Mundiais, sendo possível  identificar três fases na evolução do reconhecimento do status de refugiado (HATHAWAY, 1991). A primeira, entre 1920 e 1935, foi classificada como a fase da perspectiva jurídica, uma vez que o acesso ao mecanismo protetivo estava fundamentado no pertencimento do indivíduo a uma dada coletividade ameaçada. À época, o Direito Internacional não reconhecia o indivíduo como sujeito de direitos.

A segunda fase é a da perspectiva social (1935 a 1939), na qual os refugiados eram reconhecidos como resultantes das ocorrências sociais ou políticas. A partir de 1939, então, ganha espaço a fase da perspectiva individual, que perdura até os dias atuais e vislumbra o reconhecimento do status de refugiado a partir das condições de cada indivíduo.

Para Hathaway (1990, p.128-183), a passagem da segunda para a terceira fase caracterizou-se pela perda do caráter humanitário do refúgio, uma vez que os poucos recursos financeiros existentes após a 2ª Guerra Mundial e o número expressivo de pessoas que necessitava do instituto levaram à aplicação de processos mais seletivos, ampliando, consequentemente, a discricionariedade dos Estados ao conceder refúgio a partir da análise de cada caso concreto.

2.1. Desrespeito aos direitos humanos como a maior causa de evasão

A etimologia da palavra dignidade varia, embora resguarde, na sua essência, a premissa da valoração humana. Ramos (2018, p. 83) ensina que a expressão é oriunda do “latim dignus” e expressa a honra e a importância do ser, daí a necessidade de se proteger a pessoa humana dos tratamentos degradantes ou advindos de discriminação odiosa. Barroso (2014, p. 13) explica que dignidade deriva de “dignitas”, sendo um “conceito associado ao status de alguns indivíduos” e, por consequência, o reflexo da sociedade hierarquizada.

A expressão “dignitas”  começa a ser usada na Idade Média e segue até a criação do Estado Liberal para reverenciar a nobreza, os que detinham direitos e privilégios. A ideia contemporânea de dignidade, por sua vez, é aquela que se vincula ao “desenvolvimento histórico do conceito romano de dignita hominis e que foi incorporada aos documentos internacionais, tratados e Constituições” (BARROSO, 2014, p.13), fundamentada, portanto, ao longo do tempo,  na liberdade e na igualdade e, posteriormente, no ditame da fraternidade (ou solidariedade).

Barroso (2014) e Agra (2018) concordam que o entendimento da expressão dignidade da pessoa humana ganhou contornos mais relevantes, uma vez que se apresenta, na atualidade, como característica inata, inalienável e absoluta do ser. Para ambos, é o Estado, por meio de ações positivas e negativas, que deve assegurar a vivência e o respeito desse princípio, fortalecendo, assim, os direitos fundamentais.

Até a eclosão das Grandes Guerras, poucas foram as Constituições Federais[1] que trouxeram expressamente a preocupação com a dignidade humana. No ordenamento jurídico brasileiro, é em 1934 que se registra tal referência, pela primeira vez, conforme se depreende do art. 115 da Constituição Federal de 1934:

Art. 115. A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. (grifo nosso)

Sarlet (2018, p. 277) explica que, após as Grandes Guerras, a expressão “dignidade da pessoa humana”  ganha espaço nas legislações, paulatinamente, sendo, então, os direitos humanos e fundamentais reconhecidos nas esferas internacional e constitucional.

A partir dessa perspectiva, é possível entender o porquê de a dignidade fundamentar a concessão de refúgio, sendo uma das justificativas para o acolhimento de milhares de pessoas que buscam a proteção sociojurídica em outro Estado diferente do país em que nasceu ou viveu por anos.

3 O DISCURSO SOCIOPOLÍTICO E JURÍDICO BRASILEIRO

3.1  Normativismo e  regularização migratória para quem busca refúgio no Brasil

Embora o respeito à dignidade da pessoa humana se apresente como um conceito em evolução e como uma das fundamentações para se conceder o instituto refúgio, não houve inserção direta da dignidade da pessoa humana no rol dos direitos fundamentais que estão, em sua maioria, no artigo 5º da CFRB/1988.

A opção do legislador constitucional foi inserir a dignidade como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, escolha que, para Tavares (2017, p. 441), é ainda mais significativa, pois restou intrínseca a ideia de que:

O objetivo é que a pessoa seja tanto um fundamento como o fim da sociedade, não podendo ser, como acontece com o Estado, um meio e, não um fim, pois, assim, justifica-se que o Estado existe em função de todas as pessoas, e não estas em função do Estado.

Antes mesmo da promulgação da Constituição Cidadã, como também é conhecida a Carta Magna de 1988, o Brasil tem confirmado a defesa da dignidade na esfera internacional. Três anos após a criação da Organização das Nações Unidas, ratificou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), na qual o art. 1º preclui: “todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos” (FRANÇA, 1948).

Ainda na esfera internacional, o Brasil é signatário da Convenção de Genebra de 1951 (Estatuto dos Refugiados), que foi recepcionada pelo Decreto Legislativo de 7 de julho de 1960; e do Protocolo de 1967, recepcionado pelo Decreto Legislativo 93, de 30 de novembro de 1971.

Também do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres; da Convenção sobre os Direitos da Criança;  da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e suas Famílias; da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Física; da Carta da Organização dos Estados Americanos; da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem da OEA; do Protocolo de San Salvador, entre outros instrumentos internacionais que complementam o arcabouço normativo de proteção dos refugiados que se encontrem sob a jurisdição do Estado brasileiro.

No Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992, sobre os Direitos Civis e Políticos, e no Decreto nº 591, promulgado na mesma data, tratando do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Brasil reconhece a dignidade como sendo inerente a todos os membros da família humana (BRASIL, 1992).

Na produção legislativa nacional, destaque para a Lei do Refúgio                 (9474/1997), bem como para a Lei de Migração (13.445/2017). Esta última ab-rogou o Estatuto do Estrangeiro (6.815/1980).

Todas as normas colacionadas acima confirmam o entendimento jurídico e social do Brasil em defesa da dignidade humana. Nos próximos subcapítulos, serão abordados, de maneira específica, a Convenção dos Refugiados, de caráter internacional,  e as legislações brasileiras do Refúgio e de Migração, bem como o trâmite para a concessão do refúgio e as instituições que se destacam em viabilizar a análise do pedido de concessão do status de refugiado, que, em grau de recurso, é deferido, ou não, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.

3.1.1 A Convenção de Genebra (1951) e o Protocolo de 1967

A Convenção de Genebra, realizada em 1951, é considerada o eixo fundador do Direito Internacional dos Refugiados, pois conceitua quem é refugiado e padroniza os tratamentos direcionados aos que são abrigados sob essa definição. Conforme reconhece a Acnur (2005a), é um marco na emergência de uma vontade global em encaminhar os problemas de deslocamentos forçados.

O § 2º, do artigo 1º. A., da Convenção de 1951, traz o conceito de Refugiado, conforme segue:

Para fins da presente Convenção, o termo “refugiado” se aplicará a qualquer pessoa que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontra-se fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade encontra-se fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele (ACNUR, 2013b).

A Conferência reuniu 26 países[2], além de observadores representantes  do Acnur, Organização Internacional do Trabalho (OIT), Cáritas, Cruz Vermelha e diversas Organizações não Governamentais (ONGs), e  foi marcada por duas correntes de pensamento: a primeira entendia que a Convenção consistia num instrumento geral e deveria ser aplicável a todos os refugiados, independentemente de sua origem; a outra, que a Convenção tinha seu alcance limitado e deveria se aplicar somente aos refugiados originados de países europeus (ACNUR, 2013a). Os países que sustentavam a primeira corrente foram chamados de “universalistas”[3] , e, os segundos, de “europeístas”[4].

A conferência terminou em 28 de julho de 1951 e a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados foi assinada por 12 países[5], porém só entrou em vigor em 22 de abril de 1954.

A Convenção estabeleceu o Estatuto dos Refugiados e delimitou a análise da condição de refúgio a partir de quatro condicionantes: 1) estar fora do seu país de origem; 2) faltar vontade ou capacidade do Estado de origem para  proporcionar proteção ou facilitar o retorno do seu nacional; 3) a causa dessa incapacidade ou falta de vontade deve estar vinculada ao temor de perseguição que provoca o deslocamento; 4) o temor de perseguição estar vinculado a razões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou por opinião política.

Além disso, foram enumerados direitos básicos ao refugiado, a exemplo de emprego remunerado e assistência social, emissão de documentos de identidade e passaporte. Promoveu-se o apoio à naturalização e à assimilação de refugiados, o acesso aos tribunais, à educação, à seguridade social, à habitação e à liberdade de circulação.

O artigo 33 da Convenção é considerado um dos pontos mais importantes, pois trata do principio do non-refoulement (não devolução), que proíbe a expulsão ou devolução forçada de quem busca refúgio, “a menos que existam circunstâncias excepcionais claramente definidas e que justifiquem a adoção de tais medidas” (ACNUR, 2008, p.19). O artigo citado declara que:

  1. Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para fronteiras dos territórios em que a sua vida ou liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas.

 

  1. O benefício da presente disposição não poderá, todavia, ser invocado por um refugiado que por motivos sérios seja considerado um perigo para a segurança do país no qual ele se encontre ou que, tendo sido condenado definitivamente por um crime ou delito particularmente grave, constitui ameaça para comunidade do referido país (ACNUR, 2013b).

O conceito acima reforça que o objetivo principal é proteger o indivíduo. Portanto,  o empenho dos Estados signatários é o de não rechaçar o refugiado para o país do qual fugiu, nem para qualquer outro onde possa correr perigo.

Consoante o texto da Convenção de 1951, “acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951” poderiam ser entendidos de duas maneiras: em primeiro lugar, como aqueles que tiveram lugar na Europa (o que foi interpretado como uma “reserva geográfica”, reconhecendo-se como refugiados apenas pessoas de origem europeia); e, em segundo lugar, como aqueles que tiveram lugar na Europa ou fora dela.

Entretanto, frente a novos acontecimentos ocorridos no cenário internacional, como a descolonização africana que gerou novo fluxo de refugiados, o Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados foi elaborado e submetido à Assembleia Geral da ONU, em 1966. Por meio da Resolução 2198 (XXI), de 16 de dezembro de 1966, a Assembleia solicitou ao Secretário-Geral que submetesse o texto do Protocolo ao consentimento da Assembleia Geral. O Protocolo foi assinado pelo presidente da Assembleia-Geral e pelo Secretário-Geral, em Nova York, no dia 31 de janeiro de 1967, e entrou em vigor ,em 4 de outubro de 1967, após atingir seis instrumentos de adesão, tendo sido o primeiro depositado pelo Vaticano.

O Protocolo buscou eliminar as limitações geográficas e temporais contidas na Convenção de 1951, a qual estabelecia que somente seriam reconhecidos como refugiados aqueles que tivessem receio de serem perseguidos “em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951”. Com o disposto no § 2º, artigo 1º, do  Protocolo de 1967, esses termos passaram a não ser mais aplicados à definição de refugiado.

Importante ressaltar que, ainda que o Protocolo de 1967 esteja ligado à Convenção de 1951, conserva caráter próprio, pois é instrumento jurídico independente. Assim, a adesão pura e simples ao novo texto do Protocolo de 1967 é suficiente para que a maior parte das disposições da Convenção de 1951 se torne aplicáveis aos Estados que a ele aderirem.

Muitos Estados, entretanto, preferiram ratificar a Convenção e o Protocolo, reforçando, desse modo, a autoridade desses dois instrumentos do Direito Internacional relativos aos refugiados e os únicos de caráter universal. O Brasil foi um dos que adotaram a ratificação de ambos os instrumentos jurídicos.

3.1.2  Lei do Refúgio (9.474/1997)

Elaborada num período histórico que agrega a ideia contemporânea de globalização e que demandava ao país a necessidade de reorganização da agenda externa, a Lei nº 9.474/1997 se impôs no sistema internacional de maneira positiva.  A norma representa o fundamento legal brasileiro para a proteção dos refugiados e, por ter sido redigida no período da redemocratização, nasce como resultado de um grande esforço para promover e defender os direitos humanos, os quais tinham sido demasiadamente violados.

Em seu Artigo 1º, reconhece como refugiado todo indivíduo que:

I         – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;

 

II        – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;

 

III       – devido à grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país (BRASIL, 1997).

O papel humanitário da Lei 9.474/97 se desenvolveu a partir da definição ampliada do conceito de refugiado, estendendo a proteção, inclusive, a parentes mais próximos do solicitante, possibilitando a reunião familiar e garantindo maior adaptação do refugiado no país.

A legislação trouxe outros pontos relevantes destacados por Jubilut (2012, p. 44):

(1) o estabelecimento do Conare como órgão multifacetado e encarregado das decisões em primeira instância sobre a concessão do refúgio e das políticas públicas para os refugiados […]; (2) o estabelecimento de um procedimento específico para a concessão do refúgio; (3) o fato de ser um diploma específico sobre refugiados não misturando a proteção a esses com temas gerais de migração; (4) a permissão para obtenção de documentos pelos solicitantes de refúgio, e (5) o fato de elencar soluções duráveis para os refugiados. Esses pontos são importantes, pois auxiliam a realização dos programas de proteção, assistência e integração da população refugiada.

 

A revisão da literatura acerca do instituto do refúgio demonstra o reconhecimento à liderança exercida pelo Brasil frente a essa questão. O fato de o país apresentar uma legislação moderna sobre o tema facilitou o reconhecimento de milhares de refugiados (ACNUR, 2018d).

3.1.3 Lei de Migração (13.445/2017) traz nova percepção do estrangeiro

Considera-se longo o trajeto percorrido até que a Lei de Migração  (13.445) passasse a viger, em 20 de novembro de 2017, sub-rogando o Estatuto do Estrangeiro (6.815), que vigorava desde a década de 1980. A nova legislação passou a definir os direitos e deveres do migrante no Brasil, bem como a regulamentar a entrada e permanência de estrangeiros e as normas de proteção do brasileiro que se encontra no exterior.

Fruto do projeto de lei proposto, em 2013, pelo então senador e ex-ministro das Relações Exteriores,  Aloysio Nunes, a Lei de Migração foi sancionada com o veto presidencial a vários trechos, sendo o mais emblemático o art. 118,  que previa anistiar imigrantes em situação irregular e com pedidos de regularização tramitando.

Entretanto, ressalvadas a demora na aprovação e os vetos presidenciais, a Lei de Migração trouxe nova perspectiva acerca do migrante. Até então, vivenciava-se um contrassenso. Ao mesmo tempo em que o Brasil se apresentava como signatária de diferentes Tratados Internacionais em defesa dos direitos humanos e de medidas protetivas às pessoas ameaçadas por perseguição política, opinião, raça ou religião; mantinha em seu ordenamento jurídico o Estatuto do Estrangeiro, redigido sob a égide da ditadura militar (regime que perdurou por 21 anos, entre 1964 e 1985), e que via o estrangeiro como ameaça nacional.

O art. 3ª da Lei de Migração confirma a perspectiva humanitária, a institucionalização da política de vistos humanitários e a instituição do repúdio à xenofobia e ao racismo. Ipsis literis:

 

Lei 13.445/2017 […].

 

Art 3º. A Política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes:

 

I – universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos.

A Lei de Migração trata o imigrante como concidadão do mundo, com direitos universais garantidos, todos providos gratuita e legitimamente pelo Estado, em conformidade com a política internacional de Direitos Humanos. Visando destacar a importância da supracitada lei, seguem pontos substanciais:

  1. O Estatuto do Estrangeiro, aprovado pelos militares, tratou o imigrante como suposta ameaça à segurança nacional. A Lei de Migração, por sua vez, combate a xenofobia.

 

  1. São destinatários da Lei nº 13.445/2017: migrante, emigrante, imigrante, visitante, residente fronteiriço, apátrida. O Estatuto do Estrangeiro não tratou dessa distinção.

 

  1. Entre os princípios da Lei de Migração, elencados do inciso I a XXII, 3º,  destaque para a “não criminalização da migração”; regulamentação dos “documentos”; “acolhida humanitária às vítimas”; “garantia do direito à reunião familiar”; e “igualdade de oportunidades aos migrantes e seus familiares”.

 

  1. Quanto às garantias, dispostas do inciso I ao XVI, do art. 4º da Lei de Migração, destaque para: a inviolabilidade à vida, à liberdade, ao patrimônio; direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos; e direito à educação pública.

Importante ressaltar que a Lei de Migração prevê o direito do migrante de poder se manifestar politicamente, mas não o direito ao voto. Tal mudança exige a aprovação de Proposta de Emenda Constitucional (PEC), visto que a Constituição Federal não prevê direito a voto para migrantes residentes no Brasil.

O Brasil é o único país da América do Sul a não permitir participação eleitoral dos migrantes, seja em nível municipal, regional ou nacional. Todas as demais nações sul-americanas permitem a participação de migrantes no sistema eleitoral em pelo menos um desses níveis.

No tocante à extradição, o art. 13, da Lei de Migração, permite tal retirada compulsória nas seguintes circunstâncias e após prévia análise das autoridades brasileiras competentes: quando o imigrante tiver cometido crime no território do Estado que solicitar a sua extradição, quando estiver respondendo a processo investigatório ou tiver sido condenado em seu país de origem.

O Estatuto do Estrangeiro, por sua vez, previa extradição por várias circunstâncias, tais como atentar contra a segurança nacional, economia popular ou qualquer outro procedimento considerado “nocivo à conveniência e aos interesses nacionais” (art. 65). No parágrafo único do referido artigo, previa-se a extradição até mesmo para casos de imigrantes em situação de “vadiagem” ou “mendicância”.

No caminho inverso do Estatuto do Estrangeiro, a Lei de Migração garante “acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia serviço bancário e seguridade social” (inciso XI, art. 3º, da Lei nº 13.445/2017).

3.2 As instituições Acnur,  DPU e Conare

Para assegurar a rede de proteção ao migrante, foram criadas diferentes instituições. Levando em consideração o debate internacional sobre as políticas públicas direcionadas aos que buscam refúgio, bem como o trâmite para a concessão de tal instituto protetivo, no Brasil, optou-se, no presente estudo, por elencar três delas: o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), a Defensoria Pública da União (DPU) e o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare).

O Acnur integra a Organização das Nações Unidas (ONU) e foi criado em dezembro de 1950, por resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, que aprovou a Convenção de Genebra. Estava previsto um mandato inicial de três anos para reassentar refugiados europeus vítimas da 2ª Grande Guerra. O Protocolo de 1967, porém, reformou a Convenção de 1951, conforme detalhado no subcapítulo 3.1.1, e expandiu o mandato do Acnur para além das fronteiras europeias e das vítimas da Segunda Guerra Mundial.

A Assembleia Geral da ONU, em 1995, designou o Acnur como o responsável pela proteção e assistência dos apátridas no cenário mundial e, em 2003, aboliu a cláusula que obrigava a renovação do mandato do Acnur a cada três anos.

Atualmente, a agência conta com quase 12 mil funcionários e está presente em cerca de 130 países, somando mais de 460 escritórios. A assistência prestada a mais de 67 milhões de pessoas é feita por meio de parcerias com organizações não governamentais. Os recursos financeiros são oriundos da doação voluntária de países, do setor privado e de pessoas físicas. Em 2020, o orçamento anual ultrapassou US$ 7,5 bilhões.

Dados do Acnur (2020)[6] revelam que, no período entre 1990 e  2019, um total de 79,5 milhões de pessoas foram forçadas a se deslocar no mundo. Dessas, 4,2 milhões são solicitantes de refúgio, dentre as quais, 3,6 milhões são venezuelanos deslocados para fora de seu país.

A Defensoria Pública da União (DPU), por sua vez, foi criada por meio da Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994.  Sua origem,  porém,  data de 1926, quando o Código de Justiça Militar  instituiu a função de Advogado de Ofício, proibindo que os imputados fossem processados sem defesa técnica pela Justiça Militar da União.

É uma instituição pública que presta assistência jurídica gratuita àquelas pessoas que não podem pagar por esse serviço. Podem recorrer à Defensoria os necessitados, grupos minoritários hipossuficientes, assim como crianças e adolescentes. A ideia é a do exercício dos direitos humanos e fundamentais e sua atuação inclui graus e instâncias administrativas federais, ou seja, junto à Justiça Federal, Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral, Tribunais Superiores e instâncias administrativas da União.

A DPU está presente em todas as capitais e em mais 43 cidades do interior e presta assistência a migrantes em casos como autorizações de residência, pedidos de refúgio e agendamento de atendimento na Polícia Federal, seguro-desemprego, benefícios previdenciários, entre outros temas.

O Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), por outro lado, foi criado a partir da Lei do Refúgio (9.474/1997). Está situado em Brasília e é vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Em sua composição, representantes do Ministério da Justiça, do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério do Trabalho, do Ministério da Saúde, do Ministério da Educação, do Departamento de Polícia Federal e de organizações da sociedade civil dedicadas a atividades de assistência aos refugiados.  O Acnur e a DPU têm assento no Conare com direito a voz, mas sem direito a voto.

Ao Conare foi atribuída a importante função de orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, da assistência e do apoio jurídico aos refugiados. É dotado de autonomia, inclusive, para  aprovar instruções normativas esclarecedoras sobre a execução das políticas públicas. No cenário internacional, é reconhecido como exemplo de avanço do ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que reúne os principais atores que trabalham em prol dos refugiados num órgão plural e democrático e, assim, inspira países da América Latina a adotarem sistemas semelhantes. O Conare age semelhante a um modelo tripartite que reúne Estado, Acnur e a sociedade civil.

Os componentes do Comitê são:

  • Ministério da Justiça e Segurança Pública, que o preside;
  • Ministério das Relações Exteriores;
  • Ministério do Trabalho e Emprego;
  • Ministério da Saúde;
  • Ministério da Educação;
  • Departamento de Polícia Federal;
  • Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, como representantes da sociedade civil organizada, e a Caritas Arquidiocesana de São Paulo, como suplente; e
  • Acnur, como membro consultivo com direito à voz, mas sem voto, que tem seu escritório central em Brasília e unidades descentralizadas em São Paulo (SP), Manaus (AM) e Boa Vista (RR), atuando em cooperação com o Conare e em coordenação com os governos federal, estaduais e municipais, além de outras instâncias do poder público (ACNUR, 2018d, p.19).

 

 

É responsabilidade do Conare:

I         – analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em primeira instância, da condição de refugiado;

II        – decidir a cessação, em primeira instância, ex officio ou mediante requerimento das autoridades competentes, da condição de refugiado;

III – determinar a perda, em primeira instância, da condição de refugiado;

IV      – orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados;

V       – aprovar instruções normativas esclarecedoras à execução desta Lei (ACNUR, 2018d, p.19).

As     decisões do Comitê são calcadas no fundamento de perseguição materializada e/ou no fundado temor de perseguição consubstanciado por parte do solicitante para o reconhecimento do refúgio frente à Lei 9.474/97 e levando-se em conta, também, as questões humanitárias.

 

Esses elementos devem ser devidamente comprovados para que se obtenha o status de refugiado no Brasil. Por isso, o temor, para ser fundado, deve ser razoavelmente caracterizado e, não baseado em suposições, sendo descartadas as situações em que o deslocamento é considerado preventivo (LEÃO, 2010).

O Comitê analisa cada caso, logo, a credibilidade e a coerência do solicitante são de fundamental importância para o processo, uma vez que ele depende da veracidade das informações prestadas e da história pessoal narrada. Se houver dúvida, o Conare adota o princípio do in dúbio pro refugiado, ou seja, na dúvida, a decisão deve ser sempre em favor do solicitante e da vida, em prol da proteção internacional da pessoa humana (LEÃO, 2010).

A concessão de refúgio às solicitações de pessoas originárias de países cujos cenários demonstram mecanismos de proteção frágeis ou inexistentes com relação a determinados segmentos sociais, como às minorias étnicas, é deferida em muitos casos. Entretanto, vale ressaltar que não basta a discriminação racial para configurar o refúgio. É necessário comprovar a perseguição e/ou seu fundado temor.

Existe ainda o refúgio sur place. Nesse caso, os indivíduos encontram-se fora dos seus países de origem no momento em que podem surgir determinadas circunstâncias que os impeçam de regressar, podendo demandar o instituto do refúgio (LEÃO, 2010).

Por fim, embora sejam muitos os desafios à atuação do Conare, principalmente no cenário dos anos 2020/2021, marcados pela pandemia da Covid-19, as decisões do Conare continuam a agregar os princípios normativos e doutrinários mais contemporâneos do Direito Internacional dos Refugiados.

3.3 O trâmite para a concessão do pedido de refúgio

O presente estudo se volta, agora, à práxis do acolhimento dos refugiados no Brasil, que agrega a criação da Lei 9.474/97 e do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), conforme abordados nos subcapítulos 3.1.2 e 3.2, respectivamente O refúgio é concedido ao imigrante por fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas.

Enquanto tramita um processo de refúgio, pedidos de expulsão ou extradição ficam suspensos.  Conforme mencionado em capítulos anteriores, o refúgio tem diretrizes globais definidas. No Brasil, a matéria é regulada pela Lei nº 9.474/1997 e, também pela Convenção de Genebra – 1951.

Para solicitar refúgio, é preciso estar em território brasileiro, ou na fronteira. Não se solicita refúgio em embaixada ou consulado.  O interessado deve se dirigir a uma Delegacia da Polícia Federal ou à autoridade migratória na fronteira e solicitar expressamente o instituto protetivo.

O pedido é inteiramente gratuito e não é obrigatória a presença de advogado. O ingresso no país de maneira indocumentada não constitui óbice à solicitação. Toda informação prestada pelo solicitante é confidencial e não será compartilhada com as autoridades do seu país de origem.

O solicitante também pode expandir o pedido para beneficiar o seu grupo familiar que o acompanhe no Brasil. Menores de 18 anos desacompanhados ficarão sob a tutela de um adulto judicialmente designado (guardião).

O interessado preenche o Termo de Solicitação de Refúgio em qualquer posto da Polícia Federal. Informa endereço, telefone e e-mail para contato. Recebe o Protocolo Provisório, válido por um ano e renovável até a decisão final do Conare sobre o seu pedido de refúgio.

Com esse protocolo, é possível emitir a Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) provisória e também o Cadastro de Pessoa Física (CPF). O Protocolo Provisório deve ser renovado na Polícia Federal, a cada 180 dias, sob o  risco de arquivamento do pedido de refúgio.

O Conare, detalhado no subcapítulo 3.2, é o órgão colegiado, vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, que reúne segmentos da área governamental, da sociedade civil e das Nações Unidas. Sua função é analisar e deliberar sobre o pedido de reconhecimento da condição de refugiado.

O processo de análise avalia se o solicitante possui fundado temor de perseguição, a partir de uma entrevista pessoal com um oficial do Governo brasileiro, responsável por determinar a condição de refugiado.

Tal análise contempla dois elementos: o de caráter subjetivo, que são as declarações e alegações do solicitante; e o de caráter objetivo, no qual as alegações de perseguição encontram respaldo nas informações do país de origem, fornecidas por agências internacionais e governamentais.  Caberá ao plenário do Conare deliberar sobre os pedidos, durante as reuniões mensais. Da decisão desfavorável ao migrante, é cabível recurso, decidido pelo ministro da Justiça.

Um funcionário do Conare ou da Defensoria Pública da União (DPU), do sexo que o solicitante preferir, é o responsável pela entrevista. Tal etapa era feita pessoalmente, até fevereiro de 2020, antes da pandemia provocada pela Covid-19. Atualmente, é por videoconferência. Se necessário, haverá a presença de intérprete.

Também pode ocorrer a solicitação de uma segunda entrevista com um advogado das organizações parceiras do Acnur (Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e Instituto de Migrações e Direitos Humanos). O solicitante tem direito a ser assistido por um advogado da Defensoria Pública da União ou do Acnur, de forma gratuita.

São direitos dos solicitantes de Refúgio no Brasil, conforme Cartilha para Refugiados no Brasil  (2015, p.4-8):

  1. Não devolução (princípio do non refoulement) – Solicitante de refúgio não pode ser devolvido ou expulso para um país onde sua vida ou integridade física estejam em risco.
  2. Não penalização da entrada irregular – Enquanto o pedido de refúgio estiver sendo analisado, os solicitantes não serão multados ou penalizados pelo ingresso irregular. O fato de estarem indocumentados também não impede a solicitação de refúgio.
  3. O solicitante de refúgio tem direito ao Protocolo Provisório (que servirá como documento de identidade), Carteira de Trabalho provisória e emissão de CPF. O Protocolo Provisório servirá de prova do seu direito de permanecer em território nacional até a decisão final do Conare.
  4. O solicitante de refúgio pode trabalhar formalmente, com carteira assinada. É titular dos mesmos direitos inerentes a qualquer trabalhador no Brasil.
  5. Pode circular livremente em território nacional.
  6. Pode frequentar escolas e participar de programas públicos de capacitação técnica e profissional.
  7. Tem o direito de ser atendido na rede pública de saúde.
  8. Pode professar livremente sua religião.
  9. Não pode ser discriminado.

Como obrigações para os que solicitam os status de refugiados estão: respeito a todas as leis, pessoas e entidades públicas; renovação do Protocolo Provisório, nas delegacias da Polícia Federal, no prazo estabelecido; atualização dos dados pessoais na Delegacia da Polícia Federal e no Conare.

Após a análise do Conare, a decisão sobre o pedido de refúgio será informada ao solicitante por meio da Polícia Federal. Se o pedido foi negado, o solicitante poderá entregar à Polícia Federal um recurso endereçado ao Ministro da Justiça, no prazo de 15 dias, contados a partir do recebimento da notificação.

O recurso deve ser fundamentado, indicando por quais razões não se concorda com a decisão, se o problema está na interpretação dos fatos ou na aplicação das regras ao caso concreto. O solicitante poderá requerer um advogado da DPU ou do Acnur para a elaboração do recurso, desde que obedecido o prazo de 15 dias.

Se a decisão do ministro também for negativa, significa que o processo administrativo de refúgio terminou. O solicitante de refúgio poderá, então, procurar a Defensoria Pública da União para obter informações sobre outras medidas cabíveis para permanecer no Brasil.

Se, por outro lado, o pedido de refúgio foi concedido, o solicitante obterá a Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM), que é o documento de identidade dos estrangeiros no Brasil, introduzido pela Lei de Migração. Até então era o RNE (Registro Nacional de Estrangeiro). Terá direito à emissão da Carteira Profissional definitiva e passa a gozar dos mesmos direitos de qualquer outro estrangeiro em situação regular no Brasil.

Importante ressaltar que um refugiado reconhecido pelo Conare somente ostenta tal condição em território brasileiro. Outros países não estão obrigados a reconhecer como refugiado uma pessoa que já foi reconhecida em outro lugar. Se quiser viajar para outro país, o refugiado deverá solicitar autorização do Conare e será tratado conforme a lei migratória comum do país para onde deseja viajar.

A tramitação da solicitação de refúgio não impede a tramitação de um pedido de permanência no território brasileiro. Não há prazo para que o Conare decida sobre o pedido de refúgio, entretanto, tal solicitação suspende, até decisão definitiva, qualquer processo de extradição pendente, em fase administrativa ou judicial, baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio (art. 34 da Lei 9.474/97).

A perda do status de refugiado poderá ocorrer. Está prevista na Lei do Refúgio (9.474/1997) e será possível mediante “renúncia do beneficiado”,  “prova da falsidade dos fundamentos invocados para o reconhecimento da condição de refugiado ou a existência de fatos que, se fossem conhecidos quando do reconhecimento, teriam ensejado uma decisão negativa”; “o exercício de atividades contrárias à segurança nacional ou à ordem pública”. A ausência de autorização governamental para sair do país também pode levar à perda da proteção jurídica, in verbis:

Art. 39 […]

 

IV – a saída do território nacional sem prévia autorização do Governo brasileiro.

 

Parágrafo único. Os refugiados que perderem essa condição com fundamento nos incisos I e IV deste artigo serão enquadrados no regime geral de permanência de estrangeiros no território nacional, e os que a perderem com fundamento nos incisos II e III estarão sujeitos às medidas compulsórias previstas na Lei nº 13.445/2017.

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3.4. Políticas Públicas em Prol dos Refugiados no Brasil

A relevância dos Estados para o desenvolvimento humano é inquestionável, uma vez que é esse ente que permite ao indivíduo contar com os instrumentos protetivos para exercer a liberdade e buscar o bem-estar social.

Importante frisar que o bem-estar social é a premissa para a justificação filosófica da existência do Estado.

Conforme ensina Salgado (1996, p. 424): “A igualdade abstrata do direito, na pessoa, a desigualdade concreta da economia, no trabalho, tem no Estado a sua superação […]”.

Em que pese o consentimento dos indivíduos para assegurar o surgimento do Estado liberal, foi o constitucionalismo contemporâneo que delineou a força normativa dos princípios garantidores de direitos fundamentais, essenciais à materialização do direito à igualdade. Ao lado dos direitos civis e políticos, reconheceu-se que os direitos econômicos, sociais e culturais são imprescindíveis para o desenvolvimento da personalidade humana.

A garantia de direitos fundamentais no texto constitucional fomentou a realização das atividades prestacionais pelo Estado. Destarte, para assegurar um extenso rol de direitos fundamentais, o Estado depende de um arcabouço normativo devidamente estruturado que vise à formulação, promoção e implementação de políticas públicas.

Bucci (2002) classifica como indissociável  a relação entre a formulação de uma constituição dirigente e a concretização dos comandos constitucionais por meio de políticas públicas. Para a autora, a abordagem dada às políticas públicas define o papel administrativo do Estado na determinação e conformação material das leis e das decisões políticas a serem executadas.

A fim de demonstrar que o conceito de “política pública” tem caráter polissêmico, Bucci (2002) anota que a referida expressão envolve uma dimensão axiológica em que se sobressaem os fins da ação governamental. Assim, a análise envolve uma conotação valorativa, tanto na perspectiva de quem quer demonstrar racionalidade da ação governamental, como na perspectiva dos seus opositores, cujos questionamentos estariam voltados para a coerência ou a eficácia das escolhas do governante.

Além da dimensão axiológica, há a dimensão prática, alicerçada na ideia de política pública como programa de ação governamental para um setor da sociedade ou espaço geográfico.  A partir da dimensão prática é que serão abordadas as políticas públicas para refugiados, no território brasileiro.

A política migratória no Brasil ganhou contornos relevantes na defesa do cidadão, a partir da promulgação da Lei nº 13.445/2017, conforme apresentado no subcapítulo 3.1.3 do presente trabalho de pesquisa. Pode-se dizer que as políticas públicas em favor dos refugiados são resultantes de uma complexa equação em que se fazem presentes fatores sociais, culturais, políticos, demográficos e econômicos, além de questões internacionais relacionadas diretamente à política externa, regime, convenções e organizações internacionais.

Hammar (apud MOREIRA 2012, p. 41) aponta diferenças conceituais. Para o autor, a política migratória tem caráter regulatório, enquanto a política em relação aos imigrantes está vinculada a aspectos protetivos. Acrescenta que, embora distintas, ambas se inter-relacionam:

É nesse sentido que o autor defende a necessária coexistência da política de controle das fronteiras e política pública de acolhimento para que se tenha uma consistente e efetiva política imigratória. Afinal, como acolher imigrantes sem prover medidas apropriadas que propiciem condições de vida satisfatórias após a entrada no território nacional. Immigrant policy deve ser tida, portanto, como desdobramento necessário da regulation policy, confirmando a immigration policy adotada pelo Estado-nação.

A análise reforça a importância de haver coerência entre a política migratória, que permite o acesso ao sistema de refúgio, e a política de acolhimento no país, que, além de estar balizada em conceitos universais e princípios humanitários, deve assegurar a efetividade das ações de apoio e inserção social aos que necessitam. É dessa maneira que Moreira (2012, p. 44) explica a construção das políticas públicas no Brasil:

A influência internacional sobre a política relacionada aos refugiados adotada por um Estado também se faz notar a partir dos regimes internacionais. Os países pretendem projetar uma imagem positiva internacional, como generosos em questões humanitárias, fator que incide sobre suas respostas ao fluxo. A necessidade de assistência e tentativa de evitar publicidade negativa levam o país acolhedor a interagir com o regime internacional, que, por sua vez, pressiona o governo a implementar medidas que beneficiem os refugiados. Mas essa interação é acompanhada de contratendências, especialmente o direito de soberania, afastando a influência positiva do direito internacional. Nesse sentido, a pressão exercida pelo regime internacional (incluindo a organização internacional designada para os refugiados) não necessariamente se traduz em uma ação estatal, devido ao peso da soberania enquanto fundamento de suas decisões. […] a adoção de política relacionada aos refugiados constitui uma questão do contexto doméstico que abrange não apenas fatores políticos, mas também econômicos, sociais e culturais.

O legislador constituinte brasileiro determinou que as relações internacionais da República Federativa do Brasil sejam orientadas pela prevalência dos direitos humanos e concessão de asilo[7].                                                        Confirmando o reconhecimento da relevância dos tratados e convenções que versam sobre direitos humanos, a Carta Magna traz o § 3º, do artigo 5º, da CRFB/1988, conferindo aos mesmos a possibilidade de elevá-los à condição de Emenda Constitucional, desde que aprovados mediante quórum específico[8].

3.4.1 Integração local: emprego e renda, moradia, saúde e educação

O sentimento de pertencer a um lugar perpassa pela garantia de direitos, não importa de onde venha o solicitante de refúgio. Entre os milhares de exemplos de pessoas que necessitam da proteção de outro país diferente da sua nacionalidade, foram escolhidas duas histórias, a do venezuelano Rodrigues, atualmente refugiado em solo brasileiro, e a da Maha Mamo[9], nascida no Líbano, mas que só teve direito à nacionalidade após 26 anos de idade, quando obteve o amparo jurídico do Brasil.

O engenheiro Alfonzo de Jesus Rodrigues[10], 63 anos, decidiu atravessar a fronteira da Venezuela com o Brasil, localizada na cidade de Pacaraima (RR), em dezembro de 2019. Veio sozinho, deixando para trás a crise humanitária. Relatou, em entrevista ao Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), que, na Venezuela, “todos os sistemas estão em colapso”. “Nós não temos mais acesso à água e energia, não conseguimos emprego […]”.

Em Roraima, porém, as oportunidades de emprego também não apareceram. Chegaram dois novos parentes em solo brasileiro e, em agosto de 2020, por meio de uma parceria entre o Governo, ONGs e iniciativa privada, Rodrigues e os jovens parentes conquistaram a primeira vaga de emprego no Brasil, após serem levados a Brasília, por meio da Estratégia de Interiorização, que será melhor detalhada no subcapítulo 4.3.1.

A história que ganhou dimensão internacional, por sua vez, é a da administradora Maha Mamo, 33 anos. Ela nasceu no Líbano, filha de um mulçumano e uma cristã de famílias tradicionais da Síria. Vítimas do preconceito por serem de religiões diferentes, os pais de Maha foram para Beirute (capital do Líbano), lá, entretanto, também sofreram discriminação e o impedimento de regularizar a situação dos filhos, que cresceram como apátridas, uma vez que os cartórios sírios não reconheciam casamentos inter-religiosos, e o Líbano não concedia nacionalidade a filhos de pais estrangeiros.

Aos 16 anos de idade, Maha buscou apoio de outros países, mas, apenas aos 26 anos, recebeu do Brasil a resposta positiva para obter o status de refugiada, com outros dois irmãos. Um deles morreu durante um assalto, na condição de apátrida.

Maha se tornou refugiada em solo brasileiro e, em seguida, solicitou e obteve a nacionalidade secundária. Atualmente, na condição de brasileira naturalizada, integra as campanhas da ONU para mostrar a gravidade do problema.

“Foram dezenas de e-mails para diversos países, contando minha longa história e pedindo ajuda. Fui ignorada por dez anos, até que, em 2014, o Governo brasileiro me ofereceu um documento especial para viajar ao Brasil e ser registrada como refugiada.”

As declarações acima comprovam que, para assegurar os direitos humanos dos que buscam refúgio, é necessário formular estratégias complexas e afinadas com a Constituição Federal, os tratados internacionais, as leis ordinárias, e com os diferentes segmentos da sociedade local. Não basta permitir o  ingresso em solo brasileiro. É importante assegurar ao solicitante de refúgio a possibilidade de, formalmente, obter renda e, consequentemente, as proteções consolidadas nas leis trabalhistas, bem como usufruir de moradia, educação e saúde.

No que diz respeito à habitação, a Agenda Habitat (1996) assinalou o papel relevante dos assentamentos humanos como garantia à moradia adequada, ainda que provisória. A esse respeito, a Agenda Habitat formulou recomendações relativas à prevenção de expulsões, fomento dos centros de refúgio e o apoio prestado aos serviços básicos e às instalações de educação e saúde em favor das pessoas deslocadas internamente, refugiados e solicitantes de refúgio (TRINDADE, 1999).

Em parceria com o Acnur, o Brasil iniciou, em 2002, um processo de reassentamento de refugiados. A medida teve como diferencial  não prever cotas e nem critérios de seletividade para os imigrantes, sendo escolhidas para sediar o projeto-piloto as cidades de Porto Alegre (RS), Mogi das Cruzes (SP), Santa Maria Madalena (RJ) e Natal (RN). Cada localidade receberia, a princípio, 25 refugiados. A cidade de Guarulhos (SP) também foi escolhida pelo projeto, em momento posterior.

No discurso proferido na 60ª Sessão do Comitê Executivo do Acnur, a delegação brasileira reafirmou o  compromisso com a política de reassentamento:

O refúgio é uma política de Estado no Brasil. É um elemento importante da democracia brasileira e sua tradição de abertura. É um dos pilares da política de direitos humanos. […].

[…] Nós esperamos aumentar as oportunidades de reassentamento no Brasil. A longa experiência no Brasil em ter um órgão tripartite em que governo, sociedade civil e Acnur trabalham juntos em políticas para refugiados tem sido bem sucedida. […].

[…] o processo e interação social e econômico dos refugiados tem sido um constante desafio. Acreditamos que o engajamento de outros países em programas de reassentamentos abre as portas para cooperação sul-sul. O Brasil está pronto a compartilhar sua experiência com parceiros interessados (MOREIRA, 2012, p. 236).

Os programas de reassentamento exigem a análise de duas variáveis: a capacidade de acomodar e a oferta de ações e serviços públicos.  Até 2017, o Acnur financiava, por meio de parcerias,  a política pública de reassentamento no Brasil.

O auxílio financeiro à família de reassentados era viabilizado pelo prazo de um ano. Findo esse período, os beneficiados deveriam estar em condições de prover seu sustento.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como o estado completo de bem-estar físico, mental e social. Assim, pode-se entender que estar saudável transcende a ideia da simples ausência de uma ou de várias doenças no organismo humano.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 define o acesso à saúde como direito individual e indispensável, destacado no art. 196 da CF/1988, ipsis literis:

Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação.

Tal direito foi regulado pela Lei n° 8.080/1990, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que estabelece as ações e os serviços públicos de saúde para atender de forma universal a todos os cidadãos. Na sequência, Borges, Jibrim e Barros (2015, p. 187) descrevem a situação que o refugiado comumente enfrenta:

O sujeito em deslocamento, quando confrontado com situações adversas e com a diferença – alteridade–, pode enfrentá-las com dificuldade e padecer de diferentes tipos de sofrimento, devido à dificuldade e, por vezes, ausência de comunicação entre o mundo interno – mundo psíquico – e externo – ambiente cultural no qual esse sujeito se constituiu.

Como se pode notar, a mobilidade forçada dos refugiados os leva a enfrentar variados tipos de situações que desencadeiam problemas físicos, sociais e mentais.

No entanto, mesmo com todos os direitos assegurados pela Carta Magna, e amparados pelos princípios norteadores contidos no SUS, “universalidade, integralidade e equidade”, as pessoas em condição de refúgio enfrentam muitas dificuldades, pois desconhecem os procedimentos de acesso à saúde e, mesmo quando são devidamente informadas, o medo à exposição, discriminação e violência são impactantes; junte-se a isso a fragilidade do domínio da língua, que desfavorece a comunicação eficaz e o acesso às questões culturais em relação à saúde e fatores sociais.

Milesi e Carlet (2015) falam sobre a existência do Centro de Referência para a Saúde dos Refugiados, que foi inserido no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro, a fim de capacitar os profissionais do SUS para dar atendimento a esses refugiados de forma adequada.

No que tange à educação, verifica-se que, inicialmente, são indispensáveis aulas de língua portuguesa, geralmente oferecidas pelas ONGs e por algumas universidades parceiras. A Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) foi pioneira ao criar um processo seletivo de ingresso ao ensino superior destinado aos refugiados. Quanto à integração através do trabalho, diferentes instituições oferecem cursos profissionalizantes para os refugiados.

Apesar das garantias expressas e das iniciativas governamentais, das ONGs e sociedade civil, o acesso às políticas públicas ainda é considerado insatisfatório. Exemplo disso é que muitos reúnem as condições necessárias para se tornarem beneficiários de programas assistenciais do governo, como os de transferência de renda, mas a maioria desconhece tal direito e, quando conhece, não sabe como efetivar o acesso ao benefício. Tal situação é elucidada por Soares (2012, p. 224):

Os refugiados sofrem as mesmas limitações e passam pelas mesmas dificuldades que afetam os cidadãos brasileiros de uma forma geral: […] uma estrutura básica de serviços como saúde, educação, moradia e emprego bastante deficiente; além de uma insuficiência de políticas públicas e instituições assistenciais e de problemas sociais graves como o desemprego e a violência. Além disso, […] a falta de informação sobre a temática do refúgio por parte da sociedade, leva os refugiados a viverem situações difíceis, sendo muitas vezes rejeitados e confundidos com foragidos ou pessoas que cometeram crimes em seus países e fugiram para o Brasil […]. Essa visão equivocada dificulta bastante a integração local dos refugiados, principalmente nos processos de seleção para contratação no setor formal de empregos.

De 2013 a meados de 2019,  o Acnur contabiliza que cerca de 175 mil venezuelanos regularizaram sua entrada no Brasil. Com a pandemia provocada pela Covid-19 e reconhecida no Brasil, em março de 2020, novas estratégias precisarão ser adotadas em prol desse contingente crescente.

  1. Jurisprudência

No Direito Internacional, a jurisprudência é consolidada a partir das decisões proferidas pelas cortes internacionais. Sobre a temática dos refugiados, as cortes mais relevantes são a Corte Internacional de Justiça e as Cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos, dado que as demais não existiam antes do estabelecimento de regras universais sobre o tema, ou não trazem a questão dos refugiados, enquanto vertente dos direitos humanos, em suas competências.

No ordenamento jurídico brasileiro, entretanto, as decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do extinto Tribunal Federal de Recursos[11] relacionadas ao tema refúgio vêm consolidando o entendimento  sobre a Lei nº 9474/1997.

Abaixo, uma seleção de jurisprudências[12] produzidas em solo pátrio e que reúnem as diferentes legislações tratadas neste trabalho científico e direcionadas ao instituto refúgio:

Extradição. Documento de refugiado expedido pelo Alto Comissariado da ONU (Acnur). Conare. Reconhecimento da condição de refugiado pelo ministro da Justiça. Princípio do non-refoulement. Indeferimento. 1.  Pedido de extradição formulado pelo Governo da Argentina em desfavor do nacional argentino GUSTAVO FRANCISCO BUENO pela suposta prática dos crimes de privação ilegítima da liberdade agravada e ameaças. 2. No momento da efetivação da referida prisão cautelar, apreendeu-se, em posse do extraditando, documento expedido pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados – ACNUR dando conta de sua possível condição de refugiado. 3. O Presidente do Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE atesta que o extraditando é um refugiado reconhecido pelo Governo brasileiro, conforme o documento n. 326, datado de 12.06.1989. 4. O fundamento jurídico para a concessão ou não do refúgio, anteriormente à Lei 9.474/97, eram as recomendações do ACNUR e, portanto, o cotejo era formulado com base no amoldamento da situação concreta às referidas recomendações, resultando daí o deferimento ou não do pedido de refúgio. 5. O extraditando está acobertado pela sua condição de refugiado, devidamente comprovado pelo órgão competente – CONARE –, e seu caso não se enquadra no rol das exceções autorizadoras da extradição de agente refugiado. 6. Parecer da Procuradoria Geral da República pela extinção do feito sem resolução de mérito e pela imediata concessão de liberdade ao extraditando. 7. Extradição indeferida. 8. Prisão preventiva revogada (STF Ext 1170, Ellen Gracie, DJ 23.04.2010).

Extradição. Questão de ordem. Pedido de refúgio. Suspensão do processo. Lei nº 9.474/97, art. 34. Questão de ordem resolvida no sentido de que o pedido de refúgio, formulado após o julgamento de mérito da extradição, produz o efeito de suspender o processo, mesmo quando já publicado o acórdão, impedindo o transcurso do prazo recursal (STF Ext 785, Néri da Silveira, QO-QO, DJ 14.11.2008).

Agravo de instrumento. Estrangeiro. Declaração da condição de refugiado. Guerra no país de origem. Alto grau de discricionariedade da administração. 1. O controle de estrangeiros no território brasileiro quanto à entrada, permanência e saída compulsória é matéria cometida à Administração com elevado grau de discricionariedade. 2. Os compromissos brasileiros com a proteção dos direitos humanos não afastam a discricionariedade no exame dos casos individuais de pedido de proteção. Tal exame de conveniência deflui da responsabilidade diplomática cometida ao Chefe do Executivo, em exercício de soberania estatal perante a sociedade internacional, e revela circunstâncias delicadas de responsabilidades e ônus nesse campo. 3. Não reconhecida a condição de refugiado após conclusão de regular processo administrativo, não cabe ao Poder Judiciário intervir para modificar a decisão da administração. É pertinente a ordem de saída do Brasil sob pena de deportação, observado que implementada uma ou outra situação não há restrição para que se postule imigração por outras formas disponíveis. (TRF-4 AG 2007.04.00.0376365, Marcelo De Nardi, DE 05.03.2008).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo exposto e sem qualquer pretensão de esgotar o tema, observa-se que, com relação aos refugiados, a atuação do Brasil, no contexto internacional, sobressaiu-se após a redemocratização política e o estabelecimento da Constituição da República de 1988.

A Lei do Refúgio (9474/1997) se apresenta como o marco central para os mecanismos protetivos em prol do migrante que pleiteia, em solo brasileiro, a guarida advinda de tal instituto jurídico. A legislação trouxe um conceito mais moderno de refúgio, estabelecendo direitos e deveres, além de instituir o Comitê Nacional para Refugiados (Conare), para analisar as solicitações.

Tal postura levou o Brasil a ser considerado um modelo internacional no que diz respeito ao entendimento jurídico sobre a questão dos refugiados. Isso porque, além de promulgar uma lei interna específica, recepcionou tanto a Convenção de 1951 quanto o Protocolo de 1967 em seu ordenamento jurídico. Ser um modelo normativo, entretanto, não significa dispor de práticas que se coadunem integralmente com o arcabouço jurídico de proteção.

Além da ampliação de políticas públicas efetivas, principalmente a partir de 2020, quando o mundo passou a enfrentar a Covid-19, faz-se necessária maior conscientização nacional sobre a temática do refúgio, que ainda gera preconceitos e resistências na sociedade.

A grave e generalizada violação dos direitos humanos, uma das causas que assegura a concessão do status de refugiado e que é a principal motivação dos que deixam seu país e cruzam a fronteira com o Brasil, exige respostas rápidas, num momento econômico pouco favorável para o Governo brasileiro e para muitos outros países.

Mostra-se imperativo à União buscar parcerias e ampliar as ações em prol dos refugiados, sem deixar de lado brasileiros e outros estrangeiros que aqui vivem.

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[1]   Antes da 2ª Guerra Mundial, o termo dignidade faz-se presente na Constituição de Weimar, de 1919, na Constituição Portuguesa (1933) e na Constituição da Irlanda (1937).

[2] Os 26 países que participaram da Conferência foram: Austrália, Áustria, Bélgica, Brasil, Canadá, Colômbia, Dinamarca, Egito, Estados Unidos, França, Grécia, Holanda, Iraque, Israel, Itália, Iugoslávia, Luxemburgo, Mônaco, Noruega, Reino Unido e Irlanda do Norte, República Federal da Alemanha, Suécia, Suíça (cuja delegação também representou Liechtenstein), Turquia e Venezuela. Além destes, Cuba e Irã foram representados por observadores (ACNUR, 2013a). Grifo nosso.

 

[3] “Compreendia os representantes do Reino Unido, do Egito, da Iugoslávia, do Canadá, da Bélgica, dentre outros. O representante do Reino Unido foi quem mais defendeu a concepção universalista, pretendendo uma definição de refugiado o mais abrangente possível, sem qualquer tipo de limitação” (MOREIRA, 2006, p. 61).

 

[4] “Compunha-se pelos representantes da França, dos Estados Unidos, da Itália, da Austrália, dentre outros […]. Uma das justificativas utilizadas por esses países consistia no fato de que já acolhiam um grande número de refugiados e, caso a definição fosse muito ampla, não teriam condições financeiras de abrigar um contingente maior deles” (MOREIRA, 2006, p. 61).

[5] Os 12 países que assinaram a Convenção em julho de 1951 foram: Áustria, Bélgica, Colômbia, Dinamarca, Holanda, Iugoslávia, Liechtenstein, Luxemburgo, Noruega, Reino Unido, Suécia e Suíça (ACNUR, 2013c).

[6] Site da Acnur. Dados publicados em 18 de junho de 2020. Disponível em https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/ . Acesso em 02 dez. 2020.

[7]  Incisos II e X, do Art. 4º, da Constituição da República Federativa do Brasil/1988.

 

[8] Art. 5º. […]. §3º.  Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, por três quintos dos votos dos respectivos membros serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).

[9] Trecho do depoimento concedido por Maha à Revista Veja, de 14 de abril de 2021, edição 2733. Ano 54, nº 14, p. 65

[10] A entrevista de Alfonzo de Jesus Rodrigues foi publicada em 26 de agosto de 2020 no site do Instituto Migrações e Direitos Humanos. Disponível em: https://www.migrante.org.br/imdh/conheca-historias-de-venezuelanos-que-vieram-para-brasilia-em-busca-de-uma-vida-digna/ Acesso em 07 fev. 2021.

[11] O Tribunal Federal de Recursos (TFR) foi um dos órgãos máximos do Poder Judiciário do Brasil. Criado pela Constituição de 1946 (arts. 103/105), tinha como função os julgamentos de ações em que constasse, como interessada, a União ou autoridade federal, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral e da Justiça Militar. Com a recriação da justiça federal de primeira instância,  em 1965, passou a julgar os recursos dali originários e, ainda, os conflitos de jurisdição entre os juízes federais. Com a Constituição de 1988, foi extinto e, em seu lugar, criados cinco Tribunais Regionais Federais (TRF), ocorrendo a descentralização prevista desde 1965, passando os seus ministros a integrar o então criado Superior Tribunal de Justiça (STJ).

[12] Coletânea de jurisprudências extraídas de Refúgio no Brasil: a proteção brasileira aos refugiados e seu impacto nas Américas. Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto, organizador. – 1. ed. – Brasília: ACNUR, Ministério da Justiça, 2010, p.210-214.

 

 

Andréa Tavares de Andrade

Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais (UFPE). Especialista em Relações Internacionais (Unicap). Especialização em Processo Civil (FIG-Unimesp). Bacharelanda em Direito (FIG-Unimesp). Bacharela em Jornalismo e Comunicação Social (Unicap). Docente universitária. Parte do presente artigo integra o Trabalho de Conclusão de Curso da autora.

“A menos que modifiquemos a nossa maneira de pensar, não seremos capazes de resolver os problemas causados pela forma como nos acostumamos a ver o mundo”. (Albert Einstein)

Noção jurídica da teoria da reparação civil por dano moral e sua aplicação na ruptura de casamento

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Giseli Passador [1]

VALTER DA SILVA RAIMUNDO JUNIOR[2]

RESUMO:O presente artigo discorre sobre a evolução da teoria da reparação civil e o dano moral através da história, e percorre a linhagem do pensamento do direito e da reparação de danos e suas classificações em busca de uma melhor compreensão da matéria. Adentra no pressuposto da admissibilidade do dano moral após a ruptura do casamento, e de forma sucinta discute a relação da evolução do entendimento doutrinário sobre a função da teoria da reparação civil.

Palavra-chave:Reparação, Dano Moral, Casamento.

 

ABSTRACT: This article discusses the evolution of the theory of civil reparation and moral damage throughout history, and goes through the lineage of thought on law and damage reparation and their classifications in search of a better understanding of the matter. It enters into the presupposition of the admissibility of moral damages after the breakup of the marriage, and succinctly discusses the relationship of the evolution of the doctrinal understanding about the function of the theory of civil reparation.

Keywords: Reparation, Moral Damage, Marriage.

 

 

1- INTRODUÇÃO

Hoje pode-se dizer que há um entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência no sentido de que o dano moral decorre de uma violação clara aos direitos da personalidade, como as hipóteses de lesão ao nome, à imagem, a privacidade, à honra, à boa fama e à dignidade. Tais violações geram a obrigação do causador do dano de repará-lo.

Todavia, para chegarmos a este posicionamento pacífico existiu um percurso longo, do reconhecimento do dano e da teoria da reparação civil, tendo que ser desenvolvida várias teses, entre elas: fixação do valor devido à título de indenização por danos morais;  legitimidade para pleitear a reparação por danos morais; legitimidade do espólio pelo dano do falecido; legitimidade da pessoa jurídica; prazo prescricional; e o dano moral coletivo.

Desde priscas eras, a honra poderia ser atingida por meio de dano lesivo a integridade moral, de maneira que, o ofendido poderia reivindicar sua reparação, então antes de Cristo, existiram casos nítidos de normas que tutelavam a honra da pessoa, por exemplo, temos o Código de Hamurabi entre 1750 a 1792 a.C., no cerne dos dispositivos legais estava a defesa do mais fraco que teria sido prejudicado pelo mais forte, gerando o direito a buscar uma reparação (CARLETTI, 1986).

Quando o dano era constatado nascia o direito a reparação equivalente ao dano sofrido, o que formou o famoso axioma “olho por olho, dente por dente”, esboçado pela Lei do Talião. Nesse raciocínio, existiram outros povos que concederam ênfase na tutela da ofensa a honra, de forma que, sumérios, babilônicos na Mesopotâmia e na própria Índia, se elaborou uma legislação que resguardava a honra mitigada(COSTA, 2009).

Porém, conforme Silva (2002), o código mais antigo que protegeu o direito a honra e que menciona a reparação dos danos morais é o código de Ur Nemmu, que entrou em vigor 300 anos antes do código de Hamurabi. Ocódigo de Ur Nammu trouxe uma inovação importante prevendo que a reparação do dano não deveria causar outro dano, preconizando que a forma de reparação deve se dar por uma quantificação pecuniária.

Igualmente, a Lei das XII tábuas já previa, primariamente, o direito de reparação por dano moral que nasceu para equilibrar a relação dos patrícios e plebeus, assim houve uma rebelião dos plebeus e resultou na famosa lei das XII Tábuas. Roma em sua história sempre protegeu a honra reafirmando que a honra é o princípio dos grandes homens (AMERICO, 2002).

 

2-DANO E DIREITO

Para toda ação existe uma reação, sendo assim, o Direito segue essa regra: toda ação humana lesiva aos interesses alheios acarreta uma reparação de dano havido, como se verifica na compreensão dos povos, diante de exigências naturais e da evolução da vida em sociedade. Por assente, nestes aspectos, as ações ou omissões lesivas rompem a estabilidade no mundo fático, sobrecarregando, física, moral ou pecuniariamente, os lesados, que, sofrem o dano. A consequência do próprio dano, investe a vítima na prerrogativa de defender o direito violado.

Nesse contexto, ao direito compete preservar a integridade moral e patrimonial das pessoas, para não permitir que se altere a harmonia da sociedade, buscando a proteção contra ações omissivas ou comissivas, impondo sanções ao lesante, com objetivo de prevenir essa ocorrência e de oferecer uma resposta positiva para a pessoa lesada e para a sociedade (BITTAR, 1999).

Nesta esteira o dano é considerado pressuposto da responsabilidade civil, entendendo-se como tal qualquer lesão experimentada pela vítima no seu conjunto de bens jurídicos tutelados, materiais ou morais. Em apertada síntese, responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário (CAVALIERI FILHO, 2012).

A responsabilização do ofensor impõe que este sustente as consequências jurídicas do fato que praticou, nesse momento o direito concede a tutela por meio da teoria da responsabilidade civil e essa por sua vez é enraizada no princípio fundamental do neminemlaedere, (a ninguém ofender) servindo como mecanismos para se opor a lesão do dano moral.

Contudo, sobre esse pensamento, se busca uma ordem jurídica justa e ideal para a sociedade que acredita repousar sobre si, a premissa de que a ninguém se deve lesar. Na vida real ao agente que vem causar o dano se imputa o ônus relativo à sua ação.

Essa teoria representa o liame entre o dano e a reparação, com incumbência de propiciar ao lesado restaurar o patrimônio ou compensar os sofrimentos no âmbito moral e patrimonial, quando constatado o nexo causal entre o evento danoso e a conduta do agente (BITTAR, 1999).

 

3- CONCEITOS DE DANO MORAL DIRETO E INDIRETO

 

São danos morais, segundo Gonçalves (2009) os danos de essência não econômica que se traduzem em uma perturbação de ânimo, são ações por parte do lesante desagraveis, desconfortáveis, ou constrangedoras, impingidas ao lesado. Desta forma existe o dano moral em ocasião da vítima suportar, a desonra e a dor provocadas por atitudes injuriosas. O dano moral configura lesão no complexo valorativo intrínseco, na esfera da subjetividade, que alcança as camadas mais profundas da personalidade humana.

“Dano moral é o que atinge o ofendido como pessoa, não lesando seu patrimônio. É lesão de bem que integra os direitos da personalidade, como a honra, a dignidade, intimidade, a imagem, o bom nome, etc., como se infere dos art. 1º, III, e 5º, V e X, da Constituição Federal, e que acarreta ao lesado dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação” (GONCALVES, 2009, p.359).

O dano moral é o conjunto de valores conhecidos como integrantes das veias afetiva, intelectual e valorativa da personalidade humana, quando dano é causado tem o efeito de criar alterações psíquicas ou perdas sociais ou íntima do patrimônio moral do lesado (BITTAR,1999).

“O dano moral direto consiste na lesão a um interesse que visa a satisfação ou o gozo de um bem jurídico extrapatrimonial contido nos direitos da personalidade (como a vida, a integridade corporal e psíquica, a liberdade, a honra, o decoro, a intimidade, os sentimentos afetivos, a própria imagem) ou nos atributos da pessoa (como o nome, a capacidade, o estado de família). Abrange, ainda, a lesão à dignidade da pessoa humana (CF/88, art. 1º, III).” (DINIZ, 2008, p. 93).

 

Para ilustrar, a título de exemplo, quando determinada pessoa é injuriada em ambiente público ou tem seu nome injustamente lançado em cadastros de maus pagadores, configura se o dano moral direto, pois se compreende e assenta o entendimento que tais fatos, são tipos de violação a honra e à imagem da pessoa.

O dano moral reflexo, indireto ou por ricochete é aquele que, originado necessariamente do ato causador de prejuízo a uma pessoa, venha a atingir, de forma mediata, o direito personalíssimo de terceiro que mantenha com o lesado um vínculo direto.

Contudo, o dano moral indireto se caracteriza por lesão a um bem de natureza patrimonial, mas que, de modo reflexo, gera uma perda a um bem de natureza extrapatrimonial. Todavia o dano indireto se configura por uma violação a um direito extrapatrimonial de uma pessoa, em função de um dano material (THEODORO, 2020).

O dano moral indireto ou reflexo é aquele que, tendo-se originado de um ato lesivo ao direito personalíssimo de determinada pessoa que é o dano direto, não se esgota na ofensa à própria vítima direta, atingindo, de forma mediata, o direito personalíssimo de terceiro, em razão de seu vínculo afetivo estreito com aquele diretamente atingido.

Mesmo em se tratando de dano moral puro, sem nenhum reflexo de natureza patrimonial, é possível reconhecer que, no núcleo familiar formado por pai, mãe e filhos, o sentimento de unidade que permeia tais relações faz presumir que a agressão moral perpetrada diretamente contra um deles repercutirá intimamente nos demais, atingindo-os em sua própria esfera íntima ao provocar-lhes dor e angústia decorrentes da exposição negativa, humilhante e vexatória imposta, direta ou indiretamente, a todos.

 

4- PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE

 

Com a superveniência do resultado danoso e presente o nexo causal, preenchidos, os três pressupostos da responsabilidade civil (ação, dano e vínculo) nasce para o lesante a obrigação de indenizar.

Maria Helena Diniz aponta a existência de três elementos, a saber: a) existência de uma ação, comissiva ou omissiva, qualificada juridicamente, isto é, que se apresenta como ato ilícito ou lícito, pois ao lado da culpa como fundamento da responsabilidade civil há o risco; b) ocorrência de um dano moral ou patrimonial causado à vítima; c) nexo de causalidade entre o dano e a ação, o que constitui o fato gerador da responsabilidade (DINIZ, 2005, p. 42)

 

Silvio de Salvo Venosa ensina que são quatro os pressupostos da responsabilidade civil, quais sejam, ação ou omissão voluntária, relação de causalidade ou nexo causal, dano e culpa.

 

 

Sílvio de Salvo Venosa leciona que quatro são os elementos: a) ação ou omissão voluntária; b) relação de causalidade ou nexo causal, c) dano e d) culpa(VENOSA, 2010. p. 839.)

 

É essencial para o dano a conduta humana, em regra uma ação positiva, mas a omissão também configura o dano, pois denota que a conduta esperada não foi praticada.

Entretanto, essa ação ou omissão pode ser inspirada pelo dolo ou consequência de culpa, nenhuma delas está isenta de reparação, conforme previsto no  artigo 186 do Código Civil  e o artigo 944, caput, do Código Civil preleciona que pela regra do princípio da reparação dos danos todos os danos suportados pela vítima serão indenizados.

O nexo causal é o vínculo entre a lesão e o resultado causado pela mesma, sendo a vítima àquela que suporta a conduta ilícita.

 

5-DANOS MORAIS ELEMENTOS QUALIFICADORES

 

Qualificam-se, como morais os danos em lesão no âmbito da subjetividade, ou esfera de valores da pessoa em sociedade, em que ecoa o fato violador, havendo-se, logo, aqueles que ferem no cerne dos sentimentos mais profundos e íntimos da personalidade humana na sua consideração pessoal, ou sua reputação no seu convívio social e profissional.

Desta maneira, a temática dos danos morais se desenvolve na teoria da responsabilidade civil, no exato entendimento de valores considerados importantes pela pessoa humana, ou em suas relações sociais em ênfase profissionais, com isso, a teoria abrange todas essas relações interpessoais.

Sendo assim, os danos morais formam-se, no plano real, com lesões as esferas da personalidade humana encontradas no âmbito do ser como pessoa pensante, reagentes nas interações nas alterações sociais, se investindo contra o íntimo da pessoa e de seu convívio social.

Contudo, repartem-se as virtudes da pessoa humana que são de ordem física, psíquica ou moral, bem sucintamente, o conjunto de sentimentos característicos, uns de todo o gênero humano, outros somente do homem civilizado, que entende, a saber, a honra, a dignidade, o bom nome ou a boa reputação, a afetividade, a solidariedade familiar, o prestígio pessoal, ou renome profissional, o crédito, o respeito pelas crenças próprias ou pela moralidade infantil(THEODORO,2020).

Se, entende, entretanto, que o Direito tutela, além das pessoas físicas, os direitos das pessoas jurídicas, grupo ou a coletividade como um todo, esses atributos reconhecidos e ilustrados pelo direito a identificação através do nome e de outros sinais relativos ao segredo, a criações intelectuais etc.

Os resultados das lesões a moral produzem efeitos em determinada faceta da esfera jurídica do lesado, ou podem refletir-se por outras áreas, logo, os danos morais dividem se em puros ou diretos, reflexos ou indiretos(BITTAR, 1999).

Contudo, são puros, os danos ligados a certos aspectos da personalidade, e os reflexos constituem danos e atentados ao patrimônio, por exemplo, de dano moral puro se entende que esses lesam o âmago da personalidade enquanto o reflexo extrapola a parte inicial atingida quando, assim, o uso indevido de imagem alheia pode produzir um constrangimento para lesado, mas, porém, dependendo de outras perdas, como reputação social, ou de amigos, ou de clientela, ou de negócios em geral, em razão do dano assumido pela exposição de algo não autorizado isso caracteriza danos reflexos(THEODORO, 2020).

A respeito desse esboço de dano, se apresentam diferentes reflexos na esfera jurídica que sendo realizadas deflagram lesões de índole diversa, sendo que sobre o prisma moral o dano pode resultar de agressão a personalidade, mas por reflexo atingir o patrimônio como verbi gratia, na dor moral em consequência da calúnia imputada contra o lesado, e, por outro lado, no constrangimento, duradouro ou não, como por exemplo o decorrente de lesão estética causado por cirurgia plástica.

Verdadeira é a ideia que inúmeros fatores externos e internos, comuns e incomuns, podem interferir nos fatos da vida, atingindo desta forma, os mais diversos resultados.

Neste prisma, a pessoa humana pode atuar de duas maneiras, primeira sendo o lesante, que causa o dano ilícito a vítima, ou sofrendo a dor do dano em sua história de vida, sendo este o dano moral puro que fere o seu conjunto de valores mais íntimos, cabendo ao lesante o ônus da responsabilidade por ser um o agente ativo do dano.

Realmente, o direito percorre a busca do equilíbrio para sociedade, porém através da história tem evoluído a duras penas. A humanidade, desde os primórdios, sofre com atos ilícitos que ferem o complexo de valores do indivíduo que tem sua honra ofendida apesar de termos, há algum tempo, mecanismos pertinentes para tutelar um bem comum.

Apesar de ser algo reprovável, as lesões a moral acontecem, porque no mundo fático tudo é dinâmico e mutável, desta forma as relações jurídicas e principalmente humanas decorrentes de atitudes omissivas ou comissivas em qualquer esfera da vida em sociedade, algumas vezes extrapola o limite da razoabilidade, sendo assim assume o comando deste fato, o Direito e a reparação do dano. Entretanto, a partir do momento em que foram positivados os chamados direitos da personalidade, sendo elevados a status de garantia constitucional, conquistamos um avanço na preservação de nossos direitos relacionados à intimidade.

Sendo, assim, hodiernamente está assentada pacificamente o entendimento que o dano patrimonial, material, e moral devem ser reparados, logo, tendo uma certeza jurídica no processo principalmente por meio de prova, o dano moral deve ser reparado por um valor pecuniário, sendo esse proporcional ao sofrimento da vítima.

Consoante a esse pensamento, há uma constante luta para melhorar as ferramentas jurídicas, com isso, não deixar o Direito à mercê de teorias não compatíveis com a realidade da sociedade contemporânea, portanto, a indenização deve percorrer essa evolução e de fato ser proporcional ao dano moral.

 

6- DANO MORAL NO DIREITO DE FAMÍLIA

 

Importante trazer a esta pesquisa como um caso a ser analisado, a antiga indagação sobre o direito a reparação de dano moral, em decorrência da ruptura do casamento, sendo que a tese que dominava o entendimento da doutrina era de que a vida comum do casal se assenta sobre o amor e quando esse tem um fim, o casamento fracassa e os deveres conjugais deixam de ser realizados(BITTAR, 1999).

Com isso, inexistindo no direito de família previsão de responsabilidade civil por não cumprimento de deveres matrimoniais, o conjugue inocente não tem base para pleitear, após a separação ou divórcio, qualquer ressarcimento por danos moral.

Essa é a posição tradicional, entretanto, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro qualifica o casamento como uma instituição uma vez que os nubentes a ela se submetem, têm que aceitá-la tal qual é, não há maneiras de alterar as regras que a regem. O que conclui que não é possível em sua dissolução implementar regras emprestadas de outros ramos do Direito Civil.

“O eventual descumprimento dos deveres do casamento não se resolve em perdas e danos, como nas obrigações, porque dá ensejo à separação judicial e posterior divórcio, figuras do Direito de Família, que já trazem em si sanções outras específicas, em detrimento do cônjuge declarado culpado, tais como: a mesma declaração de culpa, a obrigação ou exoneração de prestar alimentos, a obrigação de partilhar os bens, conforme o regime de casamento, a perda de guarda dos filhos, a perda de usar o nome do cônjuge varão”(THEODORO, 2020, p. 98.)

Logo, existe uma corrente na doutrina, em favor do direito que, nos casos de infração graves, podeo conjugue ultrajado em sua honra pelo consorte obter uma reparação que vai além dos assegurados pelo direito de família.

As exceções, que repercutem no meio jurídico com relevância, no caso de vítima do delito de lesões corporais, tentativa de homicídio, calúnias, difamações ou algo que abale e atinja de forma contundente a moral da vítima geram o direito da reparação tanto na esfera penal como na cível por meio de indenização pelo dano moral sofrido.

Para uma melhor compreensão dessacorrente que vem ganhando força na doutrina e jurisprudência, tem, o entendimento que, de fato o simples não cumprir de um dever conjugal, não é motivo para produzir a responsabilidade civil, mas, porém o pedido de indenização por dano moral na instituição do casamento e na união estável se torna admissível.

Theodoro entende que,aos poucos, vão se incorporando ao direito de família as sanções relacionadas à responsabilidade civil quando um cônjuge não cumpre com os seus deveres inerentes ao matrimônio impingindo ao seu par, dores e sofrimentos.

 

7- OBJETIVO DA REPARAÇÃO

 

Por outro prisma, além do aspecto reparatório ou compensatório da responsabilidade civil, há na realidade de se analisar um enfoque amplo sobre o assunto, não apenas no que se refere a reparação da vítima, mas também no sentido de desestimular a conduta ilícita do causador do dano. Com vistas a exercer um caráter preventivo se busca, por meio da sanção, inibir futuros danos morais a pessoa humana, com o objetivo de coibir novos comportamentos ilícitos.

Para esse entendimento, desestimular não significa admitir a imposição de vingança, pois o direito não almeja a vingança, mas algo compatível com a reparação do dano sofrido.

Prevenir o dano para que não seja necessário repará-lo figura-se como um novo enfoque ao Direito, principalmente no âmbito da responsabilidade civil. Sobre esse ponto, há os ensinamentos de Pietro Perlingieri, verbis: O instrumento de ressarcimento dos danos e da responsabilidade civil, embora adaptado às exigências da vida moderna, demonstra-se, frequentemente, inidôneo. A jurisprudência dos valores tem necessidade de afinar as técnicas de prevenção do dano, da execução específica, da restituição in integro e de ter à disposição uma legislação de seguros obrigatória e de prevenção social. Alargam-se, nesse meio tempo, as hipóteses de responsabilidade civil, utilizam-se os institutos processuais, inclusive aqueles típicos da execução, com o objetivo de dar atuação, do melhor modo possível, aos valores existenciais. (PERLINGIERI, 1999, p.32).

 

Portanto, não é um choque de paradigmas, mas, apenas uma evolução da doutrina que busca aperfeiçoar a tese, para reconhecer a função desestimuladora, almejando como consequência à prevenção do dano moral.

 

8- ENTENDIMENTO DEFINITIVO DA TEORIA DA REPARAÇÃO DE DANO

 

Sobre a análise feita, é importante frisar que a tese de reparabilidade plena de danos morais, que leva em consideração certas orientações na aplicação dos casos concretos, impera respectivos argumentos, que atesta a busca por reparação reclamada ao longo dos tempos por muitos doutrinadores e pelos amantes do Direito. Entende-se que os danos suscetíveis de produzir uma tutela jurídica são os prejuízos injustamente impostos a outrem, tem se, de início, como de caráter moral aqueles que golpeiam o complexo de valores íntimos da pessoa humana.

Sendo, que a resposta do ordenamento jurídico é realizada pela teoria da reparação civil, que fornece ao lesado as ferramentas necessárias para opor contra o lesante, a denominada reparação de direito, mas os danos podem se multiplicar diante da pluralidade de situações do cotidiano e das múltiplas consequências que atinge a esfera do lesado.

 

“São danos morais, pois, as consequências negativas de agressões a valores da moralidade individual ou social conforme se atinja pessoa ou coletividade, qualificadas como atentados à personalidade humana, que repugnam à ordem jurídica. Daí, a reação que se opera, através da teoria da reparabilidade de danos morais, como resposta contra o agente, para obter-se a respectiva responsabilização jurídica. Fundada na noção de preservação da individualidade, essa teoria tem assento no princípio geral do neminemlaedere, incluído dentre os identificadores do denominado Direito natural, ganhando vulto nos planos dos direitos autorais da personalidade.” (BITTAR,1999, p.246.).

 

A fundamentação no direito é clara não restando dúvidas a respeito de que aquele que pratica o dano deve reparar, para equilibrar as relações da sociedade, para não termos um caos no meio social e, não alimentar nenhum poder paralelo.

 

9- CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

De modo geral, existe um novo campo da responsabilidade civil, que percorre o caminho da exceção, para se consolidar na doutrina como entendimento predominante é a possibilidade do cônjuge ou ex-cônjuge, ser responsabilizado civilmente quando comprovado, injúrias, difamações, traições passadas, e quando ofende em público o ex-companheiro por simples ciúmes ou por amor não correspondido.

Com respeito ao posposto,há o entendimento que pode mover todo ato ilícito contra o ex-companheiro, para infligir ao mesmo, grande dor e sentimento vexatório, e o rancor alcança a violência física, psíquica dentre outras. É previsível que para o direito ser aquele que equilibra, e propõe a reparaçãodo dano, e principalmente endurecer, em resposta aos exageros decorrentes de relacionamentos, que não foram bem resolvidos, no julgar de qualquer caso, não é muito difícil discernir entre o dolo de humilhar em público ou uma reação espontânea de um momento de dúvida.

A responsabilidade civil continuará a ser uma fonte de desafios para os juristas, que é sensível a essas mudanças, tal a diversidades de fatores que integram a estimativa do prejuízo sofrido por um ser humano, e logo para uma inovação no direito, precisará muito da honestidade intelectual dos juristas que invocam o direito a reparação civil.

 

REFERÊNCIA

BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

CARLETTI,Amilcare. Brocardos Jurídicos. SãoPaulo: Universitária de Direito, 1986.

COSTA, Elder Lisbôa Ferreira da. História do Direito: De Roma à História do Povo Hebreu e Mulçumano. A Evolução do Direito Antigo à Compreensão do Pensamento Jurídico Contemporâneo. Belém: Unama, 2009.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

SILVA, Américo Luís Martins da. O Dano Moral e Sua Reparação Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

THEODORO JUNIOR, Humberto. Dano moral. 7. ed. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

THEODORO JUNIOR, Humberto. Dano Moral, 8ª edição. Belo Horizonte: Del Rey,2020. 9788530972295. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530972295/. Acesso em: 27 abr 2021.

 

[1]  Advogada e consultora jurídica, professora universitária, membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB, mestre em educação pela Universidade Cidade de São Paulo.

[2]Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Progresso. Artigo resultante do projeto de iniciação científica cadeira de Direito Civil.

 

 

 

GISELE PASSADOR

Doutoranda em Educação. Mestre em Educação. Especialista em Direito de Família. Graduada em Direito. Advogada em Escritório de Advocacia desde 1997. Instrutora do Tribunal de Ética e Disciplina – Ordem dos Advogados do Brasil – SP. Professora Universitária desde 1998.

Experiência em metodologias ativas e web learning na                                                      área do Direito Civil, Comercial, Tributário, Introdução ao                                                  Direito, Legislação Aduaneira, Direito Internacional,                                                          Política Comercial Externa, Direito Público e Privado,                                                        Filosofia e Ética do Direito. Atuando também na área de                                                    projetos em comércio exterior e gestão pública,                                                                representações sociais, metodologia de ensino e                                                              formação  de professores.

O crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação (código penal, art. 122)

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Considerações iniciais: o presente artigo tem a finalidade de apresentar uma análise jurídica detalhada do crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação (CP, art. 122), especialmente em razão da Lei nº 13.968, de 26 de dezembro de 2019, que modificou o delito em estudo, incriminando também as condutas de induzir ou instigar a automutilação, bem como a de prestar auxílio a quem a pratique. Em razão das referidas modificações, o tipo penal em estudo apresenta-se, além da modalidade simples, com duas figuras qualificadas e a possibilidade de três aumentos de pena (em diversas causas), conforme verificaremos no decorrer da referida análise.

É oportuno observar que a Lei nº 13.819, de 26 de abril de 2019(em vigor desde 26.07.2019), instituiu a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, determinando expressamente a notificação compulsória pelos estabelecimentos de saúde às autoridades sanitárias, e pelos estabelecimentos de ensino ao conselho tutelar, os casos suspeitos ou confirmados de violência autoprovocada, que compreende o suicídio (tentado ou consumado) e o ato de automutilação (com ou sem a intenção suicida).

Sumário: 1. Introdução – 2. Classificação doutrinária – 3. Objetos jurídico e material – 4. Natureza jurídica da morte e das lesões corporais de natureza grave – 5. Sujeitos do delito – 6. Conduta típica – 7. Elemento subjetivo – 8. Consumação e tentativa – 9. Figuras típicas qualificadas – 9.1.Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima –9.2.Se resulta morte em razão do suicídio ou da automutilação – 10. Causas de aumento de pena –11. Casos especiais –12. Pena, competência e ação penal.

1. Introdução

Suicídio é a deliberada destruição da própria vida. Embora a vida seja um bem jurídico indisponível, o direito não pune aquele que, com sua conduta, tira ou tenta tirar aquilo que tem de mais precioso: sua própria vida. Assim, o suicídio consumado não é crime pela impossibilidade de aplicação de sanção penal, e na forma tentada, por razões de política criminal como também, em ambos os casos, pelo fato do suicida ser, na realidade, considerado vítima e não autor.

Embora não seja crime, a conduta suicida é antijurídica porque ninguém tem direito de dispor da própria vida. Neste sentido, verifica-se que não configura constrangimento ilegal, a conduta daquele que exerce coação contra quem tenta suicidar-se (CP, art. 146, § 3º, II). Por analogia, entendemos que este dispositivo também se aplica nos casos de coação contra quem tenta se automutilar.

Automutilação (ou lesão autoprovocada intencionalmente) consiste em qualquer lesão intencional e direta dos tecidos do corpo provocada pela própria pessoa, sem que esta tenha a intenção de cometer suicídio. O desejo reiterado de provocar lesões em si próprio é considerado uma doença de acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID-10). Trata-se de um sintoma relativamente comum nos casos de perturbações da personalidade e perturbações mentais, a exemplo da depressão, ansiedade, esquizofrenia e abuso de substâncias. A automutilação, tentada ou consumada, também não é punida criminalmente.

Entretanto, a participação em suicídio ou automutilação, é punida nos termos do art. 122, do Código Penal, que dispõe: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou  prestar-lhe auxílio para que o faça: Pena – reclusão, de 6 (meses) a 2 (dois) anos”.

 

 2. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (aquele que pode ser praticado por qualquer pessoa), plurissubsistente (costuma se realizar por meio de vários atos), comissivo (decorre de uma atividade positiva do agente “induzir, instigar ou auxiliar”), de forma livre (pode ser cometido por qualquer meio de execução, menos a omissiva), de ação múltipla (ou de conteúdo variado, porque o tipo penal descreve três modalidades de realização: induzir, instigar e auxiliar), formal (se consuma sem a produção do resultado naturalístico previsto no tipo penal: morte ou lesão corporal de qualquer natureza), instantâneo (uma vez consumado, está encerrado, ou seja, a consumação não se prolonga), monossubjetivo(pode ser praticado por um único agente), simples (atinge dois bens jurídicos alternativos: vida ou integridade corporal e, por isso, não é crime complexo), doloso (o agente quer ou assume o risco de produzir o resultado morte ou lesão corporal de qualquer natureza.

 

3. Objetos jurídico e material

O objeto jurídico é alternativo: é a proteção do direito à vidaou a integridade corporal. Objeto material é a pessoa sobre a qual recai a conduta criminosa do agente que consiste no induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação.

 

4. Natureza jurídica da morte e das lesões corporais de natureza grave

Existem duas correntes doutrinárias: Para uma delas, o resultado morte ou lesão corporal de natureza grave constituem condições objetivas de punibilidade do crime de participação em suicídio.

Nélson Hungria afirma que, “embora o crime se apresente consumado com o simples induzimento, instigação ou prestação de auxílio, a punição está condicionada à superveniente consumação do suicídio ou, no caso de mera tentativa, à produção de lesão corporal de natureza grave na pessoa do frustrado desertor da vida”.[1]

Para a outra corrente, na qual nos filiamos, a morte e a lesão corporal de natureza grave não constituem condições objetivas de punibilidade e, sim, elementares do tipo, pelo fato de que as condições objetivas de punibilidade se situam fora da descrição típica do crime e sua ocorrência não depende do dolo do agente. Nos ensinamentos de Fernando de Almeida Pedroso, a morte e as lesões graves no crime de participação em suicídio,

“não constituem condições objetivas de punibilidade, pois representam o objetivo e propósito a que se direcionava e voltava o intento do agente. Trata-se no caso, portanto, do resultado naturalístico ou tipológico do crime”.

[2] Nessa mesma corrente, Damásio de Jesus, afirma

“a morte e as lesões corporais de natureza grave devem estar no âmbito do dolo. Logo, constituem o tipo e não se revestem dos caracteres das condições objetivas de punibilidade”.[3].

5. Sujeitos do delito

O sujeito ativo do crime de participação em suicídio ou a automutilação pode ser qualquer pessoa, não se exigindo nenhuma condição especial, pois, trata-se de crime comum. O sujeito passivo será a pessoa induzida, instigada ou auxiliada. Pode ser, da mesma forma, qualquer pessoa com plena capacidade de discernimento, pois, caso contrário é crime de homicídio ou de lesão corporal, praticado por meio de autoria mediata.

Embora seja o crime de participação em suicídio ou a automutilação, verifica-se que o mesmo admite tanto a coautoriaquanto a participação em sentido estrito. Exemplos: (a) Se A induz B a se automutilar. A será autor do crime de participação em suicídio ou a automutilação; (b) Se A e B induzem C a suicidar-se. A e B serão coautores do crime de participação em suicídio ou a automutilação; (c) Se A induz B a instigar C a se automutilar. Teremos, A (indutor) como partícipe, e B (instigador) como autor do crime de participação em suicídio ou a automutilação, pois este realizou uma das condutas típicas do delito em estudo.

Verifica-se, então, que induzir, instigar ou auxiliar, constituem, em regra, atividades de partícipe. No crime de participação em suicídio ou a automutilação, essas atividades constituem o núcleo do tipo penal, ou seja, quem as pratica será autor ou coautor e não partícipe, de acordo com a concepção restritiva, onde autor é somente aquele que realiza a conduta típica.

 

6. Conduta típica

O núcleo do tipo penal é representado pelos verbos induzir, instigar ou auxiliar. Desta forma, a participação em suicido ou a automutilação pode ser moral (no induzimento ou na instigação) ou material (no auxílio). Mesmo que o agente realize todas as condutas, responde por crime único, pois se trata de crime de ação múltipla ou de conteúdo variado.

Induzir – consiste em fazer nascer, criar na mente de alguém, a ideia de autodestruição ou de autolesão até então inexistente. Desta forma, o agente indutor acaba, por qualquer meio, criando em alguém uma vontade que o leva ao suicídio ou a automutilação.

Instigar – consiste em reforçar, estimular uma ideia de autodestruição ou de autolesão já existente. O agente instigador provoca, por qualquer meio, a vontade já existente da vítima, mas não toma parte nem da execução nem do domínio do fato.

Auxílio – pressupõe a participação material ao suicídio ou a automutilação, de forma meramente secundária, como, por exemplo, o fornecimento de veneno ou de qualquer objeto ou instrumento para a prática de autolesão, empréstimo do punhal, do revólver, a indicação de um local ideal para o suicídio ou a automutilação etc. De qualquer forma, o auxílio deve ser material e não moral, ou seja, o auxílio moral caracteriza forma de participação por induzimento ou instigação. Embora existam opiniões contrárias, o auxílio é sempre prestado por uma ação ou atividade positiva de fazer e, por isso, entendemos não ser possível prestar o auxílio por omissão. Neste sentido, Damásio de Jesus afirma

“mesmo que o sujeito tenha o dever jurídico de impedir o resultado, como no caso do soldado que assiste passivamente à vítima dar cabo à própria vida, não existe delito de participação em suicídio por atipicidade do fato”.[4]

De qualquer forma, para caracterizar o crime de participação em suicídio ou a automutilação, é necessário que a conduta do agente seja dirigida a pessoa ou pessoas determinadas, e não quando são praticadas de modo geral. Exemplo: não comete o crime em estudo, quem escreve um livro induzindo os leitores ao suicídio ou a automutilação como única forma de solução de seus problemas amorosos.

 

7. Elemento subjetivo

O elemento subjetivo do delito é o dolo, direto ou eventual, consistente na vontade livre e consciente de induzir, instigar ou prestar auxílio para que a vítima se suicide ou pratique a automutilação. Não há previsão da modalidade culposa.

Na modalidade de dolo eventual, é possível o agente assumir o risco de alguém praticar o suicídio ou a automutilação? Sim, é possível. É o caso do agente que pratica reiteradas sevícias (ofensas, maus tratos, crueldade) contra a esposa, sabendo-se que a mesma se encontra na iminência de praticar o suicídio ou a automutilação. Se ele continuar a seviciar a esposa, vindo a mesma a suicidar-se ou a se automutilar, estará configurado o crime de participação em suicídio ou a automutilação, a título de dolo eventual. Magalhães Noronha exemplifica muito bem, o caso.

“pai que expulsa de casa a filha desonrada, tendo poderosas razões para supor que ela se suicidará, com esse gesto, assume o risco de produzir o resultado”.[5]

 

8. Consumação e tentativa

O crime de participação em suicídio ou a automutilação se consuma sem a produção do resultado naturalístico (morte ou lesão corporal de qualquer natureza), previsto no tipo penal, embora ele possa ocorrer, pois, quanto ao resultado, trata-se de crimeformal, da mesma forma da extorsão mediante sequestro, no qual o recebimento do resgate exigido é irrelevante para a plena realização do tipo.

Trata-se, ainda, quanto à conduta, de crimecomissivoporque decorre de uma atividade positiva do agente “induzir, instigar ou auxiliar” e de crime plurissubsistenteporque costuma se realizar por meio de vários atos. Desta forma, a tentativa, embora de difícil configuração, é teoricamente possível, como, por exemplo, se o agente, utilizando-se de uma rede social, induz a vítima a suicidar-se ou a se automutilar, mas o fato não chega ao conhecimento da mesma.

É oportuno observar que, antes do advento da Lei 13.968/2019, quando ainda não havia a criminalização das condutas de induzir ou instigar a automutilação, o crime de auxílio ao suicídio consumava-se com o resultado morte ou lesão corporal de natureza grave, pois, quanto ao resultado, tratava-se de crime material. Assim, se a vítima tentasse se suicidar e viesse a falecer, o participante seria punido com pena de reclusão de 2 a 6 anos. Se da tentativa de suicídio resultasse lesão corporal de natureza grave, o participante seria punido com pena de reclusão de 1 a 3 anos.

Entretanto, se da tentativa de suicídio a vítima sofresse lesão corporal de natureza leve ou não sofre nenhuma lesão, o participante não respondia por nenhum crime porque o fato era atípico. Assim, não existia tentativa de participação em suicídio porque o legislador anterior havia condicionado a imposição de pena à produção do resultado morte ou lesão corporal de natureza grave.

 

 9. Figuras típicas qualificadas

São aquelas em que a lei acrescenta alguma circunstância ao tipo básico com a finalidade de agravar a pena. No crime de participação em suicídio ou a automutilação, em estudo, existem duas figuras qualificadas, a saber:

9.1    Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima

Nos termos do § 1º, do art. 122, do Código Penal, a pena é de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, “Se da automutilação ou da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 129 deste Código”.

As lesões corporais de natureza grave, estão previstas nos quatro incisos do § 1º, do art. 129, do Código Penal, e são elas: I – incapacidade para as ocupações habituais, por mais de 30 (trinta) dias; II – perigo de vida; III – debilidade permanente de membro, sentido ou função; IV – aceleração de parto.

As lesões corporais de natureza gravíssima, estão previstas nos cinco incisos do § 2º, do art. 129, do Código Penal, e são elas: I – incapacidade permanente para o trabalho; II – enfermidade incurável; III – perda ou inutilização de membro, sentido ou função; IV – deformidade permanente; V – aborto.

Desclassificação para lesão corporal gravíssima: nos termos do § 6º, do art. 122, do Código Penal, se da automutilação ou da tentativa de suicídio que resulta lesão corporal natureza gravíssima (observa-se que não inclui a lesão de natureza grave) e o delito é cometido contra menor de 14 (quatorze) anos ou contra quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, o agente não responde por estecrime qualificado de participação em suicídio ou a automutilação (que tem pena prevista de reclusão, de 1 a 3 anos) e, sim, pelo crime de lesão corporal gravíssima (CP, art. 129, § 2º), cuja pena é sensivelmente superior: reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.

9.2    Se resulta morte em razão do suicídio ou da automutilação

Nos termos do § 2º, do art. 122, do Código Penal, a pena é de reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, “Se o suicídio se consuma ou se daautomutilação resulta morte”.

Desclassificação para homicídio: nos termos do § 7º, do art. 122, do Código Penal, se o suicídio se consuma ou se da automutilação resulta mortee o delito é cometido contra menor de 14 (quatorze) anos ou contra quem não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, o agente não responde por este crime qualificado de participação em suicídio ou a automutilação (que tem pena prevista de reclusão, de 2 a 6 anos) e, sim, pelo crime de homicídio (CP, art. 121), cuja pena é sensivelmente superior: reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.

10. Causas de aumento de pena

No crime de participação em suicídio ou a automutilação, em estudo, existe e a possibilidade de três aumentos de pena, aplicados distintamente em diversas causas de aumento, a saber:

Nos termos do § 3º, do art. 122, do Código Penal, “a pena é duplicada: I – se o crime é praticado por motivo egoístico, torpe ou fútil; II – se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência”.Verifica-se, então, as seguintes hipóteses:

(a)  Motivo egoístico – entende-se o motivo que decorre do exclusivismo que faz o sujeito referir tudo a si próprio, sem consideração aos interesses alheios . Exemplo: agente induz a vítima ao suicídio para ficar com a sua herança, com seu cargo, com sua esposa, para receber o seguro de vida etc. Guilherme de Souza Nucci define o motivo egoístico como

“excessivo apego a si mesmo, o que evidencia o desprezo pela vida alheia, desde que algum benefício concreto advenha ao agente”.[6]

(b)  Motivo torpe – é aquele baixo, ignóbil (que inspira horror do ponto de vista moral) e repugnante que deixa perplexa a coletividade.

(c)  Motivo fútil – é aquele insignificante, banal, sem importância, totalmente desproporcional em relação ao crime praticado.

(d)  Vítima menor – quando a lei fala de vítima menor, está se referindo àquela maior de 14 anos e menor de 18 anos, que ainda não atingiram a maioridade penal (CP, art. 27). Se a vítima for menor de 14 anos, haverá presunção da sua incapacidade de discernimento.

(e)  Vítima com diminuída capacidade de resistência – em razão de enfermidade física ou mental (vítima embriagada, sob o efeito de tóxicos, angustiada, deprimida, com idade avançada, com algum tipo de enfermidade grave etc.)

É necessário que a capacidade de resistência da vítima esteja diminuída. Exemplo: agente induz ao suicídio alguém embriagado. Entretanto, se a vítima tiver totalmente sem capacidade de discernimento e resistência, estará configurado o crime de homicídio e não de participação em suicídio ou a automutilaçãoqualificada.

Nos termos do § 4º, do art. 122, do Código Penal, “A pena é aumentada até o dobro se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitida em tempo real”. Verifica-se, então, as seguintes hipóteses:

(a)  Rede de computadores – neste caso, o agente pratica a conduta típica por meio de um conjunto de dois ou mais computadores que usam determinadas regras (protocolo) em comum para compartilhar, especialmente, a troca de mensagens entre si, utilizando-se de uma conexão por meio de fio de cobre, fibra ótica, ondas de rádio e também via satélite. Exemplos: a internet; a intranet de uma empresa; uma rede local doméstica etc.

(b)  Rede social – é uma estrutura social composta por pessoas ou organizações, conectadas por um ou vários tipos de relações, que compartilham valores e objetivos comuns. Uma das fundamentais características na definição das redes é a sua abertura, possibilitando relacionamentos horizontais e não hierárquicos entre os participantes.Exemplos: Facebook, YouTube, WhatsApp, Messenger, Instagram, Twitter, Snapchat, LinkedIn etc.

(c)  Transmitida em tempo real – é uma expressão utilizada na reportagem, no meio televisivo ou radiofónico para indicar que um programa ou evento está sendo transmitido em tempo real, simultaneamente enquanto ocorre. No caso do delito em estudo, o agente se utiliza de qualquer meio de comunicação (falado ou escrito) para praticar a conduta delituosa em tempo real.

Nos termos do § 5º, do art. 122, do Código Penal, “Aumenta-se a pena em metade se o agente é líder ou coordenador de grupo ou de rede virtual”.  Verifica-se, então, as seguintes hipóteses:

(a)  Líder ou coordenador –  é o indivíduo que tem autoridade para comandar ou coordenar outros, ou seja, é a pessoa cujas ações e palavras exercem influência sobre o pensamento e comportamento de outras.

(b)  Grupo ou rede virtual–é um espaço específico na Internet que permite compartilhar, aos respectivos participantes, dados e informações sendo estas de caráter geral ou específico, das mais diversas formas (textos, arquivos, imagens, fotografias, vídeos etc.).

 

11. Casos especiais

  • Automutilação – também conhecida como autolesão, não é punida pelas mesmas razões de política criminal em relação ao suicídio, ou seja, não comete crime o sujeito que ofende a própria integridade corporal. Entretanto, a conduta de se auto lesionar, dependendo do propósito do agente, pode ser meio de execução utilizado pelo mesmo para praticar outros crimes.

Assim, se o agente lesa o próprio corpo, ou agrava as consequências da lesão existente, com a finalidade de receber indenização ou valor de seguro, responde por estelionato (CP, art. 171, § 2º, V). Se o agente cria ou simula incapacidade física que o inabilite para o serviço militar, responde pelo crime de criação ou simulação de incapacidade física, previsto no art. 184, do Código Penal Militar (Decreto-lei nº 1.001/1969).

(b)  Greve de fome – especialmente dentro do sistema prisional, o médico tem o dever de zelar pela vida do grevista de fome, ou seja, ele está na posição de garantidor, onde sua omissão o fará responder pela morte do grevista (CP, art. 13, § 2º).

Assim, chegará o momento em que a intervenção médica para ministrar alimentação ou medicamento se torna inevitável para que o grevista não venha morrer ou sofrer lesões irreversíveis. Neste caso, a coação exercida pelo médico para impedir o suicídio do grevista não caracteriza o crime de constrangimento ilegal (CP, art. 146, § 3º, I).

Situação análoga ocorre com as testemunhas de Jeová que, por motivos religiosos, são contra as transfusões de sangue. Assim, a transfusão determinada pelo médico, quando necessária para salvar a vida do paciente, também não caracterizará o crime de constrangimento ilegal (CP, art. 146, § 3º, II).

(c)  Pacto de morte – também chamado de suicídio a dois, ocorre quando duas pessoas combinam, por qualquer razão, o duplo suicídio e, para tanto, ficam em um cômodo da casa hermeticamente fechado, com o gás de cozinha aberto. Entretanto, se um ou ambos sobreviverem, teremos as seguintes situações:

Se um sobrevive e foi ele quem abriu o gás, responde pelo crime de homicídio (CP, art. 121), pois realizou o ato executório de matar;

Se um sobrevive e não foi ele quem abriu o gás, responde pelo crime de participação em suicídio ou a automutilação (CP, art. 122);

Se os dois sobrevivem, havendo lesão de natureza grave: quem abriu o gás responde por homicídio tentado (CP, art. 121, caput c/c art. 14, II), e quem não abriu responde pelo crime de participação em suicídio ou a automutilação(CP, art. 122);

Se os dois sobrevivem, e não há lesão de natureza grave: quem abriu o gás responde por homicídio tentado (CP, art. 121, caput c/c art. 14, II), e quem não abriu pelo crime de participação em suicídio ou a automutilação (CP, art. 122);

Se os dois sobrevivem e ambos abriram a torneira do gás: ambos respondem por homicídio tentado (CP, art. 121, caput c/c art. 14, II).

(d)  Duelo americano ou roleta russa – no duelo americano existem duas armas e só uma delas está carregada e os agentes escolhem uma delas; na roleta russa, a única arma tem um só projétil, devendo ser disparada pelos agentes cada um em sua vez. Nestes casos, o sobrevivente responde pelo crime de participação em suicídio ou a automutilação (CP, art. 122).

(e)  Erro na execução ou aberratio ictus  – ocorre quando o agente pretende atingir determinada pessoa, efetua o golpe, mas, por má pontaria ou qualquer outro motivo, acaba atingindo pessoa diversa da que pretendia. Assim, se um suicida dispara uma arma sobre si mesmo e acaba errando, atingindo e matando uma terceira pessoa, responde pelo crime de homicídio culposo.

 

12. Pena, competência e ação penal

As penas cominadas ao crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação (CP, art. 122) são as seguintes: (a) Na figura simples (caput), a pena é de reclusão de 6 meses a 2 anos; (b) Na figura qualificada pela lesão corporal de natureza grave ou gravíssima (§ 1º), a pena é de reclusão de 1 a 3 anos; (c)Na figura qualificada pelo resultado morte (§ 2º), a pena é de reclusão de 2 a 6 anos; (d) Causas de aumento de pena (§ 3º), a pena é duplicada; (e) Causas de aumento de pena (§ 4º), aumento até o dobro; (f) Causas de aumento de pena (§ 5º), aumento de metade.

O bem jurídico protegido é a vida (no caso de suicídio) e a integridade corporal (no caso da automutilação). Desta forma, se a conduta do agente consiste em induzir, instigar ou prestar auxílio material ao suicídio, a competência é do Tribunal do Júri que julga os crimes dolosos contra a vida (homicídio, induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, infanticídio e aborto), na forma tentada ou consumada (CF, art. 5º, XXXVIII, alínea d, c/c CPP, art. 74, § 1º). O Júri é também competente para julgar os crimes conexos, mesmo quando o réu tenha sido absolvido da imputação principal. E, no caso de concurso entre a competência do Júri e de outro órgão de jurisdição comum, prevalecerá a competência do Júri (CPP, art. 78, I).

A ação penal é pública incondicionada, cujo oferecimento da denúncia para iniciar a ação penal não depende de qualquer condição de procedibilidade. 

 

[1].     HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal – Volume V. Rio de Janeiro: Forense, 4ª ed., 1958, p. 236.

[2].     PEDROSO, Fernando de A. Homicídio, Participação em Suicídio, Infanticídio e Aborto. Rio de Janeiro: Aide, 1ª ed., 1995, p. 217.

[3].     JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – Parte Especial –Volume 2. São Paulo: Saraiva, 32ª ed., 2012, p. 128.

[4].     JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – Parte Especial –Volume 2. São Paulo: Saraiva, 32ª ed., 2012, p. 130.

[5].     NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal – Volume 2. São Paulo: Saraiva, 30ª ed., 1999, p. 42.

[6].     NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 11ª ed., 2012, pp. 654-655.

 

 

Vicente de Paula Rodrigues Maggio

Advogado e professor

Advogado militante formado pela Universidade Guarulhos; mestre em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutor em direito penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor de direito penal e processo penal em cursos de graduação e pós-graduação. Autor de diversos livros e artigos jurídicos.                                                     Avaliador de cursos de direito pelo MEC (pertence ao                                                         Banco de Avaliadores (BASis) do Sistema Nacional de                                                       Avaliação da Educação Superior (Sinaes).

A justiça restaurativa como um caminho para uma cultura de paz em um estado de proteção social eficiente.

1

POR: Valéria Bressan Candido

 

RESUMO: Justiça Restaurativa é um processo através do qual todas as partes afetadas e interessadas em um conflito específico (intersubjetivo, disciplinar ou correspondente a um ato infracional) se reúnem para solucionar coletivamente como lidar com o resultado da situação conflituosa e suas implicações para o futuro. O círculo restaurativo/processo circular é um processo ordenado que se pauta pelo encontro da “vítima” e “ofensor”, seus suportes e membros da comunidade para juntos identificarem as possibilidades de resolução de conflitos a partir das necessidades dele decorrentes, a reparação de danos, o desenvolvimento de habilidades para evitar nova recaída na situação conflitiva e o atendimento, por suporte social, das necessidades desveladas. Justiça como valor e da dignidade da pessoa humana.

 

PALAVRAS-CHAVES: estado de proteção social; justiça restaurativa; cultura de paz; pacificação social; práticas restaurativas.

 

Introdução

Nos dias atuais, verificamos que a sociedade, de um modo geral, não possui mecanismos que fortalecem valores de convívio comunitário, de um lado por sua herança histórica e de outro pelo constante estado de beligerância em que vivemos.

Em razão disso torna-se visível que o proceder jurisdicional segue uma lógica tradicional, onde fazer justiça é a adequação do ato à norma com a definição do tipo e do tempo da resposta. Já o pedido de justiça é um pedido de pena, punição, ou seja, a imposição de sofrimento pelo sofrimento produzido (Kozen, 2013), e por fim, a responsabilização se iguala a sancionar e punir em uma equação onde as relações são iguais a subordinação mais submissão.

Neste contexto, temos que as mais diversas formas de punição prestam pouca, ou nenhuma, atenção à reparação dos danos reais causados à vítima e à comunidade, além de tratar o infrator de maneira que se torna difícil para eles livrarem-se do rótulo de infrator.

Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro… Agora… que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera (Machado de Assis – Memórias Póstumas)

Diante dessa situação que beira ao caos, surge uma nova proposta de solução de conflitos: A Justiça Restaurativa, que vem em um momento crítico em que a sociedade reclama por meio eficazes e eficientes da atuação do Estado para a manutenção da paz social.

1. A Cultura de Paz

O ciclo da violência não tem fim, o dogma criado do olho por olho, dente por dente criou estigmas que atravessaram milênios, mas há ainda, como se reverter esta situação compreendendo o surgimento da Justiça Restaurativa e de experiências bem sucedidas, onde o empoderamento pessoal prevaleceu à punição estatal.

Não é possível falar em Justiça Restaurativa ou Círculos de Construção de Paz sem mencionar a necessidade de uma nova cultura, “a Cultura de Paz”. Nova porque, infelizmente, a civilização moderna se esqueceu de suas origens, quando nos primórdios da humanidade, os grupos familiares perceberam que eles em si não mais se bastavam, necessitando reunirem-se em grupos maiores, que deram origem a sociedade.

Tribos aborígenes primitivas entendiam que o ilícito causado por um membro do grupo afetava a todo o grupo, e era este quem tinha o poder de solucionar o conflito visando à paz comum.

Hoje em dia, em face da escalada da violência, as sociedades não mais pensam em uma cultura de paz, a busca pelo ressarcimento a qualquer preço do dano sofrido impera, tendo como resultado a intolerância que se verifica nas sociedades modernas.

Um dos caminhos para a inserção da “Cultura de Paz” é o diálogo. As emoções expressas no contato entre as pessoas e traduzidas em palavras vividas pessoalmente traz uma nova consciência acerca da prática do ato lesivo e suas consequências.

Rosenberg (2006) identificou algumas formas específicas de comunicação que entendeu contribuírem para o comportamento violento em relação aos outros e a nos mesmo, utilizando a expressão “Comunicação alienante da vida”. Ao explicar sua teoria sugere que determinados julgamentos moralizadores que subentendem uma natureza errada ou maligna nas pessoas que não agem em consonância com os nossos valores.

A comunicação alienante da vida nos prende a um mundo de ideias sobre o que é certo e o errado – em um mundo de julgamentos, uma linguagem rica em palavras que classificam e dicotomizam as pessoas e seus atos. Quando empregamos essa linguagem, julgamos os outros e seu comportamento enquanto nos preocupamos com o que é bom, mau, normal, anormal, responsável, irresponsável, inteligente, ignorante, etc. (ROSENBERG, 2006, p.38).

 

Para Bakhtin a palavra só pode ser considerada na sua inserção social. Palavra-signo, inteiramente determinada pelas relações sociais, sempre orientadas pelo-para o outro, em processos de co-construção eu-outro:

“A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra se apoia sobre o meu interlocutor” (BAKHTIN, 2009, p.113).

Nesse raciocínio, o diálogo se mostra peça chave na comunicação não violenta.Na continua transitividade entre eu-outro encontramos a palavra. Palavra que provoca a palavra-resposta, sendo que

“o locutor termina seu enunciado para passar a palavra ao outro ou para dar lugar à compreensão responsiva do outro.” (BAKHTIN, 2000, p. 294).

Para Rosa e Cerruti (2014) através do procedimento restaurativo, que ocorre através do diálogo, são abertas novas perspectivas para o entendimento da responsabilização do autor do ato infracional.

A ciência do Direito não deve se furtar em dialogar abertamente com outras áreas científicas, as quais estão há muito demonstrando e apontando para “novas realidades”. É imperioso que a ciência do Direito não tenha medo de perder sua cientificidade ao se apropriar destas percepções, ao repensar seu objeto de estudo e suas metodologias, porém sempre cuidando para não se perder em caminhos tidos como metajurídicos (PENIDO, 2014).

Um dos princípios da Justiça Restaurativa é a possibilidade de exercício do poder não sobre o outro, mas como outro, uma vez que não é suficiente impor o poder, mas é preciso internalizá-lo, para que os efeitos práticos do ressarcimento pretendido ocorram.

Como a sociedade, de um modo geral, não possui mecanismos que fortalecem valores de convívio comunitário, de um lado por sua herança histórica e de outro pelo constante estado de beligerância em que vivemos é preciso buscar formas de mitigar os conflitos. A justiça restaurativa abre a perspectiva da responsabilização do autor do ato infracional por meio do diálogo, do encontro com o outro como construção de sentidos (ROSA E CERRUTI, 2014).

Em razão disso observamos que o proceder jurisdicional segue uma lógica tradicional, onde fazer justiça é a adequação do ato à norma com a definição do tipo e do tempo da resposta. Já o pedido de justiça é um pedido de pena, punição, ou seja, a imposição de sofrimento pelo sofrimento produzido (KOZEN, 2013), e por fim, a responsabilização se iguala a sancionar e punir em uma equação onde as relações são iguais a subordinação mais submissão.

Neste contexto, temos que as mais diversas formas de punição prestam pouca, ou nenhuma, atenção à reparação dos danos reais causados à vítima e à comunidade, além de tratar o infrator de maneira que se torna difícil para eles livrarem-se do rótulo de infrator.

Podemos estabelecer outra equação para visualizar o ciclo da violência, onde se tem mais penas, mais violência e menos segurança, em qualquer parte do mundo.

As expectativas da comunidade em relação à atuação judicial, no sentido de obterem Informação, verdade, empoderamento, restituição e reparação do prejuízo, têm sido cotidianamente mitigadas uma vez que também não são atendias as expectativas da sociedade com relação à atenção às necessidades das vítimas; criação de uma ambientação institucional favorável a estabelecer um senso de comunidade e de responsabilização recíproca e o encorajamento para que todos assumam as suas responsabilidades e respectivas obrigações para o bem-estar de seus membros, incluindo vítimas e agressores, e promovam as condições capazes de sustentar comunidades saudáveis.

Neste contexto, surge uma oportunidade histórica: um realinhamento da Função Judiciária com o compromisso de realizar, precipuamente, o valor fundamental Justiça, este atualmente menos reconhecido do que as metas de produtividade processual impostas aos operadores do Direito.

Um grande passo é dado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), quando afirmou que a grande e terrível Segunda Grande Guerra Mundial foi possível pela denegação dos princípios democráticos da dignidade, igualdade e respeito mútuo entre os homens, bem como pela propagação, mediante ignorância e preconceito, da doutrina da desigualdade entre homens e raças.

De outro lado, a mesma ONU, agora através de seu Conselho Econômico e Social, por meio da Resolução nº 2002/12 elenca os princípios básicos de Justiça Restaurativa:

  • Trata-se de uma resposta evoluída ao crime que respeita a dignidade e igualdade das pessoas, geram compreensão e promove a harmonia social recuperando vítimas, infratores e comunidades.
  • Programa de justiça restaurativa” significa qualquer programa que use processos restaurativos e busque obter resultados restaurativos.
  • Processo restaurativo” significa qualquer processo onde a vítima e o infrator e, se apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participem conjunta e ativamente na resolução dos problemas decorrentes do crime, em geral com a ajuda de um facilitador. O processo restaurativo pode incluir a mediação, conciliação, e transação penal.
  • Resultado restaurativo” significa um acordo obtido como resultado de um processo restaurativo. Resultados restaurativos incluem respostas e programas como reparação, restituição e serviço comunitário, visando atender necessidades individuais e coletivas e responsabilidades das partes e alcançar a reintegração da vítima e do infrator.

2. Conceito de Justiça Restaurativa

A Justiça Restaurativa é um conceito em construção, pois é um modelo complementar de resolução de conflitos, consubstanciada numa lógica distinta da punitiva. Embora seja um conceito ainda em construção, não possuindo uma conceituação única e consensual, pode-se dizer que:

Em uma de suas dimensões, pauta-se pelo encontro da “vítima”, “ofensor”, seus suportes e membros da comunidade para, juntos, identificarem as possibilidades de resolução de conflitos a partir das necessidades dele decorrentes, notadamente a reparação de danos, o desenvolvimento de habilidades para evitar nova recaída na situação conflitiva e o atendimento, por suporte social, das necessidades desveladas.[1]

 

O marco legal é de janeiro de 2012 com a Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, queinstituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional, entre outras providências. Esta lei contemplou as práticas ou medidas que sejam restaurativas em seu, Título II (Da execução das medidas socioeducativas), Capítulo I, assim estabelecendo;

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 35.  A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios:

(…)

III – prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas; (grifo nosso).

 

No entanto, antes do reconhecimento legal, vários projetos foram desenvolvidos no país, tendo como destaque o projeto “Justiça e Educação”, uma parceria entre a Secretaria da Educação do Governo do Estado de São Paulo e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que teve seu início em 2006 na região de Heliópolis, na capital do estado.

3. Princípios Restaurativos

Para que possamos entender melhor a proposta das práticas restaurativas, necessário se faz explicitar os princípios que a norteia.

  • Respeito à dignidade das partes;
  • Flexibilidade e informalidade;
  • Primado do interesse das pessoas envolvidas;
  • Voluntariedade;
  • Colaboração (não confrontação);
  • Razoabilidade e proporcionalidade das obrigações assumidas;
  • Direito à informação plena;
  • Sigilo e confidencialidade;
  • Capacitação dos agentes facilitadores;
  • Monitoramento constante dos resultados.

Através dos princípios acima, busca-se o resgate de valores que foram deturpados pela Justiça Punitiva, trazendo à sociedade uma visão responsável de seus deveres sociais.

Por consequência, não se afasta do Estado as suas funções, tanto as institucionais, quanto as sociais, neste caso, de proteção.

Isto ocorre porque, da associação do Estado e sociedade, busca-se uma conscientização no sentido de que todos são responsáveis por uma sociedade justa e de convívio pacífico.

Temos que, hoje a Justiça Punitiva baseia-se em valores como: Primado do interesse do Estado; Foco na punição – encarceramento ou penas alternativas ineficazes; Culpabilidade individual: Uso dogmático do Direito; Um processo Formal, ritualístico, onde se visualiza um cenário de Poder; Linguagem e regras complexas; Processo decisório das autoridades / operadores jurídicos; Participação mínima do ofendido e da sociedade; Mínima assistência psicossocial e jurídica.

Com essa prática o resultado observado na sociedade é um conjunto de: Insatisfação e frustração com o sistema; Um processo alienado onde a comunicação se dá somente através do advogado; Necessidades dos envolvidos praticamente desconsideradas; Inacessibilidade e ausência de interação social

Por outro lado, a Justiça Restaurativa propõe: Primado do interesse das pessoas envolvidas e da comunidade; Foco na responsabilidade e nas necessidade das partes e comunidade; Corresponsabilidade individual e coletiva; Uso crítico do Direito; Um processo informal, simplificado/cenário extrajudicial ou comunitário; Linguagem comum e regras flexíveis; Processo decisório compartilhado com envolvidos e comunidade; Voz e papel efetivo dos envolvidos e da sociedade no Processo; Necessidades psicossociais e jurídicas atendidas efetivamente; Satisfação e controle sobre a situação, recuperação da autoestima; Participação responsável no Processo, tanto da sociedade quanto do Estado; Necessidades efetivamente consideradas; Acessível e interativo com a vítima e comunidade.

Os efeitos experimentados podem ser assim descritos:

  • Restauração do tecido social
  • Reintegração do infrator e da vítima
  • Eficácia de um sistema multiportas
  • Potencial de redução da reincidência
  • Paz Social com dignidade

Porém, através dos métodos utilizados pela Justiça Restaurativa para alcançar seus objetivos, em um primeiro momento, muito leitores e leigos podem deturpar. Portanto, Justiça Restaurativa não é:

  • Uma mera tentativa de se perdoar o ofensor ou se proceder à reconciliação com a vítima (direta ou indireta);
  • Programas de mediação;
  • Programa destinado a diminuir a reincidência ou evitar repetidas infrações;
  • Programa particular ou um diagrama de trabalho;
  • Aplicável apenas a crimes de menor potencial ofensivo;
  • Uma criação exclusiva e originária dos povos norte-americanos;
  • Uma panaceia apta a substituir o sistema legal em vigor;
  • Uma efetiva alternativa à sanção privativa de liberdade, muito menos o exato oposto à retribuição.

Assim, a proposta restaurativa pode ser descrita como qualquer processo onde a vítima e o infrator e, se apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participem conjunta e ativamente na resolução dos problemas decorrentes do crime, em geral com a ajuda de um facilitador. O processo restaurativo pode incluir a mediação, conciliação, e transação penal.

De outro lado, o “Resultado restaurativo” significa um acordo obtido como resultado de um processo restaurativo. Resultados restaurativos incluem respostas e programas como reparação, restituição e serviço comunitário, visando atender necessidades individuais e coletivas e responsabilidades das partes e alcançar a reintegração da vítima e do infrator.

4. Modelos de Práticas Restaurativas

Hoje existem quatro grandes métodos de práticas restaurativas:

1) Os Círculos Restaurativos– Difundidos na América do Norte, principalmente no Canadá pelas nações indígenas e algumas nações indígenas dos Estados Unidos;

2) O VOM (Victim-OffenderMediation) – A mediação entre vítima e ofensor. Prática introduzida pelos Canadenses em meados dos anos 70 e muito difundida nos Estados Unidos da América também;

3) Family GroupConferencing(Conferências Familiares) – Muito difundido na Austrália e Nova Zelândia. Uma tradição também baseada em práticas Aborígenes daqueles dois países.

4) Comissões de Verdade e Conciliação– Prática estatal estabelecida após o Apartheid na África do Sul para dirimir conflitos entre pretos e brancos. Hoje difundida pelo mundo inteiro, inclusive na América do Sul, no Brasil, Peru, Colômbia e outros países.

Pranis (2010) ensina que fazer uso de um processo circular não é simplesmente colocar as cadeiras em círculo. É uma participação cuidadosa é essencial para que se tenha uma boa prática quando utilizar esse processo. E, também é buscar falar do coração, obter o melhor dos integrantes, aquilo que de melhor são capazes.

4.1 -Visão global dos Círculos

Reunir pessoas para que: Todos sejam respeitados; Todos tenham igual oportunidades de falar sem   serem interrompidos; Que os participantes se expliquem contando suas histórias; Todos são iguais. Ninguém é mais importante que o outro; Aspectos espirituais e emocionais da experiência individual são acolhidos.

 

4.2 – Contribuição dos processos circulares

Esta dinâmica de encontro com as pessoas tem duas possibilidades.

  1. Mudança nas relações: quando o procedimento ajuda a transformar as situações no que se refere à convivência – pode ser em relação a conflitos e violência ou apenas situações corriqueiras.
  2. Mudança no “espaço” onde as relações acontecem: quando o procedimento irradia uma outra foram de estar com outro, a partir do que se aprende no processo circular – futuros desencontros são evitados.

Acima de tudo, na Justiça Restaurativa, são construídos encontros embasados em processos dialógicos e inclusivos, fundados na autonomia da vontade e na participação das partes afetadas por um delito ou um conflito, onde, de modo coletivo, elas podem lidar com as causas e consequências do conflito, buscando atender as necessidades de todos envolvidos e suas implicações para o futuro.

 

4.3 Como funciona um círculo de construção de paz

Para que seja iniciada uma prática restaurativa é necessário que se atenda à algumas formalidades simples, visando legitimar o ato e as decisões ali tomadas.

A seguir alguns exemplos para a realização de um círculo restaurativo.

  • SENTAR-SE EM CÍRCULO – significa liderança partilhada, igualdade, conexão, e inclusão, promove foco, responsabilidade e participação de todos;
  • CONSTRUÇÃO DE UM CENTRO DE CÍRCULO com objetos significativos;
  • CERIMÔNIAS DE ABERTURA E ENCERRAMENTO – Intencionalmente e conscientemente os Círculos mobilizam todos os aspectos da experiência humana: espiritual, emocional, físico e mental. Na abertura e no fechamento realiza-se uma atividade de centramento intencional;

– O BASTÃO DE FALA – Somente a pessoa que está segurando o bastão de fala pode falar. Assim se regula o diálogo à medida que o bastão vai passando de uma pessoa para a outra, dando a volta no Círculo de forma sequencial.

A pessoa que segura o bastão recebe a atenção total dos outros participantes e pode falar sem interrupções. Esse recurso promove plena manifestação das emoções, escuta mais profunda, reflexão cuidadosa e um ritmo tranquilo.  No entanto não se exige que o detentor do bastão fale necessariamente.

– FACILITADOR OU GUARDIÃO – O facilitador do Círculo de Construção de Paz ajuda o grupo a criar e manter um espaço coletivo, no qual cada participante se sente seguro para falar aberta e francamente sem desrespeitar ninguém.

Ele supervisiona a qualidade do espaço coletivo e estimula as reflexões do grupo através de perguntas ou pautas. O guardião não controla as questões a serem levantadas pelo grupo, nem tenta conduzi-lo na direção de determinada conclusão, mas pode intervir para zelar pela qualidade da interação grupal.

– PROCESSO DECISÓRIO CONSENSUAL – No Círculo as decisões são tomadas por consenso. Isto não significa que todos terão entusiasmo em relação a determinada decisão ou plano, mas é necessário que cada um dos participantes esteja disposto a viver segundo aquela decisão, bem como apoiar sua implementação.

As decisões consensuais resultam em acordos mais eficazes e sustentáveis, pois elas conferem poder a todos.

Nem sempre o consenso é possível. Mas é uma raridade não chegar a um consenso, quando tenha sido alocado ao processo Circular tempo suficiente para a escuta integral de todos os pontos de vista.

5. Desafios para a implementação da Justiça Restaurativa no Brasil.

Muitos desafios se apresentam na expansão da Justiça Restaurativa no Brasil, entre eles:

(a) a elaboração de referências claras do que seja uma prática restaurativa nos seus diversos modos;

(b) a criação de marcos legais;

(c) a sensibilização do sistema de Justiça, com a criação de setores específicos de mediação e Justiça Restaurativa na área Criminal e da Infância e Juventude;

(d) o desenvolvimento das práticas restaurativas, por meio da ciência jurídica, em sintonia com as descobertas científicas;

(e) a formação em larga escala, mantendo o mínimo de qualidade nas práticas a serem implementadas (ex.: como criar dinâmicas de formação à distância; ou formar efetivos multiplicadores quanto à formação);

(f) a criação de indicadores de avaliação condizentes com o novo paradigma cultural com base nos quais são implementadas as práticas restaurativas (atento à observação realizada pela Professora Kay Pranis, quando em palestra ministrada na Fundação Getulio Vargas, em setembro de 2011, quando assim se manifestou: “Não é possível avaliar as ações consubstanciadas em um novo paradigma, com base na visão do paradigma antigo”;

(g) o envolvimento das Academias no processo de reflexão do que seja a Justiça Restaurativa e suas formas de implementação;

(h) o envolvimento da comunidade em larga escala;

(i) o resgate da nossa simbologia nacional, particularmente das histórias das nações nativas e das demais nações que formam e formaram a nação brasileira;

(j) a implementação da Justiça Restaurativa em instituições diversas, como o sistema policial;

(k) a estruturação e qualificação da figura do professor mediador;

(l) a utilização da arte e da meditação nas práticas restaurativas;

(m) a aproximação das práticas restaurativas com a religiosidade brasileira (sem perda da perspectiva que estamos inseridos em um Estado laico);

(n) a forma de comunicação com a mídia e entre as instituições; e

(o) o aprimoramento dos comitês de gestão interinstitucionais dos projetos.

6. Considerações Finais

Apesar da adversidades para a implantação de práticas restaurativas e o exercício contínuo de uma cultura de paz, o Brasil vive um momento social, político e cultural único, tendo a chance histórica de desenvolver práticas restaurativas – inseridas ou não no seu Sistema de Justiça (como alternativa à aplicação de penas) – de modo absolutamente único no mundo, em decorrência de sua potência criativa, fruto da sua diversidade racial, geográfica, social, religiosa e, sobremaneira, do predomínio de sua população jovem (até 30 anos de idade). Soma-se a este feixe de circunstâncias, o contexto institucional atual, consubstanciado no seu sistema democrático (conquistado arduamente) e na liberdade de expressão – em permanente processo de aprimoramento nos últimos 30 anos.

A disseminação da cultura de paz entre os Poderes da República e a sociedade em geral deve ser uma atitude constante, haja visto que todos os seguimentos sociais estão diariamente deparando-se com adversidades e situações de conflitos, seja estes de maior o menor potencial ofensivo.

A proposta da Justiça Restaurativa é, além da implantação de uma cultura de paz, tornar eficaz e eficiente as reparações de danos sofridos, bastando para isso, apenas, trocar o foco e ajustar as lentes.

 

 

Referências

BARREROS, Loide Muniz, palestra proferida no curso de Justiça Restaurativa da Escola Paulista da Magistratura, em 25.11.13.

BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 13 ed. São Paulo: Hucitec, 2009 [1929]

________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

De VITO, Renato, palestra proferida no curso de Justiça Restaurativa da Escola Paulista da Magistratura, em 21.10.13

KOZEN, Afonso, palestra proferida no curso de Justiça Restaurativa da Escola Paulista da Magistratura, em 28.10.13.

MUMME, Monica Maria Ribeiro palestra proferida no curso de Justiça Restaurativa da Escola Paulista da Magistratura, em 02.12.13.

SALM Joao, PhD, MPA, BL, palestra proferida no curso de Justiça Restaurativa da Escola Paulista da Magistratura, em 14.10.13.

PENIDO, Egberto de Almeida.  “Justiça e Educação: parceria para a cidadania” em Heliópolis/SP: a imprescindibilidade entre Justiça Restaurativa e Educação In: www.tjsp.jus.br/EGov/InfanciaJuventude/Coordenadoria/JusticaRestaurativa/

PRANIS Kay, Processos Circulares, Ed. Palas Athena, São Paulo, 2010.

ROSA, Miriam Debieux e CERRUT, Marta. Da rivalidade à responsabilidade: reflexões sobre a justiça restaurativa a partir da psicanálise. Psicologia USP. 2014. Disponível em: www.scielo.br/pusp.

ROSENBERG, Marshall B, Comunicação não violenta, Ed. Àgora, São Paulo, 2006.

ZEHR Haward. Trocando as Lentes, um novo foco sobre o crime e a Justiça Restaurativa. Ed. Palas Athenas. São Paulo, 2008.

____________. Justiça Restaurativa. Ed. Palas Athenas. São Paulo, 2012.

[1]ZEHR, Haward. Trocando as Lentes, um novo foco sobre o crime e a Justiça Restaurativa. Ed. Palas Athenas, pg. 151.

 

 

Valéria Bressan Candido

Doutora em Educação, pela Universidade Metodista de São Bernardo, Mestra em Políticas Pública, pela Universidade de Mogi das Cruzes – UMC, Especialista em Direito Público, Direito Processual Civil e Direito Penal e Processual Penal Bacharel em Direito pela Universidade de Guarulhos

Tutela provisória na arbitragem sob a luz do novo código de processo civil

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RESUMO: presente trabalho tem por finalidade fazer uma breve analise sobre as tutelas provisórias previstas no Código de Processo Civil Vigente, bem como a possibilidade de sua aplicação na arbitragem, prevista na lei 9.307/96; esta possibilidade veio como advento da lei 13.129/2015, que alterou a lei de arbitragem prevendo expressamente a possibilidade da aplicação do instituto; com isso, implementando uma relação entre o Poder Judiciário e a Arbitragem, tendo em vista a efetivação do instituto e a busca da pacificação social.

 

ABSTRACT: thispaperaimsto make a briefanalysisofthe provisional remediesprovided for in theCodeof Civil Procedure in force, as well as thepossibilityof its application in arbitration, provided for in law 9,307/96; thispossibility came withtheadventoflaw 13.129/2015, whichamendedthearbitrationlawexpresslyproviding for thepossibilityofapplyingtheinstitute; thus, implementing a relationshipbetweentheJudiciaryandArbitration, with a viewto making theinstituteeffectiveandseeking social pacification.

 

INTRODUÇÃO

 

Como advento do Código de Processo Civil, lei 13.105 de 2015, importantes inovações foram instituídas no ordenamento jurídico brasileiro e uma delas é no que diz respeito a tutela provisória.

Além dessas inovações trazidas no instituto processual, a lei 13.129/2015 alterou a lei de arbitragem (lei9.307/96), prevendo a possibilidade da utilização das tutelas cautelares e de urgência no procedimento arbitral.

Com essa mudança, ocorreu a possibilidade de haver uma comunicação entre o judiciário e a arbitragem, tendo em vista a busca da pacificação social.

Essas alterações realizadas justificam-se com a aplicação da teoria diálogo de fontes entre os dois institutos, o Código de Processo Civil, onde é previsto o procedimento referente as tutelas provisórias; e a possibilidade desta aplicação na arbitragem.

Passemos agora fazer uma abordagem acerca das tutelas provisórias previstas no Código de Processo Civil, a sua aplicabilidade no procedimento arbitral, bem como fazer uma breve análise sobre a teoria do diálogo das fontes e sua aplicabilidade nos dois institutos.

 

TUTELAS PROVISÓRIAS NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.

 

Iniciando o presente artigo, nesse momento será feitaa considerações gerais sobre as tutelas provisórias previstas no Código de Processo Civil.

O presente trabalho não irá abordar a tutela de evidência, tendo em vista sua inaplicabilidade na arbitragem.

Resta agora fazer a abordagem ponto a ponto do instituto da tutela de urgência e sua aplicação na arbitragem.

O fundamento do instituto vem disposto no artigo 294 do Código de Processo Civil, onde é estabelecido que as tutelas provisórias são fundadas em urgência e evidencia e no paragrafo único deste artigo acrescenta que a tutela provisória de urgência pode ser cautelar ou antecipada, além de poderem ser concedidas em caráter antecedente ou incidental.

No atual sistema, as tutelas provisórias são abrangidas no conjunto de tutelas diferenciadas, podendo ser concedidas tanto no processo de conhecimento como no de execução.

 

Quando a tutela for requerida de modo incidental, ou seja, durante o curso de um processo, não há incidência de pagamento de custas judiciais, conforme o disposto no artigo 295 do CPC.

O artigo 296 do Código de Processo Civil trata da hipótese de preservação dos efeitos da tutela, ou seja, a tutela surtirá efeitos enquanto o processo perdurar; porém, a medida pode ser revogada ou modificada a qualquer tempo, isso se dá em razão dos efeitos da medida perdurarem ou não, ou se o que foi amparado puder ser viabilizado de outra forma.

O artigo 297 do CPC dispõe do dever-poder geral de cautela, neste artigo vem disposto que o juiz determinará as medidas que considerar mais adequadas para que a tutela provisória seja efetivada. O parágrafo único desse artigo dispõe a forma pela qual a medida seja efetivada, será observado as regras dispostas para o cumprimento provisório da sentença.

Quando o paragrafo único do artigo 297 do Código de Processo Civil diz que a medida observará as regras do cumprimento provisório da sentença remete a aplicação do artigo 519 do CPC, que regulamenta o cumprimento de sentença.

A decisão que conceder, negar, modificar ou revogar a tutela provisória deve ser motivada pelo juiz que explanará seu convencimento de modo claro e preciso, trata-se do disposto no artigo 298 do CPC, esse dispositivo é desnecessário, pois o dever de motivar as decisões judiciais é consagrada no Constituição federal, artigo 93, inciso IX.

A finalidade da motivação da decisão viabiliza o controle de legalidade da mesma, assim, a parte que pretender poderá ingressar com Agravo de Instrumento, que de forma expressa assim vem preconizado no artigo 1015, inciso I do CPC.

Cabe agora observar o juízo competente para que a medida seja concedida, esta regra se encontra no artigo 299 do CPC.

Tratando-se de tutela provisória requerida em caráter incidental, ou seja, no curso de um processo principal, deverá ser requerida no juízo deste processo; já, quando se tratar de tutela provisória antecedente deverá ser proposta no juízo do processo competente para conhecer o pedido principal.

O paragrafo único do artigo 299 do CPC, traz regra referente a competência originária dos tribunais, deste modo, o postulante deve se ater as regras contidas no regimento interno de cada tribunal, pois trata-se de atos normativos que respeitando o modelo constitucional podem assim ser emanados.

Feitas essas considerações gerais cabe agora fazer a análise pontual sobre a Tutela de Urgência.

O artigo 300 do Código de Processo Civil, traz as disposições gerais acerca da tutela de urgência que será concedida quando for observados os seguintes requisitos: quando houver elementos do fato que evidenciem a probabilidade do direito; e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo.

Trata-se das hipóteses consagradas pelas expressões latinas fumus boni iuris e o periculum in mora. Requerida a medida, o magistrado, tendo em vista os elementos apresentados, se convencer da probabilidade do direitopara concedê-la.

O magistrado pode exigir caução real ou fidejussória, tudo levando em conta caso a caso; a justificativa da exigência da caução é ressarcir eventuais danos que a outra parte possa sofrer quando da concessão da medida, a caução pode ser dispensada se houver provas de que a parte é hipossuficiente, esta regra vem disposta no §1⁰ do artigo 300 do CPC.

Também é disposto no artigo 300 §2⁰, que a tutela pode ser concedida liminarmente ou após justificação prévia, esta medida se justifica nas hipóteses onde não é possível haver a demonstração da urgência mediante prova na própria inicial, devendo se valer desta alternativa para viabilizar a medida.

No artigo 300 §3⁰ do CPC,está disposto um pressuposto negativo para concessão da medida, ou seja, a medida não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão, o dano ou risco do que se pretende evitar ou mesmo minimizar,a análise é feita sob um ponto de vista qualitativo, sendo mais importante para o requerente do que para o requerido a concessão da medida,é uma forma implícita do princípio da proporcionalidade que decorre do sistema Constitucional.

O artigo 301 do CPC dispõe sobre o modo pelo qual a tutela poderá ser efetivada, mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro

de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para assegurar o direito.

Não há referência no direito positivo vigente dessas medidas, a única justificativa seria aspecto histórico, pois as medidas dispostas no artigo vinham consagradas no Código de Processo Civil de 1973 que não mais vigora em nosso ordenamento.

No que diz respeito a responsabilidade do requerente, o caput do artigo 302 do CPC dispõe que, independente da reparação do dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da medida causar a parte adversa, desde que ocorra as hipóteses elencadas nos incisos do artigo 302 do CPC, que são: I, a sentença lhe for desfavorável; no inciso II, se obtida liminarmente a tutela cautelar antecedente, não fornecer meios necessários para a citação do requerido no prazo de cinco dias; inciso III, ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legalmente prevista; inciso IV, o juiz acolher a alegação de prescrição e decadência da pretensão do autor; de acordo como parágrafo único do artigo 302 do CPC, a indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível.

Será tratado, neste momento sobre o procedimento da tutela antecipada requerida em caráter antecedente, que vem disposto no artigo 303 do CPC.

Conforme o disposto no artigo 303 do CPC, quando a urgência for contemporânea à propositura da ação a petição inicial formulada poderá se limitar ao requerimento de tutela antecipada, onde haverá a indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca e do perigo de dano ou do resultado útil equivalente.

Quando a tutela antecipada é concedida, há de se praticar alguns atos assim dispostos, que são: o autor deverá aditar a inicial com a complementação de sua argumentação e a confirmação do pedido de tutela final, tais exigências serão realizadas no prazo de 15 dias ou em outro prazo maior que o juiz fixar, levando-se em conta a complexidade da medida; em seguida o réu será citado e intimado para a audiência de conciliação ou mediação, conforme disposto no artigo 334 do Código de Processo Civil, não havendo autocomposição será iniciado prazo para contestação, que vem disciplinado no artigo 335 do Código de Processo

Civil, essas providencias vem dispostas nos incisos I,II e III do § 1⁰ do artigo 304 do Código de Processo Civil.

A consequência da não realização do aditamentoserá a extinção do processo sem resolução de mérito.

Para esclarecer melhor, o §3⁰ dispõe que o aditamento será realizado nos próprios autos sem que haja eventuais custas processuais.

Quanto ao valor da causa, o autor deverá indicá-lo levando em consideração o pedido final.

No §6⁰ do artigo 303 do CPC estabelece que se o juiz ainda entender que não há elementos para a concessão da medida, determinará que a petição inicial seja emendada no prazo de 5 dias sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito.

Um ponto importante a ser observado é o que diz respeito a estabilização da decisão que conceder a tutela, conforme o disposto no artigo 304 caput, quando não for interposto o respectivo recurso a medita se tornará estável; vale ressaltar que não é somente o recurso respectivo e sim qualquer manifestação do réu seja necessária para evitar a estabilização, esse é um entendimento mais racional, pois o inconformismo do réu pode ser emanado não somente com o respectivo recurso, mas com outras medidas idôneas.

O § 2⁰ do artigo 304 do Código de Processo Civil, estabelece que qualquer das partes poderá demandar a outra com o intuito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada; porém esse direito poderá ser exercido somente no prazo de dois anos, contado da ciência da decisão que extinguiu o processo, assim vem disposto no artigo 304 §5⁰do CPC.

Resta agora tratar do procedimento da tutela cautelar requerida em caráter antecedente, que vem disposta no artigo 305 do Código de Processo Civil.

Na petição inicial, cujo fundamento é almejar uma tutela cautelar antecedente o autor deve indicar a lide e seu fundamento, a exposição de modo sumaria do direito que se objetiva assegurar e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo.

O parágrafo único do artigo 305, do Código de Processo Civil, o juiz poderá conceder tutela antecipada ao invés de cautelar se assim entender e o contexto levar a esse entendimento, trata-se da aplicação do princípio da fungibilidade das medidas.

Após, o réu será citado para contestar o pedido e produzir provas, no prazo de cinco dias, assim vem disposto no artigo 306 do CPC.

Além disso, o artigo 307 do CPC prevê que, caso não seja contestado o pedido, todos os fatos alegados pelo autor presumir-se-ão verdadeiros tendo como consequência o juiz decidir no prazo de cinco dias, no entanto, sendo este contestado seguirá o procedimento comum, conforme previsto parágrafo único do artigo 307 do Código de Processo Civil.

Importante disposição sobre o procedimento está contido no artigo 308 do Código de Processo Civil, quando efetivada a tutela cautelar, o pedido principal terá de ser formulado pelo autor dentro do prazo de 30 dias, sendo este apresentado nos mesmos autos em que o pedido cautelar fora proposto e não dependendo o adiantamento de novas provas de custas processuais; nos parágrafos deste artigo continua sendo estabelecido os critérios a serem seguidos que são: §1⁰, o pedido principal deve ser formulado conjuntamente com o pedido cautelar; o §2⁰, em continuação, após apresentado o pedido poderá o mesmo ser aditado no momento da formulação do pedido principal; o §3⁰, por sua vez , dispõe que apresentado o pedido principal, as partes serão intimadas para a audiência de conciliação ou de mediação, a intimação será feita por seus advogados ou pessoalmente, sem que haja necessidade de nova citação do réu, conforme o disposto no artigo 334 do Código de Processo Civil.

Não havendo autocomposição, o prazo para contestação será aquele constante do artigo 335 do código de processo civil.

O artigo 309 do código de Processo Civil, prevê as hipóteses em que é cessada a eficácia da medida cautelar antecedente que se procede na forma disposta nos incisos I, II e III, primeiramente, se o autor não deduzir o pedido principal no prazo legal; a outra hipótese ocorre quando a medida não é efetivada dentro do prazo de 30 dias; e finalmente, se o juiz julgar improcedente o pedido principal que fora formulado pelo autor ou se extinguir o processo sem resolução do mérito; o parágrafo único traz

importante hipótese sobre a cessação da medida, se por qualquer motivo a tutela cautelar tiver cessado seus efeitos, será vedado a parte renovar o pedido, salvo se houver novo fundamento.

E finalmente, o disposto no artigo 310 do CPC dispõe que, ocorrendo o indeferimento da tutela cautelar, não será obstado o direito do autor formular o pedido principal, nem essa ocorrência influenciará no julgamentodeste, salvo se o motivo do indeferimento for a prescrição ou a decadência.

Feitas todas essas considerações sobre as tutelas provisórias, vale ressaltar que o presente estudo não tem por finalidade esgotar o tema, pois fora feito um apanhado geral sobre o instituto em razão do objeto do estudo; agora será trazido os apontamentos sobre a possibilidade de aplicação da tutela cautelar e de urgência no procedimento arbitral, previsto na lei 9.307/96, que fora alterada pela lei 13.129/15, acrescentando àquela os artigos 22-A e 22-B.

 

TUTELAS CAUTELARES E DE URGÊNCIA NA ARBITRAGEM

 

A lei 13.129 de 2015 trouxe inovações no procedimento arbitral, lei 9.307/96, acrescentando os artigos 22-A e 22-B nesta, esse acréscimo implementou a possibilidade de ser concedida tutela cautelar e de urgência na arbitragem.

Importante dispositivo vem descrito no artigo 22-A da lei de arbitragem, onde antes de ser instituída a arbitragem, as partes para que seja concedida tutela cautelar e de urgência, devem se dirigir ao judiciário para que a medida seja efetivada.

Isso se dá pelo caráter não jurisdicional atribuído à arbitragem, levando-se em consideração definições clássicas para definir jurisdição. Para se definir jurisdição leva-se em conta o conceito desenvolvido por três grandes expoentes: Allorio, Carnelutti e Chiovenda.

De acordo com o entendimento do primeiro autor, Allorio, para se haver jurisdição deve ter coisa julgada, e na arbitragem não há de se falar em coisa julgada mesmo que a sentença arbitral seja dotada de

estabilidade, mas esta estabilidade não se compara a coisa julgada que é mais estável.

Justifica-se o entendimento, pois, conforme disposto nos artigos 31 a 33 da lei 9.307/96, dentro de certas circunstâncias matérias discutidas no procedimento arbitral são levadas a juízo, com efeito, essas decisões não podem ser equiparadas a coisa julgada, assim, não havendo jurisdição, pois para que esta exista deve haver coisa julgada.

Para Carnelutti, a jurisdição é atrelada a atividade estatal, somente o Estado pode atribuir certeza aquilo que está sendo posto em litígio, essa certeza tem por fundamento o justo, que é emanado através do Estado juiz.

Para Chiovenda a jurisdição se dá pela atuação da vontade concreta da lei, que é materializada pela vontade estatal, o Estado tem o caráter de substituir a vontade das partes para buscar a pacificação social, esta pacificação se dá com a emanação da vontade da lei.

Todavia, a arbitragem pode ser realizada conforme os ditames da lei ou de acordo com critérios voltados a equidade, podendo até mesmo as partes escolheres os critérios para que a decisão seja tomada. Mas mesmo assim não há de se atribuir atividade jurisdicional a arbitragem, pois a realização do direito estatal é mínima neste procedimento.

Frente ao exposto, conclui-se que a atividade arbitral não é dotada de jurisdição, de acordo com as teorias adotadas, no entanto, como ferramenta útil para solução de litígios, não podendo se furtar de observar princípios inerentes a atividade jurisdicional, como o devido processo legal.

No que diz respeito ao disposto no artigo 22-B da lei de Arbitragem, também trazido pela lei 13.129 de 2015, os árbitros podem manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário, pois a sua concessão, por motivos acima expostos, no que diz respeito a natureza não jurisdicional da arbitragem, somente pode ser feita pelo Judiciário. Nesse caso as partes entregam ao arbitro a capacidade de solucionar o litígio, desde que preenchidos os requisitos para tanto.

Feitas as observações sobre a mudança na legislação de arbitragem advindas pela lei 13.129/15, que teve como escopo acrescentar a

dinâmica de efetivação das tutelas cautelares e de urgência no procedimento arbitral, cabe agora tecer alguns comentários sobre o diálogo existente entre a arbitragem e o Código de Processo Civil na aplicação dessas medidas.

 

DIÁLOGO DE FONTES ENTRE A ARBITRGEM E O DIREITO PROCESSUAL CIVIL

 

A teoria do diálogo das fontes desenvolvida pelo jurista alemão Erik Jayme, traduzida pela professora Cláudia Lima Marques, que tem grande aplicabilidade no ordenamento jurídico brasileiro.

A justificativa para aplicação da teoria do diálogo das fontes em nosso ordenamento jurídico se dá em razão do imenso número de leis existentes, servindo ela como um mecanismo norteador na efetivação de determinados institutos.

Para o jurista Erik Jayme, com o pluralismo jurídico surge a multiplicidade de fontes, servindo como instrumento para materialização dos direitos humanos, desse modo a multiplicidade de fontes contidas no ordenamento jurídico em razão das diversas legislações emanadas surgem como instrumento para combinação dessas fontes para regulamentar um determinado instituto.

Desse modo, utiliza-se dois institutos jurídicos para regulamentar um mesmo fato, buscando-se assim a pacificação social e a efetividade de determinado fim, tendo como resultado assegurar os direitos humanos.

O novo Código de Processo Civil intensificou a aplicação da teoria, em razão de ter adotado um sistema aberto e constitucionalizado, viabilizando o diálogo entre os institutos.

Como pode ser visto, a teoria do diálogo das fontes é o instrumento contido no ordenamento que justifica a efetividade das cautelares e de urgência na arbitragem, pois a lei de arbitragem prevê a aplicação do instituto e o Código de Processo Civil instrumentaliza dispondo das regras para a efetivação da medida na arbitragem.

 

CONCLUSÃO

 

O presente trabalho teve como finalidade fazer uma breve análise nas tutelas provisórias contidas no Código de Processo Civil vigente, foi feito um breve comentário ponto a ponto nos dispositivos legais de forma abrangente, não foi abordada a análise da tutela de evidência, pois não tem previsão de aplicabilidade no procedimento arbitral.

Em seguida foi feito uma análise dos dispositivos legais contidos na lei de arbitragem que tratam das tutelas cautelares e de urgência na arbitragem, além de abordar as alterações trazidas pela lei 13.129/2015 que acrescentou os artigos 22-A e 22-B na lei de Arbitragem.

Por último, o trabalho abordou sobre a teoria do diálogo das fontes e a comunicação existente entre a lei de arbitragem e o código de Processo Civil, cuja finalidade é tornar o instituto eficaz e útil para que as medidas sejam materializadas no sistema almejando assim a pacificação social.

 

BIBLIOGRAFIA

BUENO, Cassio Scarpinella, Novo Curso de Processo Civil Anotado, 2⁰ Ed. São Paulo: Saraiva. 2016 p 262.

MARINONI, Luiz Guilherme, Novo Curso de Processo Civil: tutela de direitos mediante procedimentos diferenciados, Volume 3 São Paulo, revista dos tribunais, 2015, p 462.

CARNELUTTI, Francesco, Instituições do Processo Civil, trad. Adrian Sotero de Witt Batista. Campinas: Servanda, 1999, volume 1

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Trad. Guimaraes Manegale. São Paulo: Saraiva, 1942. Vol 1.

MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIM, Antonio Herman de V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 2004.

TARTUCE, Flávio, Direito Civil, lei de introdução e Parte Geral, vol. 1, 15 ed. Rio de Janeiro, 2019, p. 170.

 

 

 

William Pereira dos Santos Júnior.

Advogado, Pós-Graduado em Direito Público, Pós -Graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil; especialista em Planejamento Patrimonial Familiar e em Planejamento Tributário, Contratos e Arbitragem.