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Estado terá que pagar 150 salários mínimos a mulher de detento morto

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DECISÃO:  TJ-MT – O Estado de Mato Grosso foi condenado a pagar 150 salários mínimos (R$ 57 mil) a título de indenização por danos morais à esposa de um detento morto enquanto cumpria pena no Presídio do Pascoal Ramos. Além disso, o juiz Márcio Aparecido Guedes, da 2ª Vara Especializada da Fazenda Pública de Cuiabá, que proferiu a sentença, condenou o Estado a pagar pensão mensal correspondente a 1,5 salário mínimo à filha da vítima até quando a criança atingir a maioridade.  

A menor nasceu em 16 de janeiro de 2004, poucas horas após a mãe ter tido a notícia de que o marido havia sido assassinado no presídio. O valor pretérito da pensão deverá ser corrigido monetariamente, acrescido de juros de mora de 1% ao mês a partir da citação. A quantia de 150 salários mínimos deverá ser paga de uma só vez. A sentença foi proferida nesta segunda-feira (30 de julho).  

A mulher do detento ingressou com ação de indenização por danos materiais e morais concomitante com pedido de tutela antecipada contra o do Estado. Na inicial, ela alegou que mantinha convivência duradoura, pública e contínua com a vítima, com quem tinha objetivo de constituir família. Contudo, em 16 de janeiro de 2004, seu companheiro morreu no Pascoal Ramos em decorrência de traumatismo crânio encefálico provocado por instrumento perfuro cortante. Recluso, ele estava sob a custódia do Estado. Na época do falecimento, a mulher estava grávida de nove meses e veio a dar a luz poucas horas depois de ficar sabendo da morte do marido. 

Apesar de não ser casado, o casal possuía certidão declaratória de união estável expedida pela 4ª Vara Especializada de Família e Sucessões. Eles permaneceram juntos de 1998 a 2004, data em que o detento foi assassinado.  

Segundo o juiz Márcio Aparecido Guedes, as "Regras Mínimas de Tratamento do Preso", definidas pelo Conselho da ONU e com vigência no ordenamento jurídico brasileiro, têm sido claramente desconsideradas na prática. Na decisão, o juiz frisou o artigo 37 da Constituição da República, que consagra a teoria da responsabilidade objetiva do Estado. Conforme o artigo, "a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". 

De acordo com o magistrado, a Constituição Federal assegura aos presos o respeito à integridade física e moral. "Diante do homicídio ocorrido nas dependências da Unidade Prisional do Pascoal Ramos em Cuiabá/MT, constata-se a ocorrência de falha na vigília dos responsáveis pela segurança da penitenciária, que resultou na morte da vítima, a caracterizar a responsabilidade do Estado na reparação do dano causado dela decorrente (…) A vítima, estando cumprindo pena que lhe foi imposta, estava sob a custódia do Estado de Mato Grosso, que deveria assegurar-lhe a integridade física (…) Acresça-se que, se um preso se fere, agride, mutila ou mata outro detento, o Estado deve responder objetivamente pelo dano, já que cada detento está sujeito a situações de risco, inerente e próprio do ambiente carcerário", afirmou.

Eis a íntegra da decisão judicial:

 

30/07/2007

Comarca : Cuiabá Cível – Lotação : SEGUNDA VARA ESPECIALIZADA DA FAZENDA PÚBLICA

Juiz : Márcio Aparecido Guedes

 Vistos e etc…,

 M. M. C. S., qualificada nos autos, ingressou neste juízo com a presente Ação Indenização por Danos Materiais e Morais c/c Pedido de Tutela Antecipada, em face do ESTADO DE MATO GROSSO, buscando com a antecipação dos efeitos da tutela, “determinar ao Estado que pague desde já a pensão alimentícia por morte no valor correspondente a 1,5 (um e meio) salário mínimo por mês por cerca de 42 anos”, alegando, em síntese, que: 

-Era companheira de J. C. R. G., que mantinham uma convivência duradoura, pública e contínua, com o objetivo de constituir familiar. 

-Seu companheiro J. C. faleceu em 16/01/2004, em decorrência de traumatismo crânio encefálico, provocado por instrumento perfuro contundente e perfuro cortante, quando estava recluso na Unidade Prisional Regional Pascoal Ramos (Cuiabá/MT), estando sob à custódia do Estado de Mato Grosso. 

-À época do falecimento de seu companheiro, estava grávida de 09 (nove) meses, vindo a dar a luz poucas horas depois de tomar conhecimento da morte de Júlio César. 

-A morte de seu companheiro ocorreu pela exclusiva ineficiência, despreparo, desorganização e falta de coordenação do aparato policial do Estado. 

Assim, a Requerente busca por meio desta ação, a condenação do Requerido ao pagamento de: R$ 5.000,00 (cinco mil reais) atualizados a título de despesas com funeral e enterro de J. C. R. G., devidamente corrigidos, bem como ao pagamento de 1,5 (um e meio) salário mínimo por mês durante 42 (quarenta e dois) anos para a Requerente e sua filha menor a título de pensão alimentícia por morte e ainda a condenação do Requerido ao pagamento de danos morais a título de compensação pelo sofrimento experimentado pela morte do companheiro, a serem arbitrados pelo Juízo, levando-se em consideração as condições sócio-econômicas da vítima e seus familiares e a possibilidade do ofensor.  

Com a inicial, vieram acostados os documentos de fls.15/32.

O Requerido contestou (fls.37/69), argüindo preliminar de ilegitimidade ativa, em razão de não constar nos autos quaisquer documentos que comprovem a suposta relação de companheirismo existente entre ela e o ‘de cujus’ e, muito menos, se a sua filha tem como o pai o falecido, pleiteando a extinção do feito nos moldes do artigo 267, V, do CPC e caso rechada, sejam os pedidos julgados inteiramente improcedentes pela não ausência de nexo causal.

Às fls.310/319,  Requerente requereu a suspensão do tramite processual nos moldes do artigo 265, IV, “a”, do CPC impugnou a contestação, pedido deferido à fl.333.

A Requerente à fl.334 requereu a juntada da certidão expedida pela 4ª Vara Especializada de Família e Sucessões, dando conta de que a Ação Declaratória de União Estável ajuizada pela Requerente fora julgada procedente, reconhecendo deste modo, como tal a união mantida entre a Requerente e J. C. R. G., requerendo que o tramite processual do presente feito, retorne a sua normalidade.

A liminar foi indeferida (fls.336/338).

O representante do Ministério Público em parecer de fls.342/343, concluiu não evidenciou a presença de interesse público que justifique sua atuação nos autos.

EM SÍNTESE, É O RELATÓRIO.

DECIDO.

I – DA PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA

A preliminar argüida pelo Requerido não merece prosperar, vez que à fl.335 dos autos consta Certidão expedida pela 4ª Vara Especializada da Fazenda Pública assegurando que em 06/02/2007 o Juiz de Direito homologou por sentença a Ação Declaratória, declarando a existência de união estável entre a Requerente M. M. C. S. e o falecido J. C. R. G., desde 1998 até a data de sua falecimento (16/01/2004), para todos os efeitos legais.

Dessa forma, a Requerente M. M. C. S. é parte ativa legítima para figurar na presente ação, conseqüentemente, rejeito a preliminar de ilegitimidade ativa argüida pelo Requerido.

II – DO MÉRITO

Trata-se de Ação Indenizatória na qual a Requerente pretende seja o Estado de Mato Grosso condenado ao ressarcimento por danos materiais e morais, em decorrência do assassinato de seu companheiro, ocorrido em 16.01.2004, quando cumpria pena em Unidade Prisional do Estado de Mato Grosso.

Os fatos aqui narrados demonstram o resultado de um sistema penitenciário falido, evidenciando total descaso do governo quanto à política criminal. Pode-se dizer que nada, ou quase nada, se tem feito. Prisões abarrotadas, imundas, que em vez de recuperar o detento, pervertem e degradam definitivamente os recuperáveis.

Casos como o presente não são raros, e muitos ainda surgirão, antes que a situação seja resolvida, se é que isso ocorrerá, havendo várias decisões de nossos Tribunais no sentido de reconhecer a culpa objetiva do Estado.

Ressalte-se que as "Regras Mínimas de Tratamento do Preso", definidas pelo Conselho da ONU, e com vigência no ordenamento jurídico brasileiro, têm sido, na prática, claramente desconsideradas.

Dispõe a Carta da República, consagrando a teoria da responsabilidade objetiva do Estado:

"Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

§ 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa."

Sobre a responsabilidade do Poder Público, ensina Hely Lopes Meirelles ("in" Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros Editores, 27ª ed., 2002, p. 624):

"Por isso, incide a responsabilidade civil objetiva quando a Administração Pública assume o compromisso de velar pela integridade física da pessoa e esta vem a sofrer um dano decorrente da omissão do agente público naquela vigilância. Assim, alunos da rede oficial de ensino, pessoas internadas em hospitais públicos ou detentos, caso sofram algum dano quando esteja sob a guarda imediata do Poder Público, têm direito à indenização, salvo se ficar comprovada a ocorrência de alguma causa excludente daquela responsabilidade estatal.".

E prossegue:

"O que a Constituição distingue é o dano causado pelos agentes da Administração (servidores) dos danos ocasionados por atos de terceiros, ou por fenômenos da Natureza. Observe-se que o art. 37, § 6º, só atribui responsabilidade objetiva à Administração pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causem a terceiros. Portanto, o legislador constituinte só cobriu o risco administrativo da atuação ou inação dos servidores públicos;" (ob.cit. p. 624).

Outro não é o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello ("in" Ato administrativo e direito dos administrados, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1981, p. 150):

"O caso mais comum, embora não único, é o que deriva da guarda, pelo Estado, de pessoas ou coisas perigosas, em face do que o Poder Público expõe terceiros a risco. Serve de exemplo, o assassinato de um presidiário por outro presidiário".

Discorrendo sobre a obrigação do Estado de zelar pela incolumidade do preso, ensina Cretella Júnior ("in" O Estado e a Obrigação de Indenizar, ed. Saraiva, 1980, p. 251/252):

"Pessoas recolhidas a prisões comuns ou a quaisquer recintos sob a tutela do Estado têm o direito subjetivo público à proteção dos órgãos públicos, cujo poder de polícia se exercerá para resguardá-las contra qualquer tipo de agressão, quer dos próprios companheiros, quer dos policiais, quer ainda de pessoas de fora, que podem, iludindo a vigilância dos guardas, ocasionar danos aos presos. (…). Como já vimos, a polícia pode agir ou deixar de agir, ocorrendo da ação ou omissão danos aos recolhidos em estabelecimentos sob a guarda do Estado".

Esse direito encontra-se consubstanciado na Constituição Federal:

"Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XLIX  é assegurado aos presos o respeito á integridade física e moral;

Na lição de José de Aguiar Dias ("in" Rui Stoco, ob. cit. p. 278):

"O fundamento primário da responsabilidade civil é o princípio da restituição, isto é, a contemplação da manutenção, do equilíbrio social, que se afere de acordo com a ordem jurídico- política vigente: é esse o sentido em que deve ser entendida a responsabilidade civil do Estado. Vem, ela a ser, pois, a obrigação, a cargo do Poder Público, de reparar o dano por ele causado, restabelecendo, por meio de indenização adequada o equilíbrio econômico rompido pelo prejuízo."

Para Yussef Said Cahali ("in" Responsabilidade Civil do Estado, Malheiros Editores, São Paulo, 1996, p. 504):

"Na realidade, a partir da detenção do indivíduo, este é posto sob a guarda e responsabilidade das autoridades policiais, que se obrigam pelas medidas tendentes à preservação de sua integridade corporal, protegendo-se de eventuais violências que possam contra ele serem praticadas, seja da parte dos agentes públicos, seja da parte de outros detentos, seja igualmente, da parte de estranhos. A pessoa detida para simples averiguação, preso em virtude de sentença condenatória ou preventivamente no curso do processo criminal ou, mesmo simplesmente perseguida por suspeita de prática de infração não é destituída do seu direito inalienável à integridade física ou moral, cuja preservação e tutela cabem às autoridades policiais."

É fato incontroverso que, no dia 16.01.2004, o companheiro da Requerente cumpria pena no Presídio do Pascoal Ramos (Cuiabá/MT), onde foi assassinado. Constando nos autos, que a morte de J. C. se deu por TCE, I. CORTO CONTUNDENTE (fl.26).

Diante do homicídio ocorrido nas dependências da Unidade Prisional do Pascoal Ramos em Cuiabá/MT, constata-se a ocorrência de falha na vigília dos responsáveis pela segurança da penitenciária, que resultou na morte da vítima, a caracterizar a responsabilidade do Estado na reparação do dano causado dela decorrente.

É que, "incumbe ao Estado cuidar da incolumidade dos presos. Os danos por estes sofridos nas prisões devem ser indenizados pela Fazenda do Estado, independentemente do exame da culpa dos servidores" (TJSP ¿ RT 556/66).

A vítima, estando cumprindo pena que lhe foi imposta, estava sob a custódia do Estado de Mato Grosso, que deveria assegurar-lhe a integridade física, evidenciando-se o nexo causal entre a atividade estatal e o evento danoso, sendo devida a indenização, nos termos do art. 1.547 do Código Civil c/c art. 37, § 6º, da Constituição Federal.

"Na ação de ressarcimento com fundamento na responsabilidade objetiva prevista no art. 107 da Carta Magna (atual art. 37, § 6º) basta ao autor a demonstração do nexo etiológico entre o fato lesivo (comissivo ou omissivo) imputável à Administração Pública e o dano de que se queixa. Presumida a culpa do agente, opera-se a inversão do ônus probatórios com vistas à eventual exclusão de responsabilidade, cabendo, por isso, à entidade pública provar que o evento danoso ocorreu por culpa exclusiva da vítima" (in RT 567/106).

Nos termos do art. 333, inciso II, do CPC, cabia ao Requerido demonstrar os fatos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito da Requerente, o que não foi levado a efeito.

Acresça-se que, se um preso se fere, agride, mutila ou mata outro detento, o Estado deve responder objetivamente pelo dano, já que cada detento está sujeito a situações de risco, inerente e próprio do ambiente carcerário.

A propósito:

"Na ação de ressarcimento com fundamento na responsabilidade objetiva prevista no art. 107 da Carta Magna (atual art. 37, § 6º) basta ao autor a demonstração do nexo etiológico entre o fato lesivo (comissivo ou omissivo) imputável à Administração Pública e o dano de que se queixa. Presumida a culpa do agente, opera-se a inversão do ônus probatórios com vistas à eventual exclusão de responsabilidade, cabendo, por isso, à entidade pública provar que o evento danoso ocorreu por culpa exclusiva da vítima" (RT 567/106).

É de julgar-se procedente, pois, a pretensão da Requerente, é que o Estado de Mato Grosso seja condenado a indenizá-la  pela morte do filho que se encontrava preso sob ordem do Estado.

Neste sentido é o entendimento pacífico na jurisprudência pátria:

"RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – MORTE DE DETENTO. O ordenamento constitucional vigente assegura ao preso a integridade física (C.F. art. 5º, XLIX) sendo dever do Estado garantir a vida de seus detentos, mantendo, para isso, vigilância constante e eficiente. Assassinado o preso por colega de cela quando cumpria pena por homicídio qualificado responde o EstadoCIVILmente pelo evento danoso, independentemente da culpa do agente público. Recurso Improvido." (STJ-1ª Turma, Resp 5711/RJ, Rel. Min. Garcia Vieira, v.u., DJU de 22/04/91, pg. 04771).

Na seqüência, definida a culpa grave do Requerido, pela morte do filho da Requerente nas dependências da Unidade Prisional do Pascoal Ramos, passo a julgar os pedidos das verbas indenizatórias e fixar seus valores, condenando o Requerido.

DA INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS

a) Pensão Mensal

A menor A. B. S. S., é filha da Requerente, nascida em 17/01/02004, durante a união estável com J. C.. Assim, entendo que como o Estado de Mato Grosso é o responsável pela morte de J. C. R. G. ocorrida nas dependências do Presídio do Pascoal Ramos, cabe ao Requerido Estado de Mato Grosso arcar com pensão mensal para a Requerente e sua filha menor, que fixo em 1,5 (um e meio) salário mínimo mensal, até que a menor atinja a maioridade.

b) Indenização por gastos com remoção e sepultamento da vítima

Indefiro o pedido de indenização com despesas com funeral e enterro, visto que a Requerente não trouxe aos autos provas referentes a tais despesas.

II – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS

A indenização por danos morais, aferível até mesmo a partir do art. 159 do Código Civil, integra-se na previsão legal, já que não discrimina tipos de dano. Questão tormentosa por vários anos, foi defendida por expoentes da nossa cultura jurídica: Aguiar Dias ("Da Responsabilidade Civil", vol. II, p. 339/400), Wilson Melo da Silva ("Da Responsabilidade Civil Automobilística", p. 305/321 E "O Dano Moral esua Reparação", ed. Forense), Pontes de Miranda ("Tratado de Direito Privado, vol. 22, p. 216/219, § 2.723).

O dano moral, no Brasil, mesmo "de lege data", é ressarcível. Basta para tanto a análise do art. 159 do Código Civil que, ao referir-se à indenização por danos causados a outrem, não faz qualquer discriminação quanto aos materiais e morais. Outros dispositivos legais também fazem menção ao ressarcimento por dano moral, como o art. 1.543, quando se refere ao valor de afeição; no art. 1.547, quando determina a indenização em caso de injúria, mesmo em circunstâncias onde não se possa provar o prejuízo material e outros (art. 1.548 e 1.538 do Código Civil). Portanto, a legislação civil brasileira, de longa data, permite tanto o ressarcimento do dano material quanto o moral.

Segundo o magistério de Caio Mário da Silva Pereira (in Responsabilidade Civil, ed. Forense, Rio, 3ª ed. 1992, p.58):

"O argumento baseado na ausência de um princípio geral desaparece. e, assim, a reparação do dano moral integra-se definitivamente em nosso direito positivo", acrescentando que, "com duas disposições contidas na Constituição Federal de 1988, o princípio da reparação do dano moral encontra o batismo que a inseriu em a canonicidade de nosso direito positivo. Agora, pela palavra mais firme e mais alta da norma constitucional, tornou-se princípio de natureza cogente o que estabelece a reparação por dano moral em nosso direito, obrigatório para o legislador e para o Juiz".

Consagrado o princípio da reparação do dano moral, sua indenizabilidade, "que ainda gera alguma polêmica na jurisprudência, ganha foros de constitucionalidade. Elimina-se o materialismo exagerado de só se considerar objeto do Direito das Obrigações o dano patrimonial" (in HUMBERTO THEODORO JÚNIOR; Alguns impactos da nova ordem constitucional sobre o Direito Civil, RT 662/8).

Danos morais, segundo a definição do insigne mestre Wilson Mello da Silva, autor de um dos melhores trabalhos sobre o assunto na literatura jurídica brasileira, "são lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoa natural de direito em seu patrimônio ideal, entendendo-se por patrimônio ideal, em contraposição a patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico"(in O Dano Moral e sua reparação – 2ª ed., Forense – p. 13).

E continua afirmando que:

"o patrimônio moral decorre dos bens da alma e os danos que dele se originam seriam, singelamente, danos da alma, para usar da expressão do evangelista São Mateus, lembrada por Fischer e reproduzida por Aguiar Dias".

Tratando-se de dano moral, o conceito de ressarcimento abrange duas forças: uma de caráter punitivo, visando a castigar o causador do dano, pela ofensa que praticou; outra, de caráter compensatório, que proporcionará à vítima algum bem em contrapartida ao mal sofrido.

O exame dos autos mostra que, o companheiro da Requerente foi morto nas dependências do Presídio do Pascoal Ramos quando onde cumpria pena.

Não resta dúvida de que a morte prematura de um companheiro, com toda uma vida pela frente, causa sofrimento incomensurável à sua companheira que realmente se preocupa com sua vida.

Em sede de indenização por danos morais, a questão da prova se apresenta de forma simples, quando se trata de demonstrar o prejuízo. Ao prejudicado cumpre provar o dano.

Segundo o magistério de Aguiar Dias ("in" Da Responsabilidade Civil, 6ª ed. 1979, v. l, p. 93/94):

"O que o prejudicado deve provar, na ação, e o dano, sem consideração ao seu ‘quantum’, que é matéria da liquidação. Não basta, todavia, que o autor mostre que o fato de que se queixa, na ação, seja capaz de produzir dano, seja de natureza prejudicial. é preciso que prove o dano concreto, assim entendida a realidade do dano que experimentou, relegando para a liquidação a avaliação do seu montante".

Ainda segundo o renomado jurista:

"O prejuízo deve ser certo. é a regra essencial da reparação. Com isso, se estabelece que o dano hipotético não justifica a reparação". ("Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro", vol. 14/221 – Carvalho Santos e colaboradores).

Por danos morais compreendem-se as ofensas aos direitos da personalidade, da pessoa sobre ela mesma e, por isso mesmo, insuscetíveis de serem avaliados em termos monetários.

Esse é o entendimento jurisprudencial:

"No plano moral não basta o fator em si do acontecimento, mas, sim, a prova de sua repercussão, prejudicialmente moral" (TJSP – 7ª C – Ap. Rel. Benini Cabral, j. 11/11/92 – "in" JTJ-LEX 143/89).

"In casu", o dano moral e sua reparação são inegáveis, em razão do abalo e do sofrimento causados à Requerente pela morte prematura de seu companheiro.

O dano moral, sem reflexo patrimonial, é presumido, porque impossível de ser provado. Surge em decorrência da ofensa e dela é presumido. é o que basta justificar a indenização.

Esse é o entendimento jurisprudencial:

"Dano moral puro. Caracterização.

Sobrevindo, em razão do ato ilícito, perturbação nas relações psíquicas, na tranqüilidade, nos sentimentos e nos afetos de uma pessoa, configura-se o dano moral, passível de indenização"(STJ, 4ª T, REsp.8768/SP, Rel. Barros Monteiro, j. 18/02/92, RSTJ 34/235.

No tocante ao "quantum" da indenização, em se tratando de dano moral, o conceito de ressarcimento abrange duas forças: uma de caráter punitivo, visando castigar o causador do dano, pela ofensa que praticou; outra, de caráter compensatório, que proporcionará à vítima algum bem em contrapartida ao mal sofrido.

Oportuno lembrar a lição de Maria Helena Diniz ("in" Curso de Direito Civil Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1990, v. 7 – "Responsabilidade Civil", 5ª ed., p. 78/79):

"A fixação do quantum competirá ao prudente arbítrio do magistrado de acordo com o estabelecido em lei, e nos casos de dano moral não contemplado legalmente a reparação correspondente será fixada por arbitramento (CC, art. 1553, RTJ, 69: 276, 67: 277). Arbitramento é o exame pericial tendo em vista determinar o valor do bem, ou da obrigação, a ele ligado, muito comum na indenização dos danos. é de competência jurisdicional o estabelecimento do modo como o lesante deve reparar o dano moral, baseado em critério subjetivos (posição social ou política do ofendido, intensidade do ânimo de ofender: culpa dou dolo) ou objetivos (situação econômica do ofensor, risco criado, gravidade e repercussão da ofensa). Na avaliação do dano moral o órgão judicante deverá estabelecer uma reparação equitativa, baseada na culpa do agente, na extensão do prejuízo causado e na capacidade econômica do responsável. Na reparação do dano moral o juiz determina, por eqüidade, levando em conta as circunstâncias de cada caso, o quantum da indenização, devida, que deverá corresponder à lesão e não ser equivalente, por ser impossível tal equivalência".

Na fixação da indenização por danos morais, prevalecerá o prudente arbítrio do julgador, levando em consideração as circunstâncias do caso, evitando que a condenação represente captação de vantagem.

Sobre essa valoração, vale lembrar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

"O valor da indenização por dano moral sujeita-se ao controle do Superior Tribunal de Justiça, sendo certo que, na fixação da indenização a esse título, recomendável que o arbitramento seja feito com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa, ao nível sócio-econômico dos autores e, ainda, ao porte econômico dos réus, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência, com razoabilidade, valendo- se de sua experiência e do bom senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso.

Assim, considero razoável arbitrar a título de danos morais o valor correspondente a 150 (cento e cinqüenta) salários mínimos.

EX POSITIS, e por tudo o mais que dos autos consta e princípios de direito aplicáveis à espécie JULGO PROCEDENTE a ação proposta por M. M. C. S. em desfavor do ESTADO DE MATO GROSSO, para condenar o Requerido no pagamento de indenização à Autora, a título de danos morais, no valor de uma parcela única correspondente a 150 (cento e cinqüenta) salários mínimos; bem como a título de danos materiais – pensão mensal – para a Requerente e sua filha menor, que fixo em 1,5 (um e meio) salário mínimo mensal, até que a menor A. B. S. S. atinja a maioridade, iniciando o pagamento à partir de 16.01.2004, sendo que o valor pretérito será corrigido monetariamente, acrescido de juros de mora de 1% ao mês, estes devido à partir da citação.

Condeno, ainda, no pagamento dos honorários advocatícios, que arbitro em R$=2.500,00 (dois mil e quinhentos reais).

A presente sentença, de acordo com o disposto no art. 475 do C.P.C, está sujeita ao duplo grau de jurisdição. Assim, havendo ou não recurso voluntário, subam os autos ao Egrégio Tribunal de Justiça.

PUBLIQUE-SE.

REGISTRE-SE.

INTIME-SE.

CUMPRA-SE.


FONTE: TJ-MT, 31 de julho de 2007

A Nova Lei de Drogas e seus reflexos na Execução Penal

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* Renato Marcão   

Sumário: 1. Introdução; 2. A competência do Juízo das Execuções; 3. Sobre o art. 28 da Lei n. 11.343/2006; 3.1. Art. 28, caput; 3.2. Art. 28, § 1º; 4. Sobre o art. 33 da Lei n. 11.343/2006; 4.1. Art. 33, § 1º, III; 4.2. Art. 33, § 2º; 4.3. Art. 33, § 3º; 4.4. Art. 33, § 4º; 5. Contribuição para o uso ou tráfico de droga; 6. Colaboração como informante; 7. Causas de aumento de pena; 7.1. Art. 40, III, da Lei n. 11.343/2006; 7.2. Art. 40, VI, da Lei n. 11.343/2006; 8. O art. 17 da Lei n. 6.368/76. 9. Conclusão.

 


1.  Introdução            A Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, denominada “Nova Lei de Drogas”, entrou em vigor no dia 8 de outubro de 2006 e instituiu mudanças sensíveis na normatização das questões a que se refere.

 

            O novo Diploma legal, apesar de estar permeado de imperfeições e suscitar várias discussões evitáveis, em sua maior parte é virtuoso, e, sem sombra de dúvida, uma de suas maiores virtudes consiste em resolver a celeuma criada com a vigência simultânea das Leis n. 6.368/76 e 10.409/2002, pois, desde 28 de fevereiro de 2002, quando esta entrou em vigor, houve total rompimento com o princípio da segurança jurídica, sendo conhecida de todos a discussão que se estabeleceu a respeito da aplicação dos dispositivos nela contidos, saindo vencedora no Supremo Tribunal Federal a posição que sempre sustentamos.[1] A questão está resolvida com a vigência da Nova Lei de Drogas, que em seu art. 75 revogou expressamente aquelas duas leis.

            Muito já se disse a respeito da política de redução de danos adotada com a Nova Lei, e também sobre o novo tratamento normativo dispensado àquele que “portar ou plantar droga para consumo pessoal”, considerando as disposições do art. 28, caput e §§, da Nova Lei.

            De igual maneira, muito se disse a respeito das novas figuras penais inseridas no texto normativo, notadamente a respeito das regras contidas no art. 36, que cuida do crime de financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 da Lei.

            Por outro vértice, pouco ou quase nada se disse a respeito dos reflexos da Nova Lei no campo execucional, do que decorre a razão deste trabalho, de molduras estreitas, onde buscaremos apontar algumas das repercussões evidentes. 

2. A competência do Juízo das Execuções.

            Nos precisos termos do art. 66, I, da Lei de Execução Penal, compete ao juiz da execução aplicar aos casos julgados a lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado.

            Nesta mesma ordem de idéia é que foi editada a Súmula n. 611 do Supremo Tribunal Federal, com a seguinte redação: “Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções aplicação de lei mais benigna”.

            Indiscutível, portanto, a competência do Juízo das Execuções para a análise e aplicação das repercussões benignas advindas da Nova Lei de Drogas em relação aos condenados por crime nela listado, ou constante da Lei n. 6.368/76 e não tipificado no novo Diploma.

            Necessário ressalvar que em caso de condenação submetida à apreciação recursal ainda pendente, a competência para aplicação da lei nova benigna é da Instância Superior. 

3. Sobre o art. 28 da Lei n. 11.343/2006.

            A leitura apressada do art. 28 da Lei n. 11.343/2006 pode levar à conclusão equivocada no sentido de que ocorreu abolitio criminis em relação às condutas que eram reguladas no art. 16 da Lei n. 6.368/76.

            Basta um olhar mais atento e cuidadoso para perceber que ao invés do que pode sugerir a visão desatenta, o que ocorreu foi a ampliação das hipóteses de conformação típica, e considerável abrandamento punitivo.

            Também não ocorreu descriminalização.[2] 

3.1. Art. 28, caput.

            As penas cominadas no art. 28 são mais brandas que aquelas previstas no art. 16 da Lei n. 6.368/76, portanto, aqui a Nova Lei retroage para alcançar fatos consumados antes de sua vigência, por força do disposto no art. 5º, XL, da Constituição Federal, e do art. 2º, parágrafo único, do Código Penal, com inegáveis reflexos na execução penal.  

3.2. Art. 28, § 1º.

            Antes da Nova Lei, quando ocorria “plantio para uso próprio” havia basicamente três entendimentos na doutrina e jurisprudência a respeito da capitulação da conduta, e que ditavam os rumos da persecução penal: 1º). Configurava crime de tráfico, nos moldes do art. 12, § 1º, II, da Lei n. 6.368/76; 2º). Configurava crime do art. 16 da Lei n. 6.368/76; 3º). A conduta era atípica, pois o art. 16 não contemplava o “plantio para uso próprio”.

            1ª hipótese:

            Na interpretação mais rígida, mesmo que demonstrada a destinação ao próprio consumo, aplicava-se condenação por crime de tráfico, ao argumento de que o legislador não fazia referência expressa à finalidade específica do cultivo etc.

            Em casos tais, onde foram impostas condenações por tráfico ainda que diante de comprovado cultivo para abastecer o próprio consumo, em razão da nova regulamentação da matéria, conforme o § 1º do art. 28 da Nova Lei, caberá ao condenado ingressar com revisão criminal buscando ajustar a realidade fática e provada aos termos da Lei mais benéfica.

            Por aqui, não se trata pura e simplesmente de ajustar a condenação nos termos do art. 66, I, da Lei de Execuções Penais (Lei n. 7.210/84).

            A questão envolve apreciação de mérito já conhecido, julgado e submetido aos efeitos da coisa julgada, mas que por força da nova capitulação legal pode comportar revisão e reparo.

            2ª hipótese:

            Em relação às penas que estão sendo cumpridas em decorrência de condenação fundamentada no art. 16 da Lei nº 6.368/76, para os casos de plantio para uso próprio verificados antes da Nova Lei de Drogas, as penas deverão ser ajustadas em sede de execução, como determina no art. 66, I, da Lei n. 7.210/84 (Lei de Execução Penal) e a Súmula n. 611 do STF.

            3ª hipótese:

            É evidente que os casos arquivados ou que resultaram em absolvição por força do entendimento que indicava para a atipicidade da conduta não poderão ser reabertos por força da nova capitulação que prevê como infração o plantio para uso próprio. Aqui tem incidência a regra segundo a qual não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

            Temos, assim, duas situações interessantes:

            1ª). Em caso de condenação pelo crime do art. 12, § 1º, II, da Lei n. 6.368/76, onde estava provado que o plantio era destinado ao consumo do próprio acusado e ainda assim se impôs condenação severa, o princípio a ser observado é o que determina a retroatividade da lei mais benéfica.

            2ª). Nos casos em que tenha ocorrido arquivamento de inquérito ou absolvição sob o fundamento da atipicidade do “plantio para uso próprio” (ao tempo da Lei n. 6.368/76), o princípio a ser observado é o da irretroatividade da lei mais severa. Embora agora exista capitulação legal específica, ela não tem força retroativa para impor conseqüências mais severas ao agente.

 4. Sobre o art. 33 da Lei n. 11.343/2006.

            O tráfico e os crimes assemelhados, antes regulados no art. 12 da Lei n. 6.368/76, agora estão no art. 33 da Lei n. 11.343/2006.

            São várias as repercussões no campo da execução penal, que decorrem do novo tratamento normativo dispensado. Analisemos. 

4.1. Art. 33, § 1º, III.

            Na forma fundamental, o crime de tráfico agora é punido com reclusão, de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

            Conforme dispõe o art. 33, § 1º, III, nas mesmas penas incorre quem “utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de droga”.

            No sistema normativo anterior o crime em questão era regulado no art. 12, § 2º, II, da Lei n. 6.368/76, e punia a utilização de local…, para o uso indevido ou tráfico de entorpecente.

            Houve, portanto, abolitio criminis em relação à conduta consistente na utilização de local para uso indevido, do que decorrem repercussões na execução das penas impostas por força da figura penal revogada. 

4.2. Art. 33, § 2º.

            Na vigência da Lei n. 6.368/76, dispunha seu art. 12, § 2º, I, que incidia nas mesmas penas previstas para o crime de tráfico aquele que induzia, instigava ou auxiliava alguém a usar entorpecente ou substância capaz de determinar dependência física ou psíquica.

            O mesmo crime agora está previsto no § 2º do art. 33 da Lei n. 11.343/2006, e houve considerável abrandamento no rigor punitivo.

            A pena que antes era de reclusão, de 3 a 15 anos, e multa, de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa, agora é de detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem)  300 (trezentos) dias-multa.

            É de se considerar, novamente, a retroatividade benéfica em relação aos casos passados, definitivamente julgados ou não, devendo em relação àqueles buscar proceder aos ajustes necessários no campo da execução penal. 

4.3. Art. 33, § 3º.

            Constitui uma das mais importantes modificações instituídas com a Nova Lei de Drogas a constante do § 3º do art. 33, que resolve antiga polêmica relacionada com o tratamento normativo antes dispensado aos casos de uso compartilhado de droga, com repercussões agudas no campo prático por força de interpretações mais ou menos severas, antes permitidas em razão da variável possibilidade de conformação típica, que não raras vezes resultava na imposição de pena excessiva onde deveria ocorrer tratamento brando.

            Antes da regulamentação atual, o simples fornecimento pelo agente, ainda que gratuito e realizado eventualmente, e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem, quase sempre ensejava condenação por crime tráfico na forma fundamental. Argumentava-se que o art. 12, caput, da Lei n. 6.368/76, punia a conduta de fornecer, ainda que gratuitamente, como crime de tráfico, não havendo qualquer outro tipo penal específico para o ajuste da conduta daquele que fornecia para uso compartilhado, sem objetivo de lucro.

            Disso decorre a certeza de que muitas condenações foram impostas e estão sob execução, cumprindo se proceda aos ajustes de pena em razão da nova regulamentação mais branda.

            Os ajustes deverão ser feitos em sede de execução, conforme determina o art. 66, I, da Lei de Execução Penal. 

4.4. Art. 33, § 4º.

            O artigo 33 da Nova Lei de Drogas também inovou ao instituir causa especial de redução de pena em seu § 4º, nos seguintes termos: “Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”.

            De início devemos frisar que a inovação é saudável, na medida em que amplia as molduras do processo individualizador, permitindo ao Magistrado maior movimentação neste campo.

            As discussões que gravitam sobre o tema, como não poderia deixar de ser, buscam firmar posição a respeito da retroatividade ou não da causa de redução de pena, para efeito de alcançar penas impostas como decorrência de crimes praticados antes da vigência da Lei Nova.

            De nossa parte, sem desconhecer todos os argumentos já expendidos em sentido contrário,[3] afirmamos que a retroatividade é inevitável.[4]

            A nova regra deve ser aplicada mesmo aos casos ocorridos antes da vigência da Lei n. 11.343/2006, por constituir novatio legis in melius (lex mitior).

            Também tem incidência sobre os casos julgados e sob execução, cumprindo ao juiz competente, nos termos do art. 66, I, da Lei de Execução Penal analisar caso a caso a incidência da regra, para fins de ajuste das penas, conforme também decorre do disposto no art. 5º, XL, da Constituição Federal, e do art. 2º do Código Penal. 

5. Contribuição para o uso ou tráfico de droga.

            Houve abolitio criminis em relação à conduta antes regulada no inc. III do § 2º do art. 12 (Lei n. 6.368/76), assim descrito: “contribuir de qualquer forma para incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico ilícito de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”. Nos termos do art. 107, III, do Código Penal, extingue-se a punibilidade pela retroatividade da lei que não mais considera o fato como criminoso.

            Também por aqui identificamos reflexos na execução penal. 

6. Colaboração como informante.

            A Lei Nova Lei de Drogas inovou uma vez mais ao excepcionar a teoria monística (art. 29 do CP) e tipificar a conduta do colaborador-informante, distinguindo sua atuação no complexo organizacional do crime.

            Antes da nova tipificação o informante, como colaborador de organizações criminosas, grupos ou associações destinados à prática dos crimes a que se refere no art. 37, respondia como co-autor do crime para o qual “colaborava”, ficando sujeito, em caso de colaboração para o crime de tráfico, à pena de reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e multa, de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

            A pena cominada para o colaborador-informante, agora, é de reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e pagamento de 300 (trezentos) a 700 (setecentos) dias-multa.

            A retroatividade benéfica se impõe, para alcançar penas aplicadas em razão de crimes cometidos antes da vigência da Lei Nova. 

7. Causas de aumento de pena.

            Toda a condenação em que reconhecida causa de aumento de pena, antes da vigência da Nova Lei, deve ser revista em sede de execução, no mínimo para efeito de diminuição do aumento.

            É que antes, para as hipóteses que regulava, o art. 18 da Lei n. 6.368/76 estabelecia aumento de pena de 1/3 (um terço) a 2/6 (dois sextos), e agora o aumento é de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços).

            Houve, portanto, redução no quantum mínimo de aumento, a determinar a revisão das execuções penais por força do efeito retroativo benéfico inarredável.

            Mas não é só. 

 7.1. Art. 40, III, da Lei n. 11.343/2006.

            O inc. IV do art. 18 da Lei n. 6.368/76 determinava a incidência da causa de aumento de pena se qualquer dos atos de preparação, execução ou consumação ocorresse nas imediações ou no interior de estabelecimentos de ensino ou hospitalar, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de estabelecimentos penais, ou de recintos onde se realizassem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, sem prejuízo da interdição do estabelecimento ou do local. Na Nova Lei a matéria está regulada no art. 40, inc. III, com sensíveis e positivas alterações, pois agora exige-se que “a infração tenha sido cometida” nos locais que menciona, quando na vigência da lei antiga a causa de aumento tinha incidência sempre que “qualquer dos atos de preparação, execução ou consumação” tivesse ocorrido nos locais indicados.

            As condenações que sofreram aumento de pena em razão da prática de atos de preparação terem sido cometidos nos parâmetros da lei revogada devem ser revistas e ajustadas as penas para menor. 

7.2. Art. 40, VI, da Lei n. 11.343/2006.

            O inc. III da Antiga Lei Antitóxicos (Lei n. 6.368/76), com as modificações introduzidas pela Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), dispunha que a pena seria aumentada se qualquer dos crimes decorresse de associação ou visasse a menores de 21 (vinte e um) anos ou a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, ou que, por qualquer causa, tivesse  diminuída ou suprimida a capacidade de discernimento ou de autodeterminação. A matéria agora está tratada no inc. VI da Nova Lei, com contornos mais modestos. Desde já é necessário destacar que a regra que impunha aumento de pena no caso de concurso eventual de agentes foi derrogada, e aquela que impunha igual conseqüência quando o crime visasse pessoa com idade superior a 60 (sessenta) anos foi revogada, disso decorrendo várias repercussões no campo da execucional.

            Conforme o inc. VI, a pena será aumentada se a prática do crime envolver ou visar a atingir criança ou adolescente ou a quem tenha, por qualquer motivo, diminuída ou suprimida a capacidade de entendimento e determinação.

            O conceito de criança e adolescente se extrai do art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990), segundo o qual “considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”.

            O art. 5º do Código Civil (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002), dispõe que a menoridade cessa aos dezoito anos completos.

            A pena de qualquer dos crimes tipificados nos arts. 33 a 37 será aumentada de um sexto a dois terços, sempre que o agente envolver ou visar criança ou adolescente “na” ou “com a” prática do crime, respectivamente.

            Envolver criança ou adolescente tem o sentido de atuar conjuntamente, utilizar ou contar com a participação. É hipótese em que o agente atua em concurso eventual com criança ou adolescente, aliás, prática recorrente no ambiente do tráfico, notadamente em razão da menor capacidade de discernimento e resistência moral daqueles, a proporcionar maiores facilidades na cooptação, e da condição de inimputabilidade a que os mesmos personagens-alvo estão submetidos.

            Visar atingir criança ou adolescente é ter como objetivo, meta final, destinar a droga a tais inimputáveis, que gozam de especial e justificada proteção jurídica, face a sua particular condição biológica, psíquica, moral e de caráter, ainda em fase inicial de formação.

            O agente pode visar atingir criança ou adolescente, destinando a droga para consumo ou para que os mesmos pratiquem o comércio espúrio em próprio nome, por conta e risco (fora dos limites do concurso de agentes). É preciso analisar com cautela cada uma das hipóteses típicas expostas à causa de aumento de pena, conforme os arts. 33 a 37 desta Lei.

            A pena igualmente será aumentada se o agente envolver ou visar a quem tenha, por qualquer motivo, diminuída ou suprimida a capacidade de entendimento e determinação.

            Art. 4º do Código Civil indica quem são considerados relativamente incapazes para certos atos da vida civil, e do rol se extrai alguns exemplos também aplicáveis ao tema aqui abordado.

            De tal sorte, dentre outros, podem ser considerados com capacidade de entendimento e determinação diminuída ou suprimida, para o efeito de fazer incidir a causa de aumento de pena sob análise, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido (inc. II, art. 4º do CC), e os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo (inc. III, art. 4º do CC).

            A capacidade dos índios é regulada por legislação especial (parágrafo único do art. 4º, do CC).

            Não é correta, portanto, a afirmação que se tem feito amiúde no sentido de que o concurso eventual de agentes não mais autoriza aumento de pena nos limites da Nova Lei de Drogas. 

8. O art. 17 da Lei n. 6.368/76.

            Dispunha o art. 17 da Lei n. 6.368/76: “Violar de qualquer forma o sigilo de que trata o art. 26 desta Lei: Pena — detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) meses, ou pagamento de 20 (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa, sem prejuízo das sanções administrativas a que estiver sujeito o infrator”.

            O referido art. 26, a seu turno, estabelecia: “Os registros, documentos ou peças de informação, bem como os autos de prisão em flagrante e os de inquérito policial para a apuração dos crimes definidos nesta Lei serão mantidos sob sigilo, ressalvadas, para efeito exclusivo de atuação profissional, as prerrogativas do juiz, do Ministério Público, da autoridade policial e do advogado na forma da legislação específica. Parágrafo único. Instaurada a ação penal, ficará a critério do juiz a manutenção do sigilo a que se refere este artigo”.

            A Nova Lei de Drogas não tem previsão semelhante. Ocorreu abolitio criminis. Impõe se reconheça extinta a punibilidade em relação aos crimes cometidos antes da vigência do novo regramento antidrogas, nos precisos termos do art. 107, III, do Código Penal.[5]

            Necessário anotar que subsistem no ordenamento jurídico o art. 20 do Código de Processo Penal[6] e também o art. 325 do Código Penal,[7] tratando genericamente do sigilo e do crime de violação de sigilo, respectivamente.

            “A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade (CPP, art. 20). Apesar disso, amiúdam-se os casos em que Delegados de Polícia fazem questão de aparecer nos jornais televisivos anunciando o que estão investigando e, mesmo antes de instaurada a ação penal, condenarem quem é investigado, sem o menor respeito à lei e à honra das pessoas”.[8]

            O art. 7º, XIV, da Lei n. 8.906/94 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil) assegura ao advogado o direito de “examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos”. 

9. Conclusão.

            A retroatividade da lei penal benéfica é dogma constitucional e tema indispensável ao Direito Penal, tanto quanto imprescindível na elaboração de uma política criminal democrática, na mesma intensidade que o princípio da legalidade em matéria penal – nullun crimen nulla poena sine lege praevia.

            A indispensável atualização legislativa que impõe a adequação do sistema normativo aos dias correntes decorre da dinâmica da vida em sociedade e, apesar de ter seus olhos voltados para o presente e o futuro, também tem repercussões em relação a fatos passados.

            Bem por isso o disposto no art. 2º, caput e parágrafo único, do Código Penal, nos seguintes termos: “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. A lei posterior que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.



[1] MARCÃO, Renato. Anotações pontuais sobre a Lei 10.409/2002 (Nova Lei Antitóxicos) – Procedimento e instrução criminal. RT 797/492; Novas considerações sobre o procedimento e a instrução criminal na Lei 10.409/2002 (Nova Lei Antitóxicos), Revista da Escola Paulista da Magistratura – Cadernos Jurídicos, nov./dez. 2002, v. 3, n. 12, p. 91-94;. STF, HC 84.835/SP, 1ª Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 9-8-2005, DJ de 26-8-2005, p. 00028, Ement. V. 02202-2, p. 00366; STF, RHC 86680/SP, 2ª Turma, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 13-12-2005, Informativo n. 413.

[2] Cf. MARCÃO, Renato. TÓXICOS – Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, anotada e interpretada, 4ª ed. reformulada, 2006, p. 58. MARCÃO, Renato, O art. 28 da Nova Lei de Drogas na visão do Supremo Tribunal Federal, Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal. n. 16, fev./março de 2007, p. 5; Informativo COAD, ano 27; fascículo semanal nº 17; expedição 29 de abril de 2007, p. 380, disponível na Internet em: www.coad.com.br; Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal,  ano VIII, n. 43, ab-maio/2007, p. 203; Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, ano 111, n. 16, fev./março-2007, p. 5; Carta Forense (Jornal), ano V, n. 48, maio de 2007, p. 16; Revista Prática Jurídica, Editora Consulex, ano VI, nº  63, 30 de junho de 2007, p. 36.

[3] Em sentido contrário ao que defendemos, conferir: Plínio Antônio Britto Gentil, Nova Lei de Tóxicos: causa de diminuição de pena aplicável retroativamente?, https://secure.jurid.com.br/new/jengine.exe/cpag?p=jornaldetalhedoutrina&ID=35938&Id_Cliente=2520

[4] MARCÃO, Renato. TÓXICOS – Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, anotada e interpretada, 4ª ed. reformulada, 2006, p. 193.

[5] Art. 107, III, do CP: “Extingue-se a punibilidade: pela retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso”.

[6] Art. 20 do CPP: “A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”.

[7] Art. 325 do CP. “Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação: Pena — detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave”.

[8] STJ, HC 1.169-0-SP, 5ª T., rel. Ministro Costa Lima, v.u., DJU, Seç. I, de 4-5-1992, p. 5.894, in João Gualberto Garcez Ramos, Audiência Processual Penal, Belo Horizonte, Del Rey, 1996, p. 185.

 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA:

RENATO MARCÃO: Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Penal, Político e Econômico. Professor no curso de pós-graduação da Faculdade de Direito Damásio E. de Jesus; no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes, e no curso de pós-graduação do Instituto Busato de Ensino. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP). Autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada e Interpretada (Lumen Juris); Tóxicos (Saraiva); Curso de Execução Penal (Saraiva), e Estatuto do Desarmamento (Saraiva, no prelo). Co-autor dos livros: Notáveis do Direito Penal (Consulex) e Comentários à Lei de Imprensa (Revista dos Tribunais).

 

 

A essência da Justiça na fundamentação das decisões

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     * Ricardo Calil Fonseca 

Sumário: 1. Importância da fundamentação nos processos em geral.   2. Exigências legais de fundamentação das decisões. 3. Relação entre fundamentação e liberdade. 4.  O problema das decisões interlocutórias e despachos sem fundamentação. 5. Exceção da irrecorribilidade dos despachos. 6.  Considerações finais. 7.  Bibliografia.

 

 

1. Importância da fundamentação nos processos em geral. 

               Das decisões emanadas do Judiciário, desperta especial interesse, o princípio da motivação que as sustenta. A fundamentação é o esteio de uma decisão. O acerto esclarecedor na sua construção é o que em geral proporciona a resignação da parte sucumbente, a inexistência dela, ou seu equívoco, o interesse de recorrer.  

              Porém, o encargo de fundamentar, não é somente do julgador, também as partes devem expor os fundamentos de fato e direito[1], para a obtenção da prestação jurisdicional.

              Sob a rubrica de direito processual, o significado de fundamentar, retrata bem a forma ideal de se exercer esta exigência legal: 

Fundamentar. 2. Rubrica: direito processual. Demonstrar através da lei, da doutrina, da jurisprudência, ou de provas (aquilo que a parte alega em juízo) com o fim de obter uma decisão favorável. 3. Apoiar(-se) em fundamentos; fundar(-se), documentar(-se), justificar(-se).[2] 

Alfredo Buzaid, autor do projeto do Código de Processo Civil de 1973, albergando entendimento de Chiovenda, assim se referiu ao princípio da motivação, cerne das decisões: 

“Característica formal da sentença é a exposição precisa do estado da questão resolvida e do trabalho mental realizado pelo juiz; por isso a sentença deve encerrar, ademais do dispositivo, sob pena de nulidade:  a) o teor dos pedidos das partes, excluído o fato e os motivos; b) os motivos de decidir, de fato e de direito, sem que seja lícito referir-se simplesmente aos motivos de outra sentença (Chiovenda, Instituições de direito processual civil, vol. III, nº. 302”[3] 

Pugnando pela constitucionalidade do novel art. 285-A do CPC, na qualidade de amicus curiae ao intervir na Ação Direta de Inconstitucionalidade de n.º 3.695/DF, movida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o egrégio Instituto  Brasileiro de Direito Processual – IBDP, referiu-se à motivação, como pressuposto da segurança jurídica: 

Como, para a escorreita incidência do  art. 285-A do Código de Processo Civil, faz-se necessário que o juiz, como dá-se, de resto, quando profere qualquer decisão – e isto é imposição constitucional (art. 93, IX, da Constituição Federal) e infraconstitucional (arts. 165 e 459, caput, do Código de Processo Civil ) -, motive-a, fundamente-a,  diga, legitimando a competência que recebeu desde a Constituição, porque decidiu em um e em outro sentido, não há porque supor que a segurança jurídica estaria sendo violada. [4]  

2. Exigências legais de fundamentação das decisões. 

Há atualmente, enorme destaque para a essencialidade da fundamentação em todas as decisões emanadas do Judiciário, a partir da ênfase desta garantia, dada pela Constituição Federal de 1988, ao dispor que, todas as decisões do Poder Judiciário, deverão ser fundamentadas sob pena de nulidade.[5] 

A Constituição Federal antecedente, de 1967, não conteve esta garantia, mas esta imperiosidade  já era expressa no Código de Processo Civil de 1939 no parágrafo único do artigo 118 e 280, e não prescindia da motivação inclusive nos despachos:

Art. 118. 

Parágrafo único. O juiz indicará na sentença ou despacho os fatos e circunstâncias que motivaram o seu convencimento.                                    

Art. 280. A sentença, que deverá ser clara e precisa, conterá:  I – o relatório;  II – os fundamentos de fato e de direito; III – a decisão. [6] 

O Código de Processo Civil atual prevê a fundamentação nos artigos 131 e 165, como dever do juiz, e no art. 458, II, como requisito essencial da sentença.   

3. Relação entre fundamentação e  liberdade. 

A importância da fundamentação transcende o enfoque da literalidade da lei que a garante, ao refletir um dos bens mais sagrados que o homem pode desfrutar:  o da liberdade, pois o julgador, ao expor os motivos de seu convencimento, deixará esclarecidas, as razões conducentes à decisão, demonstrando sua lógica.  

A revelação do silogismo utilizado, ao mesmo tempo em que afasta a possibilidade de se imaginar que o percurso lógico utilizado foi equivocado, caprichoso ou arbitrário, serve como elemento de conformação para as partes, cumprindo a função de apaziguamento social.

 Assim, não há lugar para o autoritarismo, a ditadura, pois o próprio intérprete ao desenvolver a motivação, terá oportunidade, com suas reflexões, de evitar incorrer no grave erro da arbitrariedade, que significaria retrocesso no avanço civilizatório. 

Por isto, a inexistência da exposição dos motivos de seu convencimento, ou sua inadequação, vulnera uma decisão, dentre outras causas, por ser passível de conter algum germe ditatorial.  

Na década de 1960, Gabriel José Rodrigues de Rezende (citando Lopes da Costa), assim mostrou a associação entre o princípio da motivação das decisões, e a liberdade: 

Expondo as razões de seu convencimento, demonstrando haver estudado o processo, suas decisões serão obra da razão e do direito, e não da ignorância, de paixões ou de caprichos. 

A falta de motivação torna nula a sentença. 

O princípio é de ordem pública: “põe a administração da justiça a coberto da suspeita dos dois piores vícios que possam manchá-la: o arbítrio e a parcialidade.        

Num regime, que não seja de puro despotismo, o povo sempre conhece as razões do legislador, ou pelos debates nas assembléias, ou, ao menos, quando o executivo enfeixa no seu absolutismo o poder de legislar, pelos motivos que precedem os decretos. O juiz não é legislador. 

A autoridade de suas decisões assenta na autoridade da lei.    É pois necessário que ele demonstre a conformidade entre uma e outra” (Lopes da Costa, Direito Processual Civil, vol. 3º n.º 14, 1ª. Ed).[7] 

O anseio de aferir a justiça de uma decisão, por meio de sua fundamentação, é inato do ser humano, tanto que, os infantes, geralmente não se conformam quando recebem dos adultos algum comando, como “não!” e “sim!”, desacompanhado da respectiva justificativa. 

4. O problema das decisões interlocutórias e despachos sem fundamentação. 

Não é raro acontecer especialmente na atualidade, em que o tempo tem sido artigo em extinção, emanarem decisões interlocutórias comprimidas, da espécie:  “Indefere-se o pedido retro, por falta de amparo legal”, desprovidas assim de motivação, a comportar recurso para obtenção de pronunciamento fundamentado.              

A decisão que – infelizmente, ocorre amiúde no foro – indefere a pretensão “por falta de amparo legal” não tem guarida no sistema constitucional processual brasileiro.  Primeiro porque a decisão precisa ser fundamentada, sob pena de nulidade de acordo com o art. 93, nº. IX, CF. Segundo porque o juiz, preenchidas as condições da ação e pressupostos processuais, deve pronunciar-se sobre o mérito da pretensão do autor, concedendo ou negando a tutela jurisdicional a ele solicitada.  No caso de a negar, deverá dizer qual a lei que proíbe o deferimento do pedido.  Somente assim estará agindo corretamente indeferindo a pretensão por falta de amparo legal e atendendo ao preceito constitucional do direito de ação e da fundamentação das decisões judiciais.[8] 

Outro fato comum, que ocorre amiúde no foro, é a ausência de motivação das decisões concessivas ou denegatórias de liminar, em mandado de segurança, cautelares, possessórias e ações civis públicas. A locução “presentes os pressupostos legais concedo a liminar”, ou, por outra, “ausentes os pressupostos legais denego a liminar”, são exemplos típicos do vício aqui apontado.  

 O ministro, desembargador ou juiz tem necessariamente de dizer por que entendeu presentes ou ausentes os pressupostos para a concessão ou denegação da liminar, isto é, ingressar no exame da situação concreta posta à sua decisão, e não limitar-se a repetir os termos da lei, sem dar  as razões de seu convencimento.[9]  

Apesar do  texto legal sobre os embargos de declaração, contido no art. 535, no inciso I do CPC[10], referir-se a: “sentença” ou “acórdão”,  a jurisprudência já pacificou, que o recurso é cabível também em relação às decisões interlocutórias.  

A Lei 8.950/94 modificou o regime dos embargos de declaração, revogando os arts. 464 e 465 do CPC. Contudo, não enunciou expressamente o seu cabimento contra decisões interlocutórias.  Essa omissão, entretanto, não invalida o argumento aqui expendido, porque não se proíbe a interposição dos embargos contra decisão. Continuam válidas, portanto, as considerações que aqui são feitas, no sentido do cabimento dos embargos contra interlocutórias.[11]      

5. Exceção da irrecorribilidade dos despachos. 

Numa situação mais crítica, em decorrência da regra de irrecorribilidade[12], são os despachos, também sem o conteúdo de seu motivo, como o da determinação de emenda de uma Petição Inicial sem o apontamento da ausência de seus requisitos ou existência de seus defeitos e irregularidades.  

O pronunciamento judicial também neste caso é cogente, sob pena do processo tornar-se um mistério, uma caixa de surpresa, cuja chave pode ser encontrada apenas na mente do dirigente processual; também porque a oportunidade dada à parte para correção de determinada falha, não quer dizer que o julgador esteja agindo de ofício, ou tornando-se parcial.  

Entretanto, doutrina e jurisprudência, afastam a forma em favor da razoabilidade, condicionando a vedação ao direito de recorrer, à inexistência de prejuízo às partes ou à possibilidade de reversão por meio de recurso posterior, conforme entendimento esposado por Teresa Arruda Alvim e jurisprudências, respectivamente:  

Os embargos de declaração são um recurso de fundamentação vinculada, mas, em contrapartida, não há restrição quanto aos pronunciamentos de que são cabíveis. Dissemos, propositadamente, que são cabíveis de pronunciamentos judiciais, e não exclusivamente de decisões, porque entendemos que, em tese, até os despachos (pronunciamentos desprovidos de conteúdo decisório relevante) são recorríveis por meio de embargos de declaração.[13]           

É irrecorrível o despacho do juiz, se dele não resulta lesividade à parte (RT 570/137).  Assim, em linha de princípio, todo ato judicial preparatório de decisão ou sentença ulteriores é irrecorrível, porque não causa prejuízo, uma  vez que o recurso pode ser interposto posteriormente.[14]  

Processual Civil. Emenda da Inicial. Execução Fiscal. Conteúdo Decisório. Prejuízo. 1. Deve ser relativizada, em casos excepcionais, a regra de que o despacho que determina a emenda da petição inicial é irrecorrível, analisando-se se a decisão agravada subverte ou não a legislação processual em vigor de maneira a causar gravame à parte. 2. Recurso especial provido. Acórdão  Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Humberto Martins, Herman Benjamin, Eliana Calmon e João Otávio de Noronha votaram com o Sr. Ministro Relator.[15]  

6.  Considerações finais.   

A fundamentação adequada, além dos benefícios da transparência, revela a superação de um período em que a liberdade – um dos bens mais preciosos que o homem pode conquistar – foi esgarçada pelo regime ditatorial, já que o autoritarismo se caracteriza pela blindagem de suas ordens, dos decretos, não admitindo questionamento a seus motivos, que dirá, quanto seus equívocos.   

De deixar como reflexão, até que ponto cada um, continua servindo de veículo a algum resquício do sistema ditatorial, já que, inobstante a extirpação formal do regime em 1985, este deixou sua marca, porque exerceu impressionante influência nas pessoas, nos lares, nas instituições.                           

7. Bibliografia. 

 [1] CPC. Art. 282.  A petição inicial indicará: (…) III – o fato e os fundamentos jurídicos do pedido.  

[2] HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. In: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm 

[3]  BUZAID, Alfredo.  Estudos e Pareceres de Direito Processual Civil  – Editora: RT. 35ª edição – 2002. Pág. 211.  Notas de adaptação ao direito vigente de Ada Pellegrini Grinover e Flávio Luiz Yarshell.  

[4]  http://www.direitoprocessual.org.br/site/ (in: textos importantes). 

[5] Constituição Federal de 1988. Inciso IX do Art. 93.  

[6] CPC. Parágrafo único do art. 118 do Decreto-Lei Nº 1.608, de 18 de setembro de 1939, que corresponde ao art. 131 do CPC atual. 

[7]   FILHO, Gabriel José Rodrigues de Rezende.  Curso de Direito Processual Civil  – Editora:  Saraiva S/A Livreiros Editôres.  8ª edição – 1968.  Pág. 23. 

[8]  JÚNIOR, Nelson Nery.  Princípios do Processo Civil na Constituição Federal  – Editora: RT.  8ª edição – 2004.  Vol. 21 Pág. 147.   

[9]   JÚNIOR, Nelson Nery.  Opus cit. Pág. 219.

 [10]  CPC. Art. 535. Cabem embargos de declaração quando: I se houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade ou contradição;  II for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal.

 [11] JÚNIOR, Nelson Nery.  Princípios Fundamentais – Teoria Geral – dos Recursos.  São Paulo. – Editora: RT. 4ª edição – .  1997.  Pág. 213.

 [12]  CPC. Art. 504.  Dos despachos não cabe recurso.

 [13] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim.  Nulidades do Processo e da Sentença.  São Paulo. – Editora: RT. 4ª edição –  vol. 16.  1997.  Pág. 214.

 [14] NEGRÃO,  Theotonio.  Código de Processo Civil  – Editora:  Saraiva. 39ª edição –  2007.   Nota 2 ao art. 504. Pág. 644. 

 [15] STJ. REsp 891671/ES 2006/0216600-4 – Relator Ministro Castro Meira – Segunda Turma – Data do Julgamento – 06/03/2007. Data da Publicação/Fonte DJ 15.03.2007 p. 303.

  

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA:

Ricardo Calil Fonseca:  Advogado em Itaberaí, Goiás, atuante desde 1992, nas áreas: cível e trabalhista, inscrito na OAB/GO sob nº. 12.120.  Pós-graduado em direito do trabalho, pelo convênio Universidade Católica de Goiás/PUC-SP. 

 


 


O sistema de call center (teleatendimento). Sua insuficiência e a obrigação das operadoras de telefonia móvel de disponibilizar postos de atendimento aos usuários

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 * Demócrito Ramos Reinaldo Filho

Sumário: 1. Introdução. 2. A inexistência de lei em sentido formal que obrigue as prestadoras de telefonia móvel a disponibilizar atendimento pessoal a todas as categorias de usuários. 3. A abertura de postos de atendimento como obrigação decorrente de normas regulamentares da ANATEL. 4. A posição da Jurisprudência. 5. A obrigação de tratamento diferenciado para os consumidores hipossuficientes. 6. A inadequação do call center para atendimento imediato aos usuários. 7. A previsão do CDC contra práticas comerciais abusivas e o poder interventivo do Juiz nas relações entre fornecedores e consumidores. 8. A caracterização das "células de retenção" ou métodos de fidelização no teleatendimento como prática comercial abusiva. 9. Conclusões.

 


 

1. Introdução

           Uma intensa discussão está ocorrendo nos meios forenses sobre a obrigatoriedade (ou não) das operadoras de telefonia móvel de instalar postos de atendimento para o recebimento de queixas, reclamações e pedidos de rescisão dos usuários. Atualmente, somente é oferecido o sistema de teleatendimento (call center), forma única de comunicação entre o consumidor e a empresa prestadora quando se trata desses assuntos. Os pontos de venda de serviços e produtos das operadoras de telefonia móvel não recebem ou não dispõem de unidade para o atendimento a queixas e reclamações apresentadas pessoalmente pelos consumidores.

            Os órgãos de defesa do consumidor argumentam que o serviço de call center (atendimento telefônico) é inadequado e insuficiente para atender a essa demanda, e pretendem que as prestadoras de serviços de telefonia móvel sejam obrigadas a disponibilizar outras e específicas formas de atendimento aos consumidores, notadamente postos de atendimento pessoal. As operadoras alegam que não há previsão legal desse tipo de obrigação e que exploram o serviço de telefonia móvel sob o regime jurídico de direito privado, não podendo sofrer ingerência na esfera de assuntos administrativos internos.

            É sobre os aspectos jurídicos desse problema que nos propomos a oferecer algumas conclusões, no presente trabalho.

2. A inexistência de lei em sentido formal que obrigue as prestadoras de telefonia móvel a disponibilizar atendimento pessoal a todas as categorias de usuários

           O princípio da legalidade, traduzido na expressão constitucional de que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", garante o particular contra atividade do Judiciário que não se subsuma à atuação da vontade da lei. Em perfeita conexão com o princípio da separação dos poderes, pode ser reputado como o natural desdobramento de direitos políticos e garantias individuais da estruturação dos poderes, na medida em que assegura que somente o Legislativo pode obrigar os particulares. O princípio da legalidade visa garantir às pessoas que suas liberdades e patrimônio não serão perturbados senão em decorrência de mandamento advindo do Legislativo, Poder representativo dos cidadãos. Em razão dessa mecânica estabelecida entre os Poderes do Estado, o Judiciário só pode compelir o particular na medida em que promova a atuação da vontade da lei.

            Portanto, sem que exista lei ou ato normativo do Executivo (decorrente de sua competência regulatória da atividade econômica), não se pode impingir a um determinado agente econômico, que exerça sua atividade sob o regime jurídico privado, uma obrigação específica. No caso, realmente, não existe lei que imponha às operadoras de telefonia móvel a obrigação de instalar postos de atendimento pessoal ao consumidor (ou mesmo que atribua a obrigação de disponibilizar certos meios específicos para o cancelamento de linha e serviços). Sobre a inexistência de obrigação legal, já se manifestou a 1a. Turma do Tribunal Regional Federal da 5a. Região, por ocasião do julgamento do Ag. de Inst. n. 57525/CE, assim ementado: 

            "AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OPERADORA DE TELEFONIA MÓVEL. INSTALAÇÃO DE PONTOS DE ATENDIMENTO PESSOAL COM FINS EXCLUSIVOS DE RESCISÃO CONTRATUAL. INEXISTÊNCIA DE COMANDO NORMATIVO QUE IMPONHA ESSA OBRIGAÇÃO.

            1. Agravo de Instrumento intentado com vistas a reformar decisão proferida em sede de ação civil pública no bojo da qual restou deferida medida liminar para determinar que a operadora de telefonia móvel recorrente procedesse à imediata instalação de pontos de atendimento pessoal com fins exclusivos de rescisão contratual.

            (…)

            3. Entrementes, não se afigura razoável que se utilize de provimento liminar – que, pela sua natureza, é dotado de precariedade – para se compelir prestadora de serviço de telefonia móvel a desenvolver atividades que não lhe são expressamente impostas por comando legal.

            4. Ademais, não se pode perder de vista que o cancelamento das linhas telefônicas, bem ou mal, pode ser realizado tanto pelo sistema do "call center" como por atendimento pessoal através de requerimento padronizado". 

            No seu voto condutor, o relator do processo, Des. Francisco Wildo, assentou não somente que não existe lei que imponha à operadora de telefonia móvel a obrigação de instalar pontos de atendimento pessoal, como também que tal imposição não pode ser extraída das regras e princípios genéricos da legislação consumerista. Disse o relator a esse respeito:

           "É certo que o insigne julgador singular proferiu a decisão agravada valendo-se de normas previstas no Código de Defesa do Consumidor e nas Leis n. 8.078/95 e 9.472/97 para argumentar, genericamente, que os usuários da telefonia móvel têm direito à prestação de serviços de telecomunicações com qualidade e regularidade. Contudo, além de entender que as normas em questão não têm o condão de fazer surgir de per si a obrigação imputada no ato objurgado, verifico que os interesses dos usuários não estão sendo desatendidos, eis que os documentos coligidos aos autos (cf. fls. 195 e ss) comprovam que a rescisão contratual pode ser feita tanto pelo sistema de "call center" como pelo intermédio de atendimento pessoal.

            Do mesmo modo, penso que a dificuldade de acesso aos sistemas do 0800 ou 0800363636, como o congestionamento das linhas telefônicas, não seria motivo suficiente à instalação dos postos de atendimento em referência, eis que, a meu ver, caberia à ANATEL, neste caso, na qualidade de órgão responsável pela fiscalização das telecomunicações no país, imputar penalidade à operadora por infração às disposições normativas já existentes e não ao Judiciário ordenar o desenvolvimento de atividades que sequer são expressamente impostas por lei".

            Realmente, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) somente contém princípios e regras prevendo o direito do consumidor à prestação adequada e eficiente dos serviços públicos em geral (art. 6o., X). Por sua vez, a Lei de Concessões (Lei n. 8.987/95) também se limita a prescrever que os usuários dos serviços públicos concedidos têm direito a receber serviço adequado (art. 7o., I). Já a Lei Geral das Telecomunicações (Lei n. 9.472/97) assegura ao usuário dos serviços de telecomunicações apenas o direito de resposta às suas reclamações (art. 3o., X).

            Não há, portanto, qualquer norma legal que exija especificamente que o atendimento ao usuário do serviço de telefonia móvel seja feito de forma pessoal, isto é, mediante o contato pessoal com um funcionário da prestadora. As disposições genéricas da legislação acima mencionada não seriam, por si sós, suficientes para sustentar pedidos específicos de implantação de diversas formas de atendimento aos usuários. Nesse ponto, concordamos com as conclusões do julgado acima transcrito.

3. A abertura de postos de atendimento como obrigação decorrente de normas regulamentares da ANATEL

           Acontece que já existe um regramento que fundamenta a imposição de tal obrigação de fazer, regramento esse de natureza infra-legal, mas nem por isso menos obrigatório para as prestadoras de serviços de telecomunicações.

            Ao Poder Executivo, como se sabe, remanesce uma parcela da atividade normativa estatal, pois detém a competência regulamentar das leis, tal como previsto no art. 84, IV, da Constituição Federal, que confere ao Chefe do Poder Executivo a função de expedir decretos e regulamentos para fiel execução das leis que tiver sancionado. O Executivo ainda exerce função normativa em razão do papel regulador da atividade econômica do Estado. A normatização do comportamento dos agentes econômicos possui expressa previsão no art. 174 da CF e significa a edição de normas jurídicas tendentes ao regramento da conduta dos participantes de um setor da economia que esteja regulado. No plano legal, um exemplo do deferimento de competência normativa pode ser percebido nos artigos 3o., I, da Lei n. 9.427/96 e 19, X, da Lei n. 9.472/97. Essa função normativa, como nota caracterizadora da função reguladora da atividade econômica, é exercida por meio das agências reguladoras.

            Na área das telecomunicações, o órgão do Poder Executivo que tem competência normativa da atividade dos agentes econômicos (operadoras dos serviços de telecomunicações) é a ANATEL – Agência Nacional de Telecomunicações, entidade integrante da Administração Federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada ao Ministério das Comunicações, com sede no Distrito Federal [01]. Tudo o que estiver relacionado à organização e exploração dos serviços de telecomunicações, nos termos das leis brasileiras, fica a cargo dessa agência. É essa autarquia que tem a função de órgão regulador das telecomunicações no Brasil, podendo, nos termos das políticas estabelecidas pelos Poderes Executivo e Legislativo (art. 1o.), definir o disciplinamento e a fiscalização da execução, comercialização e uso dos serviços e da implantação e funcionamento de redes de telecomunicações. Como órgão regulador das telecomunicações, à Anatel compete adotar as medidas necessárias para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, especialmente expedindo normas sobre a prestação desses serviços, quer quando prestados no regime público (art. 19, IV, da Lei 9.472/97) ou no regime privado (art. 19, X, da mesma Lei).

            É no campo da normatização produzida por essa agência reguladora das telecomunicações que encontramos regras que especificam as formas de atendimento que as operadoras de telefonia móvel devem disponibilizar aos consumidores. De fato, o Regulamento do Serviço Móvel Pessoal – SMP (anexo à Resolução da Anatel n. 316, de 27.09.02), contém um certo número de dispositivos que indicam perfeitamente a intenção do órgão regulador de estabelecer variadas formas de atendimento aos usuários. Observe-se, por exemplo, a redação do parágrafo terceiro do art. 13 desse Regulamento: 

            "Art. 13. A prestadora deve receber e solucionar as queixas e reclamações dos Usuários nos prazos fixados no PGMQ-SMP.

            §3º Todas as queixas apresentadas pelo Usuário devem ser processadas pela prestadora e receber um número de ordem a ser informado ao interessado para possibilitar o acompanhamento de sua solução, inclusive por intermédio da central de informação e atendimento do Usuário. (grifo nosso)".

           Ao utilizar-se da expressão inclusive, para determinar que as queixas devem ser registradas e apresentar um número de ordem mesmo quando forem veiculadas por meio da central de informação e atendimento do usuário, o órgão regulador aponta claramente no sentido de que as prestadoras do SMP devem disponibilizar outro meio de atendimento.

            Também no parágrafo 1o. do art. 60 do mesmo Regulamento (inserto no capítulo que trata "Da Contestação de Débitos"), o órgão regulador indica a necessidade da existência de postos de atendimento, para que o consumidor possa apresentar suas reclamações e queixas pessoalmente:

            "Art. 60. O Usuário pode questionar os débitos contra ele lançados mediante contestação dirigida à prestadora.

            §1º A contestação de débitos pode ser apresentada pessoalmente pelo Usuário, ou por seu representante legal, na forma escrita ou verbal, podendo valer-se de qualquer meio de comunicação à distância" (grifo nosso).

            Por fim, o art. 82 (inserto no Capítulo IV do Regulamento, que trata "Do Atendimento aos Usuários") é o mais claro de todos, ao estabelecer que a operadora deve dar publicidade do endereço dos postos de atendimento:

            "Art. 82. A prestadora deve tornar disponível o acesso telefônico gratuito a setor de informação e de atendimento ao Usuário bem como divulgar os endereços dos postos de atendimento públicos".

            Se não há lei em sentido formal que imponha o dever da prestadora do Serviço Móvel Pessoal de oferecer postos de atendimento públicos, essa obrigação deriva de édito de conteúdo normativo emitido pela agência reguladora. Em várias passagens da norma regulamentar, como se viu, fica explicitado que o atendimento ao público de usuários deve ser feito de forma pessoal, daí porque decisão judicial que reconheça essa obrigação não pode ser acoimada de interferir de forma desarrazoada na administração interna da operadora de telefonia móvel. Existe, ao contrário, fundamento jurídico extremamente convincente, uma vez que, como se demonstrou, a operadora está obrigada a observar os condicionamentos impostos em regulamentação específica para a área de telecomunicações (especificamente para a exploração do serviço pessoal móvel de comunicação).

            O canal de comunicação telefônica (teleatendimento) pode ser até muito mais conveniente para o próprio usuário, em determinadas situações, já que fornece a comodidade de não precisar se deslocar até o local do posto de atendimento. Mas também devem existir alternativas de atendimento, outras formas de comunicação entre o consumidor e a empresa prestadora, para os casos em que o usuário não possa, não queira ou não consiga se comunicar através de telefone. Portanto, não se está reconhecendo a imprestabilidade do serviço de call center (teleatendimento), até porque não seria razoável deixar de utilizar as tecnologias de comunicação para a implantação de um serviço de atendimento, que pode ser muito mais conveniente para o próprio usuário, desde que devidamente estruturado. O que se está a reconhecer é que existe todo um contexto normativo pertinente aos serviços de telecomunicações e especificamente em relação ao serviço de telefonia móvel que permite concluir, de forma inequívoca, que as prestadoras desses serviços estão obrigadas à manutenção de postos de serviços para o atendimento direto e pessoal ao usuário. O usuário da telefonia móvel tem direito ao atendimento pessoal em postos da prestadora, onde possa apresentar: a) contestação de débitos; b) solicitação de reparos; c) emissão de segunda via de conta telefônica; d) restabelecimento de acesso; e) correção de endereços e outros dados; e f) solicitação de cancelamento de linha e rescisão contratual. O atendimento pode ser realizado por meios telefônicos e virtuais, mas, em razão de determinações regulamentares, tem que ser fornecido também de forma pessoal ao usuário. O atendimento ao usuário via telefone, o chamado call center, ou ainda qualquer tipo de auto-atendimento por meio da Internet, não pode ser a ferramenta exclusiva de interação do usuário com a prestadora, quando se trate de oferecer reclamação ou solicitar cancelamento da linha. Em razão das determinações regulamentares, a prestadora de serviços de telefonia móvel não pode substituir o atendimento pessoal por outros meios telefônicos ou via Internet.

            Em sendo assim, não prospera a argumentação das operadoras de telefonia móvel de que, por explorarem o Serviço Móvel Pessoal (SMP) sob o regime jurídico privado [02], não estão obrigadas a instalar postos de atendimento pessoal aos usuários. É certo que existem diferenças entre os regimes público e privado na prestação dos serviços de telecomunicações, como por exemplo as obrigação de universalidade e continuidade, somente atinentes às operadoras que exploram esses serviços na primeira modalidade. As operadoras de serviços de telecomunicações prestados em regime público, justamente porque os serviços escolhidos para serem executados sob esse regime são considerados de "interesse econômico geral", têm obrigações mais severas, caracterizadas por um controle de tarifas mais estrito e imputação de obrigações de natureza social (as obrigações de universalização dos serviços e ônus de continuidade) [03]. Mas isso não significa que as operadoras que atuam sob o regime jurídico privado também não sofram condicionamentos administrativos e que os serviços que prestam não sejam regulados [04]. Como órgão regulador das telecomunicações, à Anatel compete expedir normas sobre a prestação dos serviços de telecomunicações, tanto os que são prestados no regime público (art. 19, IV, da Lei n. 9.472/97) como os que são executados no regime privado (art. 19, X, da mesma Lei). É certo que a agência deve observar a exigência de intervenção mínima na vida privada [05], mas está autorizada a impor os limites e encargos que considerar necessários, tendo em vista as necessidades do serviço e desde que não extrapolem os limites das leis e da Constituição. O Serviço Móvel Pessoal (SMP) é serviço de interesse coletivo [06] e, portanto, submetido às disposições constantes da regulamentação [07].

            Uma vez que a Anatel expediu a regulamentação do SMP (Anexo à Resolução n. 316, de 27.09.02) prevendo a obrigatoriedade de as prestadoras da telefonia móvel disponibilizarem variadas formas de atendimento aos seus usuários (arts. 13, § 3o.; 60, § 1o.; e 82), agiu dentro do seu poder normativo que lhe é conferido pela Constituição (art. 174) e pela Lei (art. 19, X, da Lei 9.472/97). A prestadora possuiria liberdade para decidir qual a melhor forma de estruturar seu serviço de atendimento se não houvesse previsão regulamentar; todavia, tendo a agência reguladora explicitado a obrigação de instalação de postos de atendimento ao público, desapareceu essa liberdade, estando obrigada a atuar em consonância com esses condicionamentos administrativos. Havendo clara resistência da operadora em sujeitar-se às normas regulamentares da agência de telecomunicações, o Judiciário pode ser solicitado para interferir a fim de compeli-la a observar os condicionamentos próprios da sua atividade econômica.

4. A posição da Jurisprudência

            Já podem ser registrados alguns posicionamentos jurisprudenciais no sentido de que as prestadoras de serviços de telefonia estão obrigadas a instalar postos de atendimento aos usuários. Expressivo desse entendimento é acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, assim ementado:

            "AÇÃO CIVIL PÚBLICA – TELEFONIA – REABERTURA DE POSTOS DE ATENDIMENTO E LOJAS DE SERVIÇO – JUÍZO COMPETENTE – CITAÇÃO.

            I- As pessoas jurídicas de direito privado, concessionárias de serviço público, prestadoras de serviço de telefonia, sujeitam-se às regras de relações de consumo. Os conflitos gerados entre elas e os consumidores, devem ser resolvidos pela Justiça Comum, por ausência de interesse da agência reguladora.

            (…)

            V- Nada obsta que sejam reabertos os postos de atendimento e lojas de serviços, visando maior facilidade para os consumidores, sem prejuízo de disponibilizar os mesmos serviços através de linhas telefônicas e da rede mundial de computadores" (TJDF – 5a. Turma Cível, APC n. 2002011090881-2, rel. Desa. Haydevalda Sampaio, ac. un., j. 14.06.04). 

            Do STJ podemos citar o seguinte aresto:

            "ADMINISTRATIVO. EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇOS DE TELEFONIA. POSTOS DE ATENDIMENTO. REABERTURA. SISTEMA DE TELEATENDIMENTO OU VIA INTERNET. (…). APLICABILIDADE AO CASO DOS ARTIGOS 6O., § 1O., DA LEI 8.987/95, 2O. DA LEI 10.048/2000 E 32 DA RESOLUÇÃO N. 30/98 DA ANATEL. (…). RECURSO AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.

            (…)

            5. Sendo a recorrente concessionária de serviço de telefonia pública, tem o dever de prestar um serviço para plena satisfação os usuários, que são, no dizer de Hely Lopes Meirelles, "seus legítimos destinatários". A utilização exclusiva do sistema de teleatendimento, internet ou de casas lotéricas implica a prestação de serviço inadequado, por implicar em várias conseqüências prejudiciais ao usuário que se vê completamente lesado no seu direito a um bom e eficiente serviço, pelo qual paga caro, e impotente no sentido de não ter como buscar a reparação do dano sofrido pela má prestação desse serviço.

            6. Desarrazoada e sem respaldo legal, a argumentação aduzida pela recorrente de não estar obrigada à prestação de serviço por meio de postos de atendimento e que o recebimento da apelação apenas no efeito devolutivo acarretou-lhe sérios prejuízos, tendo ocorrido por isso, violação dos artigos 420 do CPC e 14 da Lei 7.347/85. Maior prejuízo certamente advirá aos usuários que dependem dos serviços da concessionária. Aplicação, ao caso, dos preceitos legais insertos nos artigos 6o., §1o. da Lei 8.987/95, 2o. da Lei 10.048/2000 e 32 da resolução n. 30/98 da ANATEL" (STJ, REsp 513.850-SC, rel. Min. José Delgado).  

              Os precedentes acima transcritos foram construídos em face dos serviços de telefonia fixa (STFC) [08], enquanto que o caso presente se estabelece diante das prestadoras de serviço de telefonia móvel, mas não haveria dificuldade em se estender a conclusão desses julgados também para o SMP, tendo em vista que o fundamento jurídico neles encontrado (para imposição da obrigação de instalação de pontos de atendimento ao público) foram regras do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e da Lei das Concessões (Lei 8.987/95) – apenas o último dos julgados, do STJ, faz referência também, como fundamento de decidir, a resolução da Anatel (Res. n. 30/98).

            O fundamento jurídico essencial desses julgados foi o dever das prestadoras de oferecer serviços adequados e satisfatórios, disposto na legislação de regência dos serviços públicos delegados (Lei 8.987/95) e na legislação consumerista (Lei 8.078/90) – o que, na nossa ótica de examinar o problema, não seria suficiente para impor a obrigação específica de abertura de postos de atendimento [09] -, mas em todo o caso a noção que deles sobressai é que a exigência de atendimento pessoal (sobretudo quando se refere a categoria de consumidores hipossuficientes) é imanente ao dever de prestação de serviços adequados e eficientes. Em assim sendo, seria perfeitamente viável a extensão dessa obrigação aos prestadores dos serviços de telefonia móvel (celular), pela simples razão de que também são considerados fornecedores de serviços no mercado de consumo, subordinados às regras do CDC, bem como submetidos às disposições da Lei de Concessões. Todo ente privado prestador delegatário de serviços públicos (de utilidade pública ou de interesse público) tem a obrigação de prestá-los de forma adequada, eficiente e satisfatória.

            Não haveria, realmente, uma razão lógica para excluir as operadoras de telefonia móvel dessa obrigação, haja vista ser vinculada a praticamente todo serviço de utilidade pública cuja execução é delegada. Em regra, quase todos os delegatários, responsáveis pela prestação de serviços públicos massificados, assim entendidos aqueles que são prestados a um grande número de consumidores, têm a obrigação de instalar postos de atendimento públicos. Veja-se, por exemplo, o caso das concessionárias de serviço de fornecimento de energia elétrica, a respeito das quais o STJ já reconheceu essa obrigação como resultante do dever de prestar serviço eficiente e adequado (previsto no art. 6o. da Lei 8.987/95), conforme se depreende da ementa abaixo transcrita:

            "AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ENERGIA ELÉTRICA. DISTRIBUIDORA DE ENERGIA ELÉTRICA. POSTOS DE ATENDIMENTO. REABERTURA. SISTEMA DE TELEATENDIMENTO. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 6O., § 1O. DA LEI 8.987/95 CARACTERIZADA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO DO ARTIGO 2O. DA LEI 10.048/2000. (…)

            (…)

            4. Deve ser provido recurso especial, para se estender a todos os municípios elencados na ação civil pública os efeitos de liminar que determina a reabertura de postos de atendimento de distribuidora de energia elétrica, evitando que os usuários residentes em locais distantes e portadores de deficiência física, idosos e pessoas de pouca instrução tenham seus direitos prejudicados, em face da má prestação para não dizer inutilidade do serviço exclusivo de teleatendimento. Sabendo-se, aliás, que este é um desserviço ao consumidor atendendo tão somente aos objetivos de economia e maior lucratividade da empresa concessionária em detrimento e prejuízo dos usuários" (STJ-1a. Turma, REsp 644845/RS, rel. Min. José Delgado, j. 17.02.05, DJ 04.04.05).  

            A similitude que as prestadoras (autorizatárias) do serviço de telefonia móvel guardam nesse aspecto, com outros delegatários de serviço público (cuja execução foi atribuída ao particular através de concessão ou permissão) destinado a grande número de consumidores, justifica que tenham as mesmas obrigações quanto ao atendimento às suas queixas e reclamações. Os meios considerados eficazes para o atendimento de modo eficiente aos consumidores devem guardar simetria, quando exigidos em relação a qualquer ente privado delegatário de serviço público (de utilidade ou interesse público) prestado de forma massificada a uma grande gama de consumidores, independentemente da modalidade de delegação do serviço (seja por meio de concessão, permissão ou autorização). A generalização do acesso ao serviço de telefonia móvel impõe que os condicionamentos quanto ao atendimento aos consumidores tenham uma correspondência sistêmica com outros serviços públicos de massa, notadamente em relação aos serviços de telecomunicações de massa (a exemplo do STFC) [10].

5. A obrigação de tratamento diferenciado para os consumidores hipossuficientes

            Ainda deve ser reconhecido que o atendimento pessoal facilita a interação com uma categoria especial de usuários, constituída de consumidores hipossuficientes, a exemplo de idosos, portadores de deficiência física (em especial qualquer tipo de pessoa com deficiência auditiva) e pessoas de pouca instrução, para os quais o serviço de teleatendimento (call center) não se mostra adequado. A essa categoria de consumidores, pelo menos, tem que ser dado um atendimento prioritário e diferenciado. Essa exigência inclusive resulta de preceito legal – o art. 2o. da Lei n. 10.048/2000 -, que estabelece que as empresas concessionárias de serviços públicos estão obrigadas a dispensar atendimento prioritário, por meio de serviços individualizados que assegurem tratamento diferenciado às pessoas portadoras de deficiências físicas, aos idosos (com idade igual ou superior a sessenta e cinco anos), às gestantes, lactantes e pessoas acompanhadas de crianças de colo [11].

            Portanto, pelo menos em relação a essa categoria especial de consumidores (os hipossuficientes), já teríamos fundamento legal para impor às operadoras de telefonia móvel a obrigação de abrir postos de atendimento, em razão do tratamento diferenciado e prioritário que devem receber dos prestadores de serviços públicos, como, aliás, já reconheceu o STJ nas palavras do Min. José Delgado, ao prolatar (como relator) o voto condutor no julgamento do REsp 513.850-SC, de seguinte teor:

            "Por outro lado, a ausência de postos de atendimento, em que haja contato direto entre usuários e prestadora de serviço, acaba por frustrar a aplicação do art. 2o. da Lei n. 10.048/2000, que determina que "as repartições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos estão obrigadas a dispensar atendimento prioritário, por meio de serviços individualizados que assegurem tratamento diferenciado e atendimento imediato às pessoas a que se refere o art. 1o., ou seja, as "pessoas portadoras de deficiência física, os idosos com idade igual ou superior a sessenta e cinco anos, as gestantes, as lactantes e as pessoas acompanhadas de crianças de colo". De acordo com o citado dispositivo, é obrigação da empresa concessionária de serviço público dispensar atendimento "diferenciado e imediato", "por meio de serviços individualizados". O cumprimento da lei, contudo, fica inviabilizado quando a única forma de atendimento disponibilizada é através de comunicação telefônica". 

6. A inadequação do call center para atendimento imediato aos usuários

            Uma vez visualizado que não pode haver exclusividade no atendimento de reclamações dos usuários através do sistema de call center, já que as normas regulamentares do serviço de telefonia móvel impõem a obrigação das prestadoras de disponibilizarem postos de atendimento pessoal ao consumidor, cabe agora examinar se o teleatendimento (call center) satisfaz a exigência de imediatidade tal qual disposta nos regulamentos da Anatel.

            Com efeito, um meio de atendimento ao usuário do serviço de telefonia móvel somente pode ser considerado adequado se alcançar a meta da imediatidade, nos termos do art. 6o., X, do Regulamento do Serviço Móvel Pessoal – SMP, Res.. 316/2002, da Anatel, que prescreve ser direito do usuário a "resposta eficiente e pronta às suas reclamações e correspondências, pela prestadora". No âmbito do serviço de atendimento por meio de centrais telefônicas de informação (teleatendimento), o que pode ser considerado como atendimento imediato, de forma a satisfazer a previsão regulamentar? A resposta a essa pergunta pode ser extraída de alguns dos dispositivos do "Plano Geral de Metas de Qualidade para o Serviço Móvel Pessoal – PGMQ-SMP" (Anexo à Resolução n. 317, de 27 de setembro de 2002), que estabelecem (como conjunto de normas que compõem o Capítulo III) as seguintes metas específicas de qualidade do serviço de teleatendimento: 

            "Art. 6º As chamadas originadas na rede da prestadora e destinadas ao seu Centro de Atendimento devem ser completadas, em cada Período de Maior Movimento, no mínimo, em 98% (noventa e oito por cento) dos casos.

            § 1º Nestes casos, o completamento deve se dar imediatamente após o estabelecimento da chamada e o Usuário deve ter acesso imediato ao Sistema de Auto-Atendimento ou telefonista/atendente.

            § 2º (…).

            Art. 7º Quando a prestadora possuir sistema de auto-atendimento, o tempo para o atendimento pela telefonista/atendente, quando esta opção for selecionada pelo Usuário, deve ser de até 10 (dez) segundos, em cada Período de Maior Movimento, no mínimo em 95% dos casos (inc. I).

            § 1º Em nenhum caso, o atendimento deve se dar em mais de 60 (sessenta) segundos.

            § 2º A opção de acesso à telefonista/atendente deve estar sempre disponível ao Usuário" (grifos nossos).

            Como se observa da leitura desses dispositivos da norma regulamentar, o serviço de teleatendimento (call center) deve ser estruturado, pelas empresas operadoras de telefonia móvel, de modo a que as chamadas sejam completadas, no mínimo, em 98% dos casos (art. 6o.) e o usuários devem ter acesso imediato à telefonista/atendente (art. 6o., par. 1o.), sendo que o tempo para o atendimento (em 95% dos casos) não pode ser superior a 10 segundos (caput do art. 7o.) e, em nenhum caso, pode ultrapassar o tempo de 60 segundos (§ 1o. do art. 7o.). Essas metas de qualidade devem ser cumpridas pelas operadoras [12], sob pena de não se considerar atendida a obrigação de atendimento imediato ao consumidor.

            De acordo com investigação promovida pelo Ministério Público do Estado de Pernambuco, através de sua Promotoria com atribuições para Proteção e Defesa do Consumidor, ficou comprovado que os usuários levam um tempo exagerado para ter contato com a atendente/telefonista, nos casos em que manifestam sua opção pelo cancelamento da linha e/ou rescisão do contrato. O usuário fica sendo passado de um atendente para outro, sempre que narra seu desejo de cancelar os serviços. O usuário às vezes passa minutos e até horas sem ser atendido, sendo que tal demora provoca, em muitos casos, a queda da ligação, seja decorrente da própria falha do sistema ou não. As dificuldades que se lhe antepõem são tantas, gastando o consumidor tanto tempo sem conseguir registrar sua solicitação, que acaba desistindo do cancelamento. Some-se a isso o fato de que as operadoras se utilizam de práticas de "fidelização", oferecendo propostas de toda sorte para que o consumidor permaneça como cliente vinculado à empresa.

            As próprias operadoras confessam que se utilizam do mecanismo da "célula de retenção", toda vez que o usuário manifesta sua intenção pelo cancelamento. Ao ser transferido para a "célula de retenção", o usuário "recebe uma última proposta para continuar como cliente". Embora neguem as transferências intermediárias, alegando que o primeiro atendente transfere o usuário diretamente para a "célula de retenção", assim que manifesta o desejo pelo cancelamento, reconhecem que o método da célula de retenção diminui o número de cancelamentos [13].

            É fácil concluir, por conseguinte, que a forma como está estruturado o serviço de teleatendimento (sistema de call center) não atende à exigência de atendimento imediato – que pressupõe acesso direto, dentro de 10 segundos após o completamento da chamada, à telefonista/atendente para registro do pedido de cancelamento. Ademais disso, veremos adiante que o uso da "célula de retenção" configura prática comercial abusiva.

7. A previsão do CDC contra práticas comerciais abusivas e o poder interventivo do Juiz nas relações entre fornecedores e consumidores

            O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) elenca, nos incisos I a XIII do art. 39, várias espécies de práticas comerciais abusivas, mas não traz uma regra geral de abusividade, como acontece em relação às clausulas contratuais. No que tange às cláusulas contratuais, o artigo 51 CDC (incisos I a XVI) tipifica uma série de cláusulas específicas consideradas, para fins legais, como abusivas (e, portanto, nulas de pleno direito). Ao lado dessa "lista negra" (blacklist), o legislador criou uma fórmula geral de abusividade, ao estabelecer, no seu inc. IV, serem nulas aquelas que "…coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade" [14]. Já em relação às práticas comerciais, o legislador não formulou uma regra geral de abusividade, estabelecendo apenas uma lista com específicas práticas comerciais abusivas (incisos I a XII do art. 39).

            A falta de uma norma geral de abusividade, em relação às práticas e métodos comerciais, dificulta a tarefa do intérprete na definição de sua natureza. De fato, a regra geral de proibição (general prohibition) serviria como critério mais preciso para se determinar o que pode ser considerado abusivo (unfair), mas nem por isso impede que seja investigada a natureza de uma determinada prática ou método comercial. O legislador, ao criar a "lista negra" de práticas comerciais abusivas, não a estabeleceu em número fechado (numerus clausus), mas apenas de forma exemplificativa, o que se observa da leitura do caput do art. 39 [15], onde destaca serem abusivas "dentre outras práticas abusivas" aquelas que lista logo a seguir (nos incisos I a XIII desse artigo). Afora ressalvar a possibilidade de existência de outras práticas comerciais abusivas, além daquelas especificamente relacionadas (que formam a "lista negra"), o legislador também atribuiu poder interventivo ao Juiz na relação comercial (de consumo), para fins de impedir ou fazer cessar uma determinada prática comercial abusiva, uma vez que enuncia que o consumidor tem direito à proteção contra métodos comerciais coercitivos ou desleais e práticas abusivas impostas no fornecimento de produtos e serviços (art. 6o., IV, do CDC) [16]. É esse dispositivo que confere ao Juiz poderes para intervir na relação comercial (de consumo) para adequá-la às exigências de harmonia e equilíbrio, expungindo as práticas e métodos comerciais coercitivos e desleais que possam colocar o consumidor em posição de inferioridade.

            Por práticas e métodos comerciais podem ser entendidas qualquer ação, omissão, conduta ou afirmação do fornecedor, incluindo as comunicações comerciais, como a publicidade ou o marketing, com relação direta à promoção, à venda ou à conservação de um produto ou serviço. Então, evidenciando-se o caráter abusivo ou desleal de qualquer dessas ações ou omissões do fornecedor de produtos e serviços no mercado de consumo, o Juiz tem poderes para interferir nas relações comerciais, adequando-as aos princípios protetivos estabelecidos na legislação consumerista.

8. A caracterização das "células de retenção" ou métodos de fidelização no teleatendimento como prática comercial abusiva

            Mas, como definir a natureza abusiva de uma prática comercial ou o caráter desleal ou coercitivo de um determinado método comercial (não enquadrados na lista do art. 39 do CDC), à falta de uma regra geral? No caso específico da utilização de "células de retenção" nos sistemas de call center, como caracterizar se essa técnica de atendimento configura prática comercial abusiva ou método comercial desleal? O uso das "células de retenção" é uma prática comercial, já que consiste em uma ação de comunicação ou marketing do fornecedor, através de seus prepostos (as atendentes do sistema de call center), dirigida ao consumidor (usuário do SMP), tendo por objeto a conservação de um serviço (telefonia móvel). Disso não há dúvida. Mas, e quanto à natureza dessa prática? Pode ser considerada abusiva?

            Bem, não havendo parâmetro na legislação brasileira (à falta de uma regra geral de abusividade para as práticas comerciais), podemos recorrer à doutrina européia, que inspirou a edição da Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais [17].

            Para a doutrina européia, uma determinada prática ou método comercial pode ser considerado desleal ou abusivo se reunir dois elementos essenciais:

            a)a prática deve ser contrária às exigências de diligência profissional do fornecedor; e

            b)a prática deve distorcer ou ser capaz de distorcer materialmente o comportamento econômico do consumidor [18].

            Para a caracterização da abusividade (unfairness), esses dois elementos têm que aparecer concorrentemente. Faltando qualquer um deles, uma prática comercial não pode ser considerada abusiva; são requisitos cumulativos. Ademais disso, o consumidor padrão a ser considerado na tarefa de averiguar a abusividade é o "consumidor médio" (average consumer) [19].

            A primeira dessas condições, que se refere à diligência profissional do fornecedor, está relacionada com a noção de "boa conduta comercial" (good business conduct). É a medida do cuidado e habilidade exercidos pelo empresário, de acordo com os padrões de práticas comerciais geralmente aceitos em um determinado setor. Esse padrão de competência e de cuidado do empresário, em relação aos consumidores, deve ser avaliado também levando-se em conta o princípio geral da boa-fé. Práticas consideradas normais de acordo com os costumes e usos do comércio não podem ser consideradas abusivas, ainda que influenciem o comportamento econômico do consumidor.

            A utilização de "células de retenção" em sistemas de teleatendimento (call center) resulta visivelmente contrária às exigências de diligência profissional do fornecedor, no que tange ao dever de boa-fé e lealdade nas relações comerciais. Não pode ser considerada normal a conduta da operadora (através de seus prepostos) de utilizar-se de expediente visivelmente desleal, muitas vezes aproveitando o cansaço do consumidor diante das barreiras que encontra ao tentar o cancelamento. Quanto a esse aspecto, evidentemente, o método comercial das operadoras, que se utilizam de sistemas de atendimento com funções de retenção ou fidelização de clientes, assume clara abusividade.

            O segundo elemento da abusividade geral significa que uma prática, para ser considerada abusiva, deve ter um significante e suficiente efeito sobre o consumidor, de modo a alterar ou ser capaz de alterar seu comportamento econômico, forçando-o a tomar uma decisão transacional – que pode ser uma decisão sobre a conservação de um contrato – que de outra forma não tomaria, em prejuízo de sua capacidade de tomar uma decisão informada e independente. Sob esse aspecto, o método da "célula de retenção" se mostra até mais abusivo, porque "distorce materialmente" o comportamento econômico do consumidor. Atendentes bem treinados e experientes em técnicas de fidelização, em contato com um consumidor já impaciente e extenuado pela demora no atendimento, atuam de modo bastante significante de modo a fazê-lo trocar a decisão sobre a qual estava convicto. Há uma influência indevida, pelos recursos que são utilizados (com a colocação de todos os tipos de dificuldades e barreiras à rescisão), sobre a liberdade de escolha ou comportamento do consumidor médio. Em alguns casos, ocorre verdadeiro assédio sobre o consumidor, o que o conduz a tomar uma decisão de transação que não tomaria de outro modo. Esse tipo de prática comercial distorce substancialmente o comportamento econômico do consumidor, uma vez que prejudica sensivelmente sua aptidão para tomar uma decisão esclarecida e o conduz a adotar uma decisão transacional que não teria tomado de outro modo.

Como se observa, a utilização de "células de retenção" ou métodos de "fidelização" em sistemas de teleatendimento (call center) assume o caráter de verdadeira prática comercial abusiva ou método comercial desleal, justificando a intervenção judicial para eliminar tal procedimento nas relações de consumo, de forma a impedir que a má-fé e a deslealdade dominem as relações comerciais. Sem dúvida, esses "métodos de retenção" permitem que o canal de comunicação tenha como prioridade a "fidelização" de consumidores, ou seja, esse canal muitas vezes, embora com a aparência de que se presta ao atendimento de pedidos de cancelamento, termina por reter como seus usuários eventuais consumidores insatisfeitos com os serviços prestados, convolando-se, essa técnica de "retenção", em evidente prática comercial abusiva. De fato, consumidores desejosos de cancelar seus contratos de prestação de serviços com a ré, encontram tantas barreiras e dificuldades na forma de atendimento atual (por meio do call center), que terminam desistindo do cancelamento. Assim, as centrais telefônicas, que deveriam dar prioridade ao atendimento das solicitações do usuário (do serviço de telefonia móvel), estão sendo utilizadas prioritariamente para preservar interesses empresariais e econômicos da operadora – a manutenção do usuário como seu cliente cativo.

            É certo que a prestadora tem um legítimo interesse em preservar seu cliente, mas não pode de maneira alguma, a pretexto de exercer esse direito, cometer atos que possam colocar o consumidor em posição de desvantagem na relação comercial. O serviço de atendimento deve ser estruturado de forma a trazer facilidades aos consumidores, e não dificuldades. Se a central telefônica de informação e atendimento (teleatendimento), na forma da técnica atual, está estruturada não para dar prioridade às solicitações do usuário, mas para preservar prioritariamente os interesses empresariais da operadora, se transmuda em ferramenta para a realização de prática comercial abusiva.

9. Conclusões:

           1a. O serviço de call center (teleatendimento), se devidamente estruturado, pode ser utilizado como meio útil para recebimento de queixa e pedidos de cancelamento, mas não pode ser a forma exclusiva de atendimento oferecido pelas operadoras de telefonia móvel, uma vez que normas regulamentares da Anatel impõem a obrigatoriedade de disponibilizarem serviço de atendimento pessoal (postos de atendimento ao público) aos seus usuários.

            2a. Ainda que não houvesse norma regulamentar estabelecendo essa obrigação, as operadoras teriam que disponibilizar, ao menos, postos de atendimento pessoal para os consumidores hipossuficientes (idosos, portadores de deficiência física e gestantes), por força do art. 2o. da Lei 10.048/00, que exige que as prestadoras privadas de serviço público dispensem tratamento diferenciado e prioritário a essa categoria específica de consumidores.

            3a. A utilização de "células de retenção" em sistemas de teleatendimento (call center), com funções de fidelização de clientes, configura prática comercial abusiva.

            4a. O Judiciário pode intervir para impor às operadoras de telefonia móvel o dever de oferecimento de postos de atendimento público e para obrigar que eliminem as "células de retenção" dos sistemas de call center.

Notas

            01 Agência criada pela Lei 9.472, de 16 de julho de 1997 (art. 8o.).

            02 O art. 5o. do Anexo à Resolução n. 316 de 2002, da Anatel, estabelece que "O SMP é prestado em regime privado, e sua exploração e o direito de uso das radiofreqüências necessárias dependem de prévia autorização da ANATEL".

            03 Como explica Roberto Fontes Frederici Filho, em artigo publicado no site www.teleco.com.br, intitulado "A Regulação nas Telecomunicações Brasileiras e o Projeto de Lei n. 3.334 de 2004".

            04 A doutrina costuma distinguir os serviços públicos em serviços essencialmente públicos e de utilidade pública. Os primeiros seriam aqueles que não admitem a transferência de sua execução, já os de mera utilidade pública podem ser transferidos, por contrato (concessão) ou ato unilateral (permissão ou autorização), para que sua execução seja feita por particulares, delegados que os presta em seu nome e por sua própria conta e risco, mas sempre sob a regulamentação e controle estatal. A transferência da execução de serviços públicos (de utilidade pública ou de interesse público) a agentes privados, na condição de delegados (concessionários, permissionários ou autorizatários), não desvirtua a natureza pública do serviço, tanto que continua sendo regulamentado e mantido sob o controle do Poder Público. Por conseqüência, o serviço continua sendo público ou de utilidade pública, apenas descentralizada sua execução. O fato de tais serviços serem delegado a terceiros, estranhos à Administração Pública, não retira do Estado o seu poder de regulamentá-los e controlá-los, exigindo sempre atualização e eficiência.

            05 O art. 128 da Lei n. 9.472/97 consagra o princípio da intervenção mínima do Estado em relação aos serviços de telecomunicações explorados sob o regime privado, nesses termos: "Art. 128 – Ao impor condicionamentos administrativos ao direito de exploração das diversas modalidades de serviço no regime privado, sejam eles limites, encargos ou sujeições, a Agência observará a exigência de mínima intervenção na vida privada, assegurando que: I- a liberdade será a regra, constituindo exceção as proibições, restrições e interferências do Poder Público".

            06 A própria definição do SMP, contida no art. 4o. do Anexo da Resolução 316 da Anatel deixa claro ser esse serviço de interesse público. A redação do artigo mencionado é a seguinte: "Art. 4º Serviço Móvel Pessoal – SMP é o serviço de telecomunicações móvel terrestre de interesse coletivo que possibilita a comunicação entre Estações Móveis e de Estações Móveis para outras estações, observado o disposto neste Regulamento.

            07 O art. 1o. do Anexo da Resolução 316 da Anatel estabelece que "A prestação do Serviço Móvel Pessoal – SMP é regida pela Lei n.º 9.472, de 16 de julho de 1997, Lei Geral de Telecomunicações – LGT, por este Regulamento, por outros Regulamentos e Normas aplicáveis ao serviço.

            08 O Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC) é o serviço de telecomunicações que, por meio de transmissão de voz e de outros sinais, destina-se à comunicação entre pontos fixos determinados, utilizando processos de telefonia. São modalidades do Serviço Telefônico Fixo Comutado destinado ao uso do público em geral o serviço local, o serviço de longa distância nacional e o serviço de longa distância internacional.

            09 Como já tivemos oportunidade de fundamentar em item anterior.

            10 A transferência ao particular da execução dos serviços de telecomunicações pode assumir diferentes formas de delegação, dependendo do regime jurídico do serviço descentralizado. A Lei n. 9.472/97 cuidou da classificação quanto ao regime da prestação dos serviços de telecomunicações em seu art. 63, dividindo-os em dois tipos: o público e o privado. Naquele os serviços são prestados em regime de concessão ou permissão (art 63, parágrafo único), enquanto no regime privado o serviço é prestado mediante autorização (art 131). Como o serviço de telefonia fixa (STFC) é prestado sob a égide do regime público, as operadoras recebem concessão para a prestação desse serviço; já as operadoras de telefonia móvel (SMP) recebem uma mera autorização do Poder Público. Essa diferença de espécie da delegação não impede concluir que os serviços cuja execução é transferida ao particular mantenham a natureza pública (as características de utilidade ou interesse público), o que justifica a similitude na imposição de obrigações de atendimento aos usuários.

            11 É importante observar que, embora o dispositivo se refira a concessionárias de serviços públicos, pretende abranger com essa expressão qualquer empresa privada que execute ou preste um serviço de interesse público.

            12 O art. 12 do Anexo da Res. 316/2002 (Regulamento do SMP) estabelece que: "A prestadora deve cumprir as metas de qualidade fixadas no Plano Geral de Metas de Qualidade para o SMP (PGMQ-SMP), bem como nos respectivos Termos de Autorização".

            13 Em ação civil pública que tramitou na 32a. Vara Cível do Recife (proc. n. 001.2007.001.2005.022784-6), a operadora de telefonia móvel BSE S.A. (CLARO) informou, em sua peça de contestação, que no mês de fevereiro deste ano, o percentual de usuários que desistiu do cancelamento, depois de passarem pela "célula de retenção", foi de 78% (setenta e oito por cento).

            14 A regra geral de abusividade em relação às cláusulas contratuais é complementada pelo § 1o. e incisos do art. 51 do CDC, que indica (nos seus incisos I a II) o que se presume ser uma vantagem exagerada.

            15 Redação atribuída ao caput do art. 39 do CDC pela Lei n. 8.884, de 11.6.94.

            16 Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

            IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;

            17 Uma versão em português do texto dessa Diretiva pode ser acessado em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/ site/pt/oj/2005/l_149/l_14920050611pt00220039.pdf  

            18 O art. 5o., item 2, da Diretiva Européia 2005/29/CE, que define o que é considerado prática comercial desleal, tem a seguinte redação:

            "2. Uma prática comercial é desleal se:

            a) For contrária às exigências relativas à diligência profissional;

            e

            b) Distorcer ou for susceptível de distorcer de maneira substancial o comportamento económico, em relação a um produto, do consumidor médio a que se destina ou que afecta, ou do membro médio de um grupo quando a prática comercial for destinada a um determinado grupo de consumidores".

            19 Para possibilitar a aferição de uma determinada prática comercial como abusiva ou não, a doutrina européia se vale do conceito de consumidor médio (average consumer) como o consumidor padrão, afastando qualquer outro conceito relacionado à idéia de consumidor vulnerável ou consumidor atípico. Esse modelo de consumidor, que é uma expressão do princípio da proporcionalidade e tem sido utilizado pela Corte Européia de Justiça, aplica-se quando a prática comercial alcança a generalidade dos consumidores. Ele, no entanto, pode ser temperado quando a prática comercial atingir um grupo particular de consumidores (com, p. ex., crianças), hipótese em que o membro médio desse grupo específico é que deve ser considerado. Esse sistema de adoção do conceito de "consumidor padrão médio" facilitará o trabalho dos tribunais, quando tiverem de definir a natureza de uma determinada prática comercial, na medida em que confere os meios para se levar em consideração relevantes aspectos sociais, culturais ou lingüísticos de um determinado grupo de consumidores.

 

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Demócrito Ramos Reinaldo Filho: Juiz de Direito titular da 32a Vara Cível de Recife/PE. Professor de Direito da Informática. Presidente-fundador (1999-2003) e Diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática (IBDI). Mestrando em Direito Privado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-graduado em Direito Civil e Bacharel em Direito pela UFPE. Autor de diversos estudos em Direito da Informática.


A natureza da competência decorrente de eleição de foro nos novos arts. 112 e 114 do CPC

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* Iure Pedroza Menezes 

SUMÁRIO: 1. Aspectos introdutórios – Os critérios de fixação de competência segundo a teoria de Giuseppe Chiovenda – 1.2. Competência absoluta e competência relativa – 2. Competência oriunda de eleição de foro – 3. Foro de eleição em contrato de adesão – 4. As novas regras do parágrafo único do art. 112 e do art. 114 do CPC – 4.1. Ausência de determinação legal específica tratando a competência decorrente de eleição de foro em contrato de adesão como absoluta – 4.2. Inclusão da nova regra no âmbito da competência relativa – 4.3. Prorrogabilidade – 4.4. Necessidade de exame do contexto fático – 4.5. Conclusão acerca da natureza jurídica da competência concernente à eleição de foro em contrato de adesão

 

 

1. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS

A jurisdição é exercida pelo Estado, que a monopoliza, sendo vedado ao administrado o exercício arbitrário das próprias razões (CP, art. 345). Dentro da complexa estrutura do Estado, a atividade jurisdicional é desempenhada por um Poder precipuamente criado para tal finalidade: o Poder Judiciário, que cumpre esse especial papel através dos seus diversos órgãos. Cada órgão, todavia, exerce a jurisdição nos limites impostos pela lei. Daí é que exsurge a noção de competência, que se qualifica como conjunto de atribuições jurisdicionais afeto a determinado órgão judiciário. Graças às limitações estabelecidas, é possível conhecer a exata dimensão da atividade jurisdicional de cada unidade jurisdicional. Essas limitações – que guardam em si uma máxima de divisão de trabalho – seguem preceitos técnicos e com eles se evita a distribuição arbitrária de atribuições.

O próprio ordenamento – que cuida de estabelecer as regras distributivas de competência – leva em conta uma série de elementos, tanto de ordem fática como de ordem jurídica. Nessa linha, têm-se vários critérios de fixação de competência que nem sempre obedecem a uma lógica de razão pura. Por vezes, o ordenamento sopesa aspectos de ordem política ou de conveniência social, implicando variantes, como o tempo e o espaço.

São numerosos os critérios de fixação de competência. De outro lado, eles possuem “diferentes comportamentos”. Por conseguinte, é de valiosa importância a busca de uma classificação, no sentido de melhor teorizar o instituto. Arduamente, a doutrina vem formulando diversas classificações em torno da competência jurisdicional, pretendendo dar-lhe arcabouço lógico. Para fins de otimização da abordagem do tema proposto, abordarei apenas a classificação acolhida pelo Código de Processo Civil vigente.

1.1. Os critérios de fixação de competência segundo a teoria de giuseppe chiovenda

O direito processual civil brasileiro abraçou a teoria do jurista italiano Giuseppe Chiovenda, segundo a qual os critérios de fixação de competência baseavam-se em três searas: a) objetiva; b) territorial; c) funcional.

A objetiva leva em conta o objeto da ação, id est, o bem da vida posto em juízo. Nestes termos, importa saber a natureza da relação jurídica na qual se encontra engajado o bem jurídico, resultando daí a chamada competência ratione materiae. Além disso, leva em consideração o valor econômico atribuído àquele bem, redundado na conhecida competência em razão do valor da causa. Por derradeiro, importa conhecer as partes envolvidas na relação de direito material, resultando a competência ratione personae. No tocante a esta última, é importante frisar que o jurista italiano, em sua originária lição, não a mencionava. Mas, dentro da temática do direito brasileiro e, notadamente, considerando o relevo que se dá a certas funções públicas, não se pode deixar de conceber dito critério de fixação de competência. Uma vez que, inelutavelmente, relaciona-se com o objeto da ação, há de pertencer à classificação objetiva.

A competência territorial refere-se ao critério espacial-geográfico (ratione loci), vinculando-o a algum elemento que tenha relação com a parte, com o objeto ou com a causa de pedir. Assim, poderá ser: o domicílio, o lugar do fato, o lugar de assunção da obrigação, a situação do imóvel etc. Tais elementos são eleitos pela lei, variando caso a caso.

Temos, por fim, a competência funcional, estabelecida com base nas atribuições inerentes a cada órgão judiciário. Com supedâneo nela, fixa-se a competência recursal dos tribunais, à guisa de ilustração.

Todos esses critérios possuem características próprias, permitindo-nos enquadrá-los em dois grandes grupos: o absoluto e o relativo.

1.2. Competência absoluta e competência relativa

Com arrimo na rigidez com que a lei trata dos critérios de fixação de competência, podemos classificá-los em absolutos (rígidos) e relativos (flexíveis). Há que se observar, malgrado, que a competência em si não é absoluta ou relativa, mas sim os respectivos critérios de fixação. Para fins meramente didáticos, doravante, utilizarei as terminologias comumente adotadas: competência absoluta e competência relativa.

O enquadramento dos critérios em uma classe ou em outra – advirta-se – depende da opção do legislador. Dentro do modelo constitucional brasileiro, seria inconcebível o julgamento, e.g., de uma reclamação trabalhista por um juiz eleitoral. A contrario sensu, mesmo dizendo a lei que “A ação fundada em direito pessoal e a ação fundada em direito real sobre bens móveis serão propostas, em regra, no foro do domicílio do réu” (CPC, art. 94), não se afiguraria absurdo o transcurso de uma ação (vinculada à referida regra) no foro onde é domiciliado o autor.

Teríamos, no primeiro caso, ofensa a preceitos de suma importância. Não foi sem propósito que a Constituição Federal instituiu a Justiça Eleitoral (com função tipicamente eleitoral) e, de outro lado, a Justiça do Trabalho (com competência para dirimir, em primeira mão, os litígios laborais). Portanto, o critério de fixação de competência relacionado com a matéria posta em juízo é considerado indisponível pelas partes. E isso é primaz para dar higidez ao sistema jurisdicional. Destarte, é critério do tipo absoluto.

Já no segundo caso (concernente ao foro), a própria lei não imprime tanta relevância. Há, inclusive, permissão para que as partes “transijam” quanto ao juízo competente. A respeito, diz o CPC: “Art. 111. A competência em razão da matéria e da hierarquia é inderrogável por convenção das partes; mas estas podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde serão propostas as ações oriundas de direitos e obrigações”. Sendo “modificável” a competência por ato volitivo da parte, aquela se classificará como relativa.

No direito processual pátrio, a competência fundada na matéria, no aspecto funcional e na qualidade da parte, está adstrita a normas rígidas (absolutas). Por outro lado, a competência fixada em razão do território e da valoração econômica do bem jurídico, via de regra, segue modelo flexível (relativo).

Pelos exemplos citados, vê-se facilmente que se o critério é do tipo absoluto, poderá o juiz dizer-se incompetente, independentemente de argüição da parte contrária. Aliás, diz o próprio Código, no art. 113: “A incompetência absoluta deve ser declarada de ofício e pode ser alegada, em qualquer tempo e grau de jurisdição, independentemente de exceção”. Inclusive, no § 2º do mesmo dispositivo, o CPC impõe a nulidade dos atos decisórios quando verificado o desrespeito a uma regra de competência absoluta 

Sendo relativo o critério de fixação, não pode o magistrado dizer-se incompetente ex officio, dependendo de alegação da parte adversa. Nessa linha, dispõe o CPC: “Art. 112. Argúi-se, por meio de exceção, a incompetência relativa”.

No intuito de tornar clara a impossibilidade de declinação ex officio da competência relativa, o Superior Tribunal de Justiça há muito editou a Súmula nº 33, segundo a qual “A incompetência relativa não pode ser declarada de ofício”.

Da leitura dos dispositivos legais, temos um outro traço divisor entre estas duas classes de critérios de competência. Se a competência absoluta pode ser objeto de apreciação ex officio – podendo, ainda, ser argüida em qualquer fase ou grau de jurisdição –, é sensato dizer que o juiz absolutamente incompetente não passará a sê-lo pela mera ausência de argüição da parte.

Ao contrário, se a regra de fixação de competência for relativa – não havendo argüição pela parte a quem aproveite a declinação –, o magistrado que, de ordinário, não seria o naturalmente competente, passará a sê-lo. A tal fenômeno processual dá-se o nome de prorrogação de competência. A esse respeito, já dizia o Código desde o seu nascedouro até o advento da Lei nº 11.280/06: “Art. 114. Prorroga-se a competência, se o réu não opuser exceção declinatória do foro e de juízo, no caso e prazo legais”.

Em outras palavras, a figura da prorrogação é inerente à de competência relativa. Não se presta, inexoravelmente, ao critério de fixação absoluto. Sob esta ótica, com muita propriedade, ensina-nos Cândido Rangel Dinamarco: “O caráter absoluto da competência consiste na imunidade a prorrogações. Diz-se absoluta a competência que não pode ser desfeita ou alterada por conexidade, por ausência de argüição ou por qualquer ato de vontade das partes, consensual ou unilateral” (Instituições de direito processual civil, vol. I, p. 605).

2. COMPETÊNCIA ORIUNDA DE ELEIÇÃO DE FORO

A competência territorial, como abordado, está classificada como relativa. Pode, portanto, ser objeto de livre disposição das partes. Essa faculdade, aliás, vai mais longe que própria temática da prorrogação da competência. Com efeito, mesmo antes da existência do litígio, podem as partes estabelecer convenção de competência de foro, através de contrato escrito. A única exigência feita pela lei é a vinculação do ajuste a um negócio jurídico certo e determinado. Sendo tal foro de livre escolha das partes, dá-se o nome de foro de eleição. Nesse contexto, pontua Arruda Alvim:
 

“O foro de eleição decorre do ajuste entre dois ou mais interessados, devendo constar de contrato escrito e se referir especificamente a um dado negócio jurídico (disponível), para que as demandas oriundas de tal negócio jurídico possam ser movidas em tal lugar” (Manual de direito processual civil, vol. I, p. 277). 

Ainda na vigência do CPC/39 – que não continha disposição expressa a respeito – o Supremo Tribunal Federal já reconhecia o foro de eleição, conforme sua antiga Súmula nº 335, editada na sessão plenária de 13.12.63, com o seguinte teor: “É válida a cláusula de eleição de foro para os processos oriundos do contrato”.

No Código vigente, o foro de eleição encontra-se positivado no art. 111, segundo o qual “A competência em razão da matéria e da hierarquia é inderrogável por convenção das partes; mas estas podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde serão propostas as ações oriundas de direitos e obrigações”.

Não pode o foro de eleição, contudo, ser confundido com o foro do contrato. Este se refere ao lugar de sua celebração; aquele, ao lugar escolhido pelas partes para ser a base territorial-judiciária onde deverá correr a demanda tendente a dirimir conflitos da avenca, conforme lecionado por Arruda Alvim, na obra antes mencionada. Desta forma, o art. 111, § 2º, do CPC, deve ser interpretado com a devida ponderação. Onde se lê “foro contratual”, entenda-se “foro de eleição”. 

Da interpretação do art. 111 fica claro que a eleição de foro somente é permitida quando se tratar de competência relativa. Por via de conseqüência, o sistema legal não permite eleição de foro no tocante à competência absoluta. E, no mesmo sentido, chega-se à outra constatação: o foro de eleição não tem o atributo da rigidez. Tanto isso é verdade que, inobstante a existência da regra do foro de eleição, o autor poderá propor a demanda no domicílio do réu (regra geral). A lição de Arruda Alvim é por demais esclarecedora, nesse mister: 

“Mesmo havendo cláusula de eleição de foro, não fica uma das partes inibida de propor ação no domicílio da outra, dado que o réu não será prejudicado. É legítima a propositura da ação no domicílio do réu, ao invés de o ser no foro de eleição. Assim, a eleição de foro não elimina, nunca, o foro do domicílio. (…). Razão pela qual, também, aqui, poder-se-ia falar na existência de foros concorrentes. (…) a opção pelo foro do domicílio, mesmo havendo foro de eleição, não enseja o oferecimento por parte do réu de exceção de incompetência ratione loci. O foro de eleição é um foro a mais, mas que, nem pelo fato de existir, transmuda o foro domiciliar em foro incompetente” (Obra citada, p. 278/279). 

Nesse sentido, a título ilustrativo: “Se a empresa credora renuncia ao foro de sua sede e de eleição, optando pelo foro do domicílio do devedor para a promoção de ações judiciais, inexiste qualquer óbice, por se tratar de competência relativa, que permite modificação e, sobretudo, porque não traz prejuízos à parte adversa, que poderá, inclusive, litigar em seu domicilio” (TJGO – 4ª Câm. Cív. – AI nº 44566-0/180 – Rel. Des. Carlos Alberto França – j. 25.08.05).

No mais, o art. 95 do CPC é taxativo ao vedar a convenção das partes quando o critério for absoluto: “Nas ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro da situação da coisa. Pode o autor, entretanto, optar pelo foro do domicílio ou de eleição, não recaindo o litígio sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova”.

O CPC/73, portanto, é claro ao proibir a eleição do foro no tocante a critérios absolutos de fixação de competência (a respeito, cf. Celso Agrícola Barbi, Comentários ao código de processo civil, vol. I, p. 360). 

3. FORO DE ELEIÇÃO EM CONTRATO DE ADESÃO

O CC/02, tal qual o CC/16, não conceitua o contrato de adesão. Ao longo dos anos, a tarefa coube à doutrina. Segundo Caio Mário da Silva Pereira, “Chamam-se contrato de adesão aqueles que não resultam do livre debate entre as partes, mas provêm do fato de uma delas aceitar tacitamente cláusulas e condições previamente estabelecidas pela outra” (Instituições de Direito Civil, vol. III, p. 43).

Dentro da boa técnica legislativa, não é função da lei estabelecer definições. Entretanto, o Código de Defesa do Consumidor trouxe o conceito de contrato de adesão, ao certo para melhor esclarecer o consumidor – geralmente, leigo. E não se deve olvidar que, na esmagadora maioria das vezes, o contrato de adesão é celebrado no âmbito consumerista.

Diz o CDC em seu art. 54: “Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo”.

O contrato de adesão, não se pode negar, sempre foi o “calcanhar de Aquiles” das relações de consumo. Não raras vezes, no trato adesivo, constam cláusulas abusivas, sobretudo quando o consumidor não tem condições de discuti-lo. São elas de diversas naturezas, a exemplo de encargos moratórios extorsivos, limitação de direitos, antecipação de dívida, cláusula de foro de eleição etc. De interesse do direito processual é essa última. Com efeito, a disposição contratual concernente ao foro refletirá diretamente em um dos temas mais importantes do processo civil: a competência jurisdicional. 

Pois bem. Por vezes, há fornecedores de bens e/ou serviços situados em diversos Municípios ou Estados-membros. Ao contratar com o consumidor, em fórmula pré-estabelecida, tais fornecedores elegem foro que, de um lado, traz-lhes grande benefício; de outro, grave prejuízo ao aderente. Isso acontece, por exemplo, quando o foro escolhido não é aquele onde o consumidor (e também o fornecedor) tem domicílio; mas outro, muito distante, onde a empresa tem a sua sede administrativa ou o centro de seus negócios.

Em situações desse jaez, na prática, impor ao consumidor o deslocamento para comarca longínqua, visando a dirimir um conflito contratual, seria submetê-lo a um ônus desproporcional. Abusos dessa ordem têm o condão de extrair da esfera jurídica do indivíduo o próprio acesso à justiça, com seu sagrado figurino constitucional.

É válido frisar a intenção do constituinte ao conferir garantias efetivas ao consumidor. Positivamente, a CF/88 (apelidada de “Constituição Cidadã”), no âmbito dos “Direitos e Garantias Fundamentais”, fez contar em seu art. 5º, XXXII, o seguinte: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Dando efetividade à norma programática, o legislador infraconstitucional promulgou o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), importante instrumento para o próprio exercício da democracia.

Reconhecendo a hipossuficiência do consumidor frente aos fornecedores, o CDC trouxe diversas regras de proteção. Interessa-nos duas dentre as previstas no art. 6º: “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” (inciso V) e “a facilitação da defesa de seus direitos” (inciso VIII). 

Por conseqüência, mitigou-se a máxima segundo a qual o juiz não pode declinar a incompetência relativa. Com efeito, a jurisprudência, aos poucos, veio firmando entendimento favorável ao consumidor. Nesse ponto, tratando-se de competência territorial estabelecida por força de contrato de adesão, o magistrado poderá declinar a competência, notadamente, quando se convencer do prejuízo trazido ao consumidor com o foro escolhido (em verdade, imposto). 

Enveredando-se por esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça passou a emitir reiteradas decisões, permitindo a declaração ex officio de incompetência territorial. Vale colacionar alguns arestos para ilustrar o tema:

“Em se tratando de relação de consumo, tendo em vista o princípio da facilitação de defesa do consumidor, não prevalece o foro contratual de eleição, por ser considerada cláusula abusiva, devendo a ação ser proposta no domicílio do réu, podendo o juiz reconhecer a sua incompetência ex officio” (STJ – 2ª Seção – CC nº 48097/RJ – Rel. Min. Fernando Gonçalves – j. 13.04.05).

“O Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos contratos submetidos às regras do Sistema Financeiro de Habitação, e, dessa forma, o Juiz pode declinar, de ofício, a competência, visando à proteção do consumidor, quando a cláusula de eleição de foro vier a prejudicá-lo” (STJ – 4ª Turma – AgRgAI nº 495742/DF – Rel. Min. Barros Monteiro – j. 29.06.04). 

O afastamento do foro de eleição, que redundará na declinação ex officio da competência territorial, não ocorrerá, por óbvio, em qualquer situação. Deverá o magistrado, com o seu poder geral de cautela, analisar as circunstâncias do caso concreto, averiguando se houve, de fato, abuso no tocante à cláusula de eleição e/ou se ela realmente dificulta o acesso à justiça.

A fim de sacramentar a questão, a Lei nº 11.280/06 passou a prever a matéria expressamente no CPC, o que será objeto de comentário no item seguinte.

4. AS NOVAS REGRAS DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 112 E DO ART. 114 DO CPC

A Lei nº 11.280/06 acrescentou parágrafo único ao art. 112. Diz ele: “Argúi-se, por meio de exceção, a incompetência relativa”. No seu parágrafo único, taxativamente, vaticina que “A nulidade da cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, pode ser declarada de ofício pelo juiz, que declinará de competência para o juízo de domicílio do réu”.

A mesma Lei nº 11.280, ainda, modificou a redação do art. 114, passando à seguinte: “Prorrogar-se-á a competência se dela o juiz não declinar na forma do parágrafo único do art. 112 desta Lei ou o réu não opuser exceção declinatória nos casos e prazos legais”.

Como afirmado anteriormente, a intenção do legislador foi apenas positivar a copiosa jurisprudência. Há, entretanto, uma série de julgados que, a nosso ver, incorrem em equívoco, quando tratam o assunto sob a ótica de competência absoluta. Vejamos alguns arestos do STJ, à guisa ilustrativa:

“A eleição de foro diverso do domicílio do réu, previsto em contrato de adesão, não deve prevalecer quando acarreta desequilíbrio contratual, dificultando a própria defesa do devedor. No caso, trata-se de incompetência absoluta, podendo ser declarada de ofício. Precedentes da Corte” (STJ – 3ª Turma – AgRgAI nº 455965/MG – Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro – j. 24.08.04).

“Reconhecida nas instâncias ordinárias a relação de consumo estabelecida entre a instituição financeira e o beneficiário de crédito bancário em contrato objeto de ação revisional, bem como a nulidade de cláusula de eleição de foro em contrato de adesão, estabelece-se a competência absoluta, definida pelo foro do domicílio do réu (art. 6º, VIII, da Lei n. 8.078/90), nos termos da jurisprudência assentada na egrégia Segunda Seção (CC n. 17.735/CE, Rel. Min. Costa Leite, DJU de 16.11.1998)” (STJ – 4ª Turma – REsp. nº 445214/MT – Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior – j. 24.09.02).

Inelutavelmente, a competência é territorial e, portanto, relativa. Com isso não pretendo dizer que o nosso sistema seja avesso à competência territorial-absoluta. Em verdade, está ela prevista no próprio art. 95, que diz: “Nas ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro da situação da coisa. Pode o autor, entretanto, optar pelo foro do domicílio ou de eleição, não recaindo o litígio sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova”.

Semelhante disposição está prevista no art. 44 do Código de Processo Civil Francês: “En matière réelle immobilière, la juridiction du lieu où est situé l’immeuble est seule competente”.

Mas, no caso dos arts. 112 e 114, sob comento, não se pode cogitar de regra absoluta de competência. Vários são os argumentos que podem ser utilizados nesse sentido. Vejamos alguns:

4.1. Ausência de determinação legal específica tratando a competência decorrente de eleição de foro em contrato de adesão como absoluta

Com a inclusão do parágrafo único ao art. 112 e modificação do art. 114, em momento algum o legislador apontou a nova sistemática como regra de competência absoluta.

Dentro da linha do Código, em princípio, a competência territorial é relativa. Só não será quando houver disposição expressa nesse sentido, tal qual faz o art. 95. Esta norma, como visto, veda a escolha de outro foro que não seja o da situação da coisa – e assim o fez expressamente.

Ressalte-se que se a competência for absoluta, o magistrado poderá decliná-la ex officio. Mas, nem sempre quando assim proceder, estar-se-á diante de critério rígido de competência. Com efeito, a declinação de ofício é uma relevante característica da competência absoluta, mas não exclusiva dela.

4.2. Inclusão da nova regra no âmbito da competência relativa

A incompetência relativa deve ser alegada pelo réu através da denominada exceção de incompetência (art. 112). De outro turno, a incompetência absoluta independe de exceção (art. 113). Ora, se a pretensão do legislador fosse classificar a incompetência do juízo, oriunda de cláusula contratual de eleição de foro, como absoluta, por óbvio a regra não estaria no art. 112, mas sim no art. 113.

Vindo a nova regra inserida no parágrafo único do art. 112, ao seu caput se vincula. Não se poderia, com efeito, pensar em competência absoluta argüível através de exceção.

Não parece razoável, ainda, admitir tenha o legislador tratado de dois institutos antagônicos no mesmo dispositivo.

4.3. Prorrogabilidade

A competência absoluta, como outrora afirmado, é improrrogável. Embora não haja manifestação da parte ré, o juiz poderá, de ofício, declarar-se incompetente. Isso, inclusive, poderá ocorrer em qualquer fase do processo ou grau de jurisdição, repita-se. Aqui, talvez esteja presente o mais importante traço da competência absoluta: a indisponibilidade pelas partes.

Se de um lado o autor não pode argüir a incompetência relativa (já que ele próprio escolheu o foro), por outro viés, no caso de incompetência absoluta (estando em jogo o interesse público), poderá o próprio demandante argüi-la. Isso porque, não há possibilidade de prorrogação da competência absoluta, mas tão-só da relativa. Nesse sentido: TRF-4ª Região – 4ª Turma – AC nº 9604206567/PR – Rel. Juiz Sergio Renato Tejada Garcia – j. 13.09.01 e TRF-4ª Região – 2ª Turma – AC nº 9004183825/RS – Rel. Des. Teori Albino Zavascki – j. 09.12.93.

O parágrafo único do art. 112, portanto, necessariamente, deve ser lido em consonância com o art. 114. Como se observa, a regra concernente ao foro de eleição previsto contratualmente poderá ser objeto de prorrogação, instituto típico da competência relativa. No mais, o art. 114 encerra afirmando a mencionada prorrogação se “o réu não opuser exceção declinatória (…)”.


Ora, se o legislador diz que haverá prorrogação caso o réu não excepcione o juízo, não há solução outra senão concluir estar-se diante de competência relativa. Nesta ordem de idéias, pensar o contrário, seria impor ao juiz um efeito preclusivo no tocante à possibilidade de dizer-se absolutamente incompetente, o que se afiguraria de todo absurdo.

4.4. Necessidade de exame do contexto fático

As regas de competência absoluta, no geral, não demandam exame fático-probatório. O raciocínio se encerra no plano puramente jurídico. Por exemplo, em qualquer situação, independente da análise do caso concreto, somente o STJ tem competência para apreciar recurso especial. Da mesma forma, é desnecessário analisar fatos para se chegar à conclusão de que compete ao STF processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade. No mesmo raciocínio, em uma comarca onde haja varas de família, independentemente das circunstâncias fáticas de uma causa objetivada à desconstituição do matrimônio, será ela distribuída para um daqueles juízos.

Em outras palavras, para se aferir a competência absoluta, bastará verificar a natureza da relação jurídica de direito material, a qualidade da parte envolvida ou alguma regra que vincule certa espécie processual a determinado órgão judiciário.

A competência relativa, por seu turno, geralmente reclama a análise de circunstâncias fáticas. Quando se diz, por exemplo, que o foro do domicílio do réu é o competente para as ações em geral (art. 94), a averiguação da competência reclamará a análise de documentos e/ou inquirição de testemunhas. Na demanda onde se pleiteia indenização, para concluir sobre o local do dano (necessário para configuração da competência – CPC, art. 100, IV, “a”), igualmente deverá o aplicador da lei debruçar-se sobre os fatos.

Conclui-se, desse modo, que eventual controvérsia relacionada à competência absoluta redundará em análise puramente jurídica. A contrario sensu, havendo controvérsia quanto à competência relativa, no geral, as partes debaterão a situação in concreto.

Por esta razão, a incompetência absoluta não exige oferecimento de exceção, mas mera preliminar de contestação (art. 301, II). D´outra banda, já sabendo que a discussão sobre a competência relativa socorre-se, via de regra, em contexto fático-probatório, o legislador previu a possibilidade de realização de audiência, inclusive com inquirição de testemunhas (art. 309). Ato dessa natureza, certamente, não ocorreria no âmbito de discussão acerca da competência absoluta.

Na hipótese do parágrafo único do art. 112, o juiz só poderá concluir que é incompetente após tecer minuciosa análise acerca da relação de direito material e, mais detidamente, do próprio contrato. Ainda, investigará se houve abuso na eleição do foro, isto é, enveredar-se-á pelos aspectos fáticos da demanda, caracterizando regime de competência relativa.

4.5. Conclusão acerca da natureza jurídica da competência concernente à eleição de foro em contrato de adesão

Analisados os argumentos apontados, é conclusivo que a competência oriunda de cláusula abusiva de eleição de foro, em contrato de adesão, guarda uma característica própria da competência absoluta: possibilidade de declinação ex officio. Contudo, concentra uma série de características relevantes da competência relativa.

É válido ressaltar, de mais a mais, que o dispositivo não proíbe a concordância, expressa ou tácita, do consumidor com o foro de eleição. Ora, tratar o caso como competência absoluta, levar-nos-ia à contraditória situação na qual, o magistrado deveria (e, se competência absoluta fosse, outra alternativa não lhe restaria) declinar de ofício a competência quando o próprio hipossuficiente aceita aquele foro.

Em outra linha, se o caso fosse tratado como competência absoluta, a parte vencida na demanda sempre teria à sua disposição, inegavelmente, a ação rescisória. A respeito, diz o Código: “Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: (…) II – proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente”.

Com isso – e, em especial, quando a parte hipossuficiente (destinatária da especial proteção) fosse a vencedora – ao invés de incrementar meios eficazes de tutela jurisdicional, estar-se-ia a prejudicá-la sobremaneira.

Encontro-me inteiramente convicto, portanto, de que a situação preconizada no art. 112, parágrafo único, c/c art. 114, ambos do CPC, ostenta regra de competência relativa, muito embora com a nuance de poder ser objeto de declinação ex officio

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SANTOS, Ernane Fidelis dos. As reformas de 2005 e 2006 do código de processo civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil. V. 1. 5ª ed. São Paulo: RT, 2001.

SILVA, Ovídio A. Baptista, GOMES, Fábio Luiz. Teoria geral do processo civil. 4ª ed. São Paulo: RT, 2000.

 

 

REFERÊNCIAS  BIOGRÁFICAS

Iure Pedroza Menezes: Juiz de Direito no Estado de Pernambuco. Professor de Direito Processual Civil da UNEB (Univ. do Estado da Bahia). Ex-professor da UESB. Ex-professor da FTC. Especialista em Direito pela UESB/UFSC. Pós-graduando em Filosofia pela UCB (Univ. Católica de Brasília).

 


 


Meio Ambiente e tutela penal nos maus-tratos contra animais.

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  * Lélio Braga Calhau 

1. Meio Ambiente (Notas Introdutórias). – 2. Proteção jurídica da fauna – 3. Segue: proteção jurídico penal – 4.  O tipo penal do artigo 32 da Lei 9.605/98 – 5. Sujeitos: ativo e passivo.  6. Objeto jurídico. – 7. Objeto material – 8. Conduta – 9. Elemento subjetivo – 10. Consumação e tentativa – 11. – Perícia – 12. Conflito Aparente de Normas – 13. Da rinha de galos, farra do boi e rodeios –  14 – Forma equiparada. – 15. Causa especial de aumento de pena – 16. Considerações finais – 17.  Referências Bibliográficas.

 1. Meio Ambiente (Notas Introdutórias)[1].

Segundo alguns autores, a expressão meio ambiente foi utilizada pela primeira vez pelo francês Geoffroy de Saint-Hilaire em 1835. Não há acordo entre os especialistas sobre o que seja meio ambiente. O ecologista, o biólogo e o jurista, cada um, detém a sua visão sobre o conceito do que seja meio ambiente. 

Para Edis Milaré, no conceito jurídico mais em uso de meio ambiente poderemos distinguir duas perspectivas principais: uma estrita e outra ampla. Numa visão estrita, o meio ambiente nada mais é do que a expressão do patrimônio natural e as relações entre os seres vivos. Tal noção, é evidente, despreza tudo aquilo que não diga respeito aos recursos naturais.[2]

 Numa visão ampla, que vai além dos limites estreitos fixados pela Ecologia tradicional, o meio ambiente abrange toda a natureza original (natural) e artificial, assim como os bens culturais correlatos. Em outras palavras, quer-se dizer que nem todos os ecossistemas são naturais, havendo mesmo quem se refira a “ecossistemas naturais”e “ecossistemas sociais”. Esta distinção está sendo, cada vez mais, pacificamente aceita, quer na teoria, quer na prática.[3]

 O Direito brasileiro possui um conceito legal sobre o que seja meio ambiente. A Lei 6.938/81 em seu artigo 3o define que entende-se por Meio Ambiente o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.

 A definição legal não levou em conta as controvérsias dos cientistas sobre o alcance da expressão meio ambiente, mas serviu bem ao propósito de delimitar o conceito no campo jurídico. A Constituição Federal de 1988 também não o definiu, apenas esboçando uma conceituação em seu artigo 225, caput.

 Milaré alerta para o fato que tanto a Lei 6.938/81 quanto a Lei Maior omitem-se sobre a consideração essencial de que o ser humano, considerado como indivíduo ou como coletividade, é parte integrante do mundo natural e, por conseguinte, do meio ambiente. Esta omissão pode levar facilmente á idéia de que o ambiente é algo extrínseco e exterior à sociedade humana, confundindo-o, então, com seus componentes físicos bióticos e abióticos, ou com os recursos naturais e ecossistemas. É de se observar que este equívoco passou para as Constituições Estaduais e, posteriormente, para as Leis Orgânicas de grande parte dos Municípios.[4]  

2. Proteção jurídica da fauna. 

As relações do homem com o animal e a natureza na civilização ocidental têm sido regidas pelo domínio. As atividades generalizadas de maus-tratos aos animais nasceram sobretudo na crença bíblica de que Deus outorgou ao homem o domínio sobre todas as criaturas e do pensamento filosófico que se desenvolveu – assentado numa dualidade ontológica -, o qual vem legitimando toda sorte de exploração dos animais.[5]

 O início de nossa colonização foi marcado pela exploração dos recursos naturais sem compromisso com o futuro, pois pensava-se que os recursos naturais eram infinitos e renováveis. Os sucessivos ciclos econômicos baseados no extrativismo ou em monoculturas, desempenharam papel decisivo no desmatamento e na degradação ambiental.[6]

 As florestas foram sendo devastadas e nossos animais dizimados e levados para fora do nosso país, a maioria sem a condição mínima adequada para o seu transporte, tendo um elevado número morrido nos navios.

 Ao contrário do que a maioria imagina, o pensamento crítico ambiental deita raízes há muito tempo em nossa história, existindo diversos trabalhos publicados no século XVIII e IXX que tratam da crítica ambiental, não com a abordagem atual, mas também, pelo contexto histórico, não menos importantes. Todavia, a cultura popular ainda deita raízes no passado e o meio ambiente e (em especial, os animais) são dizimados em alta velocidade, sendo que grande parte da população não protege ou se interessa pela proteção de nossa biodiversidade.

 Infelizmente, existe ainda em vários setores da população um sentimento de que os animais são coisas e podem ser objeto de qualquer violência, não levando a punição os praticantes de tais atos.

 É comum em algumas cidades as pessoas atirarem em pássaros, amarrarem gatos em sacos e jogá-los nos rios apenas para vê-los se afogarem ou condutas mais dissimuladas, mas tanto gravosas, como a prática de rinhas de galo e canários, farra de boi e rodeios.

 Além do atraso social no julgamento dos aspectos morais e jurídicos de tais condutas, existe um grande aliado que é o interesse econômico de que tais práticas perdurem. Apostas, empregos e investimentos são alguns dos pontos que sempre aparecem conexos com tais ocorrências, algumas vezes contanto, com o ilícito apoio, ou claro ou difuso, de funcionário públicos

 Além disso o tráfico de animais, movimentando bilhões de dólares em todo mundo, e se aproveitando da miséria dos mais pobres e conivência de funcionário públicos, agrava cada vez mais essa situação. As condições precárias, humilhantes e totalmente agressivas do transporte desses animais nos leva a questionamentos sobre a possibilidade da ocorrência, em muitos casos, de dolo eventual na morte dos referidos animais.

 São comuns os casos que papagaios, araras, macacos e outros animais são transportados em malas, muitas vezes sob efeito de sedativos, não chegando vivos aos seu destino, em muitos casos, menos de 10% dos animais enviados ilegalmente. Muito morrem pelas estradas ou são traumatizados e destruídos pelo intuito único de lucro dos traficantes de animais.

 A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 225 afirma que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Em seu parágrafo primeiro, inciso IV, afirma que para assegurar a efetividade desse direito, incube ao Poder Público, proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

 A UNESCO, em 27.01.78, em Bruxelas, Bélgica, editou a Declaração Universal dos Direitos dos Animais. Mais recentemente realizou-se em Cuernavaca, Estado de Morelos, México, em 19.07.97, o Primeiro Encontro Nacional pelos Direitos dos Seres Vivos, uma verdadeira tomada de posição pela dor e sofrimento que os seres humanos impõem aos animais.[7]

Diz a Declaração Universal dos Direitos dos Animais em seu artigo 2o que (a) Cada animal tem o direito ao respeito. b) O homem,enquanto espécie animal não pode atribuir-se o direito de exterminar os outros animais ou explorá-los, violando este direito. Ele tem o dever de colocar a sua consciência a serviço dos outros animais e (c) Cada animal tem o direito à consideração, à cura e à proteção do homem. O artigo 3o prevê: a) Nenhum animal deverá ser maltratado e submetido a atos cruéis. b) Se a morte de um animal é necessária, deve ser instantânea, sem dor nem angústia.[8]

 Há muito foi superado o entendimento que os animais são coisas sem nenhuma proteção jurídica. A proteção de nossa fauna vem sendo garantida por diversos instrumentos legislativos (Código de Caça, Código de Pesca, Lei de Contravenções Penais etc) e a partir de 1988 passou a tutela jurídica dos animais a ter status constitucional.

 O artigo 225, parágrafo primeiro, inciso VII da Constituição Federal, esclarece que incube ao Poder Público, proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. 

3. Segue: proteção jurídica penal. 

A primeira norma que tratou da crueldade contra os animais em nosso país foi o Decreto 16.590, de 1924, que regulamentava as Casas de Diversões Públicas, proibindo corridas de touros, brigas de galos e canários, dentre outras providências. 

Em 10 de julho de 1934, por inspiração do então ministro da agricultura, Juarez Távora, o presidente Getúlio Vargas, chefe do Governo Provisório, promulgou o Decreto Federal 24.645, que estabelecia medidas de proteção aos animais. Tinha força de lei, uma vez que o Governo Central avocou a si a atividade legiferante.[9]   

Em 3 de outubro de 1941, foi baixado o Decreto-Lei 3.688, Lei de Contravenções Penais (LCP), que, em seu artigo 64[10], proibia a crueldade contra os animais. Na época levantou-se uma polêmica em torno do fato da LCP ter ou não revogado o decreto de Getúlio. A jurisprudência firmou-se no sentido de que “em síntese”, os preceitos contidos no artigo 64 compreendem na sua quase totalidade, todas aquelas modalidades de crueldade contra os animais contidas no artigo 3o do Decreto 24.645/34.[11]  

Em decorrência de novos fatos cruéis puníveis e de novas exigências sociais, o conceito de crueldade contra animais, sempre abrangendo o de maus-tratos em sua generalidade perversa, vem sendo ampliado legalmente no sentido de prever a tendência de novas práticas cruéis contra animais, bem como prevenir e reprimir novas condutas desumanas decorrentes tanto do recrudescimento dos maus costumes como das novas pressões notadamente socioeconômicas e ecológico-ambientais (naturais e culturais) contra tais  animais, impondo-se a introdução de novas normas legais e regulamentares ajustáveis ás novas exigências de proteção aos animais, de acordo com a realidade contemporânea.[12] 

Posteriormente outras leis foram sendo aprovadas: Código de Pesca (Decreto-Lei 221/67), Lei de Proteção á Fauna (Lei 5.197/67), Lei dos Cetáceos (Lei 7.643/87), entre outros instrumentos jurídicos de proteção aos animais. 

A proteção da biodiversidade nacional, por influência de diversos tratados internacionais, teve na Lei 9.605/98 um instrumento mais adequado, tendo a crueldade contra os animais elevado-se à categoria de crime, quando até o advento de tal lei, consistia o ato em mera contravenção penal. 

Diz o artigo 32 da Lei 9.605/98 que é crime contra a fauna praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. A pena consiste em detenção, de três meses a um ano, e multa. 

O grande número de infrações penais preconizados pela Lei 9.605/98 tem sido objeto de questionamentos jurídicos. A utilização do Direito Penal para garantir a proteção efetiva do meio ambiente é um fenômeno que tem crescido em grande número de países. 

O Direito Penal na era da globalização sofre uma expansão resultante de áreas que vem sendo elevadas á condição de bens jurídicos penais. Podemos citar nesse sentido os crimes de internet, contra o consumidor, lavagem de capitais, transnacionais etc. A expansão do Direito Penal Ambiental faz parte desse contexto.  

A lei ambiental não tem sido freio suficiente. A proliferação normativa desativa a força intimidatória do ordenamento. Outras vezes, a sanção é irrisória e vale a pena suportá-la, pois a relação custo benefício estimula a vulneração da norma.[13] 

4. O tipo penal previsto na Lei 9.605/98. 

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: 

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa 

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. 

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. 

5. Sujeitos: ativo e passivo.  

Trata-se de crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa. Ao nosso ver, tanto a pessoa física como jurídica.    

A Lei 9.605/98 adotou expressamente o princípio da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Alguns penalistas tem alegado a inconstitucionalidade do referido dispositivo (Nesse sentido: Luiz Régis Prado, Cezar Roberto Bitencourt, René Ariel Dotti, entre outros.), além da incapacidade da teoria do delito atual poder estabelecer bases seguras para o enquadramento da responsabilidade penal da pessoa jurídica. 

A responsabilidade penal das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato, o que demonstra a adoção do sistema de dupla imputação. Através desse mecanismo, a punição de um agente (individual ou coletivo) não permite deixar de lado a persecução daquele que concorreu para a realização do crime seja ele co-autor ou partícipe. Consagrou-se, pois, a teoria da co-autoria necessária entre agente individual e coletividade.[14] 

Para Fernando Galvão, a Constituição federal acolheu opção política no sentido de responsabilizar criminalmente a pessoa jurídica e, portanto, cabe aos operadores do direito construir caminho dogmático capaz de materializar, com segurança, a vontade política.[15]

Ao nosso ver com razão Fernando Galvão, pois a regra esculpida no parágrafo 3o do artigo 225[16] da Constituição Federal traduz opção de Política Criminal do legislador constituinte, tendo a mesma sido adotada expressamente pela Lei Federal 9.605/98. Tal escolha coaduna com o bem jurídico penal a ser protegido e com o novo modelo de Direito Penal no mundo globalizado, o que por si só não significa que o legislador deva sair a criminalizar todas as condutas que ofendam ao bem jurídico ambiental.

São requisitos para a responsabilidade da pessoa jurídica; a) deliberação do ente coletivo; b) vinculação do autor material da infração à pessoa jurídica; c) prática da infração no interesse ou benefício da pessoa jurídica; d) natureza privada da pessoa jurídica; e) atuação do autor material sob o amparo da pessoa jurídica; f) que tal atuação ocorra na esfera das atividades da pessoa jurídica ou que essas atividades se prestem a dissimular a verdadeira forma de intervenção da pessoa jurídica.[17]  

O sujeito passivo é a coletividade 

6. Objeto jurídico. 

O objeto do Direito Ambiental é a harmonização da natureza, garantida pela manutenção dos ecossistemas e da sadia qualidade de vida para que o homem possa se desenvolver plenamente. Restaurar, conservar e preservar são metas a serem alcançadas através deste ramo do Direito, com a participação popular.[18] 

O objetivo da proteção do presente tipo penal é o de reprimir os atentados contra os animais. O ser humano deve respeitar os demais seres da natura e evitar-lhes o sofrimento desnecessário. A crueldade avilta o homem e faz sofrer, desnecessariamente o animal. O objetivo da norma é buscar que tais fatos não se tornem rotineiros e tacitamente admitidos pela sociedade.[19] 

7. Objeto Material.

 São os animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. 

Animais silvestres são os descritos no artigo 1o da Lei 5.197/67. São os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, tais como: tatu, trinca-ferro (pássaro), onça, etc. Segundo o artigo 29, § 3°, da Lei 9605/98, são espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras. 

Animais domésticos são os que vivem normalmente com o homem. São aqueles animais que através de processos tradicionais e sistematizados de manejo e melhoramento zootécnico tornaram-se domésticas, possuindo características biológicas e comportamentais em estreita dependência do homem, podendo inclusive apresentar aparência diferente da espécie silvestre que os originou. Ex: cachorro, gato, galinha, etc. 

Animais domesticados são os que vivem em estado selvagem mas vêm a adaptar-se á vida em companhia dos seres humanos (ex: araras).  

Animais nativos são os originários do meio ambiente brasileiro. 

Animais exóticos são os oriundos externamente do território brasileiro. As espécies ou subespécies introduzidas pelo homem, inclusive domésticas, em estado selvagem, também são consideradas exóticas. Outras espécies consideradas exóticas são aquelas que tenham sido introduzidas fora das fronteiras brasileiras e suas águas jurisdicionais e que tenham entrado espontaneamente em Território Brasileiro. Exemplos: leão, zebra, elefante, urso, lebre-européia, javali, crocodilo-do-nilo, naja, píton, esquilo-da-mongólia, tartatuga-japonesa, tartaruga-mordedora, tartaruga-tigre-d’água, cacatua, arara-da-patagônia, escorpião-do-Nilo, e outros.[20] 

8. Conduta.  

O tipo se utiliza de três verbos: praticar, ferir e mutilar. Praticar (fazer, realizar, cometer, executar), ferir (machucar, cortar, produzir ferimento) e mutilar (cortar ou destruir qualquer parte do corpo).   

Praticar ato de abuso é utilizar indevidamente o animal. Ex: colocar para puxar grandes pesos um animal (ex: burro) que já se encontra estropiado.  

O Decreto 24.645/34 apresenta um rol de condutas omissivas que representam abuso e maus–tratos: deixar o animal por mais de 12 horas sem água e alimento; deixar de revestir com couro ou material com idêntica qualidade de proteção as correntes atreladas aos animais de tiro; deixar de ordenar as vacas por mais de 24 horas, quando utilizadas na exploração de leite etc. Entretanto é possível fazer uma distinção. O mau uso, ou abuso, liga-se á atividade que é imposta aos animais: trabalho excessivo, além das forças do animal, imposição de trabalho á fêmea em estado adiantado de prenhez; imposição de trabalho a animal jovem, ainda sem condições para tal atividade, utilização em rodeios, impondo aos animais, mediante emprego de aparelhos, sofrimento físico e mental, e, assim, mostrar-se não amestrado; emprego exagerado de castigos, para fins de adestramento etc. [21]   

Ferir é cortar, machucar, sendo a ação do que exagera no açoitamento de um burro ou cavalo, por exemplo. Mutilar é cortar partes do corpo do animal. As duas condutas demonstram um grau de maior reprovabilidade em face da prática de maus-tratos.   

9. Elemento Subjetivo. 

O elemento subjetivo do delito é o dolo, ou seja, o agente pratica o ato quando quer ou assume o risco de atingir o resultado. 

Não há previsão de modalidade culposa (negligência, imprudência ou imperícia) no crime de maus tratos contra animais. 

10. Consumação e tentativa. 

O crime se consuma com a prática efetiva da ação ou omissão de abusar, ferir, mutilar ou praticar maus-tratos em face de animais. 

Luiz Regis Prado entende não ser possível a tentativa.[22]

 Entendemos que a tentativa é possível. Basta imaginar a hipótese que o agente é flagrado pela Polícia antes de praticar o ato lesivo, mas já superando o iter criminis dos atos preparatórios e já dando início à execução. No mesmo sentido: Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas[23] e Luís Paulo Sirvinskas[24] 

11. Perícia.

Alguns autores entendem que a mesma é necessária.

 Mas há entendimento em sentido contrário. Nesse sentido: “Os maus tratos a animal, aplicados com crueldade, podem provar-se indiretamente, prescindindo-se, pois, do exame de corpo de delito direto. (TACRIM-SP – AC – Relator Andrade Vilhena – RT 43/367). Referindo-se aos crimes ambientais em sentido genérico: o exame de corpo de delito direto pode ser suprido, quando desaparecidos os vestígios sensíveis da infração penal, por outros elementos de caráter probatório existentes nos autos, notadamente os de natureza testemunhal, documental e, até mesmo, a confissão do próprio réu, como elementos hábeis ao válido suprimento.[25] É o nosso entendimento. 

12. Conflito Aparente de Normas.

 O presente delito revogou de forma tácita a contravenção penal do artigo 64 da Lei de Contravenções Penais que dispunha sobre a crueldade contra animais. 

O Decreto Federal 24.645/34, ao nosso ver, continua em vigor. José Henrique Pierangeli afirma que sem definir o que se deve entender por maus tratos (Lei 9605/98), esta parte definida na lei anterior, a lei nova recepciona conceitos e definições que não foram expressamente – e só por essa forma poderiam sê-lo- revogados. Diversa é a situação do artigo 64 da LCP, que regulava uma mesma situação.[26] Entendendo que o Decreto 24.645/34 também está em vigor: Antonio Silveira Ribeiro do Santos[27] e Edna Cardoso Dias[28]. 

13. Da rinha de galos,  farra do boi e rodeios. 

Fatos lamentáveis, mas ainda, arraigados em certos costumes do povo brasileiro (aliados como sempre do interesse econômico), temos as rinhas de galos,  a farra do boi (festa popular) e os rodeios. 

Segundo o Dicionário Eletrônico Aurélio, rinha é lugar onde se promovem brigas de galos. As rinhas são claramente proibidas. Com a lamentável criatividade, algumas pessoas agora praticam o crime de rinha não só com galos, mas com canários, pitbulls etc.

 Há tentativas de se legalizar a rinha no Brasil, mas o Poder Judiciário tem sido zeloso a evitar que tais atividades criminosas sejam autorizadas.[29] O que nos choca em parte é a contumaz presença de funcionários públicos com algum envolvimento em rinhas de galos[30], o que pode, em tese, configurar, ato de improbidade administrativa previsto na Lei 8.429/92, além de crime de prevaricação. 

 A farra do boi é outro caso vergonhoso de infração ambiental. Era um costume de descendestes sulinos em nosso país. Felizmente, o Supremo Tribunal Federal acabou de vez com as intenções daqueles que queriam emplacara um princípio de adequação social no caso para afastar a responsabilidade penal dos envolvidos. 

 Segundo o Supremo Tribunal Federal:

 Concluído o julgamento do recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que julgou improcedente ação civil pública ajuizada por entidades de proteção aos animais contra omissão do Estado em reprimir a "Farra do Boi". A Turma, por maioria, entendeu que a referida manifestação popular, ao "submeter os animais a crueldade", ofende o inciso VII do § 1º do art. 225 da CF. Vencido o Min. Maurício Corrêa que entendia, de um lado, que o Estado deve garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, bem como proteger as manifestações das culturas populares tal como dispõe o art. 215 caput e respectivo § 1º da CF , coibindo eventuais excessos; e de outro, que se tratava de questão de fato e não de direito, o que é incompatível com o extraordinário. RE 153.531-SC, Relator Min. Francisco Rezek, rel. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio (art. 38, IV, b do RISTF) 10.6.97 [31].

 A questão dos rodeios deveria ter tido a mesma resposta por parte do Estado. Pelo contrário, parece que o lobby econômico do rodeio foi forte no Congresso Nacional, e mesmo sendo um atividade onde claramente os animais são maltratados e abusados de todas as formas, teve aprovada uma lei federal que o regulamentou no Brasil.

 Diz o artigo 1o, parágrafo primeiro, da Lei Federal 10.519/02, que consideram-se rodeios de animais as atividades de montaria ou de cronometragem e as provas de laço, nas quais são avaliados a habilidade do atleta em dominar o animal com perícia e o desempenho do próprio animal.

 Referida lei (artigo 3o) determina que cabe à entidade promotora do rodeio, a suas expensas, prover medidas de defesa sanitária, além da exigência de infra-estrutura completa para atendimento médico.  

 Visando a proteção dos animais contra os maus-tratos foi determinado que haja  médico veterinário habilitado, responsável pela garantia da boa condição física e sanitária dos animais e pelo cumprimento das normas disciplinadoras, impedindo maus tratos e injúrias de qualquer ordem; transporte dos animais em veículos apropriados e instalação de infra-estrutura que garanta a integridade física deles durante sua chegada, acomodação e alimentação; IV – arena das competições e bretes cercados com material resistente e com piso de areia ou outro material acolchoador, próprio para o amortecimento do impacto de eventual queda do peão de boiadeiro ou do animal montado.

 Os apetrechos técnicos utilizados nas montarias, bem como as características do arreamento, não poderão causar injúrias ou ferimentos aos animais e devem obedecer às normas estabelecidas pela entidade representativa do rodeio, seguindo as regras internacionalmente aceitas. As cintas, cilhas e as barrigueiras deverão ser confeccionadas em lã natural com dimensões adequadas para garantir o conforto dos animais. Fica expressamente proibido o uso de esporas com rosetas pontiagudas ou qualquer outro instrumento que cause ferimentos nos animais, incluindo aparelhos que provoquem choques elétricos. As cordas utilizadas nas provas de laço deverão dispor de redutor de impacto para o animal.[32]

 O descumprimento das normas da referida lei podem acarretar a aplicação de multa de até R$ 5.320,00, advertência por escrito, suspensão temporária do rodeio e suspensão definitiva do rodeio. A lei não traz a tipificação de nenhum delito, mas fica claro que o descumprimento das normas administrativas vai claramente enquadrar-se na tipificação de abuso ou maus-tratos do artigo 32 da Lei 9.605/98.

 Se por um lado, o simples descumprimento das normas administrativas acima não pode quebrar o princípio constitucional da presunção da inocência em matéria penal, não há dúvida que o descumprimento comprovado das normas acima acaba por gerar um princípio de prova para a o Ministério Público, e juntamente com a realização de um exame veterinário ou lado pericial, fica caracterizado o tipo penal. 

 Ao nosso ver, cabe á fiscalização ambiental nesses casos, documentar suficientemente o descumprimento das normas administrativas e providenciar a realização de um laudo veterinário ou laudo pericial nos animais envolvidos.

 14. Forma equiparada. 

Segundo o parágrafo primeiro, do artigo 32, da Lei 9605/98, incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

 A realização de experiência dolorosa em animal vivo é denominada vivissecção, que consiste no uso de seres vivos, principalmente animais, para o estudo dos processos da vida e de doenças, e todo o tipo de manipulação sofrida pelos seres vivos em diversos tipos de testes e experimentos.[33]

 Havendo a possibilidade de se realizarem métodos alternativos, a prática da vivissecção fica enquadrada nas sanções penais do artigo 32 da Lei 9.605/98.

15. Causa especial de aumento de pena.  

A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre a morte do animal. 

16. Considerações finais. 

As agressões contra os animais são práticas ainda arraigadas em parte da população brasileira, sendo certo que tais condutas foram já iniciadas com a colonização do Brasil. Milhares de nossos animais foram mortos ou saqueados e levados para outras nações desde da época imperial, sendo que a grande maioria morreu nos porões dos navios em situação de maus-tratos.

 A legislação brasileira ambiental tem sido aperfeiçoada durante o decorrer dos últimos 100 anos com o intuito de se trazer uma melhor proteção jurídica aos animais. Com o advento da Lei 9.605/98 a prática de abusos e maus tratos em face dos animais foi elevada da condição de contravenção penal (artigo 64 da LCP) para a de crime ambiental, na forma do artigo 32 da referida lei.

 A elevação de contravenção penal para crime da conduta de maltratar animais reflete a preocupação do legislador em garantir um melhor mecanismo de defesa da biodiversidade.

 Outro fato que nos preocupa bastante no estudo da aplicação efetiva do artigo 32 da Lei 9.605/98 é a incerteza jurídica que tem sido provocada pela aplicação do princípio da insignificância no em se de crimes ambientais. Os tribunais têm se dividido, ora adotando[34], ora repudiando[35], e a adoção de tal princípio sem parcimônia poderá fazer do artigo 32 da Lei 9.605/98 uma letra morta e gerar mais dano ainda para o já combalido meio ambiente.[36]    

 Infelizmente, por problemas de falta de investimento, corrupção na Administração Pública, ética social, descrença na capacidade efetiva do Direito Administrativo de atuar efetivamente na prevenção da ocorrência das infrações ambientais etc, tem levado o legislador a imprimir uma expansão do Direito Penal na área ambiental, todavia nem toda infração ambiental deve ser criminalizada, mas as mais importantes.

 Não há dúvida que o advento da Lei 10.519/02 (rodeios de animais) foi um retrocesso na questão dos maus-tratos contra os animais e fortaleceu substancialmente o lobby econômico que se beneficia diretamente com tais práticas no país. Deveria o Congresso Nacional ter seguido o mesmo entendimento que o Supremo Tribunal Federal que proibiu definitivamente a legalização da farra do boi em nosso país. 

17.  Referências Bibliográficas.

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SÉGUIN, Elida. O Direito Ambiental: Nossa Casa Planetária, Rio de Janeiro, Forense, 2000. 

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo, RT, 1998.

SIRVINSKAS, Luís Paulo. Tutela Penal do Meio Ambiente, São Paulo, Saraiva, 1998.


 

NOTAS:

[1] Artigo premiado com “Menção Honrosa” no Concurso de Artigos Jurídicos e Arrazoados da Associação Mineira do Ministério Público do Estado de Minas Gerais – versão 2003.

[2] MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. 2a ed, São Paulo, RT, 2001, p. 64.

[3] MILARÉ, op. cit, p. 64.

[4] MILARÉ, op. cit, p 66-67.

[5] DIAS, Edna Cardozo. A tutela jurídica dos animais. Belo Horizonte, Mandamentos, 2000, p. 17.

[6] SÉGUIN, Elida. O Direito Ambiental: Nossa Casa Planetária, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 12.

[7] FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a Natureza. 6a ed., São Paulo, RT, 2000, p. 93.

[8] Proclamada pela Unesco em sessão realizada em Bruxelas em 27 de janeiro de 1978.

[9] DIAS, Edna Cardozo. A tutela jurídica dos animais. Belo Horizonte, Mandamentos, 2000, p. 155.

[10] Decreto-Lei 3.688/41. Crueldade contra animais. Art. 64. Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo: Pena – prisão simples, de 10 (dez) dias a 1 (um) mês, ou multa. § 1º. Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza, em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo. § 2º. Aplica-se a pena com aumento de metade, se o animal é submetido a trabalho excessivo ou tratado com crueldade, em exibição ou espetáculo público.

[11] DIAS, op. cit, p. 155.

[12] CUSTÓDIO, Helita Barreira. Crueldade contra animais e proteção destes como relevante questão jurídico-ambiental e constitucional. Revista de Direito Ambiental, 7, São Paulo, RT, julho-setembro de 1997, p. 63.

[13] NALINI, José Renato. Ética ambiental, Campinas, Milenium, 2001, p. XXIII.

[14] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo, RT, 1998, p. 127.

[15] GALVÃO, Fernando. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Belo Horizonte, Procuradoria-Geral de Justiça, 2002, p. 165.

[16] Artigo 225, § 3º, da CF – As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

 

[17] Conclusão 39 da Carta de Princípios do Ministério Público e da Magistratura para o Meio Ambiente.  Publicada no Jornal Minas Gerais de 23.04.02.

[18] SÉGUIN, Elida. O Direito Ambiental: Nossa Casa Planetária, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 59.

[19] FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de, op. cit, p. 94.

 

[20] Disponível no site do IBAMA, http://www.direitopenal.adv.br.

[21] PIERANGELI, José Henrique. Maus tratos contra animais. São Paulo, RT 765/490.

[22] PRADO, Luiz Regis. Crimes contra o ambiente. São Paulo, RT, 1998, p. 51.

[23] Op. cit, p. 95.

[24] SIRVINSKAS, Luís Paulo. Tutela Penal do Meio Ambiente, São Paulo, Saraiva, 1998, p. 55.

[25] DENÚNCIA. REJEIÇÃO. ART. 43, INC. I, DO CPP. CRIME CONTRA A FAUNA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO INCIDÊNCIA. PROVA PERICIAL. AUSÊNCIA DO EXAME DE CORPO DE DELITO. POSSIBILIDADE DO SUPRIMENTO POR OUTROS ELEMENTOS PROBATÓRIOS. Salvo em circunstâncias especialíssimas, não há falar em insignificância quanto aos crimes contra o meio ambiente, que freqüentemente geram conseqüências irreversíveis ou, pelo menos, de difícil reparação. Quando não for possível o exame de corpo de delito direto, por haverem desaparecido os vestígios da infração penal, outros elementos de caráter probatório existentes nos autos podem suprir a sua falta. O exame de corpo de delito direto pode ser suprido, quando desaparecidos os vestígios sensíveis da infração penal, por outros elementos de caráter probatório existentes nos autos, notadamente os de natureza testemunhal, documental e, até mesmo, a confissão do próprio réu, como elementos hábeis ao válido suprimento. Decisão: A Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto do Relator. Veja Também: TRF – 4ª R: ACR 97.04.72902-2/RS, DJ 22/07/98, p. 406.

RTJ 84/425; 89/109; 103/1040; 112/167; 76/696; 80/109. STF: HC 69174/RJ, DJ 14/08/92, p. 12226; HC 69013/PI, DJ 01/07/92, p. 10556. (Recurso em Sentido Estrito nº 2000.71.06.001536-0/RS, 1ª Turma do TRF da 4ª Região, Rel. Juiz Amir Sarti, j. 08.10.2001, Publ. DJU 31.10.2001, p. 1342)

[26] PIERANGELI, op. cit, RT. 765/495.

[27] SANTOS, Antonio Silveira Ribeiro do. Crueldade contra animais. Correio Brasiliense, Caderno Direito e Justiça, 09.08.99.

[28] DIAS, Edna Cardozo, op. cit, p. 155.

[29] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI Nº. 1905, DE 13 DE JULHO DE 1999, DO MUNICÍPIO DE NONOAI, QUE DISPÕE SOBRE AUTORIZAÇÃO, NO TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO, DE CRIAÇÃO E EXPOSIÇÃO DE AVES DE RAÇA – GALOS DE RINHA – INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL FRENTE AS CONSTITUIÇÕES FEDERAL E ESTADUAL – PROCEDÊNCIA DA AÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE PROPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO – COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA PARA CONHECIMENTO E JULGAMENTO DA AÇÃO – Manifestamente inconstitucional , frente as Constituições Federal e Estadual, por dispor sobre matéria contravencional, a Lei nº 1905 , de 13 de julho de 1999, do Município de Nonoai. Declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal de Justiça, que detém competência institucional para tanto. Ação que se julga procedente. /12 fls/ (TJRS – ADIN 70000177667 – TP – Rel. Des. Osvaldo Stefanello – J. 29.05.2000)

[30] Recentemente, segundo Boletim de Ocorrência da Polícia Militar mineira lavrado em Itanhomi (MG), um policial foi flagrado no estande onde se praticava a atividade de rinha de galo naquela cidade. Alguns animais estavam mutilados e pelo menos um morreu poucos dias depois em face das lesões que sofreu na rinha.

[31] Informativo 74 do STF.

[32] Artigo 4o.

[33] DIAS, Edna Cardozo, op. cit, p. 163.

[34] CRIME CONTRA A FAUNA (ART. 1º E 27, LEI 5.197/67) – INÉPCIA DA DENÚNCIA – PRELIMINAR REJEITADA – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – INEXISTÊNCIA DE REPROVABILIDADE SOCIAL ELEVADA – ABSOLVIÇÃO – 1. Não há que se falar em denúncia inepta, quando a mesma descreve, ainda que sucintamente, os fatos e as circunstâncias, permitindo aos acusados o exercício da ampla defesa (art. 41, do CPP). 2. Tratando-se de apenas uma caça abatida, deve ser aplicado ao caso, o princípio da insignificância, uma vez que tal conduta não causou dano irreparável ao meio ambiente ou a sociedade e, tampouco ofendeu o ordenamento jurídico de forma significativa. 3. Apelo provido para absolver os réus, com base no artigo 386, III, do CPP. (TRF 3ª R. – ACr 96.03.057746 – SP – 1ª T. – Rel. Juiz Roberto Haddad – DJU 01.07.1997).

TRF3-006048) PENAL. CRIME CONTRA A FAUNA. ABATE DE JACARÉ COM FINALIDADE ALIMENTÍCIA: AUTORIA DUVIDOSA. AUSÊNCIA DE ATOS DE COMÉRCIO. CONDUTA ATÍPICA. CAÇA SEM FINALIDADE PREDATÓRIA. INEXISTÊNCIA DE DOLO. OBJETIVIDADE JURÍDICA DA LEI Nº 5.197/67: PROTEÇÃO DAS ESPÉCIES. COIBIÇÃO DE EXCESSOS COMPROMETEDORES DA FAUNA SILVESTRE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA: DESPROPORCIONALIDADE DA APLICAÇÃO DA PENA À SIGNIFICAÇÃO SOCIAL DO FATO: ABSOLVIÇÃO. APELO PROVIDO. I – O apelante foi condenado por ter participado da caça de um jacaré, que se destinava à sua alimentação e de seus amigos, não demonstrado de forma segura ter sido o autor do abate do animal, com finalidade de comércio.II – A objetividade jurídica da Lei nº 5.197/67 é a tutela à fauna silvestre, o equilíbrio ecológico e preservação das espécies, controlando e coibindo excessos comprometedores ao equilíbrio ambiental, exigindo uma interpretação abrandadora de seus rigores quando o caso concreto reclamar e justificar, a fim de que se cumpra sua finalidade e se alcance uma decisão justa, não se podendo falar que o simples abate esporádico de um animal pertencente à fauna silvestre, com a intenção de alimentar-se de sua carne, subsuma-se aos tipos que pune com severidade.III – Aplicação do princípio da insignificância, visto que ínfima a afetação ao bem jurídico tutelado, não se justificando a apenação, ainda que mínima, por ser desproporcional à significação social do fato.IV – Apelação a que se dá provimento, para absolver o apelante da prática do delito previsto no artigo 1º, combinado com o artigo 27 § 1º, ambos da Lei nº 5.197/67, com fulcro no artigo 386, III do Código de Processo Penal.(Apelação Criminal nº 97.03.060410-2/SP (00053020), 1ª Turma do TRF da 3ª Região, Rel. Juiz Theotonio Costa, Revisor Juiz Roberto Haddad. j. 19.09.2000, Publ. DJU 07.11.2000, p. 292).Observação:A Turma, por unanimidade de votos, deu provimento à apelação para absolver o acusado D.V., nos termos do voto do (a) Relator (a).Observação:Indexação: vide ementa. Referência Legislativa:Lei nº 5.197 Art. 27 § 1º; Art. 1ºCPP Art. 386 Inc. III. Veja Também: ACR 95.03.027195-9, TRF3, Rel. Sinval Antunes.

[35] "PENAL – CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE – PÁSSAROS DA FAUNA SILVESTRE BRASILEIRA – COMERCIALIZAÇÃO POTENCIALIDADE LESIVA – TIPICIDADE – PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – 1. Constitui crime contra o meio ambiente a comercialização de pássaros silvestres (artigo 29,§ 1º, inciso III, da Lei nº 9. 605/98). 2. Não exclui a tipicidade da conduta o fato de não se encontrar as espécimes apreendidas na “Lista Oficial de Espécie de Fauna Silvestre Ameaçada de Extinção”. 3. O crime praticado contra espécie rara ou considerada ameaçada de extinção constitui causa de aumento da pena de metade (§4º, artigo 29, Lei 9.605/98). 4. É inaplicável à hipótese o princípio da insignificância. Considerar atípica a conduta de alguém que é encontrado com pequena quantidade de pássaros, é oficializar a impunidade. 5. Deixar de reprimir a conduta dos infratores significa conceder-lhes salvo conduto e incentivá-los à prática que poderá levar ao extermínio da fauna nacional. 6. Recurso provido." (TRF 1ª R. – AC 01001174971 – DF – 4ª T. – Rel. Juiz Mário César Ribeiro – DJU 10.11.2000 – p. 280).

TRF4-003517) PENAL. DIREITO AMBIENTAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO INCIDÊNCIA. LEI 9605/98. PRESCRIÇÃO.1- Não é insignificante o crime contra o meio ambiente, pois ele produz efeitos a longo prazo e que são, muitas vezes, irreversíveis.2- A Lei 9605/98 reduziu a pena anteriormente prevista para os crimes de caça de animais silvestres, o que ocasionou, no caso concreto, a prescrição da pretensão punitiva, devido ao lapso temporal transcorrido entre o recebimento da denúncia e esta decisão.(Apelação Criminal nº 97.04.72902-2/RS (00062305), 1ª Turma do TRF da 4ª Região, Rel. Juiz A. A. Ramos de Oliveira. j. 23.06.1998, Publ. DJU 22.07.1998, p. 406).Decisão:Unânime.Referência Legislativa:CP-40 Código Penal – Leg. Fed. DL 2848/1940 Art. 109 caput Art. 109 Inc. V. Leg. Fed. Lei 9605/1998

[36] Interessante crítica sobre o princípio da insignificância no Direito Penal Ambiental é feita pelos autores José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala. Direito Ambiental na sociedade de risco. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002, p. 184-196.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA 

Lélio Braga Calhau:  Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direito do Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho (RJ). Professor de Direito Penal da Universidade Vale do Rio Doce.

Anencefalia e aborto: uma conexão necessária.

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OPINIÃO:  * Lélio Braga Calhau –

O Supremo Tribunal Federal está avaliando uma ação que envolve o destino dos fetos anencefálicos (e de suas mães e famílias) em nosso país. Um dos últimos movimentos ocorreu na última quarta-feira (20.10), quando o plenário do tribunal  analisou a discussão sobre a legitimidade constitucional da antecipação de parto de feto anencefálico (sem cérebro), com o julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). Os ministros, em votação por maioria, decidiram revogar a liminar concedida em julho de 2004 pelo ministro Marco Aurélio.  

Na referida ação, a CNTS pede que seja dada interpretação conforme a Constituição Federal aos artigos 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal Brasileiro. Estes artigos penais tratam do crime de aborto, e a ação visa permitir a interrupção de gravidez de filhos anencéfalos. O pedido é feito com base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da legalidade, liberdade e autonomia da vontade, bem como o direito à saúde. Ou seja: o Poder Judiciário não está sendo chamado para criar nenhuma regra jurídica, mas, em verdade, estabelecer um critério de interpretação para as normas penais que tratam do crime de aborto.

O Poder Judiciário demonstrou grande sensibilidade quando o Ministro Marco Aurélio, em decisão do último dia 28 de setembro, entendeu por bem convocar uma audiência pública para ouvir representantes da sociedade civil sobre o assunto da ação. Tal iniciativa merece todos os méritos. Nem o Ministério Público e nem o Poder Judiciário lançam mão desse instrumento democrático com maior freqüência.

Ouvir as diversas teses apresentadas, participar de debates, apresentação de propostas, sugestões e reclamações deveria ser um procedimento mais constante nas discussões das causas de grande interesse social que tramitam no Supremo Tribunal Federal.

Tal preocupação no presente caso se faz necessária por diversos motivos, porquanto a questão do aborto está vinculada diretamente com a da anencefalia. Nem uma e nem outra foram discutidas de forma profunda e com maturidade pela sociedade. Os problemas são claros, entre eles: o aborto é um crime praticado sem testemunhas e raramente chega ao conhecimento do poder público, sendo que muitas vezes o risco de morte da gestante é real; existe uma discussão política-jurídica sobre se o aborto é caso de saúde pública ou caso de delegacia de polícia; na prática, as condenações (quando existentes) são mínimas. O crime de aborto é julgado pelo Tribunal do Júri, não por um juiz de direito. É rara a condenação pelos jurados de uma mãe em caso de um aborto simples, a de uma situação concreta onde haja ocorrido a anencefalia é bastante improvável.

Li ontem um texto onde se critica a posição da Igreja Católica no caso. Ora, a Igreja Católica, bem como todas outras entidades religiosas ou não têm o direito de se manifestar. O que não pode ocorrer é se confundir na questão o direito com religião. Não está em jogo se o caso é pecado ou não. Talvez essa confusão (que tem ocorrido com freqüência na política) seja responsável por muitos erros que ainda vamos ter que assistir.

A discussão do caso deveria passar também por um amplo debate pela sociedade civil, estendendo-se, a análise se a sociedade deseja, ainda, que o aborto continue a ser considerado crime pela lei penal brasileira.

 

Lélio Braga Calhau:  Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direito do Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho (RJ). Professor de Direito Penal da Universidade Vale do Rio Doce.

 

 

 



REFERÊNCIA BIOGRÁFICA 

O ato jurisdicional magno, suas feições, classificações e polêmicas

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* Gisele Leite

Chamada em doutrina de ato jurisdicional magno, é ato processual que põe termo ao processo, julgando ou não o mérito. É relevante identificar a sentença para a escolha do recurso adequado. É o tipo de decisão determina qual o recurso que contra esta deve ser interposto.

Na clássica definição exarada por José Frederico Marques que alude a sentença como ato final ao processo de conhecimento de primeira instância, revela-se inadequada, pois nem sempre a sentença o encerra pois o juiz ainda poderá vir a praticar atos no procedimento do recurso (quando por exemplo, recebe a apelação), ou seja porque, em alguns procedimentos especiais, há atos processuais, como por exemplo, ação de despejo, em que após a sentença o réu intimado a desocupar o imóvel, e, em não o fazendo, procede-se ao despejo forçado do imóvel.

Alexandre Freitas Câmara define a sentença como o provimento judicial que põe termo ao ofício de julgar do magistrado, resolvendo ou não o objeto do processo.

Luiz Rodrigues Wambier alega que sentença é o ato do juiz que põe fim ao procedimento de primeiro grau de jurisdição. Autores há que criticam com razão a antiga redação dos arts 267 e 269 pois aludiam à extinção do processo, quando em verdade, o que se extingue éo procedimento.

Desta forma, sentença é pronunciamento judicial que tem por conteúdo o estabelecido nos arts. 267 e 269 do CPC e tem por efeito principal o de pôr fim ao procedimento em primeiro grau de jurisdição e em não havendo recurso, também o processo.

Para se configurar como sentença o ato deve conter dois aspectos: o conteúdo e a eficácia extintiva do procedimento de primeiro grau.

O art. 463 do CPC refere-se à sentença de mérito, cumprindo-se o ofício jurisdicional do juiz. A Lei 11.232/2005 alterou os arts 162, 267, 269 e 463 do CPC onde o legislador decidiu substituir o termo “julgamento” pelo vocábulo “resolução”.

Mesmo assim continua a ser sentença o que põe termo ao processo (rectius) sem resolução do mérito, na forma do art. 267 do CPC.

Assim, a sentença é qualquer ato judicial de resolução do mérito, ainda que se tenha uma resolução meramente parcial, quando, por exemplo, o juiz homologa a transação parcial devendo prosseguir o exame de parte do mérito que não foi objeto da transação das partes. O mesmo se dá com a decisão antecipatória de tutela (art. 273, § 6º do CPC).

Podemos classificar as sentenças conforme contenham a resolução do mérito, que são as chamadas sentenças definitivas e que efetivam a entrega da prestação jurisdicional requerida pelo demandante ao Estado-juiz.

Mas há também as sentenças que não resolvem o mérito, ou seja, as terminativas que ocorrem nas hipóteses previstas do art. 267 do CPC. Enquanto que as sentenças previstas pelo art. 269 do CPC são definitivas e acolhem ou rejeitam o pedido do demandante.

As sentenças que extinguem o processo sem apreciação do mérito por ausência dos pressupostos processuais ou as condições da ação, ou pela existência de pressuposto processual negativo são consideradas sentenças processuais típicas.

Já as sentenças processuais atípicas do art. 267 do CPC são aquelas que abordam a perempção da instância (art.267, II do CPC), o abandono da causa por mais de trinta dias (at.267, III do CPC), da perempção ( art. 267, V do CPC), da convenção arbitral ( art. 267, VII CPC), da desistência da ação (art. 267, VIII CPC).

A hipótese prevista no art. 267, IX do CPC será redutível, em última análise, à falta de legitimidade Convém assinalar a infelicidade da redação do referido dispositivo que nos faz crer que o processo se extingue sem julgamento do mérito só pelo fato de a ação ser intransmissível, o que evidentemente é falho, pois só se aplica tal inciso quando o autor morrer ou ceder o direito à ação durante o seu curso.

Prefere Alexandre Freitas Câmara se referir ao processo de conhecimento como módulo processual cognitivo que se notabiliza por haver a definição de direitos, o acertamento o que se alcança por meio de sentença definitiva capaz de definir e decidir o mérito da causa.

Daí assinalar-se que a sentença definitiva revela a extinção normal do processo de conhecimento ou como nas sábias palavras do José Frederico Marques, o processo de conhecimento é processo de sentença.

Todavia, nem todas as sentenças definitivas contêm julgamento do mérito, é o caso das sentenças proferidas em decorrência do reconhecimento jurídico do pedido, transação ou renúncia à pretensão, nestes casos não é o juiz que define o objeto do processo que se resolve por autocomposição das partes.

Embora não julguem o mérito, o tornam definitivamente resolvido, o que nos leva a considerá-las como sentenças com resolução de mérito, ou sentenças de mérito impura.

A antiga definição estampada no §1º do art. 162 do CPC veio a romper com a tradicional concepção de sentença que seguia o conteúdo substancial, consistente em considerar como tal a decisão de mérito. O que gerava na vigência do CPC de 1939 grande polêmica para se precisar qual recurso cabível contra certas decisões que eram terminativas, mas os tribunais as consideravam de mérito (falta de legitimidade ad causam).

Assim o CPC de 1973 pondo fim à controvérsia definiu que da sentença cabe apelação, e a considera todo ato que ponha fim ao processo, com ou sem julgamento do mérito.
Substituiu-se o critério substancial pelo critério topológico, ainda assim restaram algumas imperfeições.

É o acontece com o art. 915, § 2º do CPC onde aparece como sentença uma das fases do procedimento da ação de prestação de contas, a qual põe fim à fase processual porém não ao processo, sendo portanto, uma decisão interlocutória. Cogita ainda o CPC no art. 761 em sentença com relação ao processo de insolvência, a qual se abre a fase subseqüente mas não extingue o processo.

Cândido Rangel Dinamarco aponta que a jurisprudência considera tais atos comportam o recurso de apelação, que é próprio das sentenças (art. 513 do CPC), decidindo assim posto que a lei os chama de sentença e também porque, substancialmente, por longeva tradição sentença sempre foi o ato que julga o mérito.

Sem dúvida, a sentença se consagra como ato inteligência e de vontade do Estado daí serem obrigatórias vinculando as partes.

Existem quatro espécies de sentenças, a saber: a) as que examinando a causa, concluem pela procedência, improcedência ou procedência parcial da demanda, sendo, pois autênticas sentenças de mérito (arts. 459 e 469, inc. I do CPC); b) as que se pronunciam sobre a decadência, que o Código quis colocar como tema de mérito); c)as homologatórias do reconhecimento jurídico do pedido, da transação ou a renúncia do direito, da desistência da ação; d) as terminativas que extinguem o processo sem julgar-lhe o mérito. As três primeiras hipóteses estão reunidas em uma só categoria, as sentenças de mérito.

Mérito é o objeto do processo e onde reside o petitum da demanda, onde se expressa as duas pretensões a serem decididas pelo juiz. Assim ao extinguir o processo sem julgamento do mérito, está rejeitando a primeira dessas pretensões, a saber, a pretensão ao provimento, sem chegar a se manifestar sobre a pretensão ao bem.

Ao extingui-lo com julgamento do mérito, o juiz está acolhendo a pretensão ao provimento, tanto que o emite, e ainda a pretensão ao bem da vida estará sendo acolhida ou rejeitada.

São elementos essenciais da sentença aqueles expressamente previstos no art. 458 do CPC, a saber: relatório, fundamentação e dispositivo. A ausência de qualquer desses elementos viciará a decisão. A palavra que deveria ser usada pelo legislador no art. 458 do CPC seria elemento, e não requisito.

E não há uma ordem necessária a ser apresentada. Essa tríplice exigência integra somente à sentença e não aos atos judiciais em geral (decisões interlocutórias e despachos de mero expediente). É a relevância da sentença que justifica a exigência posto que é a resposta do Poder Judiciário oferece à demanda do autor, é o ato com que a tutela jurisdicional é concedida a uma das partes e negada à outra.

A regularidade formal da sentença está ligada à garantia do devido processo legal. A gênese dos elementos estruturais da sentença proveio da idéia do silogismo onde a premissa maior reside na norma de direito aceita como pertinente, enquanto que a premissa menor está nos fatos reconhecidos pelo juiz como ocorridos e a conclusão consiste no preceito fixado na parte dispositiva. A afirmação da sentença como silogismo foi muito combatida e perdeu prestígio.
Ato de inteligência e de vontade, não se pode confundir a sentença com um ato de imposição pura e imotivada, daí a premente necessidade que expressa sua fundamentação (art.93, IX da CF).

No relatório se dá a síntese do processo onde o juiz exporá resumidamente todo o histórico do processo exibindo seu profundo conhecimento sobre o que está decidindo. Deve conter as principais ocorrências havidas no andamento do processo.

A fundamentação é onde o juiz expõe suas razões de decidir, é a motivação que contribuiu para formação do convencimento judicial. Refere-se tanto aos fatos relevantes para a solução da lide como também as razões jurídicas do julgamento.

A motivação é categorizada como garantia constitucional (art. 93, IX da CF de 1988), além de servir de controle vertical da atuação do juiz, é autêntica exigência do Estado democrático de Direito.

Por disposição legal expressa, o que o juiz afirma ou nega não fica atingido pela autoridade da coisa julgada material (art. 269, incisos I- III do CPC), sendo lícito rediscutir as mesmas questões de fato ou de direito sempre que eventual nova demanda posta em juízo não coincida com aquela que já haja sido julgada por sentença passada em julgado.

Nas sentenças meramente homologatórias dispensa-se a alusão à prova e mesmo aos fundamentos da defesa, porque os atos autocompositivos das partes vinculam o juiz, e este não cabe decidir sobre quem tinha ou não razão, mas é indispensável a reprodução do pedido inicial e seus fundamentos.

Nas sentenças terminativas é suficiente descrever os fatos e fundamentos jurídicos que conduzem à extinção do processo sem julgamento do mérito.

É através da motivação que o juiz explicita sua legitimação ao decidir a lide. É na motivação que o julgador irá apreciar as questões, prévias, preliminares tanto como as prejudiciais. Sendo que estas últimas poderão ser apreciadas e resolvidas no dispositivo da sentença, quando houver tido pedido de declaração incidental (arts. 5, 325 e 470 do CPC).
A motivação está para sentença como a causa de pedir está para a demanda inicial e as razões de defesa para a contestação. As razões de decidir constituem o acolhimento de uma das razões das partes e rejeição de outras, segundo o entendimento do juiz, o qual prevalece sobre o daquelas e determina sua decisão.

Já o dispositivo é elemento essencial da sentença pois, imprime seu conteúdo decisório. Sem dispositivo perde a sentença de existência jurídica. Assim como é inexistente a sentença que não fora assinada pelo juiz. É o decisum stricto sensu.

O dispositivo é elemento constitutivo mínimo da sentença. O dispositivo pode ser direto ou indireto (quando o juiz se limita a fazer referência ao lugar onde será encontrado o teor de sua decisão, por exemplo, quando julga procedente o pedido conforme a exordial).

A ausência motivação e do relatório implica em nulidade absoluta da sentença, ao passo que a ausência do dispositivo torna o ato como inexistente juridicamente e irreconhecido como sentença.

Todas as sentenças devem ser fundamentadas, mas as sentenças terminativas podem ter motivação concisa (art.459 do CPC).

O art. 463 do CPC determina que publicada a sentença, esta se torna irretratável, só podendo ser modificada para correção de erros materiais ou se houver interposição de embargos declaratórios.

Barbosa Moreira sublinha que a sentença só tem existência jurídica depois de publicada, seja em audiência, seja proferida no gabinete do juiz, ou no prazo de dez dias após a A.I.J.

A publicação se dá no momento em que a mesma é juntada nos autos pelo escrivão, é quando se torna pública. Não se pode confundir a publicação com a intimação da sentença.

É através do D.O. (Diário Oficial) que se intima as partes do teor da sentença, para que possam interpor recurso. Admite-se modificar a sentença publicada se houver erro material ou ante os embargos declaratórios.

O erro material pode ser corrigido a qualquer tempo, mesmo depois da sentença ter transitado em julgado (seja de ofício, seja a requerimento das partes).

A sentença definitiva que contém uma resolução do mérito, se classifica em três tipos, segundo o seu conteúdo: as meramente declaratórias, constitucionais e condenatórias.

Esclarece Barbosa Moreira que o conteúdo e efeito da sentença não se confunde. Aquilo que integra o ato não resulta dele; aquilo dele resulta não o integra.

Toda sentença de procedência do pedido do autor tem conteúdo declaratório que é o acertamento da existência do direito afirmado pelo demandante.

Já as outras possuem um plus (as constitutivas e as condenatórias). Costuma-se apontar como única exceção é a autenticidade ou falsidade de documento (art.4, II CPC), e também nas ações demarcatórias que tornam certo o lugar onde se encontra o limite entre dois imóveis, ou a sentença na posse em nome do nascituro onde se afirma a existência da gravidez.

A sentença meramente declaratória tem por fim, conferir certeza, pondo fim à dúvida quanto a existência ou inexistência de determinada relação jurídica. São exemplos: as sentenças na ação investigação de paternidade, a da ação de usucapião, na consignação em pagamento e, todas as que proferem a procedência do pedido.

Toda sentença pressupõe uma declaração, mesmo as condenatórias e constitutivas.

Sentenças constitutivas são capazes de criação, modificação ou extinção de uma relação jurídica. Há dois momentos lógicos: um declaratório e, outro constitutivo.

É o caso da sentença que decreta o divórcio, anula o casamento, na ação revisional de aluguel, na ação de substituição de compromisso arbitral.

A sentença condenatória é de sombria conceituação. Seu principal efeito é permitir a execução forçada de um crédito (o que se denominou eficácia executiva).

Liebman ocupou-se também do tema, e afirmou que a sentença condenatória aquela que além da função de declarar a vontade da lei no caso concreto, produz também uma declaração “capaz de conduzir ao estádio ulterior da execução”.

A sentença condenatória contém não só a declaração da vontade concreta da lei, mas ainda a afirmação de que deve ser atuada pelos órgãos do Estado independentemente da parte vencida, ou seja, a declaração da exeqüibilidade.

A condenação seria pois, a imposição da sanção, como efetiva e específica determinação das conseqüências que o ordenamento jurídico quer em seguida à verificação de certa hipótese( que na maioria das vezes é o inadimplemento da obrigação).

Desta forma, a sentença condenatória não passaria de uma declaração, porquanto os direitos e obrigações preexistem à sentença, mas sob aspecto processual teria eficácia constitutiva, porque a sanção só preexiste à sentença como vontade abstrata, e é o juiz quem a torna concreta.

Por fim, conclui Liebman que a condenação seria uma aplicação de uma sanção.

Também Calamandrei preocupou-se com o tema, para quem a condenação consiste na transformação da obrigação em sujeição. Significa que antes da condenação, estava-se diante de uma obrigação, cujo adimplemento dependia exclusivamente da vontade do obrigado, e, depois da condenação, estar-se-á diante de uma sujeição, com o cumprimento da obrigação não mais dependente da vontade do obrigado.

Assim, a sentença condenatória tem mesmo natureza constitutiva, pois a sanção executiva só pode ser atuada (excluídos os títulos executivos extrajudiciais) através da condenação.

Mais recentemente, o notável doutrinador italiano Mandrioli demonstrou que a tutela jurisdicional cognitiva é condenatória quando se desenvolve em função e em preparação da execução forçada.

Distingue Mandrioli a demanda de mero acertamento da demanda condenatória, afirmando que naquela se pede apenas a afirmação de um direito, buscando-se obter certeza objetiva, enquanto nesta última se contém não só a afirmação de um direito violado, mas também a conseqüente necessidade de restauração de tal direito no plano material.

Para Fazzalari a sentença condenatória é um comando dirigido pelo juiz a uma das partes, para que esta dê ou faço algo em favor da outra, comando este que se emite quando se verificou a fattispecie prevista na lei substancial, não tendo a mesma sido observada.

O comando judicial cria nova situação substancial, de conteúdo idêntico àquele derivado da lei, mas munido de atributos particulares, de que é exemplo de possibilidade de realização forçada da ordem, o que se faz mediante execução forçada.

Eduardo Couture foi quem afirmou que as sentenças condenatórias são todas que impõem o cumprimento de uma prestação, seja em sentido positivo (dar, fazer), seja em sentido negativo (não fazer ou abster-se).

A condenação consiste em impor ao obrigado o cumprimento da prestação, em determinar-lhe que se abstenha de efetuar os atos que lhe são proibidos, ou em obrigá-lo a desfazer o que já tinha sido efetuado.

Rogério Lauria Tucci declara que as sentenças condenatórias contêm uma declaração de certeza sobre a existência da relação jurídica afirmada pelo autor, e, outrossim, um quid, a atribuição ao vencedor da faculdade de promover a execução em seu benefício contra o vencido.

Determina assim, a realização de certa sanção, isto é, que o vencido cumpra a prestação de dar, fazer ou não fazer.

Todas essas teorias expostas foram criticadas, por exemplo, a tese de Carnelutti fora criticada por Liebman e Calamandrei, e este também criticou a teoria liebmaniana.
Já as teorias de Couture e Fazzalari foram criticadas por Chiovenda. Nenhuma dessas teorias escapou da visão crítica dos processualistas.

Alexandre Freitas Câmara aponta que a teoria original de Carnelutti é inaceitável e que as teorias de Chiovenda, Calamandrei e Liebman (a que adere Lauria Tucci) e Mandrioli se mostram equivocadas por tentar explicar a condenação a partir de seus efeitos.

Aponta ainda o doutrinador carioca que é equivocada a idéia de se vincular necessariamente a condenação à execução. Isto porque a condenação pode ter função repressiva, destinando-se a coibir a violação do direito já efetuada.

Mas pode também, ter função preventiva, destinando-se a evitar que se perpetre uma violação de direito ainda não ocorrida, destinando-se a provocar o adimplemento espontâneo da obrigação. Caso em que atuará por meio da execução forçada, mas através de medidas coercitivas dirigidas a sancionar o eventual inadimplemento. Nessa última hipótese, temos a condenação inibitória, destinada a impedir que se consuma um ato ilícito.

Apoiando a posição de Couture e Fazzalari ao afirmar a existência de uma sentença condenatória, de um elemento consistente num comando, uma imposição dirigida pelo juiz ao réu, a fim de que este cumpra uma prestação de dar, fazer ou não fazer.

Tal imposição não decorre da lei que é norma abstrata, apenas a sentença condenatória concretiza o comando legal, atuando a vontade concreta da norma, e por conseqüência, permitindo a produção de efeito executivo.

Importante efeito secundário possuía a sentença condenatória que é prevista no art. 466 do CPC a hipoteca judiciária. Trata-se de instrumento preventivo de alienações fraudulentas destinado a garantir efetividade de uma futura e eventual execução forçada do comando contido na sentença.

A hipoteca judiciária não gera direito de preferência para o credor, exeqüente, e, sim, o direito de seqüela permitindo que busque o bem hipotecado no patrimônio daquele que estiver com a coisa quando da execução.

Na verdade, a sentença condenatória não produz a hipoteca judiciária, mas, tão-somente, constitui título para sua instituição que se dará com o registro da sentença no registro de imóveis.

Com a Lei 10.358/2001 surgiu com dado novo, no art. 14, V do CPC onde se estabelece ser dever das partes e de todos aqueles que participam do processo cumprir com exatidão os provimentos mandamentais.

A classificação das sentenças definitivas deve prosseguir segundo o seu conteúdo, afirmando-se as três modalidades: a meramente declaratória, a constitutiva e a condenatória. Salientando que a sentença mandamental é condenatória.

Há duas espécies de sentenças condenatórias: a sentença condenatória executiva, entendida como aquela cuja atuação se dá pelo uso de meios executivos; e a sentença condenatória mandamental, compreendida como aquela que ocorre o emprego exclusivo de meios de coerção, não podendo ser executada em razão da natureza do dever jurídico a ser cumprido pelo condenado.

Exemplifica vigorosamente Alexandre Freitas Câmara: “assim é que a sentença que condena um pintor de paredes a pintar a parede de branco é condenatória executiva, ao passo que a sentença que condena um pintor de quadros s pintar o retrato de uma pessoa, é condenatória mandamental”.

Com as alterações trazidas pela Lei 10.444/2002 e Lei 11.232/2005 a sentença proferida e a execução desta passou a integrar um único processo, resultando num processo sincrético, misto onde há cognição e execução.

Outro dado relevante que a Lei 11.232/2005 alterando a redação define a sentença condenatória como título executivo judicial (art. 475- N do CPC). É também equivocado atribuir ao título os requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade (art.586 do CPC) quando tais preciosos predicados são pertinentes ao direito e não a este,

Registre-se a alteração recente no art. 219, § 5º do CPC pela Lei 11.280/2006 que determina ao juiz que se pronuncie de ofício a prescrição. Ampliando assim o jaez do inciso IV do art. 269 do CPC.

É a crise de adimplemento que é fator legitimante da tutela jurisdicional condenatória e que não resta debelada por essa sentença. Assim, a sentença condenatória tem caráter constitutivo que é a admissibilidade da execução forçada.

A sentença condenatória não passa de uma sentença de prestação (Leistungsurteil), que não vai além da emissão de um preceito concreto a ser cumprido pelo obrigado.

Diz-se que a sentença condenatória é ordinária quando é completa e composta por dois momentos lógicos: o declaratório e o sancionador e transitando em julgado, seja capaz de cumprir logo sua função dupla de declarar o direito e criar título para pronta execução forçada.

Para que a demora e o tempo não prejudique o credor, o sistema processual pátrio assegura também a preservação da coisa litigiosa, cuja alienação no curso do processo é considerada fraude de execução e não impede a execução sobre esta (arts. 219 e 593, I CPC); a preservação do patrimônio do responsável da obrigação que venha cair em insolvência, o qual continuar a responder pelas suas obrigações pecuniárias apesar das alienações eventualmente feitas depois da citação para o processo de conhecimento (art. 592, IV e 593, II do CPC).

Condenação alternativa é a sentença cuja parte declaratória se limita a identificar parcialmente o objeto do direito a ser satisfeito pelo réu, sem fazê-lo por inteiro. Há a certeza quanto à existência do direito.

A lei tolera certo grau de incerteza do direito quando constitui objeto das sentenças condenatórias, ao admitir as chamadas condenações alternativas, nas obrigações de dar coisa incerta (arts. 874, 877 do CC) e nas obrigações alternativas ( arts. 884-888 do CC).

Diz-se genérica a condenação, ou ilíquida aquela cujo momento declaratório não determina a quantidade de bens devidos pelo réu. Carece de liquidação de sentença que é produz uma sentença meramente declaratória, e se sujeita a uma disciplina própria (arts. 444 e 944 ss CPC) e cumpre a missão de completar a parte declaratória das sentenças genéricas.

Admitem-se as condenações genéricas com ressalvas e, há vedação que em face de pedido certo formulado pelo autor, o juiz venha a proferir sentença ilíquida ( art. 459, parágrafo CPC),

Consideram-se condenações aparentes aquelas que careçam de eficácia suficiente para efetivar a execução forçada. São assim as condenações da Fazenda Pública pagar dinheiro, pois a constituição brasileira veda a prática de atos executivos sobre seu patrimônio ( art. 100, caput, § 2º da CF e art. 730 do precatório CPC).

A execução por precatório é uma falsa execução por que não se fez mediante a invasão patrimonial do devedor mediante atos do Poder Judiciário. Trata-se apenas de uma condenação nominal ou aparente e, não de verdadeira condenação.

As chamadas sentenças executivas lato sensu são aquelas que comportam a execução no mesmo processo onde foi proferida, sem necessidade de se instaurar formalmente o processo executivo. São casos raros e excepcionais, é o caso da ação de despejo, das ações possessórias, das desapropriações imobiliárias e poucas outras.(art. 461 do CPC).

Em que pese, registrar-se uma tendência contemporânea, principalmente nas leis recentes de 2005 e 2006 a reformar o CPC provendo assim um processo misto e sincrético, e, portanto a abrigar uma fase cognitiva e executiva num mesmo feito. Tudo em prol de maior efetividade e celeridade processual, de se galgar finalmente o processo justo e équo.

Objeto de acirrada discussão doutrinária e vacilações jurisprudenciais e, enfrentando a abalizada opinião de Liebman é a tendência dos tribunais pátrios em ser bastante liberal e preferindo dar admissibilidade da ação condenatória, mesmo quando o credor já dispõe de título executivo extrajudicial.

Outra questão é admissibilidade das sentenças condenatórias condicionais ou para futuro, posto que inexiste ordinariamente interesse-necessidade enquanto a obrigação não for exigível, mas nas hipóteses em que essas sentenças se admitem o requisito da exigibilidade é dispensado em relação às parcelas vincendas.

Seara misteriosa e ainda não desbravada pela doutrina é a hermenêutica sentencial e as sentenças que decidem por eqüidade, de natureza dispositiva que vem sendo confundida com a eficácia de reportar-se a obrigações futuras, como é o caso da condenação por alimentos.

 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

GISELE LEITE:  Formada em Direito pela UFRJ, em Pedagogia pela UERJ, Mestre em Direito, em Filosofia, professora universitária da Universidade Veiga de Almeida e outras do Rio de Janeiro.

 

 

Exceção de pré-executividade. Efeito suspensivo do processo de execução fiscal

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* Kiyoshi Harada

Hoje,  é pacífica a Jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça quanto ao cabimento de exceção de pré-executividade nos casos em que há prova inequívoca da inexistência de título líquido e certo, quer em função de sua nulidade, quer em razão da decadência ou da prescrição, quer em função da ilegitimidade passiva ad causam, quer, ainda, porque o crédito reclamado já havia sido pago.

Enfim, a exceção de pré-executividade, fruto de criação doutrinária e jurisprudencial permite que o executado demonstre a improcedência da execução sem sujeitar-se à constrição de seus bens. Ela sempre será possível nos casos em que o juízo poderia conhecer de ofício a matéria, a exemplo do que acontece a cerca da higidez do título executivo. Não vislumbrado título executivo apto a fundamentar a expropriação de bens do devedor razão nenhuma há para permitir o prosseguimento do processo de execução. Objetiva, em nome dos princípios da celeridade e da economia processual pôr termo à execução infundada, independentemente de apresentação de embargos.

Sendo assim, está ínsita na exceção de pré-executividade a sua natureza suspensiva, ou seja, a suspensão do processo de execução para evitar a penhora, quando, então, aquela exceção restará prejudicada, pois com o apenhamento de bens do devedor abre-se o prazo para apresentação de embargos. Por isso, independentemente do pedido expresso de concessão liminar da suspensão do feito, o juiz há de determinar o recolhimento do mandado de penhora ao despachar a petição de exceção de pré-executividade, a menos que entenda que o seu conteúdo extravasou dos limites autorizados pela jurisprudência. Entretanto, nessa hipótese, deve o juiz indeferir de plano a exceção. Caberá ao excipiente interpor recurso de agravo com pedido de efeito ativo. Não sendo concedido efeito ativo ou desprovido o agravo, a execução prosseguirá.

O que não é compreensível é o fato de o juiz, por não ser medida positivada em nosso Direito, ignorar os termos da exceção, determinar bloqueio on-line das contas do devedor excipiente para, ao depois, ordenar que a Fazenda se manifesta em relação à exceção apresentada como aconteceu em um caso concreto conforme despachos judiciais abaixo transcritos: 

‘Considerando que a simples interposição de exceção de pré-executividade não tem o condão de suspender o curso da execução fiscal, citado(a) o(a) Executado(a), determino o bloqueio pelo sistema do BACENJUD, nas contas do(a) Executado(a),….., CPF/CNPJ nº ………….., no valor de R$………… ( ……………), devendo ficar depositados à disposição deste Juízo, para liberação posterior mediante alvará.
Aguarde-se a confirmação do bloqueio, no prazo de 05 dias.
Manifeste-se a exeqüente acerca da exceção de pré-executividade em 15 dias.
Após ao MP’.
 

Antes mesmo da publicação do despacho retro, um novo foi proferido nestes termos: 

Considerando a efetivação do bloqueio eletrônico de valores através do convênio BACENJUD, determino o seguinte:
I – Lavre-se termo de penhora do numerário bloqueado e intime-se o executado para assiná-lo, no prazo de 10 (dez) dias, cientificando-o de que a data da assinatura será o termo inicial para a contagem do prazo para oposição de embargos à execução;
II – Após, intime-se o exeqüente para, no prazo de 10 (dez) dias, manifestar-se em relação à penhora.
III – E ainda, face a insuficiência de saldo nas contas do executado constante nos demonstrativos do bloqueio via Bacenjud, intime-se o exeqüente para indicar, no prazo de 10(dez) dias, bens passíveis de penhora do executado.’
Aracaju, 27 de junho de 2007.
Dra. Taiane Danusa Gusmão Barroso

Juíza de Direito. 

Evidente a inversão tumultuária da ordem processual, que decorre desses despachos, ao ordenar que a Exeqüente se manifeste sobre a exceção de pré-executividade, que restou prejudicada com a prematura ordem de penhora e seu cumprimento respectivo.

Como indica o próprio nome, a exceção de pré-executividade, também, conhecida como objeção de pré-executoriedade, é instrumento processual que antecede à execução. A execução pressupõe, necessariamente, a constrição de bens do devedor e a exceção de pré-executividade visa exatamente evitar essa agressão patrimonial, em razão de nulidade da execução. Efetivada a penhora, o procedimento judicial cabível são os embargos e não mais a exceção de pré-executividade.

Ainda que se argumente que a exceção de pré-executividade não está positivada em nosso ordenamento jurídico, o certo é que o disposto no art. 265 do CPC deve ser aplicado analogicamente ao seu processamento, uma vez que, a finalidade desse dispositivo é justamente suspender o curso do processo principal enquanto não decidida questão prejudicial alegada por via excepcional.

Dispõe o art. 265, III e IV do CPC: 

“Art. 265. Suspende-se o processo:
…………………………………………………….
III – quando for oposta exceção de incompetência do juízo, da câmara ou do tribunal, bem como no caso de suspeição ou impedimento do juiz.
IV – quando a sentença de mérito:
a)depender do julgamento de outra causa, ou da declaração da existência ou inexistência da relação jurídica, que constitua o objeto principal de outro processo pendente;
b)não puder ser proferida senão depois de verificado determinado fato, ou de produzida certa prova, requisitada a outro juízo;
c)tiver por pressuposto o julgamento de questão de estado, requerido como declaração incidente.”
 

Como se vê, todas as situações consagradas no art. 265, III e IV do CPC refletem a existência de questão prejudicial que, caso não seja resolvida previamente, poderá acarretar prejuízo ao julgamento de mérito da demanda.

Assim, fora de dúvida de que a questão prejudicial alegada na exceção de pré-executividade impede, o regular prosseguimento da execução fiscal.

Nesse sentido é a jurisprudência de nossos tribunais: 

“EMENTA.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. MEIO APROPRIADO PARA A SUSPENSÃO DO PROCESSO EXECUTÓRIO PARA RESGUARDAR AS PARTES LITIGANTES DE UM PREJUÍZO EM FACE DA ALTERAÇÃO DO TÍTULO EXECUTIVO, ATRAVÉS DO JULGAMENTO DA AÇÃO REVISIONAL QUE CORRE PARALELAMENTE. A AÇÃO REVISIONAL FOI JULGADA PROCEDENTE ANULANDO CLÁUSULAS DO CONTRATO. TÍTULO EXECUTIVO. AUSÊNCIA DE LIQUIDEZ. ALTERAÇÃO DO "QUANTUM DEBEATUR". NECESSIDADE DE LIQUIDAÇÃO DO REAL VALOR DEVIDO. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE PROCEDENTE. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO. AGRAVO CONHECIDO E PROVIDO. DECISÃO UNÂNIME.’
(Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, AI nº 2004.206099, Rel. Desa. Josefa Paixão de Santana, j. 06/12/2005).

‘EMENTA.
EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. SUSPENSÃO DO PROCESSO.
O ajuizamento de exceção de pré-executividade é meio hábil para, enquanto não apreciada, suspender a execução fiscal.’
…………………………………………………..
VOTO

Entendo que a execução deva permanecer suspensa, uma vez que não teria eficácia a oposição de exceção de pré-executividade se não suspendesse o andamento do feito executivo, evitando-se a realização da constrição do patrimônio do devedor. Se assim não fosse, o executado aguardaria a efetivação da penhora para a oposição de embargos, meio processual de cognição mais ampla.
Nesse sentido já decidiu a Segunda Turma desta Corte, no julgamento do agravo de instrumento nº 2002.04.01.040131-0, publicado no DJU de 08.01.2003, em que fui Relator, assim ementado:

“EXECUÇÃO FISCAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO. POSSIBILIDADE.

O ajuizamento de exceção de pré-executividade é meio hábil para, enquanto não apreciada, suspender a execução fiscal.”

“EXECUÇÃO FISCAL. SUSPENSÃO DO PROCESSO INDEPENDENTE DE PENHORA OU GARANTIA. POSSIBILIDADE, NAS HIPÓTESES EM QUE A MATÉRIA SEJA COGNOSCÍVEL MEDIANTE EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE.
A liminar constitui meio idôneo para impedir a propositura de execução fiscal pela fazenda conforme se deflui da exegese do ART – 151 do CTN-66, sem malferimento ao ART-38 da LEF, que deve ser interpretado em sintonia com aquele. Mas, uma vez proposta a execução, a sua suspensão depende de estar seguro o juízo, mediante penhora ou caução idônea, sob pena de total desvirtuamento dos postulados básico que informam o processo de execução, Isso porque as disposições que regem processo de conhecimento somente se aplicam ao processo de execução em caráter subsidiário (ART-598 do CPC-73). E em matéria de execução há norma específica determinando que a sua suspensão se dê mediante a interposição de embargos de devedor, que por sua vez têm como pressuposto processual objetivo e extrínseco a penhora de vens. 2. Entretanto, se a liminar ou antecipação de tutela obtida após o ajuizamento da execução estiver fundada e, razões que podem ser conhecidas mediante exceção de pré-executividade, que vem sendo admitida pela doutrina e jurisprudência como forma de defesa de mérito a ser manejada nos próprios autos do processo executivo, independente de penhora, não há óbice a suspensão da execução até julgamento da ação conexa” (AG nº 96.0438417/PR – Rel. Juíza Tânia Terezinha Cardoso Escobar – DJ de 10/03/1999, p. 868).

Frente ao exposto, dou provimento ao agravo de instrumento para suspender a execução fiscal até o julgamento da exceção de pré-executividade pelo Juízo de origem.

Desembargador Federal DIRCEU DE ALMEIDA SOARES
Relator.’ (TRF 4ª Região, AI nº 2005.04.01.022520-0/RS, Rel. Des. Fed. Dirceu de Almeida Soares, DJU de 14/09/2005).
 

Apesar de implícito o efeito suspensivo da exceção de pré-executividade convém que a petição de exceção requeira, expressamente, a concessão de liminar para suspender o processo de execução. Do seu indeferimento caberá agravo em sua modalidade ‘por instrumento’ porque, como já salientado, uma vez efetivada a penhora, a exceção restará prejudicada de forma irreversível. 

 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

KIYOSHI HARADA: Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Membro do Conselho Superior de Estudos Jurídicos da Fiesp. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
Email:  kiyoshi@haradaadvogados.com.br     site: www.haradaadvogados.com.br

 

Reprodução medicamente assistida heteróloga: distinção entre filiação e origem genética

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 * Nathalie Carvalho Cândido

INTRODUÇÃO

O direito ao planejamento familiar refere-se a todo cidadão, sendo assegurado constitucionalmente e regulamentado pela Lei nº. 9.263, de 12.01.96. Este direito é entendido como “o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”. Essas ações são de função do Estado, e o Ministério da Saúde, preocupado em garantir os direitos de homens e mulheres em idade reprodutiva, lançou a Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, ampliando as ações voltadas ao projeto parental.

            Um dos eixos de ação dessa Política é a introdução das tecnologias de reprodução assistida no Sistema Único de Saúde. As técnicas de reprodução assistida se mostram necessárias, pois, segundo a Organização Mundial de Saúde, entre 8% e 15% dos casais têm algum problema de infertilidade, caracterizado como a incapacidade de engravidar após doze meses de relações sexuais regulares sem uso de contraceptivos. Existem várias técnicas de reprodução assistida e este trabalho abordará apenas a inseminação artificial heteróloga, cuja aplicação envolve aspectos éticos, morais e também efeitos jurídicos ainda não regulamentados pelo nosso ordenamento.

            A inseminação artificial heteróloga é a técnica de reprodução assistida que envolve a doação de gametas de terceiro anônimo estranho ao casal, seja por impossibilidade biológica do homem ou da mulher. É citada no artigo 1.597, V do Código Civil e regulamentada pela Resolução nº. 1.358 do Conselho Federal de Medicina. Embora não esteja expressamente citada na lei 9.263/96, é entendida como um dos processos de concepção cientificamente aceitos oferecidos de acordo com o art. 9º desta lei. Falta, entretanto, uma lei específica que melhor esclareça os efeitos de sua aplicação.

            Na utilização desta técnica, observa-se de um lado um doador que se propõe anônimo, oferecendo seus gametas para viabilizar o projeto parental de outrem e que nessa função não deseja desenvolver vínculos afetivos ou responsabilidades patrimoniais em relação ao ser gerado. No outro extremo, temos uma criança que, embora tenha mãe e pai, ao crescer poderá reclamar o direito de conhecer sua ascendência genética e quem sabe querer exigir direitos sucessórios do doador (a) que lhe possibilitou o nascimento.

Tem-se, então, um conflito entre o direito ao conhecimento da ascendência genética e o direito à intimidade, um problema que envolve os chamados direitos fundamentais de quarta geração e uma nova discussão a respeito do Direito de Família, todos revolucionados pelos progressos da engenharia genética.

            A evolução das manipulações genéticas bioengenheiradas modificou a idéia que até pouco tempo tinha-se de maternidade e paternidade. Os casais que nutriam a esperança de serem pais e que tinham problemas de infertilidade acharam nas várias técnicas de reprodução humana medicamente assistidas a realização de seus projetos, mas se encontraram diante de questões éticas, morais, jurídicas e psicológicas que exigiam respostas.

            Como todos os progressos científicos que envolvem a manipulação de material genético humano, as técnicas de reprodução assistidas instigaram inúmeras discussões não só no campo das ciências biológicas, como também no campo jurídico e é isso que torna o tema deste trabalho tão interessante quanto importante.

            O direito, apesar da dificuldade de regulamentar as técnicas científicas com a mesma rapidez com que elas surgem, não pode se abster de legislar e, assim, esclarecer a população sobre os efeitos da aplicação destas técnicas. Essa necessidade decorre do fato que estão envolvidos no caso em tela os princípios constitucionais que baseiam nosso Estado e nossa vida em sociedade.

No desenrolar do presente trabalho procura-se responder aos seguintes questionamentos: O ser gerado através de inseminação artificial heteróloga tem direito de conhecer sua ascendência genética? A ação de investigação de paternidade é o mecanismo adequado ao conhecimento da ascendência genética? Quais efeitos jurídicos são gerados pelo conhecimento da ascendência genética?

Tem-se como objetivo geral apresentar o conflito entre o direito à intimidade e o direito ao conhecimento da ascendência genética nos casos de reprodução assistida heteróloga, bem como examinar a diferença entre o estado de filiação e origem genética. Como objetivos específicos busca-se verificar se o direito ao conhecimento da verdade biológica se sobrepõe ao direito à intimidade nos casos de aplicação da técnica de reprodução assistida heteróloga, mostrar a ação de investigação de paternidade não é meio adequado para o conhecimento da origem genética e que no estado atual do direito o fator mais importante para definir a paternidade é a relação sócio-afetiva entre duas pessoas e não a carga genética do indivíduo, e, finalmente, examinar se o conhecimento da ascendência genética gera efeitos jurídicos que impeçam a formação de vínculos parentais em desacordo com as normas do Código Civil.

Em relação aos aspectos metodológicos, as hipóteses são investigadas através de pesquisa bibliográfica. No que tange à tipologia da pesquisa, esta é, segundo a utilização dos resultados, pura, visto ser realizada apenas com o intuito de aumentar o conhecimento, sem transformação da realidade. Quanto à abordagem, é quantitativa, através da pesquisa de fatos e dados objetivos, e qualitativa, com a observação intensiva de determinados fenômenos sociais. Quanto aos objetivos, a pesquisa é exploratória, definindo objetivos e buscando maiores informações sobre o tema em questão, e descritiva, apresentando fatos, natureza, características, causas e relações com outros fatos.

            No primeiro capítulo, define-se o conceito de direitos reprodutivos e são abordados  seus antecedentes históricos, bem como sua efetivação no Brasil através das instituições de planejamento familiar. Demonstram-se as diferenças entre regulação de fecundidade, controle de natalidade e planejamento familiar. Apresentam-se as principais técnicas de reprodução medicamente assistida e os questionamentos jurídicos decorrentes da aplicação destas técnicas.

            No segundo capítulo, analisa-se a evolução dos conceitos de maternidade e paternidade desde os tempos romanos até a atualidade, apresentando as principais normas jurídicas que fundamentam o atual conceito destes institutos, diferenciando-os da origem genética do indivíduo.

            No terceiro capítulo, faz-se um estudo sobre os direitos fundamentais que baseiam o direito à intimidade dos doadores de gametas e o direito ao conhecimento da origem genética do indivíduo, como também sua colisão nos casos de reprodução assistida heteróloga. Apresenta-se como solução da colisão de direitos fundamentais o princípio constitucional fundamental da dignidade da pessoa humana.

            No quarto capítulo, procede-se à análise crítica dos projetos de lei que dispõem acerca da reprodução medicamente assistida. Discorre-se sobre o posicionamento doutrinário a respeito da ação adequada para o conhecimento da ascendência genética, e, por fim, sobre os efeitos do conhecimento da ascendência genética para todos os envolvidos.

            Os novos parâmetros jurídico-culturais da relação de paternidade são objetos desse estudo, que não objetiva responder a todas estas questões levantadas pela sociedade, mas sim fornecer informações sobre os valiosos estudos de juristas pioneiros acerca destas novas formas de entender as relações familiares e, conseqüentemente, ajudar os interessados a formular opiniões próprias sobre o assunto.

1.  DIREITOS REPRODUTIVOS

A criação do termo “Direitos Reprodutivos” é atribuído às feministas norte-americanas que, inicialmente, o usaram substituindo a expressão “saúde da mulher” em encontros promovidos por mulheres determinadas a ter um maior controle sobre sua capacidade reprodutiva.

Este termo foi considerado o mais adequado para sintetizar os direitos humanos relativos à concepção e à contracepção abordados na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento realizada em 1994 no Cairo. Hoje é compreendido como o direito de “todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência” (Plataforma do Cairo §7.3 apud CORRÊA et al, 2003, on-line).

Os Direitos Reprodutivos não devem ser confundidos com o direito de não ter filhos. Esse entendimento de Direitos Reprodutivos como simplesmente o direito de não ter filhos deve-se ao fato de que as mulheres, em sua luta pelo direito de regular sua fecundidade, se opuseram a leis que proibiam o uso de métodos contraceptivos e à Igreja, que sempre associou relacionamento sexual à procriação. Devemos notar que as mulheres defendiam não somente o direito de não ter nenhum filho, mas também de tê-los controlando seu número e a época do nascimento, já que filhos em excesso podem ser um “fardo” para as mães que suportam as atribuições domésticas e ainda o trabalho externo. Embora o acesso à contracepção seja, realmente, um aspecto dos Direitos Reprodutivos, não é o único.

Também não devemos confundir Direitos Reprodutivos com instrumentos de política populacional. Essa é a compreensão equivocada de alguns autores que o entendem mais como um controle de natalidade do que como direito ao planejamento familiar. A professora de Antropologia Gilda de Castro Rodrigues, em seu livro Planejamento Familiar (1990, p.9), escreve: “[…] Espero então analisar justamente as nuanças dessa política de planejamento familiar como um novo instrumento de dominação sobre um segmento social para o qual não se cogita participação em outras conquistas da sociedade moderna.”. Essa compreensão em parte se deve à imagem passada à sociedade brasileira nos anos sessenta, como será estudado nos próximos tópicos.

1.1 Antecedentes históricos dos direitos reprodutivos

Antes do surgimento das idéias sobre Direitos Reprodutivos, a sociedade já praticava regulação de fecundidade para adequar o número de nascimentos as disponibilidades de alimentos e outros recursos necessários à subsistência humana. Assim, nas épocas mais prósperas, a natalidade aumentava, enquanto que em épocas de escassez, a natalidade diminuía. Essa diminuição podia acontecer através do aborto ou do infanticídio, como afirma Gilda de Castro Rodrigues (1999, p.11):

[…] Ou seja, em qualquer lugar e desde o início do processo de humanização, a sociedade humana desenvolveu meios para promover ajustamentos entre seus índices de fertilidade e mortalidade com as disponibilidades materiais que houvessem no ambiente para garantir a sobrevivência das pessoas.

[…] O infanticídio deve ter sido a primeira interferência ao potencial reprodutivo, mas, à medida que o processo de simbolização foi envolvendo o comportamento humano, surgiram também a restrição sexual e o aborto provocado.

Com o surgimento das grandes cidades e certa estabilidade de recursos, a regulação de fecundidade evoluiu com as regras sociais e religiosas, e os homens passaram a impor condições para que fossem exercitadas as suas capacidades reprodutivas, como a exigência do casamento, por exemplo. Nesse momento histórico, a religiosidade presente nas civilizações antigas estimulava muito a natalidade, não sendo o fato de ter filhos algo decorrente da vontade das pessoas, mas sim uma verdadeira obrigação para com a família devido à necessidade da continuidade do culto aos mortos. Fustel de Coulanges[1], em sua obra A Cidade Antiga, escreve:

[…] cada pai esperava da sua posteridade a série de banquetes fúnebres que devia assegurar a seus manes repouso e felicidade. Essa opinião era o princípio fundamental do direito doméstico entre os antigos, derivando daí, em primeiro lugar, a regra de que cada família devia perpetuar-se para sempre. Os mortos tinham necessidade de que sua descendência não se extinguisse. No túmulo, onde viviam, não tinham outra preocupação. Seu único pensamento, como seu único interesse, era ter sempre um varão de seu sangue para levar-lhe ofertas ao túmulo […] Tocamos aqui em um dos caracteres mais notáveis da família antiga. A religião, que a formou, exige imperiosamente sua continuação […] O grande interesse da vida humana é continuar a descendência para continuar o culto.

Além do aspecto religioso, outro motivo que levava as taxas de natalidade a não diminuir muito era a exigência de um número elevado de trabalhadores nas atividades agropecuárias, o que fez com que a sociedade incentivasse a natalidade.

Embora o ideal reprodutivo variasse de acordo com a população, a religião e os Estados sempre tiveram uma conduta pró-natalista em decorrência do pensamento que o matrimônio tinha como objetivo maior a procriação. Nesta época, grandes filósofos como Platão e Aristóteles, associaram o crescente número de filhos ao aumento da pobreza e crimes, passando a defender atos de regulação de natalidade como infanticídio e aborto, apesar da posição oficial do Estado ser a favor da natalidade.

Com a Revolução Francesa e depois com a Revolução Industrial, impressionantemente o nível de pobreza aumentou e o inglês Thomas Robert Malthus, sem considerar o problema da concentração de renda, desenvolveu a Teoria Malthusiana que afirmava que o crescimento da população era associado ao crescimento da pobreza, pois a população cresce em progressão geométrica enquanto os alimentos cresciam em progressão aritmética. Segundo Edméia de Almeida et al. (2000, p.37) “a idéia de uma medicina social surgiu durante a Revolução Francesa, no século XVIII, porém, foi a Inglaterra que criou os primeiros mecanismos para transformá-la em uma política de Estado.”

No século dezenove, em países com problemas com superpopulação como os Estados Unidos e outros na Europa, a Teoria Malthusiana foi utilizada como fundamento para uma política de controle de natalidade. Essa política de controle de natalidade sempre foi muito criticada por atingir geralmente apenas as camadas de baixa renda, o que se caracteriza como discriminação social. Afirmam ainda estudiosos, como Gentil Corazza, Paulo de Tarso Almeida Paiva e Simone Wajnman, que o caminho para erradicação da pobreza é uma distribuição eqüitativa de renda, o que exige grandes transformações sociais, não simplesmente o controle da capacidade reprodutiva de uma classe social. Nesse sentido, defende a socióloga Dulce Xavier (apud SARMIENTO, 2006, on-line) que “poucos filhos não é sinônimo de desenvolvimento, já que a pobreza é conseqüência da má distribuição de renda”.

            Apesar de alguns Estados começarem a aceitar as idéias de controle de natalidade, a Igreja Católica, predominante na época, continuava a recriminar a utilização de contraceptivos e ainda no século dezenove, quando a idéia de controle de natalidade amadurecia, uma mulher chamada Annie Besant foi julgada e condenada por defender que as mulheres tinham direito de controlar sua maternidade em 1877, quando foi presa por distribuir a reimpressão de um panfleto do clínico Charles Knowlton, escrito em 1831, defendendo e ensinando a utilização dos métodos contraceptivos. O julgamento de Annie chamou os católicos para uma discussão acerca da utilização de métodos anticoncepcionais e deu-se um grande avanço quando, em 1951, o Papa Pio XII aprovou o chamado Calendário Ogino[2] por declarar que “a regulagem das nascenças, contrariamente àquilo a que se chama controle das nascenças, é compatível com a Lei de Deus” (1851 apud BATAILLE, 1967, p.42). Observa-se que o próprio Papa, autoridade católica máxima, fez diferença entre o controle de natalidade e a regulação de natalidade, como o fez João Evangelista dos Santos Alves em seu artigo Direitos Humanos, Sexualidade e Integridade na Transmissão da Vida ao dividir em três categorias os métodos programação de natalidade. São essas categorias:

I – Métodos que destroem a vida: aborto provocado (métodos criminosos – Antinatalismo);

II – Métodos que impossibilitam a vida, tornando infecundos os atos sexuais que seriam normalmente fecundos: anticoncepção ou contracepção (métodos artificiais – Controle de Natalidade);

III – Métodos que respeitam a vida e as fontes de vida: fisiológicos (Planejamento Familiar pelos Métodos Naturais, Paternidade Responsável). [3]

No início do século vinte, ainda não estava estabelecida a compreensão da contracepção como direito reprodutivo, para muitos a contracepção estava inserida na idéia de controle de natalidade. Segundo Ávila (1992, apud COELHO et al., 2000, p.39):

Três linhas de pensamento foram formadas nesse período: a das feministas, que consideravam a contracepção um direito fundamental; a dos neomalthusianos que a defendiam como meio para melhorar a situação de pobreza; e a dos eugenistas, que viam no controle de natalidade um caminho para melhorar a qualidade genética.

Na França, em 1955, surgiu o primeiro movimento objetivando a regularização do Direito ao planejamento familiar, sendo este considerado o Direito à regulação de fecundidade e não ao controle de natalidade. Foi neste momento que a compreensão de Direitos Reprodutivos começou a ganhar os contornos que hoje possui. 

1.2   Direitos reprodutivos e instituições de planejamento familiar no Brasil

Durante todo o século dezenove o Brasil se manteve afastado das discussões acerca de políticas de controle de natalidade, incentivando-a, já que os altos índices de mortalidade minavam o crescimento populacional. Entretanto, no século vinte, o crescimento demográfico aumentou devido às melhores condições sanitárias e o país começou a sofrer pressões dos países desenvolvidos para adotar políticas de controle de natalidade. Os países mais desenvolvidos continuavam a se apoiar na Teoria Malthusiana para justificar a interferência na capacidade reprodutiva das camadas mais pobres. O governo brasileiro se opôs aos interesses internacionais até que, nos anos sessenta, completamente dependente do capital estrangeiro, cedeu às “chantagens” externas, pois os Estados vinculavam a obtenção de empréstimos à adoção de políticas de controle populacional. De acordo com Edméia de Almeida et al. (2000, p.40):

Uma vez dependente do capital internacional, o Brasil se rendeu às entidades americanas consideradas de planejamento familiar, apesar da resistência de militares, da Igreja e do próprio governo, que justificavam a importância de uma grande população, tanto do ponto de vista estratégico como econômico.

Para facilitar a aceitação pela sociedade, houve uma propaganda do controle de natalidade como planejamento familiar e a criação de um órgão, o BEMFAM (Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar) em 1965. Esse órgão foi financiado por empresas internacionais e facilitava o acesso a métodos contraceptivos sem promover educação e muito menos prestar atendimento médico àqueles que se “beneficiavam” desses métodos. O governo brasileiro, embora não apoiasse as atividades das empresas privadas, adotava uma conduta completamente permissiva em relação ao seu funcionamento. A socióloga Maria José Duarte Osis (apud SARMIENTO, 2006, on-line) afirma que “logo nos anos 60 houve associação de planejamento familiar com política de controle de natalidade, enfatizado por países mais desenvolvidos que apontavam a causa da pobreza e do subdesenvolvimento era o número excessivo de filhos nos países mais pobres”.

Em 1975, por recomendação da Organização Mundial de Saúde, foi desenvolvido o PMI, Programa de Saúde Materno Infantil. Esse programa ainda possuía o mesmo aspecto controlador que a BEMFAM, mas oferecia atendimento médico àqueles casais ou mulheres que, após numerosas gestações, desejavam dispor de algum método de contracepção. Segundo Marques (apud COELHO et al., 2000, p.41), o PMI “acelerou as especializações, a tecnificação, a concentração médica nos grandes centros urbanos, a prática hospitalar, a impessoalidade, a multiplicidade de empregos e uma prática médica curativa em detrimento da preventiva”.

Na década de oitenta, os grupos feministas brasileiros acirraram os debates sobre natalidade no país, opondo-se fervorosamente tanto aos interesses controlistas estrangeiros quanto aos interesses natalistas do governo. O PAISM, Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, segundo Coelho et al. (2000, p.41), foi resultado da visão de diferentes grupos sociais, os feministas, demógrafos, cientistas sociais entre outros, sendo a primeira instituição brasileira que, de fato, oferecia serviços de planejamento familiar tendo como objetivos:

Atender a mulher, através de atividades de assistência integral clínico-ginecológica e educativa, voltadas para o aprimoramento do controle pré-natal, do parto e do puerpério; a abordagem dos problemas presentes desde a adolescência até a terceira idade; o controle das doenças transmitidas sexualmente, do câncer de cérvico-uterino e mamário e a assistência para concepção e contracepção.

Com os serviços oferecidos pelo PAISM os Direitos Reprodutivos passaram a ser efetivamente atendidos. São protegidos no Brasil por lei desde a Constituição Federal de 1988 que em seu art.226, § 7º dispõe sobre o planejamento familiar que vem a ser, segundo a Lei nº. 9.263, de 12 de janeiro de 1996, “o conjunto de ações de fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”.

Até hoje, apesar das políticas de planejamento familiar, muitos brasileiros continuam a associar planejamento familiar ao controle da natalidade. Isto em parte se deve ao fato que nos muitos municípios brasileiros em que existe atendimento de planejamento familiar, pouco ou nada é feito em termos de educação e de atendimento aos casos de infertilidade.

Os resultados do trabalho de pesquisa realizado por Ana Maria Costa (2006, on-line) que levam à seguinte conclusão a respeito da integralidade na atenção à saúde das mulheres no Brasil: “Os resultados denunciam a dissociação entre as práticas educativas e a rotina de atenção ao planejamento familiar; restrições qualitativas e quantitativas de acesso aos métodos contraceptivos e ainda a baixa oferta de atenção à infertilidade […]”.

O atendimento a infertilidade é um importante aspecto dos Direitos Reprodutivos, pois dados da Organização Mundial de Saúde, OMS, mostram que entre 8 e 15% dos casais tem problemas de infertilidade. Para garantir à população o exercício de seus direitos reprodutivos no que se refere à assistência à infertilidade foi que, em 2003, o Ministério da Saúde lançou a Política de Direitos Sexuais e Reprodutivos, para difundir ações de planejamento familiar entre os anos de 2005 e 2007, sendo um dos eixos dessa política é a introdução de tecnologias de reprodução assistida no Sistema Único de Saúde (SUS), tecnologias estas explanadas no tópico seguinte.

1.3   O projeto parental, reprodução assistida e biodireito

A vontade de ter filhos é inerente ao ser humano. Desde os tempos mais remotos a maternidade e a paternidade são valorizadas pela sociedade. Segundo Bee (1997 apud NASCIMENTO et al., 2006, on-line) “o papel de pai traz uma grande satisfação, um senso maior de propósito e autovalia e uma sensação de amadurecimento, bem como uma sensação de alegria que é compartilhada entre o marido e a mulher”.

Entretanto, devido a problemas de diversas origens, o desejo de ter um filho nem sempre pode ser realizado de forma natural. Embora as sanções para aqueles que não podem ter filhos não mais existam de forma pública, existe a sanção moral que homens e mulheres aplicam a si mesmos quando se deparam com a impossibilidade de gerar uma vida. De acordo com o ensinamento de Luci Helena Baraldo Mansur (2003, on-line):

Não querer um filho é diferente de querer e não ser capaz de ter. Se, por um lado, a limitação de uma mulher com problemas de fertilidade pode ser considerada apenas do ponto de vista físico e sua capacidade de amar avaliada como estando preservada, os termos técnicos "estéril" ou "infértil" carregam a noção pejorativa de que ela é vazia, seca e sem vida por dentro, colocando em cheque seu valor pessoal e feminilidade, através da avaliação de sua fecundidade

            Com a inserção dos direitos reprodutivos no elenco de direitos fundamentais, o tratamento para os casos de infertilidade passou a ser função também do Estado, como está determinado no parágrafo sétimo do art. 226 da Carta Magna, in verbis:

Art. 226.[…]

§7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

[…]

            A partir desse dispositivo constitucional, homens e mulheres que se sentiam prejudicados em seus direitos reprodutivos passaram a ter auxílio do Estado para colocar em prática o seu projeto parental, através das modernas técnicas de reprodução assistida cientificamente aceitas. Conforme entendimento de Sérgio Abdalla Semião (2000, p.161-162):

A revolução cultural ocorrida no início dos anos 60, tornou moralmente aceitável o sexo sem concepção, como também possibilitou a concepção sem sexo.

Um grande número de mulheres que não tinham esperanças de serem mães, por serem estéreis, homossexuais, estarem em pós-menopausa, casadas com homens também estéreis ou até mesmo, por não desejarem repartir o carinho de seus filhos com um pai conhecido, passaram a recorrer aos diversos métodos científicos da reprodução humana assistida.

            As técnicas de reprodução humana assistida que hoje tentam concretizar o projeto parental de inúmeras famílias são objeto de estudo científico há muito tempo. Segundo Alejandra Ana Rotania (2003, on-line), a descoberta, em 1770, de que a fecundação ocorre com a junção de esperma com óvulos pelo biólogo Spallanzani, foi o primeiro grande passo da ciência que favoreceu o desenvolvimento dessas técnicas. Apenas vinte e um anos depois foi realizado pelo cientista inglês Hunter o primeiro registro da experiência de reprodução assistida com a injeção de esperma do marido no útero de sua esposa. Em 1799 foi registrado o primeiro caso de gravidez resultante da técnica. Dessa primeira gravidez até hoje as pesquisas científicas campo da reprodução permitiram desenvolvimento de técnicas cada vez mais eficazes e seguras.

            As técnicas mais conhecidas de reprodução medicamente assistida são a inseminação artificial e a fertilização artificial. A inseminação artificial (IA) é a técnica mais antiga de reprodução assistida tendo sido utilizada pela primeira vez com sucesso em 1799 (ROTANIA, 2003, on-line). Consiste basicamente em inserir o esperma na cavidade uterina através da vagina por meios mecânicos, a partir dessa transferência a continuidade do processo reprodutivo ocorre naturalmente, podendo ou não resultar em uma gestação. Conforme a explicação de Regina Fiúza e Severo Hryniewicz (2000, p.92) “a técnica da Inseminação Assistida é relativamente simples e consiste na introdução do esperma na vagina, por meio de uma cânula. É a técnica mais antiga, que teve um longo processo de desenvolvimento e não causou grandes polêmicas desde que foi desenvolvida”.

De acordo com Luis Irajá (2004, p.261) esta técnica é indicada para os casos em que a mulher ou o homem possuem má formação dos órgãos sexuais, por motivo de impotência masculina, má formação dos espermatozóides que prejudique sua mobilidade (astenospermia), quantidade pequena de espermatozóides (oligoespermia) e até mesmo para selecionar o sexo da criança a fim de evitar doenças hereditárias ligadas ao sexo, como por exemplo, a hemofilia. A partir de 1954, o desenvolvimento da técnica de congelamento do esperma permitiu que pacientes que fossem se submeter aos tratamentos que prejudicassem sua fertilidade armazenassem seu sêmen para futuras inseminações (sauwen; Hryniewicz 2000, p. 93).

            Na técnica de fertilização artificial, diferentemente do que ocorre na inseminação artificial, a fecundação realiza-se extra corporalmente, in vitro e não in vivo. Por esse motivo que a técnica é mais conhecida como fecundação in vitro (FIV) ou ainda bebê de proveta (WELTER, 2003, p.219), pois a fecundação ocorre na proveta. O procedimento da fecundação in vitro é bem mais complexo que o da inseminação artificial: primeiro, com a estimulação hormonal, faz-se com que a mulher libere óvulos e, depois, retiram-se estes através de laparoscopia[4], incisão abdominal ou de forma transvaginal por controle ecográfico (Rotania, 2003, on-line). Coletam-se também os gametas masculinos do esperma obtido pela masturbação. Coletados os gametas colocam-se ambos em meio nutritivo que favoreça a fertilização.

            Obtido o zigoto é realizada pela técnica de transferência intratubária de zigotos, conhecida pela sigla inglesa ZIFT (Zigot intra-falopian transfer), que consiste na colocação desses zigotos resultantes para o interior das tubas uterinas (antes denominadas trompas de falópio) para que naturalmente ocorra a nidificação. Como explica Sergio Abdalla Semião (2000, p.169):

Após a fecundação, que é provocada artificialmente, o óvulo fecundado, já embrião, é transportado para a mulher, quando se espera que se dê a nidação, que é a fixação desse óvulo embrionário no endométrio (mucosa uterina), onde passará a se desenvolver a gestação, que nem sempre ocorre. Atualmente o êxito dessa técnica está em torno dos 26%, com algumas variações.

Pode-se também esperar que o zigoto incubado in vitro sofra as primeiras divisões até formar o embrião e só nesse estágio transferi-lo para o útero ou para as tubas uterinas. Esta técnica é chamada de fertilização in vitro seguida de transferência de embriões ou FIVETE. Conforme Luis Irajá (2004, p.262):

Temos também como técnica de RMA(s) a FIVETE, isto é, a Fertilização In Vitro Seguida de Transferência de Embriões; o zigoto ou zigotos continuam a ser incubados in vitro no mesmo meio em que surgiram, até que se dê a sua segmentação. O embrião ou embriões resultantes (no estágio de 2 a 8 células) são então transferidos para o útero ou para trompas.

A fertilização in vitro pode ser ainda seguida de uma maternidade de substituição, popularmente conhecida por “barriga de aluguel”, bastando para isso que o zigoto ou embrião seja transportado para as tubas ou útero de uma mulher saudável pela impossibilidade física da que forneceu os gametas. “A técnica vulgarmente conhecida como “barriga de aluguel”, ou gestação substituta, é na realidade um arranjo social quando uma mulher não pode realizar o ciclo da gestação em seu próprio útero. Trata-se de realizar uma FIV e transferir o embrião ao útero de uma mulher diferente da solicitante” (ROTANIA, 2003, on-line).

            A injeção intracitoplasmática (ICSI) é também uma técnica de fertilização artificial desenvolvida em 1993 para os casos em que mesmo colocando-se os gametas em meio propício para fecundação a fusão dos gametas não ocorria. Nesta técnica injeta-se um espermatozóide pré-selecionado no interior do óvulo com o auxílio de uma microagulha dez vezes mais fina que um fio de cabelo. É a técnica mais recomendada quando existem alterações na forma do espermatozóide que desfavoreça a fecundação segundo Alejandra Ana Rotania. Após a fusão procede-se à ZIFT, à FIVETE ou a gestação substituta dependendo do caso.

            Outra técnica de reprodução assistida é a transferência intratubária de gametas ou GIFT.  Assim como na inseminação artificial, a fecundação nesta técnica ocorre in vivo. Nesta técnica, os dois gametas, óvulo e espermatozóide, são coletados assim como na primeira etapa da fertilização in vitro e depois são transferidos para as tubas uterinas onde ocorre a fecundação. Esta técnica é indicada quando se desconhece a razão da impossibilidade da gravidez se dar de forma natural, “os defensores dessa técnica afirmam que seriam passíveis de tratamento, cerca de 40 % dos casos que, por motivo de patologia conhecida ou ainda desconhecida e nem sempre superáveis com a inseminação artificial, não alcançam a concepção” (SCRECCIA, 1996, p.417 apud SÁ JÚNIOR, 2004, p.261).

            Todas as técnicas citadas podem ser realizadas tanto com os gametas daqueles que desejam a criança quanto com gametas de doadores. No caso da reprodução assistida ser realizada com gametas do casal ela é chamada homóloga, caso seja realizada com gametas de terceiros ela é chamada heteróloga. No caso específico da inseminação artificial, apenas o espermatozóide pode ser de doador, enquanto nas outras técnicas podemos ter o óvulo também doado, por isso dividi-se a técnica em inseminação artificial com esperma do cônjuge, IAC, e inseminação artificial com esperma de doador, IAD.

            O desenvolvimento de técnicas de reprodução medicamente assistida (RMAs) trouxe grandes alegrias aos homens, mulheres e casais que desejavam filhos, mas que por diversos motivos não podiam gerá-los. Entretanto, o desenvolvimento científico que possibilitou esses “milagres” não poderia deixar de estar acompanhado por diversos questionamentos de ordem psicológica, moral, religiosa, científica e jurídica, uma vez que as técnicas de reprodução assistida envolvem vidas, tanto daqueles que desejam ser pais quanto daqueles que virão a ser filhos. Segundo Belmiro Pedro Welter (2003, p.209):

[…] é preciso transnacionalizar a ética universal na reprodução humana medicamente assistida, que reclama o cumprimento de alguns princípios para garantir o bem estar das pessoas que são os destinatários ou os participantes das pesquisas genéticas: o princípio da beneficência, da autonomia, da justiça e da dignidade da pessoa humana.

            Os princípios citados por Welter são os princípios da Bioética, considerada a “ética das ciências da vida”, segundo Maria Helena Diniz (2001, p.6):

Um novo domínio da reflexão que considera o ser humano em sua dignidade e condições éticas para uma vida humana digna, alertando a todos sobre as conseqüências nefastas de um avanço incontrolado da biotecnologia e sobre a necessidade de uma tomada de consciência dos desafios trazidos pelas ciências da vida.

            No que compete ao princípio da dignidade da pessoa humana devemos ressaltar a importância da bioética para o Direito, pois o Direito mostra-se como um sistema de resolução de conflitos, ou, diferentemente, pode apresentar-se como um sistema de preservação de direitos (BrauneR, 2003, on-line), dentre os quais o princípio da dignidade da pessoa humana, que é reconhecido como fundamental e como base para todo o ordenamento jurídico. O biodireito surge, então, dessa relação entre bioética e Direito, sendo, para Maria Helena Diniz “o estudo jurídico que, tomando por fontes imediatas à bioética e à biogenética, teria a vida por objeto principal” (1998, p.40 apud SÁ JÚNIOR, 2004, p. 260).

            De acordo com Sergio Abdalla Semião (2000, p. 165): “o biodireito e a bioética invadiram a vida dos casais inférteis que um filho ou, até mesmo, o direito a um filho, no entendimento de alguns”. Essa invasão ganha relevância quando se fala do biodireito em relação ao vínculo parental, pois “a procriação humana assistida perturba valores, crenças e representações que se julgavam intocáveis. Ela divorcia a sexualidade da reprodução, a concepção da filiação, a filiação biológica dos laços afetivos e educativos, a mãe biológica da mãe substituta” (SEMIÃO, 2000, p.168). Observam-se discussões especialmente nos casos de reprodução medicamente assistida heteróloga, tanto quanto à determinação do vínculo parental, já que na reprodução assistida homóloga as filiações afetivas e biológicas se confundem, quanto em relação ao anonimato do doador, que gera uma colisão de direitos fundamentais. A filiação no contexto das novas tecnologias reprodutivas será o objeto do estudo do próximo capítulo, enquanto a colisão de diretos fundamentais será abordada no capítulo subseqüente.

2.   FILIAÇÃO NA REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA

            O conceito etimológico de filiação é derivado do latim filiatio, termo que distinguia a relação de parentesco estabelecida entre pessoas que concederam a vida a um ente humano e este (Grunwald, 2003). Como se aufere do conceito do instituto, a percepção inicial da filiação tinha como fato originário a procriação, a relação sexual entre duas pessoas.  Conforme definição citada por Astried Brettas Grunwald (2003, on-line):

A filiação, pois, é fundada no fato da procriação, pelo qual se evidencia o estado de filho, indicativo do vínculo natural ou consangüíneo, firmado entre gerado e progenitores. É assim, a relação de parentesco entre pais e os filhos, considerados na ordem ascensional, destes para os primeiros, do qual também procedem, em ordem inversa, os estados de pai (paternidade) e de mãe (maternidade).

            Atualmente, o conceito de filiação já não é mais tão facilmente estruturado. As mudanças que o Direito de Família sofreu ao longo dos anos, principalmente em tempos de grandes avanços da biotecnologia, impõem novas formas de vivenciar e compreender as relações entre pais e filhos.

2.1   Das Espécies de Filiação

            A filiação, como vínculo de parentesco do filho em relação aos pais, envolve a idéia de paternidade e maternidade, como vínculo de parentesco dos pais em relação aos filhos. Conforme Andrada e Silva (1919, p.218 apud BARROS, 2005, p.56):

Filiação é a relação que o fato de procriação estabelece entre duas pessoas, das quais uma é nascida da outra. Considerada com respeito ao filho, esta relação toma particularmente o nome de filiação; com respeito ao pai, o de paternidade e com respeito à mãe o de maternidade.

            Então, para a análise da evolução histórica do conceito de filiação, é imprescindível analisar a evolução da idéia de paternidade e maternidade desde o Direito Romano até os dias atuais.

            O Direito de Família Romano entendia a instituição familiar como o conjunto de pessoas subordinadas ao paterfamilias, o pai de família, nota-se daí a característica básica da família romana: o patriarcalismo. Segundo o patriarcalismo, o chefe da família era o pater, chefe absoluto, pois somente a ele cabia o exercício dos seguintes direitos: dominica potestas sobre os escravos; dominiun sobre os bens; manus sobre a esposa; pratia potestas sobre os filhos e mancipium sobre as pessoas livres (TABOSA, 1999, p.166). Outra característica importante da família romana sempre foi a monogamia, assim, só se podia ter uma esposa ou um marido legalmente estabelecido através das justas núpcias, justae nuptiae, ou seja, o casamento legal.

            A paternidade no Direito Romano era atribuída àquele que era casado com a mãe, pois era o casamento que formava a família ao legalizar as relações sexuais que originavam os filhos. A maternidade era sempre certa, semper est certa mater, pois como assevera Lafayette (apud BARROS, 2005, p.57) revela-se por sinais exteriores, claros e positivos, como a gravidez e o parto, enquanto que a paternidade se resolvia através da presunção legal de que a criança concebida na constância do casamento tem como pai o marido de sua mãe, pois pater est quem nuptiae demonstrant. Como resume Grunwald (2003, on-line):

O casamento era então a base da formação da família, a legalização das relações sexuais de onde se originava a prole; até então o que originava a filiação era essa relação matrimonial de tal modo que os filhos havidos fora do casamento não faziam parte do núcleo familiar, não podiam nem mesmo ser registrados com o nome paterno sendo este casado.

            A discriminação da filiação em legítima e ilegítima tinha como base a situação dos progenitores. O parentesco legítimo, filiação legítima, existia quando o nascimento decorria de matrimônio legal, já o ilegítimo, se dividia em dois tipos: o parentesco natural, que existia entre o gerado e os genitores quando estes não eram casados legalmente embora não houvesse impedimentos para tal ato, e o parentesco espúrio, este ocorrendo quando o ser gerado tinha como pais pessoas que não eram legitimamente casadas por estarem, por exemplo, impedidas por já terem contraído justas núpcias, ou seja, o filho seria adulterino. O parentesco espúrio originado do adultério era estabelecido quando o marido questionava sua paternidade, entretanto, esta só podia ser questionada quando houvesse comprovação da não coabitação no período da concepção ou se provada a impotência do marido, pois existia a presunção de fidelidade da mulher, já que o pater tinha poder de fiscalizar sua mulher, sendo detentor do manus sobre a esposa. Fernanda Otoni de Barros explica citando Andrada e Silva (2005, p.58):

A regra que derivava a paternidade da relação matrimonial só poderia ser questionada se fosse comprovado não ter havido coabitação ao tempo da concepção legítima, mas se, pelo menos um dia, nesse tempo, os amantes tivessem se encontrado, não poderia ser questionada a legitimidade da paternidade. Outro caso que suportaria a contestação seria prova inequívoca pericial de impotência do marido. Pai é aquele com quem a mãe se deita, presumidamente, pelo assentimento social e legal, no tempo da constância do casamento.

Nem o adultério comprovado era capaz de derrubar a filiação legítima da paternidade. A prova do adultério não destruía a presunção legal da paternidade, porque, não obstante as relações criminosas da mulher com outra pessoa, o filho bem pode ser do marido, e, na dúvida prevalece a presunção em favor da legitimidade.

            As idéias de família, filiação, paternidade e maternidade que permeavam o Direito Romano chegaram praticamente intocadas até o legislador do Código Civil Brasileiro de 1916, Lei nº. 3.071, de 1º de janeiro de1916. No título V, sobre as relações de parentesco, o legislador destinou dois capítulos para filiação: o capítulo II, da filiação legítima, e o capítulo IV, do reconhecimento da filiação ilegítima. No tangente à filiação legítima, continua firme a presunção de paternidade, como se aduz da leitura do art.338:

Art.338. Presumem-se concebidos na constância do casamento:

I – os filhos nascidos 180 (cento e oitenta) dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II – os nascidos dentro nos 300 (trezentos) dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite, ou anulação.

            As possibilidades de contestar a paternidade permaneceram as mesmas do antigo Direito Romano, quais sejam: a prova da não coabitação ao tempo da concepção (art.340) e a prova da absoluta impotência (art.342). A prova do adultério continua não sendo suficiente para alegar contra legitimidade do filho e essa contestação continua sendo privativa do homem, como o era nos tempos romanos, nos quais se considerava que ao permitir que outros propusessem a ação estaria retirando-se do marido o direito de resguardar a sua dignidade e a honra da família, uma vez que envolve a denúncia de adultério (ANDRADA E SILVA, 1919, p.223 apud BARROS, 2005, p.58). A inovação trazida pelo código de 1916 foi a possibilidade de investigar a paternidade, dando aos filhos legitimados os mesmos direitos e deveres relativos aos filhos legítimos. Entretanto, essa investigação de paternidade só era possível quando o parentesco fosse natural e a legitimação não acontecesse por vontade do pai. Os filhos espúrios, fossem adulterinos, incestuosos ou sacrílegos, não podiam investigar sua paternidade.

            Com o Decreto-Lei nº. 4.737 de 1942 que tratava sobre a regularização da situação dos filhos naturais, os filhos adulterinos puderam ser reconhecidos após o desquite de seus pais, pois o artigo primeiro do Decreto-Lei determina que “o filho havido pelo cônjuge fora do matrimônio pode, depois do desquite, ser reconhecido, ou demandar que se declare sua filiação”. De acordo com Caio Mário da Silva Pereira (1977, p. 40-41):

A cláusula circunstancial – “depois do desquite” – é modificativa de reconhecimento, e não da concepção, enquanto que a expressão “fora do matrimônio” é que se prende diretamente à geração […] pouco importa que o filho tenha sido gerado antes ou depois de dissolvida a sociedade conjugal; qualquer que seja a época de seu nascimento, poderá ser reconhecido após o desquite.

            A doutrina e jurisprudência entenderam que a partir desse Decreto-Lei, qualquer que fosse o motivo pelo qual a sociedade conjugal se dissolvesse, como por exemplo, a morte de um dos cônjuges ou a anulação do casamento, o filho adulterino poderia reclamar sua paternidade. Entretanto, não era qualquer filho adulterino. O filho adulterino a patre, ou seja, aquele que é filho de pai casado e mãe solteira, poderia reclamar sua paternidade, mas aqueles que fossem adulterinos a matre, cuja mãe é casada e o pai solteiro, ou ainda os filhos cujos dois progenitores fossem casados, não poderiam investigar sua paternidade uma vez que esta é resolvida pela presunção pater est quem nuptiae demonstrant, salvo prova de não coabitação ou tempo da concepção, ou prova de impotência absoluta, cabendo essa ação negatória de paternidade privativamente ao marido. Esse entendimento doutrinário e jurisprudencial foi efetivamente positivado em 1949, com a Lei nº. 883. Apesar disso, alguns tribunais passaram a permitir a investigação de paternidade que contrariasse a presunção em casos especiais, de acordo com Caio Mario da Silva Pereira (1991, p.140):

Sem quebrar o princípio, vem-se notando nos tribunais a tendência de considerar as situações de fato, em que, vigendo embora a sociedade conjugal, a presunção pater est se acha ostensivamente contrariada. […]

O Supremo Tribunal Federal tem tão repetidamente cogitado da espécie que já se considera jurisprudência sua apreciar a legitimidade ad causam do adulterino a matre em face das circunstâncias de fato […].

            A paternidade, então, era presumida desde os tempos romanos enquanto a maternidade sempre foi certa. Em 1953, as implicações da descoberta do DNA (ácido desoxirribonucléico) nos estudos jurídicos sobre o Direito de família modificaram a tradicional presunção de paternidade. Não que esta tenha deixado de existir, mas perdeu a força na medida em que as descobertas da biotecnologia possibilitaram descobrir, com um nível quase absoluto de certeza, o progenitor de cada indivíduo. Os exames laboratoriais de comparação do DNA, que carrega todo o código genético de todas as pessoas, tornaram-se o grande trunfo das ações de investigação de paternidade. Para Magda Guadalupe dos Santos (2001, p.245):

Acima de tudo, visava-se à identificação biológica do pai, reduzindo a Paternidade a uma simples seqüência de dados genéticos. A Filiação, por sua vez, equivalia ao mero fato do nascimento, moldando uma compreensão de família assentada apenas nos dados de consangüinidade e instituída a partir de uma unidade de caráter econômico e social.

            Surge então, o critério biológico de estabelecimento da filiação, que diferentemente do critério jurídico, considerado como “mentira jurídica pela paz social”, busca a “verdade real” da filiação. Nesse sentido, a proibição dos filhos adulterinos a matre e dos filhos bilateralmente adulterinos investigarem sua paternidade perdeu sua razão de ser quando testes laboratoriais puderam averiguar qual era o pai biológico. O teste de DNA foi um avanço nas ações de investigação de paternidade, mas quando confrontado com o princípio jurídico da presunção pater is est quem nuptia demostrant, foi motivo de conflito de opiniões. Uma vez que esta presunção era praticamente absoluta e que nem sempre os pais juridicamente estabelecidos queriam negar sua paternidade. Como ficaria a situação do filho quando, por exemplo, sua mãe admitia o adultério e o pai biológico queria reconhecê-lo após a dissolução da sociedade conjugal? Seria justo manter o pai civilmente estabelecido baseado na presunção jurídica quando o teste de DNA comprovasse a paternidade biológica de outro? Será que seria justo desconstituir a paternidade quando o filho havia vivido desde seu nascimento tendo como pai o presumido e este querendo manter o vínculo?

Esses questionamentos tiveram sua resposta com a promulgação da Constituição de 1988, do Código Civil de 2002, Lei nº. 10.406 de 10 de janeiro de 2002, e do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº. 8.069 de 13 de julho de 1990. Atualmente, a presunção de paternidade continua existindo positivada no atual Código Civil em seu art. 1597, in verbis:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido

 Esta presunção existe de forma absoluta, iuris et de iure, quanto às hipóteses dos incisos III, IV e V, entretanto, existe de forma relativa, iuris tantum, nos casos descritos nos incisos I, II, pois pode ser elidida pela prova da impotência marital (art. 1599). Além disso, a não propositura de ação de negatória de paternidade privativa do marido não obsta que o filho proponha a ação de investigação de paternidade, ou seja, embora caiba ao pai negar a paternidade, a investigação desta pode ser proposta mesmo quando o pai presumido não negue a filiação. Esse entendimento é corroborado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente quanto este dispõe em seu art.27 que “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”.

A popularização do teste de DNA em ações investigatórias de paternidade facilitou a decisão dos juízes das varas de família de todo o Brasil que antes tinham que decidir baseando-se na verossimilhança dos fatos articulados, entretanto, a prova da verdade biológica não é suficiente para desconstituir a paternidade presumida, pois surgiu a idéia de uma nova espécie de filiação: a filiação socioafetiva. Segundo Eduardo de Oliveira Leite (2004, p.77):

O novo Código Civil realiza, aquilo que chamamos de “a passagem do modelo clássico para o modelo contemporâneo de filiação”. O que o novo Código Civil resgata, sem vacilações, é que a filiação pode decorrer de fontes plúrimas e não mais, exclusivamente biológica, como preconizava a proposta codificada de 1916. Agora, a filiação pode decorrer dos meros laços sanguíneos (parentesco natural), da mera adoção, ou eleição (parentesco civil), como da pura afeição (parentesco resultante das procriações artificiais).

A filiação socioafetiva se comprova através do estado de filho e garante os mesmos direitos e deveres da filiação natural, estando essa igualdade garantida constitucionalmente:

Art. 227

[…]

§ 6º – Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Portanto, baseados na idéia de família trazida pelos novos dispositivos legais, nas mudanças sociais e nos princípios de responsabilidade dos pais quanto aos filhos compreende-se atualmente o instituto da filiação como algo decorrente das relações afetivas entre pais e filhos. Este instituto pode ou não se confundir com a origem genética do indivíduo, o mais importante é o bem estar do indivíduo no âmbito familiar seja sua família consangüínea ou não. Citando ainda Eduardo Oliveira Leite (2004, p.77):

Relativizando as conquistas obtidas pela verdade genética (atualmente, plenamente garantidas através dos seguríssimos exames de DNA), as novas técnicas de reprodução revelam não só a fragilidades da verdade biológica, mas retomam a validade de novos princípios informadores da relação paterno-materno-filial, como é a verdade afetiva.

No tocante às técnicas de reprodução medicamente assistida, esse entendimento de paternidade e maternidade como algo decorrente das relações afetivas ganha relevância. Sabe-se que estes procedimentos podem ser realizados de forma heteróloga, ou seja, com a utilização de material genético de terceiros, portanto, num possível teste de DNA, a carga genética do indivíduo não será compatível com a do seu pai civil, pode até mesmo não ser compatível com a da própria mulher que o gerou, o que não pode ser utilizado como argumento para a desconstituição da paternidade nem de maternidade, pois estes institutos não se confundem com identidade genética.

2.2 O estado de filho na filiação socioafetiva decorrente das técnicas de reprodução medicamente assistida heteróloga

            Observam-se, atualmente, três modelos de filiação: o primeiro e mais antiga é o modelo tradicional, ou filiação presumida, que segue o critério jurídico, positivada no Código Civil de 2002 no art.1.597, derivada do casamento legal; o segundo é o científico, ou filiação biológica, geralmente determinada em sede de ação de investigação de paternidade e maternidade quando o genitor não quer reconhecer o vínculo de filiação espontaneamente no registro civil; O terceiro modelo representa a filiação socioafetiva, recentemente albergada nas decisões judiciais embora não esteja expressa em nenhum dispositivo legal de nosso ordenamento, que tem lugar nas relações baseadas no principio da afetividade das relações. Cada uma destas formas de se constituir o vínculo entre pais e filhos tem seu espaço próprio, mas em alguns casos elas podem coexistir quanto a uma mesma pessoa e nestes casos a jurisprudência deve decidir qual dos tipos de filiação deve prevalecer em detrimento da outra já que o mesmo indivíduo não pode ter “dois pais” nem “duas mães”.

            A Constituição de 1988 preconiza a igualdade dos filhos, independente de sua origem, portanto, independente também do tipo de filiação. Mas não se manifesta no caso delas coexistirem. Por exemplo: uma mulher solteira deseja um filho, mas não tem ovários, e por ser estéril, recorre a um banco de gametas para proceder a um tratamento de reprodução medicamente assistida com a técnica de fertilização in vitro seguida de transferência intratubária de embriões (FIVETE) e, tendo o filho, o cria. Depois, a doadora do óvulo, por um motivo de doença se torna estéril, e, descobrindo a criança concebida com seu óvulo, quer que seja decretada a sua maternidade alegando a maternidade biológica. Quem é realmente a mãe, a biológica ou a socioafetiva? De acordo com Tycho Brahe Fernandes (apud Aldrovandi, 2002, on-line):

Ante a possibilidade de um conflito de maternidade, é fundamental estabelecer juridicamente que a maternidade deverá cair sempre naquela que será a mãe socioafetiva, até porque o projeto de maternidade partiu dela ao escrever o seu direito constitucional do planejamento familiar.

Outros casos diferentes de conflito podem ocorrer. Quanto à maternidade viu-se que este conflito se resolve geralmente em favor da mãe socioafetiva, mas, e nos casos de conflito de paternidade em que o casal, por não ser unido em matrimônio, realiza o seu projeto parental com o auxílio de uma técnica de reprodução assistida heteróloga e depois o doador do sêmen quer reconhecer a criança concebida? Neste caso, não há presunção de paternidade do homem que consentiu na utilização da técnica, pois não há matrimônio. Os tribunais brasileiros, seguindo as disposições do Capítulo VII do Título VIII da Constituição Federal de 1988, que trata da família, da criança, do adolescente e do idoso, bem como as disposições da Lei nº. 8.069 de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), têm decidido pela filiação que representa maior benefício para criança de acordo com o princípio do maior interesse da criança. Vejamos os artigos 4º e 6º do ECA:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

[…]

Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

            Assim, as decisões têm sido no sentido de apontar a paternidade e maternidade àqueles pais que podem garantir o melhor desenvolvimento do menor valendo-se para isso da aplicação do princípio do maior interesse da criança, como assevera Paulo Luiz Netto Lobo (2004, on-line):

O princípio impõe a predominância do interesse do filho, que norteará o julgador, o qual, ante o caso concreto, decidirá se a realização pessoal do menor estará assegurada entre os pais biológicos ou entre os não-biológicos. De toda forma, deve ser ponderada a convivência familiar, constitutiva da posse do estado de filiação, pois ela é prioridade absoluta da criança e do adolescente.

Nas palavras de Magda Guadalupe dos Santos (2001, p.248-249):

Em tempos mesmo de pós-modernidade dá-se, inclusive, a possibilidade de reprodução in vitro de um almejado filho, ampliando, de forma significativa, os parâmetros jurídico-culturais da relação entre pais e filhos […] Ungido pela dimensão do tempo, o direito assenta-se, pois, no estatuto simbólico da afeição, reconhecendo como pai aquele que uma durante uma vida soube proteger e zelar pelo filho, ensejando-lhe o acesso à sociabilidade, com ele repartindo seus projetos, construindo seu olhar sobre o mundo, dando-lhe seu nome e seu apreço. Reconhece-se àquele que registra, educa, ama e protege uma criança o direito de ser nomeado Pai de seu filho.

Então, como se aduz do texto, a verdadeira filiação nem sempre é a biológica. A verdade real da filiação surge, nos dizeres de Paulo Luiz Netto Lôbo (2004, on-line), “na dimensão cultural, social e afetiva, donde emerge o estado de filiação efetivamente constituído”. Segundo o autor “o direito deu um salto à frente do dado da natureza, construindo a filiação jurídica com outros elementos”. Esses outros elementos que compõem a filiação socioafetiva não foram determinados pelo legislador, mesmo porque o estado de filiação, considerado como a exteriorização da convivência familiar e da afetividade, não é expresso na lei, mas se pode afirmar que três quesitos são pacificamente elencados pela doutrina: o nome, o trato e a fama.

O nome (nomem) se caracteriza pela utilização do nome de família do pai e da mãe pelo filho. O trato (tractatus) é a atenção dispensada pelos pais à pessoa do filho, revela-se no cuidado com a educação, alimentação, vestuário, enfim, pelo zelo com bem-estar do filho, não só através da assistência material, mas também da moral. Finalmente a fama (fama) que é exteriorização para o público do estado de filho.

Belmiro Pedro Welter, Paulo Luiz Netto Lobo, José Bernardo Ramos, Arnaldo Fonseca, entre outros autores, fazem parte da maioria doutrinária que indica que o elemento nome não é tão importante, isso por que, em tempos modernos, os indivíduos são reconhecidos pelo prenome e não pelo nome de família, que ao longo dos anos vem perdendo sua importância. Segundo Welter (2003, p.157) “a doutrina, em sua maioria, dispensa o requisito do nome, bastando a comprovação dos requisitos do tratamento e da reputação, visto que o filho é quase sempre identificado pelo prenome”. Por este motivo a falta do primeiro elemento não descaracteriza o estado de filho.

O segundo elemento, ao contrário do primeiro, é essencial para caracterização do estado. É através do tratamento deferido que se reconhece a relação afetiva existente, mas é importante observar que o tratamento na relação socioafetiva acontece de acordo com as possibilidades de cada família. Assim, não se pode descaracterizar o estado de filiação quando, por exemplo, o filho não tiver um plano de saúde sendo que o pai não tem condições financeiras de pagar um. Segundo Paulo Luiz Netto Lôbo (2004, on-line):

Neste aspecto podem subsistir as assistências material e moral, ou então somente a material, ou a moral. Pois, para caracterização deste elemento deve-se levar em consideração a situação pessoal do suposto pai, quer dizer, pode ocorrer que o pai não tenha condições econômicas para prestar assistência ou então o filho dela não necessite. No caso da assistência moral, o pai pode ter dificuldades de expressar seus sentimentos ao filho, seja por temperamento,seja por conveniência.

 Quanto ao último quesito, a fama, esta relação entre pais e filho deve ser pública de maneira a convencer terceiros do vínculo da filiação. Com relação à fama, levando em consideração que a prova desta se faz através da oitiva de testemunhas, a doutrina se divide quanto à necessidade da unanimidade dos depoimentos. Segundo Eduardo dos Santos (1999) citado por Belmiro Pedro Welter (2003, p.160), “se não há unanimidade de juízos, é porque a reputação e o tratamento pela pretensa mãe (ou pai) são bem capazes de estar desviados”. Já o próprio Welter reputa esta idéia de unanimidade defendendo que deve ser analisada a boa-fé nos depoimentos.

 Então, na filiação derivada das técnicas de reprodução medicamente assistida heteróloga existem então duas formas de determinação de paternidade e maternidade: a forma presumida para os filhos nascidos na constância do casamento por força do inciso V do art. 1.597 do Código Civil. Na explicação de Guilherme Calmon (2003, p.18): “a vontade acoplada à existência do vínculo conjugal e ao êxito da técnica de procriação assistida heteróloga se mostra o elemento fundamental para o estabelecimento da paternidade que, desse modo, se torna certa, insuscetíveis de impugnação pelo marido”.

A segunda forma é relativa aos casais que não se uniram em matrimônio, cujos filhos, portanto, não terão a filiação enquadrada nos casos de filiação presumida, mas que procuram, de forma espontânea, um tratamento doloroso, caro e que acima de tudo apresenta riscos para a mulher, movidos pelo desejo de ter um filho que não veio de forma natural, são considerados pais socioafetivos com todos os direitos e deveres derivados do instituto, sem qualquer possibilidade da paternidade ou maternidade serem confundidas com a origem genética do indivíduo, pois aqueles que doaram os gametas para concepção do embrião não são obrigatoriamente pais, afinal, pais são aqueles que desejam e lutam pelo filho, torcendo pelo seu nascimento, cuidando do seu bem-estar e propiciando-lhe uma família.

2.3  O interesse do filho socioafetivo em conhecer sua ascendência genética.

            A filiação decorrente das técnicas de reprodução medicamente assistida heteróloga pode decorrer de uma presunção legal de acordo com o art. 1597, V do Código Civil de 2002, quando os requerentes do procedimento forem casados e estiverem de comum acordo quanto ao método, mas pode derivar também da relação afetiva entre a criança concebida pela técnica e a mulher solteira que lhe gerou, ou ainda entre a criança e o homem que socialmente o expõe como filho de acordo com os elementos que caracterizam o estado de filho, explanados no tópico anterior.

            Não se pode, porém, ao determinar a paternidade e maternidade da criança concebida através de uma técnica de reprodução heteróloga em favor dos pais socioafetivos, olvidar que além dos pais, a criança também tem interesses e que, entre estes interesses, pode estar o de conhecer sua ascendência genética. Em alguns casos, este desejo pode ter como causa a falta de um pai ou de uma mãe juridicamente estabelecido quando a técnica foi utilizada só por um indivíduo; pode também ser movido pela vontade de ver desconstituída a paternidade anteriormente estabelecida, seja por ambição material, seja por desentendimentos com os que lhe criaram; pode surgir da necessidade de se analisar o material genético de seu ascendente para preservar a saúde do filho socioafetivo; como pode também ter como partida a mera curiosidade sobre aquele ou aqueles que permitiram a concretização do projeto parental daqueles que reconhece como pais.

            Na primeira hipótese, em que o desejo de conhecer o doador é originado pela falta de um pai ou mãe juridicamente estabelecido, deve-se considerar a decisão da Constituição Federal de 1988 em reconhecer como entidade familiar a “comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (art. 226, § 4º, CF/88). Reconhecendo a família monoparental, seria absurdo excluir as pessoas solteiras da possibilidade de serem beneficiárias das técnicas de reprodução medicamente assistida, por isso que a Lei 9.263/96, que regulamenta o direito constitucional ao planejamento familiar, em seu art.3º dispõe:

Art. 3º. O planejamento familiar é parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde.

Parágrafo único. As instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde, em todos os seus níveis, na prestação das ações previstas no caput, obrigam-se a garantir, em toda a sua rede de serviços, no que respeita a atenção à mulher, ao homem ou ao casal, programa de atenção integral à saúde, em todos os seus ciclos vitais, que inclua, como atividades básicas, entre outras:

I – a assistência à concepção e contracepção;

[…] (grifou-se)

            Dada a possibilidade de solteiros se beneficiarem dos métodos, não são poucas as pessoas que possuem em seu registro de nascimento apenas o nome do pai ou da mãe. É natural que estas pessoas venham requerer judicialmente o conhecimento do pai ou da mãe que lhes falta, pois é sabido da importância das figuras paterna e materna no desenvolvimento pleno do indivíduo, uma vez que estes são referências de comportamento para os filhos, base indispensável da formação como ser humano. Entretanto, o reconhecimento do direito ao conhecimento da ascendência genética nestes casos não é pacífico, enquanto alguns doutrinadores reconhecem o direito do filho, outros não reconhecem. Para Silmara de Abreu Juny Chinelato (1996 apud MOREIRA FILHO, 2002, on-line):

Ter direito ao reconhecimento da origem genética não significa subjugação, discriminação ou preponderância da filiação biológica em face da filiação socioafetiva, pois tal entendimento só seria relevante quando tratamos da discussão travada em um conflito positivo de paternidade, mas, ao tratar de uma criança que não terá pai algum e desejando conhecer seus verdadeiros pais, nada mais lógico que se reconheça esse direito.

            Para a doutrinadora, no caso da ausência do pai, o filho tem direito ao conhecimento da origem genética. Importante se faz neste momento diferenciar o mero conhecimento de sua origem genética do reconhecimento de paternidade ou maternidade, pois conhecer o doador que possibilitou a aplicação da técnica de R.M.A. não implica necessariamente em impor vínculos familiares, o que é efeito próprio do reconhecimento de paternidade ou maternidade. Este é o entendimento também do jurista Paolo Vercellone que aceita o direito ao conhecimento dos filhos inseridos em famílias monoparentais, mas reconhece que este conhecimento não gera responsabilidades alimentares, por exemplo, ou quaisquer outras tipicamente paternas ou maternas. De acordo com a citação de Lílian Lúcia Graciano (2003, on-line):

Na obra do jurista italiano Paolo VERCELLONE, sobre direito familiar, nega a possibilidade do doador de esperma tornar-se pai do nascido, mas permite ao filho, ao atingir a maturidade, conhecer a pessoa de cujo corpo proveio o sêmen que participou de sua própria criação, e, portanto é responsável pelo seu nascimento e por seus caracteres genéticos. 

Mas existem, como dito, autores contrários ao posicionamento de Silmara de Abreu Juny Chinelato. Afirma esta parte da doutrina que o argumento em que se baseiam os defensores do direito ao conhecimento, que se funda nos direitos de personalidade, alegando a necessidade do ser gerado de forma heteróloga de conhecer sua origem como meio para formar sua própria identidade, não é forte o bastante, pois inúmeras crianças crescem em famílias monoparentais e formam sua identidade, de forma que o conhecimento da própria origem não é imprescindível elemento construtor da personalidade humana. Neste sentido, assevera Albertino Daniel de Melo citado por Belmiro Pedro Welter (2003, p.229): o filho não perde a sua identidade por não conhecer os pais genéticos, por que, “com a afirmação dos direitos da personalidade, é certo que a identidade se altera com o esforço pessoal-próprio, ganhando nova imagem, foros de honra, de intimidade, tudo isso com que a sociedade se engrandece”.

Passando à segunda possibilidade citada, o filho sociológico também pode desejar a desconstituição da paternidade ou maternidade anteriormente existente, no caso a socioafetiva, por interesses financeiros ou desentendimentos com as pessoas que o criaram. É comum, embora moralmente reprovável, que visando ganhos financeiros, sabendo o filho socioafetivo, seja através de que forma for, que o doador (a) é pessoa de posses, intente ação investigatória de paternidade para constituir um novo vínculo parental e desconstituir o anterior. Cumpre verificar nos casos concretos se há realmente paternidade ou maternidade estabelecida, isto por que João Baptista Villela (1999 apud SANTOS, 2001, p.251) deixa claro o escopo da ação investigatória de paternidade ao afirmar que “o direito ao reconhecimento tem-no, entretanto, todo aquele, e somente aquele, a quem falte o pai juridicamente estabelecido”, então, tendo em vista a função da ação, não poderia ser aceita a propositura de uma ação deste tipo quando já se estabeleceu a paternidade da pessoa, seja presumidamente, seja socioafetivamente.

Quanto aos desentendimentos que filhos socioafetivos possam vir a ter com seus pais, estes não podem ser aceitos como motivo para desconstituição da filiação socioafetiva, pois é natural que discussões e problemas surjam na convivência familiar, já que ninguém é tão parecido com outro que não tenha idéias diferentes que possam gerar conflitos. Mesmo que estes conflitos sejam tão absurdos ao ponto de descaracterizar o estado de filho, eles não irão se resolver através da atribuição da paternidade ou da maternidade ao doador (a).

A terceira hipótese, relativa à possibilidade da análise da ascendência genética se fazer útil à manutenção da vida do ser gerado, tem-se em conta a atual evolução da medicina que permite que doenças possam ser evitadas, reconhecidas e tratadas com eficiência quando se tem conhecimento da carga genética do indivíduo. De acordo com Guilherme de Oliveira (1998 apud WELTER, 2003, p.183): “o progresso dos meios de diagnóstico e dos meios terapêuticos das doenças genéticas tornou fundamental, em certos casos, conhecer os antecedentes biológicos de um indivíduo”. Nesse aspecto, uma das justificativas do projeto de lei do deputado José Carlos Araújo (2004, on-line) que prevê o direito ao conhecimento da origem genética, foi que “este direito, também, pode ser conveniente se o filho vier a sofrer alguma enfermidade vinculada a herança genética, ou então, queira prevenir tais doenças”.

A prevenção dessas doenças hereditárias pode ser evitada também impedindo a união matrimonial entre doador e a criança, ou ainda entre a criança e os parentes próximos do doador, uma vez que a freqüência de manifestação de doenças recessivas é maior quanto mais parecida for a carga genética dos indivíduos. E mesmo que fosse desconsiderada a possibilidade de doenças devido à semelhança das cargas genéticas, não se pode mensurar as implicações psicológicas que surgiriam da posterior descoberta pelo filho socioafetivo do casal que se casou com a filha do doador que lhe possibilitou o nascimento ao perceber que em outras circunstâncias esta seria considerada “meia-irmã” como se costuma denominar os irmãos em relação a um dos pais somente. Assim, o conhecimento à origem genética é defendido, também, como forma de manutenção dos impedimentos matrimoniais previstos no atual Código Civil.

Finalmente, quanto à última hipótese, em que existe a curiosidade acerca do doador ou doadores, pode-se afirmar que a doutrina vem reconhecendo este direito pelo mesmo motivo que reconhece o direito do filho inserido em família monoparental, ou seja, baseia-se na imperiosa necessidade psicológica de conhecer a ascendência como forma de compor a própria personalidade. Esse conhecimento, é preciso lembrar, não é aceito pacificamente na doutrina como já esclarecido.

Independente do motivo pelo qual surja o interesse da criança em conhecer sua ascendência genética existirá um empecilho à concretização de seu desejo: o anonimato do doador determinado na única regulamentação a respeito da aplicação das técnicas de reprodução medicamente assistida, que é a Resolução nº. 1.358 do Conselho Federal de Medicina, CFM, de 1992. No tocante à doação de gametas ou pré-embriões a resolução determina: “os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa” bem como “obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente pra médicos, resguardando-se a identidade civil do doador”.

Resta então, pelo menos em face da resolução do CFM, frustrado o intento dos filhos socioafetivos de conhecer os doadores, que alguns autores denominam “pai biológico”, embora seja uma expressão completamente equivocada dada a nova dimensão dos conceitos de filiação, maternidade e paternidade no atual direito de família. Tem-se então um conflito que vai além da determinação da filiação na reprodução assistida heteróloga: enquanto a resolução confere o direito ao anonimato do doador, fundado no direito fundamental à intimidade, a doutrina entende que o direito do ser gerado de conhecer sua ascendência genética faz parte da gama de direitos fundamentais de personalidade. O conflito envolve os dois direitos fundamentais cuja solução se percebe pela análise do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, tema que será abordado no próximo capítulo.

3.  OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E AS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA HETERÓLOGA

Os direitos fundamentais são direitos que visam à manutenção da vida humana de forma livre e digna. A origem desses direitos é largamente discutida pela doutrina, pois podem ser vislumbrados em diversas perspectivas. De acordo com Judicael Sudário Pinho (2002, p.78):

Os direitos fundamentais podem ser vistos em, pelo menos, três dimensões: perspectiva filosófica ou jusnaturalista (direito de todos os homens, em todos os tempos e em todos os lugares), perspectiva universalista ou internacionalista (direitos de todos os homens ou categorias de homens, em todos os lugares e em certo tempo) e perspectiva estatal ou constitucional (direitos dos homens – cidadãos – num determinado tempo e lugar, é dizer, num Estado concreto).

É pacífico, entretanto, que modernamente, os direitos fundamentais protegidos pelas diversas constituições no mundo têm como base a Declaração Universal dos Direitos do Homem (Paris, 1948) cuja realização se deu pelos esforços da Organização das Nações Unidas, ONU. De acordo com Fábio Konder Comparato (apud BESSA, 2006, p.16) “os direitos fundamentais são direitos humanos reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribui o poder de editar normas”.

Estes direitos, enquanto “guardiões” da dignidade da pessoa humana não se mantiveram estáticos no tempo, por isso mesmo, são classificados em quatro gerações de acordo com a abrangência de sua proteção. Segundo Celso de Mello, citado por Alexandre de Moraes (2002, p. 59):

Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais, concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.

A quarta geração dos direitos fundamentais, não citada por Celso de Mello, é esclarecida por Regina Fiúza e Severo Hryniewicz (2000, p.74), que se baseiam nos ensinamentos de Norberto Bobbio. Segundo os autores: “neste fim de século estão surgindo os chamados direitos de quarta geração. Entre esses estão principalmente os que têm por finalidade normatizar os efeitos da revolução biotecnológica sobre a sociedade em geral”.

O ordenamento jurídico brasileiro acolhe diversos direitos humanos constitucionalmente garantidos como direitos fundamentais como forma de proteção ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto no art.1º, III, da Constituição Federal de 1988, inclusive direitos de quarta geração, que protegem as pessoas envolvidas em procedimentos biotecnológicos como o de aplicação de técnicas de reprodução medicamente assistida heteróloga. O direito à intimidade e o direito ao conhecimento da ascendência genética que serão analisados a seguir estão no rol destes direitos de quarta geração protegidos pelo ordenamento jurídico brasileiro.

3.1  Direito à intimidade e direito ao conhecimento da ascendência genética

            O direito à intimidade e o direito ao conhecimento da ascendência genética são direitos fundamentais de personalidade garantidos pelo nosso ordenamento jurídico. São fundamentais porque são direitos humanos que o legislador recepcionou no ordenamento, e são de personalidade porque são direitos subjetivos atribuídos ao homem despido do seu tipo social (OLIVEIRA, 2004, p.115). A saber, direitos fundamentais e de personalidade não são sinônimos, pois estes últimos têm uma amplitude mais restrita que os primeiros, assim, todo direito de personalidade é fundamental, mas nem todos os direitos fundamentais são de personalidade.

            O direito à intimidade, que protege o anonimato do doador na reprodução assistida heteróloga determinado na Resolução nº. 1.358 do CFM, é previsto na Constituição Federal em seu art. 5º, X, que dispõe ser inviolável “a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Edson Ferreira da Silva (apud STOCO, 2004, p.1641) dá ao direito à intimidade o seguinte conceito: “consiste no poder jurídico de subtrair do conhecimento alheio e de impedir qualquer forma de divulgação de aspectos da nossa existência que de acordo com os valores sociais vigentes interessa manter sob reserva”.

O estudioso Adriano De Cupis (apud DOTTI, 1980, p.24) divide o direito à intimidade quanto ao conteúdo em cinco grupos, quais sejam: direito à vida e à integridade física; direito à liberdade; direito à honra e à reserva; direito à identidade pessoal e direito moral. Dentre as matérias relativas ao direito de honra e reserva, existe o direito ao segredo, sobre o qual José Roberto Neves Amorim (2006, on-line) escreve:

Dentro de um aspecto geral da intimidade, as confidências íntimas de cada pessoa devem permanecer no recôndito de sua consciência até que ela resolva ou autorize a divulgação, correspondendo ao segredo ou sigilo. […] No âmbito privado, referente ao lar, à família, à correspondência, o sigilo guarda razões personalíssimas, caracterizando ato de intromissão a divulgação ou o uso indevido de confidências. Todos têm direito a reserva sobre o conhecimento de fatos pessoais íntimos.

            Compreende-se assim, que o doador ou doadora de gametas tem direito a manter este ato em segredo, ou seja, na intimidade, de forma que as outras pessoas dele não tenham conhecimento.

            Se por um lado é defendido o direito ao anonimato do doador na aplicação de técnica de R.M.A. heteróloga, por outro lado também é deferida proteção ao direito da criança de conhecer sua ascendência genética. Alguns autores defendem este direito fazendo referência ao princípio da dignidade da pessoa humana, como podemos citar Belmiro Pedro Welter (2003, p.229), que afirma: “[…] em qualquer caso, o filho, o pai e a mãe têm o direito de investigar e/ou de negar a paternidade ou a maternidade biológica, como parte integrante de seus direitos de cidadania e de dignidade de pessoa humana”. No entanto, o direito ao anonimato do doador também é protegido pelo princípio, uma vez que o direito à intimidade é um desdobramento dos direitos fundamentais que existe justamente para garantir a dignidade da pessoa humana.

Pode-se entender também o direito ao conhecimento da origem genética como decorrente do disposto no art. 227, § 6º da Constituição Federal de 1988, que indica que todos os filhos terão os mesmos direitos e qualificações, assim sendo, deve-se dar à criança gerada por reprodução assistida heteróloga o direito de saber sua origem da mesma forma que outro indivíduo nascido de relações sexuais tem conhecimento. Segundo entendimento de Tycho Brahe Fernandes (apud MORREIRA FILHO, 2002, on-line): "ao se negar a possibilidade do aforamento de ação investigatória por criança concebida por meio de uma das técnicas de reprodução assistida, em inaceitável discriminação se estará negando a ela o direito que é reconhecido a outra criança, nascida de relações sexuais".

Outro entendimento que defende o direito ao conhecimento da origem genética é fundado no direito de personalidade, tanto em relação ao direito à vida, quanto no que diz respeito ao direito à identidade. Quanto ao direito à vida e a integridade física, deve-se considerar a possibilidade, frente ao desenvolvimento da medicina nos últimos anos, de se evitar, reconhecer e curar doenças genéticas pela análise da ascendência biológica. Nesse sentido leciona Paulo Luiz Netto Lôbo (2004, on-line):

O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o direito da personalidade, na espécie direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos para prevenção da própria vida.

            Quanto ao direito à identidade, afirma Marcílio José da Cunha Neto (2006, on-line): “Quanto ao filho, como direito inerente à sua personalidade, lhe é reservada a possibilidade de conhecer a identidade do doador. Isso se dá, em primeiro lugar, porque o direito à identidade é um direito personalíssimo e, portanto, insuscetível de obstaculização”.

            Enfim, não restam dúvidas que ambos os interesses, do doador e da criança, encontram guarida no texto constitucional, portanto temos uma colisão de direitos fundamentais.

3.2   A colisão de direitos fundamentais

             O Direito assenta-se em normas, normas estas divididas em princípios e regras. Os princípios são espécies do gênero norma, considerados “vigas mestras do ordenamento jurídico”, pois, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (1990 apud PINHO, 2002, p.68):

[…] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

            Consoante o ensinamento do doutrinador, os princípios é que dão uniformidade ao ordenamento jurídico e que mostram às demais espécies normativas o “caminho” a ser trilhado, daí a importância do estudo dos princípios. Ensina Paulo Bonavides que, "sem aprofundar a investigação acerca da função dos princípios nos ordenamentos jurídicos não é possível compreender a natureza, a essência e os rumos do constitucionalismo contemporâneo" (apud TOVAR, 2005, on-line).

Os princípios são normas mais genéricas que as regras, não dizem respeito a um fato específico, mas devem ser entendidos “como indicadores de opção pelo favorecimento de determinado valor, a ser levada em conta na apreciação jurídica de uma infinidade de fatos e situações possíveis […]” (PINHO, 2002, p.69). Este grau de abstração maior nos princípios que nas regras é extremamente importante na solução de conflitos: na coexistência de regras contrárias, verificamos uma antinomia sanável pela aplicação de critérios de especialidade, hierarquia, antiguidade, etc, em que uma excluirá a outra, enquanto que na existência de dois princípios opostos, não se pode utilizar estes critérios, uma vez que são gerais, não obedecem a uma hierarquia, bem como surgem ao mesmo tempo, por atuação do constituinte originário. Conforme o ensinamento de Canotilho (1993, p.168):

Em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objetos de ponderação, de harmonização, pois eles contêm apenas “exigências” ou “standards” que em primeira linha (prima facie), devem ser realizados; as regras contêm fixações normativas definitivas, sendo insustentável a validade de regras contraditórias.

            Quando se trata de direitos fundamentais, embora estes não sejam princípios, deve-se aplicar a mesma forma de solução de conflito destes, uma vez que os direitos fundamentais, enquanto direitos destinados a manter a vida humana dentro dos valores de liberdade e dignidade, servem de alicerce ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, não podendo, assim, ser objeto de exclusão em caso de conflito. Importante observar que os direitos fundamentais são normas genéricas assim como os princípios, não sendo sua colisão caso de contrariedade, ou seja, um direito não é contrário ao outro, apenas opostos no caso concreto. Edílson Pereira de Farias (1996, p.41) explica:

Os princípios são utilizados para a tarefa importante de solucionar o conflito ou colisão de normas tão freqüentes nos ordenamentos jurídicos, devido à expansão dos direitos fundamentais e a outros valores constitucionais relevantes, ambos possuidores do caráter de princípios.

            Nos casos de colisão de direitos fundamentais existem três princípios que podem ser utilizados como parâmetros para que se verifique qual deve prevalecer: o princípio da unicidade da constituição e da concordância prática, o princípio da proporcionalidade e o princípio da dignidade da pessoa humana (BESSA, 2006, on-line). Através da aplicação do princípio da unicidade da constituição é possível perceber qual dos direitos deve ser mantido, sendo que o escolhido para o caso deve ser o ideal para harmonizar o texto constitucional. Conforme ensinamento de Edílson Pereira de Farias (1996, p. 98): “De acordo com o princípio da concordância prática, os direitos fundamentais e valores constitucionais deverão ser harmonizados […] por meio de juízo de ponderação que vise preservar e concretizar ao máximo os direitos e bens constitucionalmente protegidos”.

            O princípio da proporcionalidade se aplica definindo qual dos princípios deve ser utilizado de acordo com os fins que se busca alcançar, ou seja, afasta-se um direito já que outro protege um bem superior e mais adequado para a situação. Segundo Carlos Affonso e Patrícia Regina (2006, on-line):

subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito diz respeito a um sistema de valoração, na medida em que ao se garantir um direito muitas vezes é preciso restringir outro, situação juridicamente aceitável somente após um estudo teleológico, no qual se conclua que o direito juridicamente protegido por determinada norma  apresenta conteúdo valorativamente superior ao restringido.

            Por último, quando não for possível alcançar a solução através da interpretação harmônica da constituição e pela valoração de direitos fundamentais, recorre-se ao princípio da dignidade da pessoa humana para definição do direito fundamental que deve se sobrepor. Como todos os direitos fundamentais objetivam a proteção da dignidade humana, mais justo é permanecer aquele que em maior grau defenda esta dignidade.

3.3   O princípio da dignidade da pessoa humana como forma de solução de conflitos

            A pessoa é a principal razão de ser do ordenamento jurídico, ela é, nos dizeres de Regina Fiúza e Severo Hryniewicz (2002, p. 61), “o valor absoluto”, isso porque é dotada de racionalidade, espiritualidade e superioridade física em relação aos demais seres. Por ser o valor da pessoa humana o motivo da existência de um ordenamento é que se deduz que as normas existam em benefício da pessoa, ou seja, a serviço de sua dignidade. É o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana a tradução jurídica do valor da pessoa humana.

            A importância do princípio da dignidade da pessoa humana na solução de conflitos de direitos fundamentais se apresenta na medida em que é ele que dá sentido ao leque de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Edílson Pereira de Farias (1996, p.54) enuncia:

O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana cumpre um relevante papel na arquitetura constitucional: o de fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais. Aquele princípio é o valor que dá unidade e coerência ao conjunto dos direitos fundamentais. Dessarte, o extenso rol de direitos e garantias fundamentais consagrados pelo título II da Constituição Federal de 1988 traduz uma especificação e densificação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

 

Assim, a colisão de direitos fundamentais que ocorre quando o âmbito da proteção de um invade o âmbito de proteção do outro, tem solução quando da análise do caso concreto se vislumbra qual deve ser o direito a se manter por ser o que mais protege a dignidade da pessoa. Como exposto, estes direitos são normas não passíveis de exclusão, não só pela equiparação aos princípios, mas também por serem cláusulas pétreas, entretanto, podem ser objetos de ponderação em caso de conflito, por isto, a afirmação de Ingo Wolfgang Sarlet (1998, p.364) de que: “intangível não é o direito fundamental em si, mas, sim, o seu conteúdo em dignidade da pessoa humana”, e ainda escreve:

[…] no plano da eficácia dos direitos fundamentais assume lugar de destaque o princípio da proporcionalidade e da harmonização dos valores em jogo, sugerindo-se que o limite seja, também aqui, reconduzido ao principio fundamental do respeito e da proteção da dignidade da pessoa humana, fio condutor de toda a ordem constitucional, sem o qual ela própria acabaria por renunciar à sua humanidade, perdendo até mesmo a sua razão de ser (p.374).

            Na colisão que toma forma pela aplicação das técnicas de reprodução assistida heteróloga, para definir se o interesse que deve prevalecer é o do ser gerado ou do doador, é preciso verificar em cada situação de conflito, o quanto em dignidade da pessoa humana o direito fundamental em questão protege. Foram apresentados os seguintes motivos pelos quais a criança desejaria conhecer o seu ascendente genético: a falta de um pai ou de uma mãe juridicamente estabelecido quando a técnica foi utilizada só por um indivíduo; a vontade de ver desconstituída a paternidade anteriormente estabelecida, seja por ambição material, seja por desentendimentos com os que lhe criaram; da necessidade de se analisar o material genético de seu ascendente para preservar a saúde do filho socioafetivo; a preocupação em evitar vínculos parentais em desconformidade com a moral e os costumes ou, finalmente, a mera curiosidade sobre aquele ou aqueles que permitiram a concretização do projeto parental daqueles que reconhece como pais.

            Nas hipóteses em que o desejo tem como fato gerador a falta de um pai ou mãe juridicamente estabelecido ou a curiosidade sobre seu doador, o interesse do filho em conhecer sua ascendência genética só deve prevalecer sobre o direito à intimidade do doador quando e se for comprovado que esse conhecimento seja uma necessidade psicológica do ser gerado. José Roberto Moreira Filho (2002, on-line) esclarece:

Ao legar ao filho o seu direito de conhecer a sua verdadeira identidade genética, estamos reconhecendo-lhe o exercício pleno de seu direito de personalidade e a possibilidade de buscar nos pais biológicos as explicações para as mais variadas dúvidas e questionamentos que surgem em sua vida, como, por exemplo, as explicações acerca da característica fenotípica, da índole e do comportamento social[…].

H. Scholler (apud SARLET, 1998, p.294), manifesta-se a respeito ao afirmar que “a dignidade da pessoa humana apenas estará assegurada quando for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade”, assim, o direito da criança de conhecer suas origens é superior ao direito à intimidade por que, enquanto que a diminuição da proteção à intimidade no caso concreto pode gerar apenas poucos embaraços, o desconhecimento da ascendência genética pode interferir na vida do indivíduo causando-lhe seqüelas morais para o resto de sua existência.

Na hipótese de necessidade de se conhecer o ascendente para a preservação de sua vida é incontestável a superioridade em termos de importância do direito ao conhecimento da origem genética em detrimento do direito à intimidade. O resguardo de uma pessoa não pode ter um valor maior que a vida de outra, pois a vida é o maior bem da pessoa e que merece a mais ampla forma de proteção pelo ordenamento. Neste aspecto, a legislação pátria deve seguir o exemplo da lei sueca, que, segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama (apud ALMEIDA JÚNIOR, 2005, p. 95):

Apesar do anonimato dos doadores ser a regra em praticamente em todos os países que possuem legislação a respeito, atendendo aos interesses da criança ou do adolescente, a lei sueca exatamente não prevê o sigilo, o anonimato, tendo em vista a necessidade de prevenir doenças genéticas, além de permitir que a pessoa possa, com a maioridade, conhecer o genitor biológico.

Quanto à questão do conhecimento da origem para se evitar a formação de vínculos parentais em desacordo com as normas do Código Civil, Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior manifesta-se (2005, p.96):

[…] os filhos devem ter acesso aos dados biológicos do doador para descoberta de possível impedimento matrimonial, pois em se mantendo esse sigilo de forma absoluta, isso poderia redundar, futuramente, em relações incestuosas.

Sendo totalmente anônima a paternidade biológica, mantida sob a égide de um sigilo absoluto, nada impede que irmãos (filhos nascidos de material pertencente ao mesmo doador) ou mesmo o próprio doador e uma filha contraiam casamento por absoluta ignorância com relação as suas verdadeiras origens.

            Nesta hipótese, o direito à intimidade deve ser colocado em segundo plano mesmo porque podem existir situações em que o próprio doador terá interesse em saber se a pessoa com quem quer contrair vínculo foi ou não gerada a partir de seu material genético. O anonimato absoluto iria de encontro à dignidade da pessoa de forma absurda, se, após contrair núpcias, o casal descobrisse que existia algum impedimento de ordem moral para o casamento.

            Nas hipóteses até aqui mencionadas, a dignidade da pessoa humana é garantida pela manutenção do direito fundamental ao conhecimento e não do direito à intimidade. René Ariel Dotti (1980, p.73) explana sobre a prevalência de outros interesses frente ao direito à intimidade:

O direito à intimidade da vida privada tem um conteúdo extraordinariamente amplo e variável, em função do titular a que respeite, por outro lado, mesmo no plano da tutela do núcleo essencial da intimidade que se considera comum a toda pessoa humana, há que atender a que o direito à intimidade que se pretende tutelar, como qualquer outro, não é ilimitado, antes deve ser cercado pelas limitações inerentes à sua eventual subordinação a outros interesses superiores ou de igual valor.

            Entretanto, nas outras duas hipóteses, quais sejam: a de querer conhecer a identidade genética para desconstituir vínculo parental estabelecido por motivos financeiros ou descontentamento com a instituição familiar, é praticamente unânime a opinião dos doutrinadores em manter o anonimato do doador, pois nestes casos o conhecimento da origem genética não estaria defendendo a dignidade da pessoa humana, mas sim interesses financeiros pessoais do ser gerado ou mesmo estaria ferindo a dignidade dos pais estabelecidos se, após anos cuidando do filho, tivessem desconstituídas a maternidade e paternidade, num ato de ingratidão imensurável. Neste sentido Andréa Aldrovandi (on-line) cita motivos pelos quais o doutrinador Eduardo Oliveira Leite se manifesta a favor do anonimato do doador:

Pode haver maior respeito à dignidade humana no não conhecimento da origem genética de alguém, do que neste conhecimento.

Defender o direito à ação de investigação de paternidade contra o doador do sêmen seria defender que todas as crianças adotadas tenham direito a buscar sua origem genética.

[…]

O anonimato evita que, tanto o doador como a criança, procurem estabelecer relações com vistas a obtenção de meras vantagens pecuniárias.

            José Roberto Moreira Filho (2002, on-line), sobre o assunto, afirma:

O direito ao reconhecimento da origem genética não importa, igualmente, em desconstituição da filiação jurídica ou socioafetiva e apenas assegura a certeza da origem genética, a qual poderá ter preponderância ímpar para a pessoa que a busca e não poderá nunca ser renunciada por quem não seja o seu titular.

            Percebe-se, portanto, que o conhecimento da ascendência genética pode ser preponderante sobre o direito à intimidade do doador, pois é o direito que protege de forma mais ampla a dignidade da pessoa humana em alguns casos na utilização da reprodução assistida heteróloga, permitindo o desenvolvimento da personalidade da criança e a manutenção de sua vida. Esse direito, entretanto, está restrito há três situações, conforme a explanação de Belmiro Pedro Welter (2003, p. 232):

Em ambos os casos (doação de sêmen e/ou óvulo), a paternidade ou a maternidade também pode ser investigada, pois tanto o filho quanto o pai biológico têm o sagrado, natural e constitucional direito de saber a sua origem, a sua ancestralidade, que faz parte da personalidade e dos princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana. Porém, essa investigação, se já existente a paternidade e/ou maternidade socioafetiva, estará restrita aos três efeitos jurídicos, quais sejam: 1. por necessidade psicológica ao conhecimento da origem genética; 2. para segregar os impedimentos do casamento; 3. para preservar a saúde e a vida dos pais e do filho biológico nas graves doenças genéticas.

            Deve-se lembrar que o direito ao conhecimento da ascendência genética é um direito e não um dever, assim, a criança não sentindo nunca a necessidade de conhecer suas origens não pode ser obrigado a conhecê-las, podendo permanecer, se assim desejar, na ignorância a respeito de sua ascendência. De acordo com Reinaldo Pereira (2003, p.87):

[…] é importante ter claro que o conhecimento da ascendência biológica é um verdadeiro direito, não é um dever. Em outras palavras, ninguém pode ser obrigado a conhecer sua ascendência biológica, mas todos os filhos têm o direito de conhecê-la caso o queiram, pouco importando a natureza de seus vínculos familiares (adoção tradicional, recurso às técnicas de reprodução medicamente assistida etc.)

Trata-se, no caso, do respeito à dignidade da pessoa humana na proteção da intimidade da pessoa física na espécie de direito à reserva, que, segundo René Ariel Dotti (1980, p.76) é reconhecido por Paulo Cunha como o “direito que cada um tem de se opor à investigação ou divulgação de quaisquer fatos a ela referentes, subtraindo-os ao conhecimento dos outros em particular e da curiosidade pública em geral”.

Infelizmente, o direito ao conhecimento da origem genética e o direito à intimidade determinados constitucionalmente não são efetivamente protegidos nos casos de reprodução assistida heteróloga. O tema, pela sua relevância, necessita de uma lei especial que regularize a situação de doadores e de receptores, bem como dos indivíduos havidos por meio destas técnicas. Alguns deputados, mobilizando-se pela melhoria de nosso ordenamento, lacunoso quanto às questões neste trabalho levantadas, apresentaram para votação projetos de lei dispondo sobre a reprodução assistida heteróloga que serão estudados no próximo capítulo.

4.   O CONHECIMENTO DA ASCENDÊNCIA GENÉTICA

            O presente trabalho buscou até agora apresentar os inúmeros posicionamentos doutrinários acerca da utilização das técnicas de reprodução assistida relativos às questões levantadas sobre a filiação e a possível identificação do doador de gametas. Muitos dos posicionamentos aqui mencionados contribuíram para a elaboração de projetos de lei apresentados por deputados e senadores com o objetivo de preencher as lacunas existentes no Código Civil em vigor a respeito da reprodução heteróloga.

            Importante se faz lembrar que muitas das questões jurídicas originadas pela aplicação das novas técnicas de reprodução não foram abordadas no Código Civil de 2002, Lei n°. 10.406/02, porque, à época da apresentação do Projeto de Lei que culminou com a promulgação do código, os legisladores não previram o avanço científico tão acelerado no campo da reprodução humana. O projeto, datado de 1975, tornou-se lacunoso não só por causa do desenvolvimento da medicina, como também pelo advento da Constituição Federal de 1988. De acordo com Guilherme Calmon (2003, p. 13):

O texto do projeto do Código Civil […] desde a apresentação na Câmara até a sua apresentação no Senado, decorreu período de tempo superior a vinte anos. Durante tal lapso temporal sobrevieram várias modificações de relevo no âmbito da regulamentação legislativa de vários institutos de direito civil, mas especialmente é imperioso destacar a promulgação da Constituição Federal em 05.10.1988 que, como se sabe, propiciou uma autêntica revolução no direito de família e em vários outros segmentos do direito civil. O texto da Constituição de 1988 gerou a inocuidade de inúmeras regras constantes do projeto do novo Código, inclusive por vício de inconstitucionalidade material. (grifo original)

            Além dos problemas relativos à demora na tramitação do projeto do Código Civil, também a omissão em legislar sobre aspectos da reprodução humana se deve a impedimentos de ordem formal. Segundo o relatório geral do Deputado Ricardo Fiúza (2000, apud GAMA, 2003, p.15):

Diz-se, por exemplo, que o projeto não versa sobre os direitos do nascituro fertilizado in vitro. O Prof. Miguel Reale, quando compareceu à primeira das muitas audiências públicas realizadas pela nossa Comissão Especial, respondeu a algumas dessas questões, afirmando que “novidades, como o filho de proveta, só podem ser objeto de leis especiais. Mesmo porque transcendem o campo do direito civil”.

            Em vista do limite formal à inclusão de normas para regulamentação da utilização de reprodução humana medicamente assistida, urgente é a publicação de uma lei que regule estes procedimentos, que já são uma realidade, com o fito de garantir a proteção dos interesses dos envolvidos, bem como os direitos fundamentais garantidos na Carta Magna de 1988. Adiante, far-se-á um estudo sobre os principais projetos apresentados na Câmara com principal foco no objeto de estudo deste trabalho, qual seja: a possibilidade da pessoa conhecer a identidade civil dos doadores de gametas que lhe possibilitou o nascimento e a constituição da paternidade e maternidade do ser gerado através da reprodução assistida heteróloga.

4.1   Projetos de lei sobre reprodução assistida

            Foram apresentados na Câmara vários projetos com o objetivo de regulamentar a reprodução humana medicamente assistida, entre eles: o Projeto de Lei n°.3638/97, de autoria do Deputado Luiz Moreira; o Projeto de Lei n°.90/99, escrito pelo Senador Lúcio Alcântara; o Projeto de Lei n°.1184/03, apresentado pelo Senador José Sarney; o Projeto de Lei n°.120/03 do Deputado Roberto Pessoa e também o Projeto de Lei n°.4686/04, do Deputado José Carlos Araújo.

            O projeto mais antigo, do Deputado Luiz Moreira, é uma cópia da Resolução do CFM n°. 1.358 de 1992. Este projeto defende o anonimato absoluto do doador, prevendo apenas a possibilidade de em casos de problemas de saúde da criança, as informações sejam fornecidas somente para médicos. Como defendido no capítulo três, o sigilo absoluto da identidade do doador fere o princípio da dignidade da pessoa humana nos casos em que fazendo a análise do caso concreto verifica-se a superioridade do interesse na quebra do sigilo em detrimento de sua manutenção.

            O projeto defendido pelo Senador Lúcio Alcântara traz várias inovações, sendo o projeto mais avançado no processo legislativo e estando em tramitação no Senado Federal. Por ter sido objeto de várias deliberações a redação original já foi alterada por duas vezes resultando em dois substitutivos, o primeiro de 1999 do Senador Roberto Requião e o segundo de 2001 do Senador Tião Viana.

            A redação original do projeto 90/99 previa em seu art. 1º, I como possíveis beneficiários das técnicas de reprodução assistida as mulheres ou casais que solicitassem do emprego da reprodução assistida. Sobre o artigo, vale ressaltar a discussão sobre a abrangência do acesso às técnicas: seria este restrito à concretização do projeto parental de um casal, ou poderia ser a reprodução realizada em favor de solteiros? A dúvida existe diante o reconhecimento por parte da Constituição Federal da família monoparental. Para Guiherme Calmon Nogueira Gama, bem como para Belmiro Pedro Welter, há de se decidir pela possibilidade da reprodução assistida ser favorável aos solteiros, porque não se pode contrariar os preceitos constitucionais que reconhecem a monoparentalidade e deixar de possibilitar o acesso às técnicas reprodutivas pelos solteiros. Opinião divergente tem o doutrinador Eduardo Oliveira Leite (apud ALDROVANDI, 2002, on-line) para o qual o acesso restrito das técnicas de R.M.A. garante à criança que será gerada o direito ao biparentesco. O primeiro substitutivo tentou limitar o acesso aos casais, mas não logrou êxito, pois a primeira redação, que permitia a utilização das técnicas pelos solteiros, foi mantida pelo segundo substitutivo que corrobora o entendimento da Lei nº. 9.263/96.

Deve-se perceber que no projeto original, a maternidade de substituição seria permitida, por isso, baseado na igualdade entre os sexos, deveriam ser também beneficiários os homens solteiros, o que não foi previsto. Apesar de ter mantido a redação original, o segundo substitutivo não mais permite, em seu art. 3º, a maternidade de substituição, o que torna infrutífera a discussão acerca da constitucionalidade da restrição de uso aos homens solteiros, uma vez que, por impossibilidades físicas e sem condições de recorrer ao popular “útero de aluguel”, mesmo que lhes possibilitassem a utilização das técnicas não haveria concretização do projeto parental por eles.

O Projeto de Lei 90/99 original prevê a necessidade do consentimento livre e esclarecido não só pelos beneficiários, como também dos doadores, que deveriam estar conscientes de sua eventual identificação civil por parte do ser gerado, como também da obrigatoriedade de reconhecimento da criança em casos previstos na lei (art.3°, §2°). A identificação civil poderia ocorrer quando a criança completasse a maioridade, ou a qualquer tempo em casos de falecimento de ambos os pais (art.12, caput). Já o reconhecimento poderia ocorrer se a criança não tivesse no registro a filiação relativa à pessoa do mesmo sexo do doador ou da mãe substituta (art. 12, §1º).

Interessante notar que o art. 12 prevê a possibilidade da criança não ter no registro o nome da mãe substituta como se esta fosse uma exceção, mas esta não é uma exceção e sim a regra, levando-se em consideração que a maternidade de substituição visa efetivar o projeto parental de uma mulher solteira ou casada, cujo nome é que irá configurar no registro de nascimento como a mãe. Considerando os beneficiários previstos no Projeto de Lei, não existiriam crianças geradas sem registro de mãe, já que os homens, como exposto anteriormente, não poderiam ser beneficiados.

Os dois substitutivos do projeto não albergam a necessidade do consentimento livre e esclarecido em relação ao reconhecimento, mas somente em relação à identificação (art.4º, § 2º). Isso porque, diferentemente do projeto original que prevê a paternidade e a maternidade como dos beneficiários, mas com algumas exceções, os projetos seguintes não apresentam nenhuma exceção à declaração de paternidade e maternidade plena aos beneficiários (art. 18 do substitutivo de 1999 e art.16 do substitutivo de 2001).

            Outras diferenças importantes são percebidas na evolução do projeto: o original dispunha que a identificação poderia ocorrer quando a criança completasse a maioridade, ou a qualquer tempo em casos de falecimento de ambos os pais. O substitutivo de 99, apesar de exigir a declaração de consentimento do doador de que ele poderá vir a ser identificado civilmente, não permite a identificação pela criança. Quando o primeiro substitutivo indica no art.9º, §2º, que o médico poderá entrevistar o doador, dispõe que deverá ser resguardada a identidade civil, então, compreende-se que essa entrevista deverá ser feita por outra forma que não pessoal ou que o médico é que poderá conhecer a identidade do doador e que deva omiti-la do paciente. Já o substitutivo de 2001 informa em seu art. 9º, §1º que a criança poderá a qualquer tempo conhecer a identidade do doador, inclusive através de representação ou assistência enquanto incapaz.

            O projeto e seus substitutivos determinam a obrigatoriedade de registros dos casos de reprodução assistida e de dados sobre o doador para caso de necessidade de informações aos médicos, como também para conhecimento de disponibilidade para transplante de órgãos. No original o período de registro era obrigatório por vinte e cinco anos, seus substitutivos aumentaram para o período de cinqüenta anos. O projeto original e seus substitutivos prevêem a possibilidade de consulta desses registros através do médico sem a necessidade da criança vir a conhecer seu ascendente. Embora no substitutivo de 99 essa possibilidade tenha sido prevista graças ao sigilo absoluto da identidade do doador, no projeto original e no substitutivo de 2001 essa possibilidade vem para concretizar o direito “de não saber”, pois, como já apresentado, o conhecimento da origem genética é direito e não dever, assim, o substitutivo de 2001 prevê duas possibilidades ao ser gerado: este poderá requerer a identificação do doador ou apenas a revelação dos dados acerca do doador para o médico.

            O Projeto de Lei 1184 de 2003 de autoria do Senador José Sarney é apenas uma reprodução do substitutivo de 2001 do Projeto de Lei n°90/99 do Senador Lúcio Alcântara. O Projeto de Lei n°. 120/03 do Deputado Roberto Pessoa objetiva o acréscimo do art. 6º – A na Lei 8560 de 1992, que trata da investigação de paternidade. Neste artigo é prevista a possibilidade da identidade dos doadores, sem ressalvas. Por fim, o Projeto de Lei n°. 4686 de 2004 do Deputado José Carlos Araújo é uma proposta e acréscimo do art. 1.597-A ao Código Civil, prevendo a identificação civil do doador a qualquer tempo, inclusive através de representante legal também sem nenhuma restrição. Apesar das disposições deste projeto serem parecidas com as do substitutivo de 2001 do projeto 90/99, deve-se lembrar das limitações formais das normas do Código Civil, então, provavelmente, esse projeto não será aceito pelo mesmo motivo que o assunto não foi abordado na redação original do Código: a reprodução humana é assunto que deve ser objeto de leis especiais.

4.2   Ação adequada à busca da origem genética

            Os projetos de lei, em sua maioria, defendem o sigilo do doador como regra que pode ser quebrada pela vontade expressa da criança em qualquer hipótese, embora tenha sido demonstrado no capítulo três do presente trabalho que não é sempre que o interesse em conhecer a origem genética deve prevalecer sobre o direito à intimidade. Apesar de permitirem o conhecimento da ascendência genética, de todos os projetos apresentados, apenas o projeto nº. 120/03 define a ação própria para esta identificação como sendo a ação investigatória de paternidade, mas também são encontrados posicionamentos no sentido de se considerar o habeas data, previsto constitucionalmente, a ação competente para a busca da ascendência biológica.

            O entendimento da doutrina é majoritário no sentido de reconhecer como meio adequado para o conhecimento da origem genética a ação de investigação de paternidade prevista na Lei nº. 8.560/92. Neste sentido Belmiro Pedro Welter (2003, p.230) defende a utilização da ação para efetivação do direito de se conhecer o doador, bem como Tycho Brahe Fernandes (apud ALDROVANDI, 2002, on-line), que defende que impedir a ação investigatória de paternidade é discriminação do filho originado de concepção heteróloga, e Álvaro Villaça Azevedo que indica, segundo Andréa Aldrovandi (2002, on-line), que “o filho gerado através de uma das técnicas de reprodução assistida poderá, a qualquer tempo, investigar a sua paternidade, devendo os responsáveis pelos dados do doador, fornecê-los, em segredo de justiça”.

Entretanto, é um posicionamento combatido com base em fortes argumentos. De acordo com Paulo Luiz Netto Lôbo (2004, on-line), para garantir a efetivação do direito fundamental do conhecimento da origem genética, não é preciso investigar a paternidade. Em suas palavras:

Toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica […] Uma coisa é vindicar a origem genética, outra a investigação de paternidade. A paternidade deriva do estado de filiação, independente de origem (biológica ou não). O avanço da biotecnologia permite, por exemplo, a inseminação artificial heteróloga, autorizada pelo marido […]. Nesse caso, o filho pode vindicar os dados genéticos do doador anônimo de sêmen que conste nos arquivos da instituição que o armazenou, para fins de direito da personalidade, mas não poderá fazê-lo com escopo de atribuição de paternidade. Conseqüentemente, é inadequado o uso da ação de investigação de paternidade, para tal fim.

            Como escrito no capítulo dois deste trabalho, a filiação, em sua atual compreensão, diverge da origem biológica da pessoa, pois “a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo” (LÔBO, on-line). Com base nesta afirmação é que se pode defender a não utilização da ação de investigação de paternidade para o conhecimento da origem, pois se tratam de institutos diferentes.

            A paternidade e a maternidade são conseqüências do estado de pai e mãe, ou seja, decorrentes do fato do filho estar na posse do estado de filho daquelas pessoas. A filiação é comprovada pela certidão de nascimento, na qual, no caso da reprodução medicamente assistida heteróloga, deverá constar o nome dos beneficiários do processo. Assim, uma vez registradas a paternidade e a maternidade, não se pode modificar o estado de filiação salvo por erro ou falsidade deste registro. Neste sentido encontram-se as disposições do Código Civil de 2002:

Art. 1.603. A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil.

Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.

A Lei nº 8560 de 1992, que disciplina a ação investigatória, determina em seu art. 2º, que a ação investigatória tem lugar quando o filho não possui em seu registro de nascimento a paternidade estabelecida:

Art. 2º Em registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida, o oficial remeterá ao juiz certidão integral do registro e o nome e prenome, profissão, identidade e residência do suposto pai, a fim de ser averiguada oficiosamente a procedência da alegação.

            Tratando-se, portanto, do indivíduo que possui pai e mãe juridicamente estabelecidos, mesmo havendo possibilidade de propositura de ação investigatória, uma vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente não prevê restrições, essa não deverá ter efeitos próprios da investigação de paternidade, em vista da paternidade já estar estabelecida e não existirem motivos para descaracterizá-la, principalmente quando se percebe a paternidade socioafetiva ganhando cada vez mais importância no momento de definição de parentesco. A ação deverá ter efeitos limitados ao conhecimento da ascendência genética.

            A investigação pode ocorrer na hipótese prevista na Lei nº.8560/92 se, sendo uma mulher solteira beneficiária da técnica de reprodução assistida heteróloga, esta registre a criança apenas em seu nome. Neste caso também a investigação deve ter efeito limitado ao conhecimento da origem genética, porque o doador não deve ser obrigado a arcar com os efeitos do reconhecimento, visto que o projeto parental é de autoria da mulher solteira e a criança concebida de sua responsabilidade. Neste aspecto, verifica-se a insuficiência da ação para buscar o conhecimento da origem, pois, entre as técnicas de reprodução heteróloga, está contida a possibilidade tanto da doação de gametas femininos quanto masculinos, daí, considerando-se a necessidade da criança concebida com óvulo doado buscar sua origem, esta busca não poderia acontecer através da investigação de paternidade.

            Além dos limites relacionados ao interesse de agir da pessoa que deseja reconhecer sua ascendência, considerando que esta, tendo pai, terá a ação que ser declarada de efeitos limitados, resta também prejudicado o argumento desta ação ser a ideal para o objetivo do conhecimento da origem pelo fato dos efeitos da ação serem opostos à real finalidade buscada, como se verifica na leitura do art. 1.616 do Código Civil de 2002:

Art. 1.616. A sentença que julgar procedente a ação de investigação produzirá os mesmos efeitos do reconhecimento; mas poderá ordenar que o filho se crie e eduque fora da companhia dos pais ou daquele que lhe contestou essa qualidade.

            Percebe-se então, que o indivíduo que deseja buscar sua origem, mesmo sendo a ação possibilitada, os efeitos da sentença deverão ser limitados, pois ação investigatória de paternidade, quando julgada procedente, gera efeitos de reconhecimento, tanto morais quanto patrimoniais. Dentre os efeitos morais está a submissão ao pátrio poder (PEREIRA, 1977, p.151), atualmente entendido como poder familiar, cujo exercício compreende os seguintes direitos e deveres de acordo com o art. 1634 do Código Civil de 2002:

Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:

I – dirigir-lhes a criação e educação;

II – tê-los em sua companhia e guarda;

III – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;

IV – nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;

V – representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;

VI – reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;

VII – exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

            Conclui-se, assim, que a ação investigatória de paternidade se mostra imprestável para busca do conhecimento da origem genética, primeiramente por passar a impressão equivocada de que origem genética se confunde com o instituto da paternidade, segundo por não atender ao direito de todos aqueles que desejam o conhecimento de suas origens por não poder ser proposta para investigação da doadora de óvulos, e, finalmente, pelos seus efeitos de constituição de novo vínculo parental, desconstituindo o anterior e submetendo o investigando ao poder familiar do doador, o que é totalmente diferente do fim desejado. Infelizmente, uma vez que o ECA não prevê restrições à sua propositura e também pelo fato de não existir ação própria, a ação investigatória de paternidade vem sendo utilizada de forma equivocada por aqueles que desejam conhecer sua ascendência genética, sendo uma tendência concedê-la com efeitos limitados.

            O habeas data é ação prevista no art 5º, LXXII da Constituição Federal de 1988. Seu objetivo é levar ao conhecimento do impetrante dados relativos à pessoa do impetrante, constantes de arquivos, cujo órgão responsável tenha se negado a fornecer.

Art. 5º

[…]

LXXII – conceder-se-á habeas data:

a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;

b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo;

Fernanda de Fraga Balan (2006, on-line) anuncia o entendimento de Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

O autor acredita que, para fazer valer esse direito, a criança gerada poderia valer-se do remédio constitucional do habeas data, previsto no artigo 5º, inciso LXXI, “a”, da Constituição Federal […].

O habeas data não se restringiria à Administração Pública, podendo atingir entidades que mantenham bancos de dados de caráter público; o que abrange casas de saúde, bancos de sêmen e de embriões e, fundamentalmente, as pessoas dos profissionais que se responsabilizaram pelo procedimento médico concernente à procriação assistida heteróloga.

            Assim como a investigação de paternidade, o habeas data também não deve considerado a ação própria para o conhecimento da ascendência genética por alguns motivos claros percebidos na análise do inciso LXXII do art.5º da Constituição Federal. Dois pontos devem ser analisados no artigo constitucional. O primeiro ponto a ser abordado é o objeto do conhecimento: “informações relativas à pessoa do impetrante”. Mesmo que as informações acerca da origem genética sejam relativas ao impetrante, na sua busca pede-se informações relativas à pessoa do doador, o que não pode ser fornecido através do habeas data.

            O segundo ponto controverso é a necessidade destes arquivos constarem “de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público”. Se a aplicação da técnica de reprodução medicamente assistida ocorreu em hospital público existirá o caráter público, o que não acontecerá se o procedimento se der em empresas particulares. Conforme explicação de Alexandre de Moraes (2002, p.157):

Poderão ser sujeitos passivos do habeas data as entidades governamentais, de administração pública direta ou indireta, bem como as instituições, entidades e pessoas jurídicas privadas que prestem serviços para o público ou de interesse público, e desde que detenham dados referentes às pessoas físicas ou jurídicas.

            Tem-se, portanto, como inadequada a propositura do habeas data com objetivo de se encontrar a origem genética, por dois motivos: pelas informações buscadas serem relativas também ao doador e não somente ao impetrante, como também pela não caracterização dos bancos de gametas e das empresas que utilizam as técnicas de reprodução assistida heteróloga como sendo de caráter público, primeiramente porque seus serviços são dirigidos para uma parcela específica da população e porque seus serviços não são de interesse público.

            Considerando que o direito fundamental ao conhecimento da ascendência genética deve ser preservado e que não existe no ordenamento jurídico brasileiro nenhuma ação adequada para concretização deste direito, percebe-se uma urgência no sentido de concentrar esforços no legislativo para criação de ação própria que permita a efetivação deste direito constitucionalmente protegido. Inclusive, esta ação deverá conter limitações quando à possibilidade de sua propositura, sendo interessante que limite o conhecimento da origem genética aos casos em que o direito fundamental ao conhecimento se sobreponha ao direito à intimidade do doador, e não em todos os casos, como se entende da leitura do Projeto de Lei 90/99 na versão atual de 2001 do Senador Tião Viana.

4.3   Efeitos pessoais e patrimoniais do conhecimento da origem genética

            O projeto de Lei 90/99 de autoria do Senador Lúcio Alcântara, em sua redação original, previa a possibilidade de reconhecimento por parte do doador da criança através de reprodução assistida heteróloga, no caso do ser gerado não possuir o nome do pai no registro de nascimento. Deste reconhecimento derivaria uma série de direitos e deveres inerentes ao reconhecimento da paternidade ou maternidade. Este reconhecimento pelo doador era, porém, uma exceção, devendo em regra ser os beneficiários os responsáveis pela criança, pois é destes o projeto parental.

            Essa possibilidade de reconhecimento, entretanto, não se manteve nos dois substitutivos do projeto, que dispõem que não existirá qualquer vínculo ou direitos decorrentes da doação de gametas. Desse modo, o art. 19 do substitutivo de 99 e o art. 17 do substitutivo de 2001, prevêem como efeitos do conhecimento da ascendência genética apenas os impedimentos matrimoniais previstos no Código Civil em seu art. 1.521, in verbis:

Art. 1.521. Não podem casar:

I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;

II – os afins em linha reta;

III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;

IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;

V – o adotado com o filho do adotante;

VI – as pessoas casadas;

VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.

            A determinação da atual versão do projeto está de acordo com o entendimento majoritário da doutrina da qual faz parte Belmiro Pedro Welter, Guilherme Calmon Nogueira Gama e Paulo Luiz Netto Lobo, que tem sido no sentido de vedar os efeitos típicos de reconhecimento de paternidade ou maternidade por ocasião do conhecimento da ascendência genética, exceto os impedimentos matrimoniais. Existe na opinião destes autores uma equiparação dos efeitos do conhecimento da origem genética aos efeitos da adoção, tanto que o Deputado José Carlos Araújo, no projeto de Lei nº. 4686/04 que objetiva o acréscimo do art. 1597-A ao Código Civil indica que “o conhecimento da verdade biológica impõe a implicação dos artigos 1521, 1596, 1626, 1628 (segunda parte) deste código”. O art. 1521 do Código Civil de 2002 contém os impedimentos matrimoniais, o 1596 dispõe sobre a igualdade dos filhos independente de origem, e os artigos 1626 e 1628 fazem parte do capítulo sobre adoção. Dispõem os artigos:

Art. 1.626. A adoção atribui a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes consangüíneos, salvo quanto aos impedimentos para o casamento.

Art. 1.628. Os efeitos da adoção começam a partir do trânsito em julgado da sentença, exceto se o adotante vier a falecer no curso do procedimento, caso em que terá força retroativa à data do óbito. As relações de parentesco se estabelecem não só entre o adotante e o adotado, como também entre aquele e os descendentes deste e entre o adotado e todos os parentes do adotante. (grifou-se)

José Carlos Araújo, em sua justificativa para o Projeto de Lei nº4686/04 afirma:

[…] não deverá haver nenhum vínculo, nem paternal, nem patrimonial , bem como direito sucessório entre a pessoa concebida por técnica medicamente assistida heteróloga e o doador de gametas. O conhecimento da origem genética não modifica em nada as relações jurídico- familiares que tal indivíduo possui com seus pais e sua família afetiva.         

Segundo Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior (2005, p.97) “não há parentesco entre o doador do sêmen e o concebido, e, por razão maior, não há que se falar em obrigação ou dever alimentar entre eles”. Importante as palavras de Guilherme Calmon (2003, p.22 e 23) sobre a relação entre reprodução assistida heteróloga e adoção:

[…] vários dispositivos que expressamente somente se referem à adoção deverão ser estendidos à procriação assistida heteróloga tendo como base o fundamento que ambos os institutos jurídicos, ou seja, a origem não-sangüínea para fins de parentesco civil[…] Entre as normas do Código Civil, destaca-se o art. 1.626: “ A adoção atribui a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes consangüíneos, salvo os impedimentos para o casamento.[…]

            É, então, predominante o entendimento de não haver parentesco entre doador e a criança, mesmo quando esta venha a conhecer sua ascendência em sede de ação ainda não definida em lei, o que representa a inexistência de qualquer vínculo jurídico, obrigando somente doador e criança concebida a obedecerem aos impedimentos matrimoniais, ou seja, permanecem os vínculos naturais.

CONCLUSÃO

            O direito ao planejamento familiar, uma das formas de proteção aos direitos reprodutivos, está previsto no art.226, § 7º, da Carta Magna e, de acordo com a Lei nº. 9.693, de 11 de janeiro de 1996, garante a todos, homens, mulheres e casais, o acesso às técnicas de reprodução medicamente assistida como forma de concretizar seus projetos parentais, sem, contudo, determinar de forma mais aprofundada como deva ser a aplicação e quais os efeitos jurídicos que de sua utilização decorrem.

            Com as possibilidades trazidas pela biotecnologia, cujas pesquisas no campo da reprodução humana foram uma constante nos últimos anos, cada vez mais técnicas de concepção humana assistida são desenvolvidas e aplicadas mesmo sendo escassas as regulamentações sobre sua prática e efeitos.

            O desejo de ter um filho juntamente com as intenções lucrativas das empresas de engenharia genética fazem com que, a cada dia, várias crianças sejam concebidas através de reprodução assistida e criam uma situação fática que revoluciona as formas de compreender a família moderna e que clama pela promulgação de lei especial.

            O presente estudo versou sobre dois problemas decorrentes da aplicação das técnicas de reprodução medicamente assistida heteróloga: a possibilidade de haver o conhecimento da identidade do doador por parte da criança concebida, em vista do conflito entre o direito à intimidade do doador e o direito ao conhecimento da ascendência genética, bem como a determinação da ação adequada à busca da origem biológica, analisando, inclusive, os efeitos decorrentes desse conhecimento.

            Quanto à possibilidade da criança concebida por meio de algumas das técnicas de reprodução assistida heteróloga, importante foi, ao longo do trabalho, a análise da colisão de direitos fundamentais. À respeito, conclui-se que, pelo fato dos direitos fundamentais visarem a proteção à dignidade da pessoa humana, eles não podem ser objetos de exclusão, e sim, ponderação no caso concreto.

             Existem diversas formas de se garantir a dignidade da pessoa humana e nem sempre a forma de efetivar este direito fundamental é permitir à criança concebida por meio de reprodução heteróloga o conhecimento do doador que lhe possibilitou o nascimento. Assim, são hipóteses de possibilidade de se buscar a origem genética: a imperiosa necessidade psicológica, a necessidade de se preservar a saúde da criança e, por último, a averiguação de existência de impedimentos matrimoniais. Nos outros casos de aplicação das técnicas o direito fundamental a ser preservado é o da intimidade do doador, conservando a identidade deste no anonimato.

            Em relação à ação adequada à busca da origem genética, concluiu-se que a ação investigatória de paternidade não é a ideal. A ascendência genética não se confunde com a paternidade e para comprovar esta afirmação recorreu-se ao estudo dos três modelos de filiação, que em relação à determinação da filiação coexistem atualmente, sendo eles o tradicional, o científico e o socioafetivo.

            No modelo tradicional o critério é a presunção de paternidade ou maternidade em benefício do casal que a concebeu na constância do casamento. No científico o critério é o biológico, sendo considerado pai e mãe aqueles que passaram sua herança genética à criança concebida. Por fim, tem-se no modelo socioafetivo o critério afetivo, que define a paternidade ou maternidade me favor daqueles que desejaram e realizaram o projeto parental, independente de este ter se concretizado com material genético próprio ou de terceiros.

            Este último tem função importante de servir como solução para o conflito entre os modelos, isso porque, dentre todos, é o que melhor garante os interesses da criança, objetivo maior a ser buscado na determinação da filiação de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente.

            Assim, a ação investigatória de paternidade não deve ser utilizada para o conhecimento da verdade biológica por ter efeitos indesejados, quais sejam: a desconstituição da paternidade anterior e a declaração de uma nova paternidade, quando, em realidade, muitas vezes o objetivo desejado é apenas o conhecimento da origem e não extinção de vínculo já estabelecido.

            O habeas data também não se adequa à busca da origem, pois contém requisitos previstos constitucionalmente, tais como: a busca de dados deve ser relativa ao impetrante e os dados devem ser de arquivos públicos ou de caráter público, requisitos estes que não se verificam na intenção de se conhecer o doador.

            Percebe-se, portanto, que na ausência de uma ação prevista, deve o legislador criar um novo tipo de ação, que inclusive deve limitar a possibilidade de conhecimento da origem genética às hipóteses já elencadas e cujos efeitos se restrinjam à imposição de impedimentos matrimoniais, pois a união entre consanguíneos é moralmente condenada pela sociedade, desconsiderando qualquer vínculo jurídico entre doador e criança, uma vez que esta foi concebida para efetivação do projeto parental de outras pessoas.

            Conclui-se também pela necessidade de publicação de lei especial que regulamente a aplicação de técnicas de reprodução medicamente somente em pessoas com reais problemas de infertilidade, para que não se desvie da finalidade da Lei de Planejamento Familiar, que não visa criar novas formas de concepção, mas sim meios auxiliares para efetivação de direitos reprodutivos.

            Infelizmente não é possível, em sede de trabalho monográfico, exaurir a discussão em torno de assunto tão polêmico e interessante, que mobiliza doutrinadores de todo o mundo, mas espera-se ter contribuído, através do desenvolvimento da presente pesquisa, para difusão do assunto e futuros estudos a respeito do tema.

 

LIVROS:

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[1] COULANGES, Numa-Denys Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Editora das Américas S.A. – EDAMERIS: 1961. Tradução de Frderico Ozanam Pessoa de Barros. Disponível em: <http:// www.ebooksbrasil.org/eLibris/cidadeantiga.html#B3>. Acesso em: 22 de out. 2006.

[2] O Ogino-Knauss, Método do Ritmo, Calendário ou Tabelinha é um método natural de contracepção, que permite obter, mediante cálculos matemáticos, os dias de fertilidade do casal.

[3] Essas categorias não representam a atual idéia de planejamento familiar no Brasil, pois a Lei nº. 9.263/96 em seu artigo nove garante que, para o exercício pleno dos Direitos Reprodutivos, serão aceitos quaisquer métodos cientificamente aceitos, isso inclui os métodos artificiais citados na categoria II.

[4] Laparoscopia é um procedimento de exame e manipulação da cavidade abdominal através de instrumentos de ótica e/ou vídeo bem como de instrumentos cirúrgicos delicados que são introduzidos através de pequenos orifícios no abdome. É um procedimento cirúrgico realizado geralmente com anestesia geral.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Nathalie Carvalho Cândido:  Advogada em Fortaleza, Ceará – OAB nº.19206


REFERÊNCIAS