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Exame de Ordem e Cidadania

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* Cezar Britto

“O Senado Federal examinará nos próximos dias proposta de extinção do Exame de Ordem, prova de conhecimentos básicos a que se submete por lei o bacharel em direito no Brasil para credenciar-se ao exercício profissional da advocacia. Como se sabe, é expressivo o número de reprovações nesse exame no país, o que indica má qualidade de expressiva parcela dos cursos jurídicos. É indispensável, porém, separar o joio do trigo para entender o que se passa e buscar soluções.

Os bons cursos aprovam a quase totalidade dos alunos. Já com os maus cursos dá-se o oposto. Por quê? Simples: em sua imensa maioria, são patrocinados por empresários picaretas, inescrupulosos, sem compromisso com a causa da educação, movidos apenas pela avidez mercantilista. Em vez de bani-los do mercado, ou submetê-los a padrões mínimos de eficiência e compostura acadêmica, há quem sugira o inverso: que se elimine o instrumento que denuncia a anomalia — o Exame de Ordem. É como quebrar o termômetro para baixar a febre do paciente. Lamentavelmente, essa visão distorcida fez que chegasse ao Senado projeto de lei nesse sentido.

A solução evidentemente não pode ser essa. É preciso ir às raízes do problema — e não há dúvida de que a proliferação de instituições de ensino caça-níqueis está na base dessa anomalia. Trata-se de desserviço ao país, ao direito e, sobretudo, aos milhares de jovens que, iludidos na boa-fé, se submetem a essas instituições em busca de ascensão social pelo saber.

Levantamento da OAB, atualizado até 30 de maio deste ano, constata que a oferta de cursos jurídicos no país continua bem acima da capacidade de absorção do mercado — e bem acima da capacidade do Estado de sobre eles exercer algum controle de qualidade. Temos o levantamento estado por estado. Mas fiquemos na soma total: há nada menos que 1.046 cursos jurídicos em funcionamento no país, oferecendo 194 mil e 689 vagas.

Esse é o número de bacharéis que serão postos no mercado de trabalho ao final deste ano — número espantoso, bem acima da demanda. Pior: a maioria despreparada para os mais elementares rudimentos da profissão. Prova disso é o colossal índice de reprovações no Exame de Ordem. Há hoje aproximadamente 600 mil advogados inscritos na OAB. A média de criação de cursos jurídicos no país entre 1994 e 1997 era de 20 anuais. De 1998 a 2003, saltou para 71.

Este ano, no espaço inferior a um mês — entre junho e julho —, o governo federal autorizou o funcionamento de nada menos que 20 instituições e reconheceu quatro outras. Do total de autorizações e reconhecimentos avalizados pelo MEC, a Comissão Nacional de Ensino Jurídico da OAB havia emitido parecer favorável a apenas um curso: a Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo. As demais não passaram por nosso crivo.

Da proliferação de cursos inabilitados surge outro dado preocupante: o espantoso aumento do número de bacharéis prestando o exame. Entre 1996 e 2004, o aumento é de 2.533%. Se a OAB fosse uma instituição de índole exclusivamente corporativa, não teria por que se insurgir contra esse quadro. Seria beneficiária dele. Sem o exame, teríamos hoje no Brasil algo em torno de 4 milhões de advogados — o que é mais que a soma de todos os advogados do planeta. Transformaríamos a OAB na mais poderosa e multimilionária entidade de classe. Mas estaríamos condenando a prestação jurisdicional à morte.

O Brasil, mesmo com o filtro da Ordem, é o segundo colégio de advogados do Ocidente — perde apenas para os Estados Unidos. Seria ótimo, se houvesse mercado para todos, se isso se refletisse na qualidade do serviço prestado. Não é, porém, assim. O ensino jurídico sem qualidade atinge todo o espectro da Justiça, pois compromete a formação de todos os que participam de sua administração — e, em última análise, atinge o próprio conceito de cidadania e de democracia.

Por essa razão, OAB e MEC firmaram parceria para sanear o ambiente. Já a partir deste mês, vão supervisionar cerca de 100 estabelecimentos reprovados tanto pelo Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) como pelo Exame de Ordem. Para isso, criaram grupo de trabalho com membros da consultoria jurídica de ambas as instituições para estudar medidas jurídicas contra as chamadas faculdades caça-níqueis. As sanções podem ir de redução das vagas oferecidas à suspensão do vestibular.

O objetivo é garantir qualificação técnica ao bacharel, permitindo que triunfe profissionalmente num mercado disputadíssimo e contribua para a melhoria da qualidade da prestação jurisdicional. Justiça é insumo básico da cidadania — e, não obstante, o Brasil não a fornece à imensa maioria da população. Extinguir o Exame de Ordem é agravar ainda mais o quadro. É crime de lesa-pátria — nada menos.”.

 


FONTE:  OAB-DF, 10 de outubro de 2007

O artigo “Exame de Ordem e Cidadania” é de autoria do presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto,  , e foi publicado na edição de 10/10/2007  do jornal Correio Braziliense

 

 

 

Cidadania e Justiça Social

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* Sergio Francisco Furquim 

A democracia é essencial, indispensável para o estabelecimento de uma nação civilizada, mas é apenas o ponto de partida para a construção dessa sociedade. A democracia só se estabiliza numa sociedade fundada na justiça social.

Cidadania é conquista e se realiza a partir da conscientização dos cidadãos. De seus deveres e direito. Uma sociedade desinformada a respeito dessas duas coisas não se emancipa. Que adianta restabelecer eleições diretas em todos os níveis se o eleitorado não se informa a respeito dos candidatos e de suas plataformas, se não aprende a separar o joio do trigo e a defender de trapaceiros e aventureiros.

É preciso estabelecer padrões razoáveis de serviços públicos e privados. A Ordem dos Advogados do Brasil tem sido, ao longo de sua historia, instituição presente em todas as manifestações efetivas da cidadania em nosso país. Foi uma das instituições mais atuantes na luta contra a ditadura e na defesa dos direitos humanos. Sendo a entidade representativa dos profissionais da lei, não poderia atuar de outro modo.

Cidadania e lei são conceitos também indissociáveis.

A sociedade brasileira é injusta e disforme. Cidadania é privilégio reservado a bem poucos. A imensa maioria continua excluída dos mais elementares direitos e jamais ouviu falar em deveres. É preciso mobilizar a sociedade, de suas elites dirigentes até a base da pirâmide social, na luta por melhor qualidade de vida. E essa luta chama Cidadania.

Restaurada a democracia, impõe-se o seu resgate do plano formal, estéril, para implantá-la materialmente como fator de transformação positiva da qualidade de vida do cidadão.

É preciso um choque de Cidadania no país, já o disseram ilustres e renomados juristas. E esse choque começa com investimentos maciços em educação. Mas a crise de justiça, ou, mais apropriamente, a crise do poder judiciário não pode esperar pelos efeitos das medidas de médio e longo prazo.

Investimentos em educação são fundamentais e insubstituíveis, mas terão reflexo prático apenas nas gerações seguintes. E é preciso fazer algo que atenue de imediato a situação dos nossos contemporâneos, cuja a expressiva maioria é irremediavelmente dependente das classes mais favorecidas e, entre estas, se destaca a advocacia.

A justiça brasileira, por razões múltiplas de ordem estrutural e por desvios culturais antigos, está distante do povo. Há má distribuição de verbas, escassez de juizes, sobrecargas de ações, irracionalismo no campo processual e inexiste vontade política para reverter esse quadro.

É preciso unificar os diversos segmentos da Justiça num órgão nacional que, via centralização administrativa, estabeleça uma política de distribuição de recursos, sem prejuízo da autonomia do poder.

A nós advogados, cabe papel crítico e operacional. O papel critico exercemos com maior desenvoltura. O operacional, no entanto, não pode ser negligenciado.

É fundamental que seja intensificada a comunicação intraquadros da OAB. É a partir desse fortalecimento interno que poderemos reciclá-la e volta-la para uma ação externa mais eficaz.

É preciso aproximar o Conselho Federal das bases da categoria, torna-lo mais sensível às suas demanda. Somos 640 mil advogados em todo o país e essa massa de profissionais, mais próxima das demandas da sociedade, não pode estar alheia ao trabalho de 81 membros do Conselho Federal. Precisamos construir um sistema de comunicação que mantenha informados todos os nossos filiados e não apenas os que habitam os grandes centros.

Só assim os advogados podem ter atuação efetiva como interlocutores da sociedade. Quando menor e mais distante o município, maior influencia do advogado diante do poder político.

A OAB é o grande instrumento com que contam os advogados para enfrentar os numerosos desafios desta etapa da vida brasileira. E é preciso fortalecê-la, para que continue sendo não apenas um órgão de representação classista, mas, sobretudo, o que tem sido desde sua fundação: um instrumento a serviço do estado de Direito e da Cidadania.

Cidadania, hoje, para o grosso da população, é apenas uma palavra, desprovida de sentido. Nosso desafio é fazer com que o Brasil comece a dar conteúdo a essas duas palavras vitais para preservação da dignidade humana Justiça e Cidadania. Isso só será possível mediante a união de nossas lideranças e a mobilização da sociedade.

Por essa razão, Ordem dos Advogados do Brasil que exerce historicamente o papel de interlocutora da cidadania brasileira deve empenhar-se em conscientizar a sociedade de seus deveres e direitos, na busca incessante da concretização dos primados democráticos consagrados pela Constituição Federal.

Cidadania, hoje, para o grosso da população, é apenas uma palavra, desprovida de sentido. Precisamos resgatá-la e torna-la efetiva no sofrido cotidiano do povo brasileiro.

A proposta é: lutar pelo exercício efetivo da Cidadania, auxiliando o cidadão a identificar o seu direito, esclarecendo-o a respeito de seus deveres inclusive, lembrando que é o cumprimento do dever que gera o direito e induzindo elite econômica e Estado a serem mais zelosos de suas obrigações.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
Sergio Francisco Furquim:  Advogado em Itapeva (MG).

O problema da desvalorização do ensino jurídico

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* Atahualpa Fernandez  

Em tema de educação e ensino jurídico parece que vivemos diante de um paradoxo: por um lado, o preceito da Carta Magna que estabelece, em linhas gerais,  que a educação  há de ter por objeto o pleno desenvolvimento da personalidade humana no respeito aos princípios democráticos de convivência e aos direitos e liberdades fundamentais; por outro lado, a indissimulada situação de quebra e falta de credibilidade do ensino jurídico universitário, contrastável  sem mais que ver a quase patológica busca pelos epidêmicos  cursinhos preparatórios extra-universitários por parte dos bacharéis.

Em realidade, qualquer parecido com o que caberia chamar uma boa educação universitária brilha, hoje,  de maneira clamorosa por sua ausência. Vivemos em um contexto educacional em que a obtenção do grau universitário já não se configura por ser uma conquista do talento, um prêmio pelas noites passadas em claro e pelas pesquisas realizadas, senão como um instrumento a mais para conseguir, sem demora, um emprego ou cargo qualquer. Não é necessária muita perspicácia para constatar o que vai da teoria -uma teoria que se refere nada menos que à formação  de  cidadãos responsáveis –  até a prática, medida por sua vez em termos de obtenção de um “bom trabalho” que assegure, antes de tudo, um bom salário.

Em termos comparativos, essas duas situações parecem indicar que, por mais que os redatores da “lei das leis” tenham imposto grande empenho retórico em sua redação, o que conta é o que pode ganhar cada um. E poucos seriam os que, postos na tessitura de ter que montar uma “vida digna” (em termos estritamente materiais), o colocariam em dúvida. Mas, de ser assim, por que tanta preocupação e discussão sobre o ensino jurídico para a ética e a cidadania, e ainda mais sobre o baixo índice de aprovação em concursos públicos e nos exames de ordem por parte egressos das facultades de direito ?

Se as instituições de ensino insistissem em um modelo de educação e formação  que  tratasse de impedir um perfil de discente  proclive ao automatismo, à memorização e  ao  isolamento teórico – origem, diga-se de passo , de profissionais deficientes  e, em determinadas ocasiões, carentes de um mínimo sentido de ponderada razoabilidade acerca dos valores, princípios e normas que ao Direito importam –, seguramente não se diria que o ensino jurídico está desvalorizado senão que sobe inteiro na bolsa dos valores sociais. Uns profissionais bem formados, por miserável e egoísta que fosse seu comportamento, dariam indício de que nossas nossas instituições de ensino são excelentes. Ou não?

O maior fracasso de nossas universidades, a meu entender, parece residir no fato de que  deixaram de dar a máxima importância à prioritária tarefa que lhes cabe de  tornar efetiva a  plena formação dos estudantes universitários, seu preparo para o exercício da cidadania e sua (real) qualificação para um mercado de trabalho cada vez mais exigente e competitivo. Mas não somente isso. Ao contemplar alguns professores que se comportam como ilustrados en miniatura, que em sua maioria reivindicam sabedoria, mas que, na mesma medida,  depreciam  -ou talvez invejem- o esforço e a excelência, e  até mesmo ao ver como se comportam alguns deles, pode estranhar-nos? Talvez por aí haveria que começar a educação: por examinar aos que examinam – aos que não passam de “gestores da ignorância” e/ou aos que se mantêm indiferentes ao tsunami anual de bacharéis que não aprenderam o suficiente para situar-se (adequadamente) na vida profissional.

Me explico: diante do panorama atual, estou convencido de que o melhor seria partir da premissa de  que qualquer discussão ou proposta honrada acerca do ensino jurídico – e que pretenda propugnar de verdade sua causa (que dizer, honrada também na ação) – somente pode ser empreendida enquanto prática coletiva e solidária que implique o comprometimento e a colaboração dos agentes diretamente envolvidos no processo ensino-aprendizagem. Não  parece razoável pensar em uma mudança do atual modelo jurídico-educativo sem que os professores, diante de um sistema esclerosado ,  proponham-se a fazer uso de uma docência integral, interdisciplinar e significativa de conhecimentos, bem como formativa em relação  à capacidade intelectual e crítica com respeito aos valores e atitudes dos estudantes frente ao Direito. Isto é, sem que os professores  assumam o compromisso ético de procurar capacitar o aluno  não somente a tarefa de “saber” e “conhecer” razoavelmente o ordenamento jurídico senão também, e muito particularmente,  de reflexionar sobre essa ciência, dotando-o das qualidades necessárias e suficientes para fazer valer e projetar no ordenamento jurídico os valores fundamentais do Direito e da Justiça.

Depois, para além do exercício de uma renovada prática docente , os estudantes têm o direito de desfrutar de uma visão do Direito muito mais flexível e integrada da que tem sido normal nos cursos jurídicos. Têm o direito  – e os professores  o dever-  de chegar ao convencimento de que podem e devem influir , em um sentido ou outro, nas numerosas manifestações do sistema jurídico, tanto sobre a base de razões formais e positivas, como materiais, éticas e de política jurídica. E o fator determinante para inculcar uma ou outra prática frente ao Direito e ao sistema jurídico será a atitude que adotará o professor de, exercendo a liberdade que lhe assegura a Constituição da República, fazer conhecer aos seus alunos  essas  realidades que o fenômeno jurídico implica de forma iniludível.

Se  através de suas exposições e leituras recomendadas ( ou de qualquer outro método que lhe pareça mais acessível)  o docente trata de pôr de manifesto os valores jurídicos que presidem – e devem conformar – as diferentes facetas da realidade social e, ademais disto, incite  seus alunos a adotar uma atitude crítica e reflexiva dirigida a tornar efetivos os valores substantivos que dirigem o Direito, com toda segurança  alcançará facilmente o objetivo da docência jurídica  e fará com que o ( também) exercício da liberdade de aprender, de investigar e o pluralismo de idéias  não se petrifiquem em uma norma  (constitucional, insisto) incapaz de ter alguma eficácia fora dos limites físicos do papel em que está impressa.

Isso importa, por  certo , que o docente assuma a responsabilidade de estar comprometido com o processo ensino-aprendizagem e sua qualidade, dotando-o de uma visão pluralista da sociedade e preocupando-se com uma abordagem multidimensional do sistema jurídico  e  interdisciplinar no que se refere às outras áreas de conhecimento , tudo  com o objetivo de formar juristas capazes de pensar séria , global  e criticamente o Direito.

Não obstante, o alcance dessa excelência sempre estará limitado e justificado  pelo objetivo principal do docente de potenciar o desenvolvimento das capacidades e habilidades intelectuais necessárias para realizar essa atividade e, em particular, para utilizar prudencialmente as diferentes técnicas de realização do Direito; quero dizer, de formar juristas que saibam “pensar e fazer” e não somente que saibam “fazer”, exigindo do aluno o hábito de refletir filosófica  e juridicamente, argumentando e contra-argumentando, procurando seu próprio caminho com  uma razoável  postura crítico-teórica e um adequado sentido ético, a fim de que possam, a partir daí , assumir a tarefa que lhes cabe como (potenciais) agentes de câmbios histórico-sociais.

Da mesma forma,  parece que o exercício dessa liberdade ( que implica necessariamente uma redefinição da postura filosófico-metodológica até agora adotada ) postula a prevalência de um método de ensino dialogado, participativo e centrado no aluno, em oposição ao secular método magistral, monologado, passivo e acrítico, centrado no professor. Afinal, concebido o Direito como prática social de tipo interpretativo e argumentativo,   somos nós  os que produzimos  a  realidade do fenômeno jurídico  e a edificamos enunciando o que este mesmo é. Há Direito onde sujeitos diferentes discutem e desenvolvem , submergindo-se na práxis,  proposições  e enunciados  normativos pertencentes a essa prática  interpretativa que , sobre a base  de sua unidade de sentido , chamamos de fenômeno jurídico.

Por outro lado, e nessa mesma linha de raciocínio , não parece demasiado recordar que essa prática docente deve ser plena, no sentido de que permita aos estudantes desfrutar de uma educação que lhes proporcione  a base necessária para compreender como e por quê se relacionam os novos conhecimentos com os que eles já sabem , a transmitir-lhes a segurança afetiva de que são capazes de utilizar estes novos conhecimentos em contextos sócio-culturais diferentes,  de desenvolver o interesse e o compromisso ético pelos movimentos sociais, políticos e filosóficos que configuram a base do Direito e, talvez o mais importante, a ensinar-lhes a  desaprender o acúmulo incalculável  de teorias infundadas e de versões sem sentido do que “é” ou “deve ser” o Direito.

Estou convencido de que esta é uma das principais diretrizes que deve balizar e justificar a busca de uma  excelência de ensino e de preparação profissional, necessária para a formação de um operador do direito apto a  exercer sua  função (social) em um mundo em permanente câmbio e plenamente capacitado à tarefa não somente de explicar as garantias meramente formais da democracia ou a simples observância dos princípios, valores e normas  do sistema positivo, mas, principalmente, para buscar a efetiva garantia da justiça intrínseca no Direito e a conformidade deste com a dignidade da pessoa humana.

De um profissional que incentive e priorize a implicação do Direito com uma postura republicana e democrática do Estado e, portanto, que se distancie da paroquiana concepção de sacerdote da dogmática, travestido do manto da infalibilidade  jurídica e autoinvestido da pusilânime e/ou da suposta virtude que  faz dos operadores do direito  les  bouches  qui  prononcent les  paroles  de  la  loi, des  êtres   imanimés  qui  n´em peuvent  modérer  ni  la  force  ni  la  rigueur”(Montesquieu).

Assim , e somente  assim , será  possível  remediar a perversa prática docente segundo a qual, na grande maioria salas de aula , os “conhecimentos saem das fichas dos professores para as notas dos alunos, sem passar pela cabeça de nenhum deles” (Mark Twain). O ato de educar (e aprender) não é apenas uma questão instrumental, mas acima de tudo reflexo do imperativo moral ( e constitucional) de que capacitar o ser humano para o exercício virtuoso de uma atividade profissional: não somente do bacharel como expressão da capacidade para aprender por qualquer meio que seja, mas de um ser humano com plena aptidão para sentir, reagir, amar, eleger, cooperar, dialogar e de ser, em última instância, capaz de autodeterminar-se livremente no âmbito de sua formação pessoal e profissional.

Por certo que , a despeito de todo o sugerido, não deixará de ser escassa a influência de um professor no futuro a longo prazo de seus alunos; mas no que seguramente temos é uma grande influência no presente de cada um deles, e podemos fazê-los tremendamente desmotivados para as coisas que efetivamente importam.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

ATAHUALPA FERNANDEZ: Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular da  Unama/PA;Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado); Advogado.

Breves comentários sobre o cabimento da ação declaratória incidental

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  Rodrigo Klippel[1] 

            Um tema pujante de teoria geral do processo é a “ação declaratória incidental”. Quando nela se fala, quer-se referir a um tipo especial de procedimento criado pelo legislador para a tutela de determinadas crises de certeza que se enquadram na hipótese de cabimento prescrita na lei processual. 

            Para comentar sobre a ação declaratória incidental – melhor seria dizer sobre a demanda declaratória incidental – o principal trabalho que se deve ter é o de identificar qual é a hipótese que permite o seu emprego. 

            Partindo-se dessa premissa, tem-se que a ação declaratória incidental[2] representa a demanda apta a tutelar questões prejudiciais, sendo essa definição o elemento essencial para entender o instituto. 

            Questões prejudiciais, que podem ser objeto de ação declaratória incidental, são “as concernentes a relações jurídicas distintas da deduzida em juízo pelo autor, mas de cuja existência ou inexistência dependa logicamente o teor do pronunciamento sobre o pedido – v.g., a relação de parentesco na ação de alimentos, a dívida principal na ação em que se cobram os juros, a servidão naquele em que se pleiteiam perdas e danos pelo suposto descumprimento do ônus”[3]. 

            Pode-se dizer que a questão prejudicial representa a dúvida sobre a existência ou não de uma relação jurídica que é o pressuposto para a caracterização de outro direito material ou de outra situação jurídica, esta sim objeto do processo. 

            Volta-se ao exemplo já dado por Barbosa Moreira da relação de paternidade na demanda de alimentos. O vínculo entre pai e filho representa uma relação jurídica diferente daquela que garante o direito aos alimentos. São dois liames jurídicos distintos e cada um deles pode, individualmente, ser objeto de um processo. Embora distintos, ambos se relacionam, visto que o direito a alimentos depende da paternidade. 

            Toda vez que, num processo, se verificar que o fundamento de um direito que se quer tutelar é outro direito, cuja existência se questiona, pode-se chamar esse último de questão prejudicial. 

            A questão prejudicial poderia ser o mérito do processo, ou seja, poderia representar o conflito que se quer dirimir, mas se apresenta, num primeiro momento, somente como fundamento de outro direito, esse sim o cerne da demanda. 

            Explicado o que é a questão prejudicial, resta fazer a sua ligação com a ação declaratória incidental. 

            A ação declaratória incidental é aquela que se ajuíza, no curso do procedimento, para fazer com que a questão prejudicial, que, portanto, é só o fundamento da demanda em trâmite, passe a ser objeto de um pedido, sendo, portanto, julgada de forma principal, garantindo-se, assim, a maior vantagem que se oferece à tutela de um conflito cuja solução as partes requerem ao juiz: a coisa julgada. Para que se entenda o conceito, com mais clareza, segue um exemplo. 

            Betânia ajuíza uma demanda em face de Carolina, pleiteando o ressarcimento dos danos que alega ter sofrido por conta do desrespeito de uma servidão de passagem atrelada a um imóvel de Carol. 

            Pela descrição feita, observa-se que o objeto do processo, ou seja, a sua discussão principal, o mérito, é o direito à indenização. Entretanto, para se decidir por esse direito, existe um outro que é seu pressuposto, mas que na configuração inicial da demanda se enquadra tão somente como fundamento (causa de pedir), que é a existência da servidão. 

            Qual a conseqüência prática de se discutir se existe ou não a servidão somente como fundamento do pedido de ressarcimento pelo seu descumprimento? A conseqüência é a de que qualquer decisão tomada pelo juiz sobre a questão prejudicial de existência da servidão não é imutabilizada pela coisa julgada, o que significa dizer que, em outros processos poderá ser novamente discutido o ponto, inclusive com resultado diverso daquele que aqui será obtido. 

            Percebe-se, portanto, que existe um certo desperdício de atividade processual, visto que se discutirá sobre se existe ou não a servidão e o resultado dessa disputa não se tornará imutável por uma simples circunstância: o fato de a declaração de existência desse direito não ter sido objeto de um pedido. 

            Como corrigir isso, fazendo com que também a existência da servidão seja objeto de pedido e possa, após elucidada, se tornar uma questão indiscutível (coisa julgada)? Ajuizando uma ação declaratória incidental. 

            O que vem a ser, portanto, uma ação declaratória incidental? É a demanda, conexa à primeira ajuizada, que contém em seu pedido a relação jurídica que na ação original é somente questão prejudicial. Sua utilidade é fazer com que aquilo que seria julgado tão somente como prejudicial e não faria coisa julgada, ou seja, não seria imutabilizado, possa sê-lo. 

            Onde havia uma demanda passam a existir duas, conexas, e que deverão ser processadas e julgadas simultaneamente.  


NOTAS:

[1] Assessor Jurídico-ES; Mestre em Garantias Constitucionais pela FDV; Professor de Graduação e Pós-Graduação na FDV; Professor da Escola de Magistratura do Espírito Santo (EMES); Professor Convidado da Escola Superior de Advocacia (ESA/OAB-ES); Autor da obra “Teoria Geral do Processo Civil”, pela Editora Impetus.

[2] Embora se devesse falar, por questão de técnica processual, em demanda declaratória incidental, visto que o direito de ação é um só e abstrato, seguir-se-á o emprego da locução “ação declaratória incidental” devido à sua enorme aceitação e identificação na prática forense.

[3] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Os limites objetivos da coisa julgada no sistema do novo Código de Processo Civil. In: Temas de direito processual civil, 1ª série. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 90.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

RODRIGO KLIPPEL:  Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo;  Mestre em Garantias Constitucionais Fundamentais pela FDV;   Professor de Graduação e Pós-Graduação em Direito Processual Civil na FDV;   Professor da Escola de Magistratura do Espírito Santos (EMES); . Professor convidado da Escola Superior de Advocacia do Espírito Santos (ESA / OAB);   Palestrante em Simpósios e Congressos Jurídicos;  Assessor Jurídico no Espírito Santo;  Autor de diversos artigos publicados em revistas jurídicas.   Autor da obra: Teoria Geral do Processo Civil – Editora Impetus.

Voto parlamentar aberto

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OPINIÃO:  * João Baptista Herkenhoff  – O voto parlamentar secreto consagra a irresponsabilidade, a fraude e a covardia.

É voto irresponsável porque à sombra do sigilo o parlamentar não tem de dar conta de sua conduta a quem quer que seja.

É voto fraudulento porque permite que o parlamentar traia inteiramente o mandato que lhe foi conferido e, através dessa traição, fraude a vontade do eleitorado. Debaixo do manto do voto secreto toda uma casa legislativa pode divorciar-se inteiramente da opinião pública tomando, em face dela, uma decisão não apenas minoritária, mas fragorosamente minoritária.

O voto parlamentar secreto é covarde porque, no refúgio do biombo, o representante do povo está dispensado do seu compromisso de retidão e moralidade.

O parlamentar que precisa de voto secreto para expressar-se não merece confiança. Não seria prudente que o dono de uma banca que vende bananas confiasse a ele a guarda da banca enquanto o quitandeiro tivesse de se afastar para fazer uma coisa qualquer.

Não me pronuncio contra o “voto parlamentar secreto”, em face deste momento político. Sustento esta posição há muitos anos, inclusive em livros que publiquei.

Norberto Bobbio coloca, com justeza, que o Parlamento é um lugar onde o poder é representado, ou seja, é o lugar onde se reúnem os representantes e onde, ao mesmo tempo, ocorre uma verdadeira encenação. Ora, enquanto encenação deve ser desempenhada em público.

Na mesma linha de Bobbio, corre o pensamento de Carl Schmitt. Esse autor afirma que um parlamento tem caráter representativo enquanto acreditar que sua verdadeira e própria atividade tem lugar em público.

Diferente do voto parlamentar secreto é o voto secreto do cidadão comum. O cidadão não tem de dar conta do seu voto a ninguém, senão a sua própria consciência. O voto secreto que se assegura ao eleitor é uma garantia de liberdade, é uma conquista democrática. Foi instituído em nosso país pela Constituição de 1934, graças à iniciativa de um capixaba – José de Mello Carvalho Muniz Freire, que hoje tem seu nome ligado a um município do Espírito Santo.

Diga-se, de passagem, que a Constituição de 1934, fruto tardio do sangue dos que tombaram na Revolução Paulista (1932), teria assinalado a rota do Brasil no sentido da Democracia, não fosse o retrocesso do Estado Novo (1937).

Como o grito de “Diretas Já” representou a reconquista do espaço democrático que fora surrupiado do povo em 1964 e totalmente banido em 1968, agora o grito de “Voto aberto já” pode devolver ao Parlamento brasileiro a dignidade que lhe é indispensável e que está sendo perdida por comportamentos absolutamente antiéticos de maiorias parlamentares que se escondem no anonimato coletivo por falta de hombridade para mostrar a própria face.

Também merecem repúdio os julgamentos e decisões secretas na Justiça, salvo em questões íntimas como, por exemplo, as causas que envolvem família. Mas isto é assunto para outro artigo.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

 

 

 

João Baptista Herkenhoff é Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo – professor do Mestrado em Direito, e escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Homepage: www.joaobaptista.com

Variações sobre a inveja e o poder

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OPINIÃO:  * Ives Gandra da Silva Martins  –  O poder é, em grande parte, alimentado pela inveja. Inveja é o vício pelo qual a pessoa que o tem –e quase todos os seres humanos o ostentam- sente-se infeliz com a felicidade alheia.

Se se perguntar a alguém, se é invejoso, sua primeira reação é afirmar que não é, mas a medida em que se auto-analisa, com sinceridade, verificará que, muitas vezes, sentiu-se infeliz por ver a felicidade alheia, que não conseguiu para si.

Entre os guerreiros árabes, na luta que travavam pelo poder, costumava-se dizer que a grande felicidade era morrer depois do inimigo.

Carl Schmitt, ao escrever que a política é a ciência que opõe o amigo ao inimigo, desventrou a realidade do poder, em que servir ao próximo é menos importante do que se servir dele e a vitória do inimigo dói mais, pelo êxito não ter sido seu.

Não apenas na política – a inveja, que leva a buscar sempre defeitos nos adversários para desmoralizá-los – mas em qualquer manifestação cultural, científica ou esportiva em que o poder esteja envolvido, esse vício é o senhor da festa.

Nos meios acadêmicos e universitários, a feira das vaidades leva sempre aquele que se considera superior a sofrer com a vitória de pessoas que não admira – ou que entende devesse ser sua – e tentar desvalorizá-la a todo custo. Conta-se que, certa vez, numa reunião de intelectuais, um deles fez a seguinte pergunta: “Quantos sábios estão nesta sala?”, tendo recebido a resposta de um deles: “Certamente, há um a menos do que você pensa!”.

No futebol – e também em outros esportes coletivos – quantas vezes se torce menos pela vitória do próprio time ou do melhor em campo, e mais pela derrota daquele que é o adversário mais constante do time do coração, qualquer que seja ele, mesmo que seja de outro país.

A maledicêndia é um dos frutos preferidos, principalmente na política. Quem  busca o poder, lança suas sementes para conseguir a desmoralização do adversário que esteja nele investido no momento, ou que pretenda obtê-lo. Tudo é válido, inclusive a calúnia e outros procedimentos menos éticos, para que se consiga alijar o inimigo do posto que se deseja.

Não sem razão, em todos os períodos históricos e espaços geográficos, a luta política é mal cheirosa, regada abundantemente pela inveja. Esse vício não permite que se elogie o que o adversário faz de bom, pois isso enfraqueceria a possibilidade de se suplantá-lo na disputa. A inveja, por fim, leva o aspirante do poder político, universitário, acadêmico, esportista ou de qualquer outra natureza, a viver uma permanente insatisfação, seja quando o obtém, porque passa a ter que defendê-lo contra quem o almeja, seja quando vê frustrada sua ambição de consegui-lo, pela infelicidade de assistir ao êxito dos que estão usufruindo daquilo que poderia ser seu.

Na verdade, entre os sete vícios capitais, que atormentam o ser humano, a inveja é a raiz de muitos deles.

Lutar contra ela no foro íntimo, não é fácil, pois todos nós, em algumas circunstâncias, podemos também render-nos a seu império. É, porém, fundamental, visto que só se pode enfrentar a vida com serenidade, vivendo as vitórias e as decepções. É importante ter presente que, no curso de uma existência, nada valemos. O interregno de uma vida só valerá, se conseguirmos semear nossa passagem, por mais humilde que seja, auxiliando o próximo, alegrando-nos com suas vitórias, entristecendo-nos com suas derrotas.

É insensato nos darmos muito valor, neste imenso universo em que nada somos.

 


 REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

IVES GRANDRA DA SILVA MARTINS:  Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária – CEU.

 

 

 

 

Ética dos advogados e ensino jurídico

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OPINIÃO:  * Joaquim Falcão  – Diante da crescente evidência de envolvimento de advogados com traficantes, é razoável e até necessário que a OAB reveja seus mecanismos de controle do exercício da profissão. Que acione com mais vigor sua Comissão de Ética, como quer seu presidente, Roberto Busato. Mas serão essas comissões suficientes? Ou estão elas também aprisionadas pela armadilha tradicional – a dificuldade estrutural de qualquer corporação em controlar a si mesma? Dificuldade não exclusiva dos advogados, mas de qualquer corporação: médicos, juízes epolíticos, por exemplo.

Aliás, foi justamente a evidência de que as corregedorias judiciais eram insuficientes para controlar o comportamento ético-disciplinar dos magistrados que levou o ministro Cézar Peluso, ao defender a constitucionalidade do Conselho Nacional de Justiça, a ressaltar: "(…) os atuais instrumentos orgânicos de controle ético-disciplinar dos juízes, porque praticamente circunscritos às corregedorias, não são de todo eficientes, sobretudo nos graus superiores de jurisdição (…)". A tarefa é difícil. Exige mais do que controles internos corporativos.

Nessa perspectiva, surgiu proposta de tornar obrigatória a disciplina Ética Profissional nas faculdades de direito. A proposta, aparentemente adequada, deve ser vista com cuidado. Mais importante  do que ensinar ética é praticar um comportamento ético. Isso quer dizer que uma escola de direito só tem legitimidade para ensinar ética se tiver antes implantado a prática cotidiana da ética entre professores, alunos e funcionários. Tiver antes implantado a educação como prática da ética, parafraseando o grande educador Paulo Freyre, quando pregava a educação como prática da liberdade.  

Infelizmente, em grande número de faculdades de direito existem práticas antiéticas de muitos alunos e até de alguns professores. Práticas que, nesta crise de perda de indignação do brasileiro, de tão corriqueiras, parecem até normais. Dou exemplo de duas: a cola na prova e o plágio no trabalho de curso.

Qual a política efetiva que as escolas têm para controlar a cola? Que punições ou reeducação as escolas têm para o aluno que é pego colando?  No nível institucional, provavelmente nenhuma. Tudo fica ao arbítrio do professor cansado, sem formação didática renovada, mal pago, a dar aula a um número excessivo de alunos empacotados numa sala, em situação que a boa didática jamais recomendaria. A ele cabe decidir se o aluno vai perder a questão, perder a prova, ou apenas laisser passer.

Isso é suficiente? Difícil dizer. As estratégias para violação se sofisticaram. A cola tradicional, olhar e copiar a prova do aluno ao lado, insinuante, quase provocativa, que se autoconvida, dá lugar a "métodos" mais sofisticados, celulares e outros meios eletrônicos. Tudo facilitado pelo fato de que a prova pede mais a memorização da doutrina alheia do que o raciocínio original do aluno.

O plágio em trabalhos escritos está em ascensão. Culpa do Google, da familiaridade das novas gerações de alunos com a tecnologia de busca na internet, e da facilidade de se atribuir a autoria de um texto. Essa situação é agravada pelo fato de que os trabalhos de disciplinas e de conclusão de curso são, sobretudo, pesquisas bibliográficas, estruturadas pelo que o professor Luciano de Oliveira chama de ideologia da "manualização". Assim como a maioria dos manuais de direito são apenas uma colagem de autores, textos, doutrinas e jurisprudência sem necessariamente maior arte, assim também são os trabalhos de classe e de conclusão de curso. A pesquisa dos alunos começa e termina nos manuais de sempre.

Incluir, pois, um curso de ética profissional no currículo pode nos levar a um paradoxo. O currículo ensinando ética, e o aluno praticando a antiética, ao usar a tecnologia para plagiar autores e colar nas provas e trabalhos do curso. Em outras palavras: não vamos resolver o grave problema do comportamento antiético de alguns advogados tornando obrigatório o ensino de uma nova disciplina – ética profissional – num ambiente marcado pela cola e plágio.

Temos o mesmo problema nas disciplinas de ética profissional nos cursos de formação dos juízes. Não raramente, essas disciplinas se transformam em discussões filosóficas ou dogmáticas europeizadas. Raramente se estruturam a partir da análise crítica dos problemas éticos disciplinares que existem em seus próprios tribunais.

Soluções existem. Há escolas privadas, no Brasil e no exterior, onde os alunos assinam, além do contrato de prestação de serviços educacionais com a faculdade, um código de ética que se obriga a respeitar. Algumas escolas já têm Conselhos de Ética, nos quais a cola e o plágio são discutidos e julgados por alunos, professores e funcionários: as sanções vão desde a advertência até a expulsão, passando pela perda da bolsa.

Razões pragmáticas favorecem uma postura mais rigorosa. O aluno que cola pode apresentar um currículo igual ou melhor do que aquele que se esforçou sozinho. Isso é concorrência desleal num mundo em que é cada vez mais difícil obter emprego. Em algumas escolas, os alunos estão se conscientizando e contribuindo para controle ético de seus colegas. Sem falar que está em jogo o próprio nome e reputação da escola – o que também começa a ser percebido pelos alunos. De uma maneira ou de outra, o mercado empregador acaba descobrindo quais as escolas que facilitam a aprovação do aluno e quais as que exigem um comportamento mais ético profissionalmente.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Joaquim Falcão: – Diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (RJ) e membro do Conselho Nacional de Justiça  –  Publicado no Jornal Correio Braziliense

A autonomia universitária na Constituição é de início, de meio e de fim.

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* Bruno José Ricci Boaventura

I.  Introdução

As universidades públicas são os centros da produção intelectual no Brasil, diferentemente de outros países, nos quais as empresas já assumiram o importante papel como investidores na pesquisa e conseqüentemente produzem conhecimento de van-guarda.

Conseguimos preservar a autonomia universitária, desde 1988, mesmo após intensos ataques de ondas da política liberal como o princípio da redução máxima da função dos aparelhos ideológicos do Estado[1].

A Constituição Federal absorveu a contra-resposta da academia a um possível novo controle da produção intelectual, após o regime militar, consagrando o ideal que a verdadeira universidade somente é concretizada em um Estado republicano e democrático, como já bem apontado por Marilena Chauí[2].

Vitórias que asseguraram a autonomia e a própria mantença das universidades, pois nesta longa história, a única bandeira onipresente é a convergência da luta pela criação das universidades com a luta da autonomia, pondera Maria de Fátima de Paula[3].

Esta convergência de luta da criação e da autonomia é a representação da própria natureza da universidade, é o núcleo comum a todas instituições universitárias presentes no tempo e nos lugares, pois para conceber autonomia aos indivíduos pelo conhecimento é preciso, necessariamente, a universidade ter autonomia diante da Igreja, do Estado, do Partido ou do Mercado, como referenda Luiz Antonio Cunha[4].

A autonomia universitária ganhou ares de conceito acadêmico unânime, mas vem perecendo na vontade política, no óbice da tradição histórica da centralização da administração brasileira, como bem já apontou Roberta Camineiro Baggio[5].

II. A proteção constitucional da Autonomia na totalidade  elementar dos meios e fins 

A Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu artigo 207º, estatui a autonomia universitária, e assim toda a universidade goza de autonomia didático-cientifíca, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e deve observar o princípio de indissolubilidade entre ensino, pesquisa e extensão[6]. 

Devemos esclarecer a extensão do conceito de cada um dos elementos da autonomia universitária, Simon Schwartzman, bem os elucida: 

autonomia didático-científica: as universidades devem ter plena liberdade de definir currículos, abrir e fechar cursos, tanto de graduação quanto de pós-graduação e de extensão. Elas devem ter, também, plena liberdade de definir suas linhas prioritárias e mecanismos de financiamento da pesquisa, conforme regras internas. (…)

autonomia administrativa: a autonomia administrativa supõe que as universidades poderão se organizar internamente como melhor lhes convier, aprovando seus próprios estatutos, e adotando ou não o sistema departamental, o regime de crédito, a estrutura de câmaras, e assim por diante. (…)

autonomia de gestão financeira e patrimonial: o princípio básico, aqui, deve ser o da dotação orçamentária global, com plena liberdade para remanejamento de recursos entre itens de pessoal, custeio e capital. A autonomia patrimonial significa que as universidades devem poder constituir patrimônio próprio, ter liberdade para obter rendas de vários tipos, e utilizar destes recursos como melhor lhe convenha.”[7] (Grifos nossos).

A previsão constitucional desta autonomia é a auto-limitação da atuação legislativa e normativa do Estado em relação à atuação das universidades em todos estes elementos, como bem pondera Nina Beatriz Stocco Ranieri[8], sejam eles relacionados as atividades fins ou de meios. 

Ana Cândida de Cunha Ferraz esclarece que a preservação da autonomia universitária passa, necessariamente, pela autonomia de meios para que a Universidade possam cumprir sua autonomia de fins[9].

A ex-procuradora geral do Estado de São Paulo leciona que a inserção constitucional da autonomia universitária na obra do constituinte originário traz como conseqüência a sua intangibilidade por normas de hierarquia inferior: leis federais, leis estaduais e municipais, ou mesmo as Constituições dos Estados (ainda que obras de um poder constituinte estadual autônomo por força do princípio federativo que preside a organização do Estado no Brasil).

Esclarece finalmente que: “contudo, o que deve ser registrado e enfatizado é que tais leis não poderão, em nenhum passo, restringir, reduzir, diminuir ou afetar, ainda que de modo indireto, a autonomia universitária, cujos limites, repita-se, estão na Constituição e só dela podem ser extraídos”. 

Assim qualquer lei em vigor ao dispor de forma a incidir sobre a autonomia universitária, conferiria a unicidade da sistematicidade jurídica mero conceito teórico e não prático.

O sistema para ser considerado unitário, a norma fundamental deve ter poder normativo, à todas as outras normas do sistema, ou seja, a norma fundamental deve ter influência direta ou indiretamente em todas as outras normas. O poder constituinte originário deriva da norma fundamental, assim como a Constituição deriva do poder constituinte originário e assim sucessivamente. Esta forma hierárquica do sistema é a sua unidade, teorizada por Kelsen, na construção escalonada do ordenamento jurídico e referendada por Bobbio[10].

Vale lembra lição Claus-Wilhelm Canaris: “No que toca à unidade, verifica-se que este factor modifica o que resulta já da ordenação, por não permitir uma dispersão numa multitude de singularidades desconexas, antes devendo deixa-las reconduzir-se a uns quantos princípios fundamentais.[11] 

O Ministro Eros Roberto Grau, do Supremo Tribunal Federal, no Ag.Reg.No Recurso em Mandado de Segurança n.º 22.047-7 / Distrito Federal, citando Caio Tácito, apud Ministro Soares Muñoz, coloca a liberdade escolha como núcleo da autonomia universitária: 

“A autonomia administrativa, didática e disciplinar das Universidades é reconhecida desde 1931 [decreto n. 19.851/31]. O art. 80 da Lei n. 4.024/61 afirmava que “a autonomia didática, administrativa, financeira e disciplinar” seria “exercida na forma dos seus estatutos”. Posteriormente, o art. 3º da Lei n. 5.540/68 determinou que a autonomia das Universidades seria “exercida na forma da lei e dos seus estatutos”. Após 1988, a autonomia universitária ganha status constitucional. Como ressaltou o Ministro SOARES MUÑOZ no precedente mencionado pelo ora agravante, RE n. 83.962 [DJ 17.04.1979], ainda sob a égide da Lei n. 5.540/68, “[a] autonomia financeira assegurada às universidades visa proporcionar-lhes a autogestão dos recursos postos a sua disposição e à liberdade de estipular, pelos órgãos superiores de sua administração, como acentua o Professor Caio Tácito, […] a partilha desses recursos de modo adequado ao atendimento da programação didática, científica e cultural, em suma, a aprovação de seu próprio orçamento.” (Grifo nosso). 

Em relação ao entendimento hermenêutico praticado pelo Supremo Tribunal Federal vale ressaltar os julgados: ADI 2806-5 – relator: Ministro Ilmão Galvão; ADI 2367 – relator: Ministro Maurício Correa, ambos que elucidam a necessidade de preservação do dispositivo constitucional da autonomia universitária em detrimento das Leis que tentam desvirtua-la.

III. A LDB como norma hierarquicamente superior a  disposições legais estaduais

As disposições do inciso XXIV do artigo 22, e do inciso IX do artigo 24, ambos da Constituição Federal deixam clarividente a competência da União para estabelecimento de normas gerais sobre educação, incluindo, indubitavelmente, a autonomia universitária[12].

O próprio parágrafo primeiro coloca estas normas gerais estabelecidas pela União no da competência concorrente como hierarquicamente superior, tendo então como critério para a sua resolução o próprio critério hierárquico.

A Lei Federal n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1.996, que estabelece a diretrizes e bases da educação nacional, comumente chamada de LDB, que dispõe algumas prerrogativas referentes a autonomia universitária.

 

O artigo 53 da referida Lei em questão insere no âmbito do conceito de autonomia universitária (administrativa) a prerrogativa de ações de planejamento como estabelecimento de programas e projetos, e ainda a disposição de rendimentos e deles dispor na forma de seu estatuto[13].

O parágrafo único deste mencionado dispositivo esclarece que a autonomia didático-científica somente é possível com a livre disposição dos recursos orçamentários disponibilizados[14]. 

Já o artigo 54 volta a reafirmar a autonomia administrativa, prevendo claramente a possibilidade de execução das aquisições. Ainda a estabelece, dentro da autonomia financeira e contábil, a permissão legal de adoção de regime financeiro e contábil que atenda as suas peculiaridades de organização e funcionamento, prevendo inclusive a liberdade de tomada de providências de ordem orçamentária, financeira e patrimonial necessárias ao bom desempenho da Universidade[15].

O critério hierárquico, tem como comando o brocardo lex superiori derogat legi inferiori. O uso deste critério para solução desta antinomia remeterá o aplicador ou intérprete ao uso da norma hierarquicamente superior, quando se tratar de normas de diferentes níveis. Maria Helena Diniz assim exemplifica: “a Constituição prevalece sobre uma lei. Daí falar-se em inconstitucionalidade da lei ou ilegitimidade de atos normativos diversos da lei, por a contrariarem”.[16]

A norma é inferior ou superior devido ao seu poder normativo. E isto é didaticamente retratado por Bobbio:O cabo recebe ordem do sargento, o sargento do tenente, o tenente do capitão até o general, e mais ainda: num exército fala-se de unidade de comando porque a ordem do cabo poder ter origem no general. O exército é um exemplo de estrutura hierárquica. Assim é o ordenamento jurídico”.[17] (Grifos nossos).

IV.  Apontamentos Conclusivos 

A comunidade internacional a todo o momento reafirma o compromisso de defesa da autonomia universitária, como por exemplo: IV Conferência de Associação Internacional de Universidades de 1965; Declaração de Havana de 1996; Declaração Mundial sobre a Educação Superior para o Século XXI de Paris em 1998; Seminário da Associação Colombiana de Universidades (ASCUN) de 2004[18]. 

É a velha lição: não se chega ao fim pretendido, com meios desprendidos da escolha. A liberdade de crítica dos fins didático- científicos é concretizado com a autonomia dos meios para tanto. Aplicando-se as universidades, jamais teremos uma academia libertária, ou seja, capaz de promover a liberdade crítica em seus acadêmicos sem a possibilidade de escolha por estes, e somente estes, do rumo a ser tomado para tanto. 

Como acadêmico fiz, faço e sempre farei esta bandeira minha luta, alertando a todos que manter bases legais de qualquer reforma com a retirada de autonomia universitária a de ser evitada, no mínimo pelo risco político, e no máximo pela aberração jurídica, como, respectivamente, poderiam ensinar José Serra, e Dalmo de Abreu Dallari[19] com a invasão da reitoria da USP. 

Aos Governos devo alertar, em nossas respectivas universidades, somo nós, membros da comunidade acadêmica que optamos por quais meios administrativos chegaremos aos nossos fins didáticos-científicos. 

Não podemos confundir, uma possível democrática mudança autônoma da sistemática administrativa, com uma tecnoburocrata mudança heterônoma sistêmica.  

A autonomia, diferente da heteronomia, é, sobretudo, o livre optar pela sua comunidade do caminho normativo a ser seguido, sem a interferência de órgão externo. A mudança da sistemática para aperfeiçoamento da padronização dos procedimentos cabe ser definida democraticamente, e a tecnoburocracia deverá aprender que sistema dentro de uma Universidade não se impõe se constrói.

 


NOTAS

[1] In: Política educacional, ensino superior público & pesquisa acadêmica: Um jogo de xadrez encassinado. De Almeida, Maria de Lourdes Pinto. Da Silva, Paulo Marcos. Educação Temática Digital, v.8, n.2, p. 143-155, jun. 2007. 

[2] “Vista como uma instituição social, cujas mudanças acompanham as transformações sociais, econômicas e políticas, e como instituição social de cunho republicano e democrático, a relação entre universidade e Estado também não pode ser tomada como relação de exterioridade, pois o caráter republicano e democrático da universidade é determinado pela presença ou ausência da prática republicana e democrática no Estado. Em outras palavras, a universidade como instituição social diferenciada e autônoma só é possível em um Estado republicano e democrático.” In: A universidade pública sob nova perspectiva. Rev. Bras. Educ.  no.24 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-24782003000300002&script=sci_arttext&tlng=pt#end 

[3] “De modo semelhante, desde os seus primórdios, a universidade, enquanto instituição, vem buscando conquistar a sua autonomia frente ao Estado e à Igreja, sendo que a história da universidade confunde-se com a sua luta pela conquista da autonomia acadêmica, didática, administrativa e de gestão.” De Paula, Maria de Fátima.In: A perda da identidade e da autonomia da universidade brasileira no contexto do neoliberalismo. Disponível em: http://www.uff.br/aleph/textos_em_pdf/a_perda_da_identidade_da_universidade.pdf Acessado em:  15 de julho de 2.007. 

[4] “ No entanto, há um núcleo comum à instituição universitária, presente em todos os tempos e em todos os lugares: a luta pela difusão e o desenvolvimento do saber, sem constrangimentos externos, vale dizer, a luta pela autonomia. Constrangimentos houve e há, mais fortes ou mais fracos, de modo que não é exagero dizer que a luta por autonomia –diante da Igreja, do Estado, do Partido ou do Mercado, por vezes uma combinação deles– é um elemento co-essencial à universidade. “ In: Autonomia universitária: teoria e prática. En publicacion: Universidad e investigación científica. Vessuri, Hebe. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Buenos Aires. Noviembre 2006. p.13 

[5] “O principal óbice que se coloca às universidades, no cumprimento de sua missão constitucional, é o enraizamento de uma tradição histórica burocratizada constituída em meio a cenários de centralização e regime autoritário, que não proporcionou o desenvolvimento de uma trajetória acadêmica voltada à liberdade de pensamento ou à realização de demandas da sociedade. In: Notas sobre o alcance normativo da autonomia universitária no brasil. Disponível: http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/autonomiauniversitaria.pdf. Acessado em: 20 de agosto de 2.007. 

[6] “Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.”

[7] In: A Autonomia Universitária e a Constituição de 1988. Disponível em: http://www.schwartzman.org.br/simon/cont88.htm. Acessado em 10 de julho de 2.007.

[8] “No que respeita à autonomia universitária, especificamente, o anteprojeto desconsidera que a garantia constitucional implica, necessariamente, a autolimitação da atuação legislativa e normativa do Estado em relação à atuação das universidades nas áreas didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, protegidas pela norma do citado art. 207, também incidindo em inconstitucionalidade. No direito público, a autolimitação da lei traduz uma abstenção proposital do legislador, para regulamentação total ou parcial da matéria pelo ente autônomo, sendo esta regulamentação reconhecida e adotada no sistema jurídico como direito próprio produzido pelo ente autônomo, tão obrigatório quanto as próprias leis estatais.” In: Aspectos Jurídicos da Autonomia Universitária no Brasil. Disponível em: http://www.iea.usp.br/iea/tematicas/educacao/superior/autonomiafinanciamento/ranieriautonomia.pdf  Acessado em: 15 de agosto de 2.008. 

[9] “Tais poderes deverão ser exercidos sem ingerência de poderes estranhos à universidade ou subordinação hierárquica a outros entes políticos ou administrativos. Consiste, pois, na autonomia de meios para que a universidade possa cumprir sua autonomia de fins.” In: Autonomia universitária na Constituição de 1988. Disponível: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista/tes5.htm. Acessado em: 10 de julho de 2.007.

[10] “Que seja unitário um ordenamento complexo, deve ser explicado. Aceitamos aqui a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen. Essa teoria serve para dar uma explicação da unidade do ordenamento jurídico complexo. Seu núcleo é que as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano. Há normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental. Cada ordenamento tem uma norma fundamental. É essa norma fundamental que dá unidade a todas as outras normas, isto é, faz das normas espalhadas e de várias proveniências um conjunto unitário que pode ser chamado ‘ordenamento’. A norma fundamental é o termo unificador das normas que compõem um ordenamento jurídico. Sem uma norma fundamental, as normas de que falamos até agora constituiriam um amontoado, não um ordenamento. Em outras palavras, por mais numerosas que sejam as fontes do direito num ordenamento complexo, tal ordenamento constitui uma unidade pelo fato de que, direta ou indiretamente, com voltas mais ou menos tortuosas, todas as fontes do direito podem ser remontadas a uma única norma. Devido à presença, num ordenamento jurídico, de normas superiores e inferiores, ele tem uma estrutura hierárquica. As normas de um ordenamento são dispostas em ordem hierárquica”. In: BOBBIO, Norberto. Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução: Maria Celeste C. J. Santos. 10.ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999. p. 49.

[11] In: Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. trad.: Menezes Cordeiro. 3. ed.Fundação Calouste Gulbenkian:Lisboa. p.12 e 13.

[12] “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XXIV – diretrizes e bases da educação nacional; Art. 24: Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: IX – educação, cultura, ensino e desporto; § 1º – No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.”

[13] “Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições: I – criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior previstos nesta Lei, obedecendo às normas gerais da União e, quando for o caso, do respectivo sistema de ensino;  II – fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes; III – estabelecer planos, programas e projetos de pesquisa científica, produção artística e atividades de extensão; IV – fixar o número de vagas de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio; V – elaborar e reformar os seus estatutos e regimentos em consonância com as normas gerais atinentes; VI – conferir graus, diplomas e outros títulos; VII – firmar contratos, acordos e convênios; VIII – aprovar e executar planos, programas e projetos de investimentos referentes a obras, serviços e aquisições em geral, bem como administrar rendimentos conforme dispositivos institucionais; IX – administrar os rendimentos e deles dispor na forma prevista no ato de constituição, nas leis e nos respectivos estatutos;  X – receber subvenções, doações, heranças, legados e cooperação financeira resultante de convênios com entidades públicas e privadas.” (Grifos nosso).

[14] “Parágrafo único. Para garantir a autonomia didático-científica das universidades, caberá aos seus colegiados de ensino e pesquisa decidir, dentro dos recursos orçamentários disponíveis, sobre:      I – criação, expansão, modificação e extinção de cursos; II – ampliação e diminuição de vagas;III – elaboração da programação dos cursos; IV – programação das pesquisas e das atividades de extensão; V – contratação e dispensa de professores; VI – planos de carreira docente.” (Grifo nosso).

[15] “Art. 54. As universidades mantidas pelo Poder Público gozarão, na forma da lei, de estatuto jurídico especial para atender às peculiaridades de sua estrutura, organização e financiamento pelo Poder Público, assim como dos seus planos de carreira e do regime jurídico do seu pessoal.   § 1º No exercício da sua autonomia, além das atribuições asseguradas pelo artigo anterior, as universidades públicas poderão: (…) III – aprovar e executar planos, programas e projetos de investimentos referentes a obras, serviços e aquisições em geral, de acordo com os recursos alocados pelo respectivo Poder mantenedor; IV – elaborar seus orçamentos anuais e plurianuais;     V – adotar regime financeiro e contábil que atenda às suas peculiaridades de organização e funcionamento; VI – realizar operações de crédito ou de financiamento, com aprovação do Poder competente, para aquisição de bens imóveis, instalações e equipamentos;  VII – efetuar transferências, quitações e tomar outras providências de ordem orçamentária, financeira e patrimonial necessárias ao seu bom desempenho.” (Grifos nossos).

[16] DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2001.p. 34. 

[17] BOBBIO, Oc. Cit. .p. 49-50. 

[18] “Em 1965, em la IV Conferencia de la Asociación Internacional de Universidades (AIU), celebrada em Tokio: (…) La Universidad debe tener el derecho, dentro de amplios límites, de distribuir sus recursos financieros, entre sus diversas actividades, es decir, por ejemplo, espacio y equipo, capital e inversiones”(…) (…)Declaración de La Habana de 1996, en el texto seguiente: “El conociomiento ólo puede ser generado, transmitido, criticado y recreado, en beneficio de la sociedad, en instituciones plurales  liberas, que gocen de plena autonomía y libertad académia, pero que posean una profunda conciencia de su responsabilidad y una indeclinable voluntad de servicio en la búsqueda de soluciones a las demandas, necesidades y carencias de la sociedad, a la que deben rendir cuentas como condición necesaria para el pleno ejercicio de la autonomía. La eduación superior podrá cumplir tan importante misón en la medida en que se exija a sí misma la máxima calidad, para lo cual la evalución continua y permanente es un valioso instrumento”.(…) Reafirmar, siguindo lo proclamado por la Declaración Mundial sobre la Educación Superior para el Siglo XXI (París, 1998)(…) Reafirmar el principio de la autonomía responsable con rendición social de cuentas y la garantía de la libertad académica.(…) Considero conveniente reproducir aquí la Conclusiones del Seminario sobre Autonomía Universitaria auspiciado por la Asociación Colombiana de Universidades (ASCUN) en el mes de junio de 2004: Finalmente, la autonomía de carácter administrativo y financiero, que alude de manera fundamental, al libre y adecuado manejo de los recursos físicos, técnicos y financieiros, además de establecer los criterios de selección y permanencia del recurso humano al frente de la institución está contemplada en facultades.” In: Bernheim, CarlosTünnermann. La aotonomía universitaria frente al mundo globalizado. Universidades. Janeiro-junho, n.º 31. União de Universidades da América Latina. México. Pp.17-40. 

[19]Na realidade, a análise jurídica dos referidos decretos leva à conclusão de que existem ali algumas evidentes inconstitucionalidades, havendo mesmo, em alguns pontos, uma tentativa de mascarar a realidade, por meio de uma espécie de ilusionismo jurídico, que, no entanto, não resiste a um exame mais atento, mesmo que baseado apenas no bom senso e na lógica.” In: Autonomia agredida. Disponível em: http://www.midiaindependente.org/es/blue/2007/05/383351.shtml

 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Bruno José Ricci Boaventura: o autor é advogado militante em Cuiabá em direito público, sócio-gerente da Boaventura Advogados Associados S/C; Coordenado Técnico da Comissão Especial de Consolidação da Legislação Estadual da Assembléia Legislativa de Mato Grosso; Assessor Jurídico do Sindicato dos Trabalhadores do Ensino Público de Mato Grosso – SINTEP/MT; Assessor Jurídico da Câmara Municipal de Campo Novo do Parecis, e Associações ligadas a radiodifusão comunitária;  Especialista em Direito do Estado, com ênfase em Constitucional, pela Escola Superior de Direito de Mato Grosso.


 

O futuro da Justiça: a informática

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* Mário Paiva

Sumário: I- Introdução; II- Informatização do Processo Judicial; III- Da Comunicação Eletrônica dos Atos processuais; IV- Processo Eletrônico; V- Disposições gerais; VI- Proteção de dados; VI.1- Danos concretos; VI.2- Responsabilidade Civil do Estado;VII- Inclusão digital; VIII- Informatização da Cultura Jurídica

I- Introdução

A informática é o presente e o futuro da justiça, considerando-se que, sem modernização e adequação tecnológica, o Judiciário não suportará o avanço da demanda social.

Por outro lado, o profissional do Direito que não aderir à realidade digital terá inviabilizado o exercício do seu mister, quer como advogado, quer no desempenho de atividade subsidiada pelo Estado-empregador, recaindo o prejuízo sobre o jurisdicionado, no que se refere à obtenção de uma prestação jurisdicional célere e eficaz.

É de ver-se, porém, que a implementação da tecnologia digital no âmbito do Poder Judiciário vinha sendo cogitada há anos, embora sem solução de continuidade. Daí alguns órgãos judiciários terem inovado seus procedimentos, visando melhorar o atendimento prestado aos jurisdicionados, mediante o desenvolvimento de sistemas próprios, o que se afigurava preocupante ante a falta de regulamentação da matéria. O advento da Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006, dispondo sobre a informatização do processo judicial, pôs fim à controvérsia. Nessa perspectiva, a criação do Direito Informático ou Eletrônico é medida que se impõe, para emprestar segurança às relações digitais.

Com efeito, há aproximadamente cinco anos iniciou-se o debate acerca dos fundamentos desse novo ramo do Direito, ainda não reconhecido como tal, mas imprescindível para a adequação da estrutura doutrinária e legal vigente aos fatos concretos advindos do mundo virtual.

Sobre o tema, o Professor mexicano Júlio Téllez Valdéz escreveu a obra intitulada “Derecho Informático”, com que fomos presenteados por ocasião do III Congresso Andino de Direito Informático, realizado na cidade de Lima (Perú), em setembro de 2003. Dentre as conclusões a que chegaram os juristas presentes, publicadas no site www.alfa-redi.org, vale destacar aquela que vai de encontro com o nosso pensamento, inclusive recomendando a implantação de uma cadeira de Direito da Informática nas universidades, de cunho obrigatório. Ei-la:

“Como ciência do Direito em formação, o direito informático necessita de suporte filosófico-jurídico para a construção doutrinária, uma vez que toda a área jurídica carece de fontes que possam ser utilizadas em litígios emergentes do uso dos meios tecnológicos, facilitando a tarefa do julgador na aplicação da sanção.(…)

É preciso criar espaços de investigação e desenvolvimento de uma sociedade da informação na região andina, para o desenvolvimento de políticas públicas e marcos regulatórios que tenham que ser enquadrados dentro de um modelo de direito informático. É, pois, uma recomendação do presente Congresso que se estabeleça cátedra permanente, dedicada aos temas de políticas públicas da Sociedade de Informação, de modo tal que sirva para o desenvolvimento local e regional de políticas e normas.”

No Brasil, até a edição da Lei nº 11.419/06, que entrará em vigor 90 dias depois da sua publicação, os estudos acerca da implementação do Direito da Informática eram feitos com base, sobretudo, na Lei nº 9.800, de 26.05.99, denominada de “Lei do Fax”.

Com a nova lei, que se constitui um marco na regulamentação dos procedimentos informáticos no âmbito nacional e uma grande aliada no desenvolvimento dos estudos para a criação do Direito Eletrônico, torna-se necessário realizar alguns comentários sobre a evolução do processo de informatização judicial.

II- A informatização do processo judicial

Pode-se dizer que o início do processo de informatização judicial deu-se com a edição da Lei nº 11.280, de 16 de fevereiro de 2006, que incluiu parágrafo único no art. 154 do Código de Processo Civil, com a seguinte redação, verbis:

“Art. 154. ………………………

Parágrafo único. Os tribunais, no âmbito da respectiva jurisdição, poderão disciplinar a prática e a comunicação oficial dos atos processuais por meios eletrônicos, atendidos os requisitos de autenticidade, integridade, validade jurídica e interoperabilidade da Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP- Brasil." (NR)

A partir de então, a prática de atos judiciais por meio eletrônico tornou-se objeto de preocupação do legislador, o que resultou na edição da Lei nº 11.419/06, cujo capítulo primeiro insere em nosso sistema processual as linhas mestras da informatização do processo judicial.

O § 1º do art. 1º da lei em comento deixa claro o alcance de suas disposições, que se aplicam, “indistintamente, aos processos civil, penal e trabalhista, bem como aos juizados especiais, em qualquer grau de jurisdição”. Vê-se, portanto, que a vontade do legislador é a de que o uso de meios eletrônicos abranja todas as instâncias judiciárias e processos de qualquer natureza.

Já o § 2º define meio eletrônico, transmissão eletrônica e os requisitos necessários para a correta identificação do signatário: i) assinatura digital baseada em certificado digital emitido por Autoridade Certificadora credenciada; ii) cadastro de usuário no Poder Judiciário.

Segue a lei pontuando que os atos processuais serão admitidos mediante o uso de assinatura eletrônica, almejando preservar o sigilo, a identificação e a autenticidade das comunicações.

Aqui cabe um parênteses para esclarecer que a assinatura digital é meio de autenticação de informação digital, por vezes, tratada como análoga à assinatura em papel. Ocorre que a expressão assinatura eletrônica refere-se a qualquer mecanismo, não necessariamente criptográfico, usado para identificar o remetente de mensagem eletrônica. É, portanto, a assinatura digital prova inequívoca de que a mensagem é do próprio emissor, valendo destacar que lhe são características:

■ Autenticação – o receptor é capaz de confirmar a assinatura do emissor;

■ Integridade – não é passível de falsificação;

■ Não repúdio – o emissor não pode negar a sua autenticidade. (Fonte: Wikipédia.)

O art. 3º, por sua vez, traz novidade que muito facilitará a vida do advogado, que não mais terá de preocupar-se com o horário de encerramento do protocolo, uma vez que os atos considerar-se-ão realizados no dia e hora do seu envio ao sistema do Poder Judiciário, explicitando o parágrafo único desse dispositivo que serão tempestivas as petições protocoladas até as 24 (vinte e quatro) horas do último dia do prazo processual.

No ponto, cabe a observação de que a Lei nº 11.419/06 promoveu peculiar mudança na legislação processual, já que, na prática, o prazo para a realização do ato expirará somente no minuto e segundo exatos da virada do seu último dia.

III-Da comunicação eletrônica dos atos processuais

O Capítulo II da Lei nº 11.419/06 chancela a utilização dos meios digitais para a comunicação de atos processuais, conferindo celeridade ao processo. Ao facultar a criação do Diário da Justiça eletrônico (art. 4º, caput), institui facilidade ao advogado no controle dos prazos processuais. Também merece destaque as intimações por meio eletrônico, inclusive da Fazenda Pública, àqueles que se cadastrarem previamente no tribunal onde tramitam as ações de seu interesse (art. 5º).

A implantação dessa medida há muito vinha sendo discutida por especialistas do Direito em todo o mundo, por tornar ágil o processo, atualmente combalido pela demora na realização de intimações por oficiais de justiça, que se afogam num mar abissal de mandados, humanamente impossíveis de serem cumpridos.

No tocante às citações, o legislador excetuou aquelas relativas aos direitos processuais criminal e infracional, podendo as demais, inclusive da Fazenda Pública, serem feitas por meio eletrônico, desde que a íntegra dos autos seja acessível ao citando (art. 6º).

Cabe ainda ressaltar a permissibilidade para que as comunicações por cartas precatórias, rogatórias e de ordem sejam feitas, preferentemente, por meio eletrônico. Hoje, uma carta precatória expedida, por exemplo, pelo juízo de Belém ao de São Paulo demora, em média, dois anos para ser cumprida. No caso do procedimento digital autorizado pela lei em comento (art. 7º), este lapso de tempo poderá ser reduzido a poucos dias ou até mesmo horas, tendo em vista a comunicação oficial entre os órgãos do Poder Judiciário e deste com o réu realizarem-se virtualmente.

IV- Do processo eletrônico

O Capítulo III não deixa dúvidas de que a ordem atual é digitalizar os procedimentos, desde o envio de petições, seu armazenamento, até findar-se o processo. Dispõe o § 3º do art. 10 que os órgãos do Poder Judiciário deverão manter equipamentos de digitalização e de acesso à internet à disposição dos jurisdicionados, para tornar possível a efetivação de peças processuais, bem como o acompanhamento digital do andamento do feito.

V- Disposições gerais

Na parte referente às disposições gerais, chama a atenção o parágrafo único do art. 14 diante da previsão de necessária identificação, pelos sistemas a serem desenvolvidos pelo Poder Judiciário, de casos de ocorrência de prevenção, litispendência e coisa julgada.

Aqui cabe ressaltar o impacto da informatização do processo no Direito, uma vez que a coisa julgada, por exemplo, antes objeto de extensa alegação em peça de defesa, será detectada pelo sistema informático, que automaticamente impedirá o prosseguimento da ação, transparecendo este ato inserção da tecnologia no próprio raciocínio do juiz e das partes, o que gera assustadora permissibilidade da intervenção do computador na decisão judicial.

O art. 18, por seu turno, prevê a regulamentação da lei em comento pelos próprios orgãos judiciários, no âmbito de suas competências. Acreditamos que tal medida é salutar, para que o desenvolvimento da informatização do processo não seja engessado pela burocacia que envolve o processo legislativo.

Já a importância do art. 19 ressai na medida em que convalida os atos praticados por meio eletrônico antes da data da publicação da Lei nº 11.419/06, mas apenas aqueles que tenham atingido sua finalidade, sem qualquer prejuízo às partes.

Segue-se o art. 20, que promove alterações no Código de Processo Civil visando adequar suas disposições às modificações advindas da informatização do processo, a saber:

■ O instrumento de procuração poderá ser assinado digitalmente com base em certificado emitido por Autoridade Certificadora credenciada (art. 38, parágrafo único).

Esta disposição ultrapassa os limites do processo, alcançando os atos extrajudiciais, o que denota a preocupação do legislador com a eficácia do processo digital.

■ Faculta que todos os atos e termos do processo sejam produzidos, transmitidos, armazenados e assinados por meio eletrônico (art. 154, § 2º), o que evidencia a vontade do legislador de abolir o uso do papel para a prática de atos judiciais.

■ Possibilita aos juízes chancelarem os seus atos com a assinatura digital (art. 164, parágrafo único).

■ Autoriza a citação por meio eletrônico (art. 221, IV).

■ Torna válidas as reproduções digitalizadas de qualquer documento, público ou particular, quando juntadas aos autos, ou seja, institui o aceite do documento eletrônico como prova judicial (art. 365, VI).

Para melhor compreensão desse dispositivo, é necessário rememorar que, em sentido amplo, documento eletrônico é toda manifestação expressa em linguagem convencional, gráfica, sonora ou de imagem, obtida em qualquer tipo de suporte material, inclusive eletrônico, a que se atribui relevância jurídica.

A propósito do assunto, cabe mencionar a pioneira lei de 12 de julho de 1980 (L. 80/525), que modificou a redação do art. 1.348 do Código Civil francês, para atribuir ao documento eletrônico o mesmo valor probatório conferido ao documento com suporte de papel escrito, desde que atendidos os requisitos de inalterabilidade e durabilidade. (Levia, Juan. Documento Electrónico. Disponível em :http://www.monografias.com/trabajos7/delec/delec.shtml#def.)

Nessa perspectiva, há que suscitar os itens indispensáveis à segurança dos documentos eletrônicos. São eles:

■ Autenticidade. A correspondência entre o autor aparente e o autor real do documento deve ser comprovada por meio da assinatura digital.

■ Integridade. Os documentos eletrônicos não podem ser objeto de alterações que lhes modifiquem o conteúdo.

■ Confidencialidade. O acesso aos documentos eletrônicos tem de ser controlado com o uso de técnicas de criptografia.

No panorama internacional, avulta a iniciativa de organizações como Uncitral, OCDE e CCI visando a criar condições favoráveis ao desenvolvimento, em segurança, do comércio eletrônico (EUA, Alemanha, Itália, Espanha, Argentina, Colômbia, entre outros países, já possuem leis disciplinando a matéria). Os alicerces fundamentais consistem na definição dos requisitos para que os documentos eletrônicos possam ser considerados meio seguro de formalização de contratos e outros atos jurídicos. (Correia Miguel José de Almeida Pupo. Documentos Electrónicos e Assinatura Digital: As Novas Leis Portuguesas. Revista de Derecho Informático de 23 junho de 2000. Disponível em http://www.alfa-redi.com/rdi-articulo.shtml?x=483)

No Brasil, a Lei nº 11.419/06 se configura o passo inicial para o desenvolvimento de mecanismos que assegurem plena validade ao documento digital no âmbito judicial.

Comentados os tópicos principais da lei referida, abordaremos os assuntos que têm se constituído motivo de preocupação entre os estudiosos do assunto.

VI- Proteção de dados

A Lei nº 11.419/06 dispõe sobre a criação do Diário da Justiça eletrônico (art. 4º) e, também, acerca do acesso externo aos documentos juntados em processo eletrônico pelas partes, ressalvadas as situações de sigilo e de segredo de justiça (art. 11, § 6º).

Com efeito, um dos maiores tormentos da atualidade refere-se aos limites que devem ser observados pelo Judiciário para a proteção do direito à intimidade e à privacidade do cidadão, em especial na rede mundial de computadores. Visando discutir a proteção dos dados judiciais, em julho de 2003, o Instituto de Investigación para la Justicia Argentina realizou o seminário “Internet y Sistema Judicial em América Latina y el Caribe” juntamente com a Corte Suprema da Costa Rica e a International Development Research Centre do Canadá, quando foram analisados os benefícios e as dificuldades advindas das home pages do Judiciário na rede.

O evento, considerado um marco latino-americano no estudo da difusão da informação judicial na internet, debateu importantes temas, como a participação da sociedade civil nos programas de transparência, regulamentação da proteção de dados e as sociedades de informação creditícia, acesso à informação judicial, proteção de dados sobre a saúde dos envolvidos em processo judicial, dentre outros, que podem ser acessados no site http://www.iijusticia.edu.ar/Seminario_Taller/programa.htm. Daí resultaram as orientações denominadas de “Regras de Heredia” (http://www.iijusticia.edu.ar/Reglas_de_Heredia.htm), que devem ser observadas pelos dirigentes de tribunais ao disponibilizarem informações institucionais e processuais na rede mundial de computadores.

A explanação sobre a difusão de informações judiciais na internet e seus efeitos na esfera trabalhista (http://www.iijusticia.edu.ar/Seminario_Taller/Lobato.rtf) ficou ao nosso cargo, oportunidade em que alertamos para a busca livre disponibilizada pelos sites dos tribunais brasileiros, dadas as implicações negativas para a imagem e a vida privada daqueles que têm seus dados devassados pelo simples acesso à home page.

No caso do trabalhador, as informações disponibilizadas pelas Cortes Trabalhistas, de forma irrestrita, poderão funcionar como empecilho à obtenção de novo emprego, pois armam maus empregadores de um banco de dados acerca de eventuais reclamações trabalhistas. Nossa recomendação à época, com fundamento em resolução do Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região, que proibiu a realização de consultas por nome, foi que o acesso à home page ficasse restrito aos advogados, que exercem função essencial à administração da justiça (CF, art. 133), e às partes no processo, evitando-se, assim, a ocorrência de práticas abusivas, de difícil comprovação em juízo.

De qualquer modo, discriminações com base em certidões expedidas pelo Serasa ou em virtude de o empregado já ter ajuizado reclamação trabalhista contra seu antigo empregador são práticas abusivas que devem ser combatidas pela sociedade organizada, pois ferem a Constituição Federal. A OAB-PA, por meio da Comissão de Estudos de Direito da Informática, encaminhou proposta aos presidentes dos tribunais no sentido de que o livre acesso a sites jurídicos seja permitido apenas a advogados.

Aos demais, inclusive partes no processo, o acesso somente seria possível mediante a digitação do número do feito. Com isso, almejamos assegurar o direito à liberdade de trabalho (CF, art. 5º, XIII) e, considerando que os direitos fundamentais têm aplicação na relação de trabalho, abre-se um novo campo de estudo, que é “a proteção dos trabalhadores no que diz respeito ao tratamento automatizado de dados pessoais”.

Assim, imprescindível é estabelecer diretrizes fundadas no equilíbrio de direitos, que resguardem tanto o direito à publicidade dos atos processuais quanto a privacidade e a intimidade do trabalhador.

Enfim, é preciso ter em mente que a revolução cibernética atinge em cheio as relações de trabalho. Por essa razão, a solução dos conflitos provenientes dessa transformação impõe a existência de arcabouços legais capazes de criar um equilíbrio social entre o princípio da publicidade, que rege a atividade dos órgãos judiciais, e o direito de acesso do trabalhador ao emprego, afastando-se o risco de discriminações resultantes da difusão de informações pelo Poder Judiciário.

VI.1- Danos concretos

Vimos, portanto, que o acesso indiscriminado a processos judiciais e, conseqüentemente, a dados pessoais do jurisdicionado pode resultar-lhe em sérios prejuízos, especialmente quando o seu estado de saúde gera situações discriminatórias, como no caso dos portadores de AIDS, dentre outras hipóteses de igual relevo, já referidas.

Sendo assim, consideramos que a violação do direito à intimidade e à privacidade daquele que procura a Justiça para solucionar suas inquietações gera o direito a indenização proporcional ao dano causado, de acordo com a teoria do risco administrativo, que responsabiliza civilmente o Estado pelos prejuízos que a conduta dos seus agentes ocasionarem a terceiros.

VI.2-Responsabilidade civil do Estado

Teoria adotada pela maioria dos doutrinadores é a de que a responsabilidade estatal é de natureza objetiva, compreendendo atos omissivos ou comissivos que independem de prova de culpa. Já a Constituição Federal não deixa dúvidas quanto à responsabilidade do Estado, verbis:

“Art. 37. ………………………….

(…)

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

José Cretella(1) aborda o assunto, pontuando que: “a) a responsabilidade do Estado por atos judiciais é espécie do gênero responsabilidade do Estado por atos decorrentes do serviço público; b) as funções do Estado são funções públicas, exercendo-se pelos três Poderes; c) o magistrado é órgão do Estado; ao agir, não age em seu nome, mas em nome do Estado, do qual é representante; d) o serviço público judiciário pode causar danos às partes que vão a juízo pleitear direitos, propondo ou contestando ações (cível); ou na qualidade de réus (crime); e) o julgamento, quer no crime, quer no cível, pode consubstanciar-se erro judiciário, motivado pela falibilidade humana na decisão; f) por meio dos institutos rescisórios e revisionista é possível atacar-se o erro judiciário, de acordo com as formas e modos que a lei prescrever, mas se o equívoco já produziu danos, cabe ao Estado repará-los; g) voluntário ou involuntário, o erro de conseqüências danosas exige reparação, respondendo o Estado civilmente pelos prejuízos causados; se o erro foi motivado por falta pessoal do órgão judicante, ainda assim o Estado responde, exercendo a seguir o direito de regresso sobre o causador do dano, por dolo ou culpa; h) provado o dano e o nexo causal entre este e o órgão judicante, o Estado responde patrimonialmente pelos prejuízos causados, fundamentando-se a responsabilidade do Poder Público, ora na culpa administrativa, o que envolve também a responsabilidade pessoal do juiz, ora no acidente administrativo, o que exclui o julgador, mas empenha o Estado, por falha técnica do aparelhamento judiciário, ora no risco integral, o que empenha também o Estado, de acordo com o princípio solidarista dos ônus e encargos público.”

Basicamente, a responsabilidade civil caracteriza-se pelo nexo causal entre o dano e a conduta do agente. No caso da Justiça do Trabalho, a conduta lesiva é a disponibilidade do nome do reclamante para pesquisa processual eletrônica e o dano é a vedação de acesso ao emprego em decorrência da veiculação de dados pessoais na internet.

Na Justiça Comum, a possibilidade de realizar-se a busca processual pelo nome dos litigantes tem ocasionado sérios prejuízos, como abalo ao crédito até situações vexatórias decorrentes da exposição de aspectos inerentes à vida íntima das partes no processo, quando do julgamento de mérito.

Por essa razão, cabível é a ação indenizatória por danos morais e materiais contra o Estado no caso de divulgação indiscriminada de informações judiciais pela internet, que venham a lesar direitos constitucionalmente assegurados ao cidadão, como o direito à intimidade e à privacidade e o livre acesso ao emprego.

De qualquer modo, é preciso combater os males advindos do uso abusivo da rede mundial de computadores. As organizações Privacy International e GreenNet Educacional Trust produziram um relatório intitulado Silenced – international report on censorship and control of the internet, que dá perfeita noção de como o mundo vem lidando com essas questões, uma vez que a pesquisa contou com a participação de 50 países dos cinco continentes (http://www.privacyinternational.org/survey/censorship/).

A elaboração do citado relatório visou a criação de um banco de dados que permita a todas as nações se aprofundarem na situação mundial da censura na internet e utilizá-los no desenvolvimento dos respectivos sistemas informáticos.

Esperamos que essa idéia sirva de exemplo para fomentar a realização de pesquisas no País, com vistas à adoção de providências para obter-se mais segurança no uso da internet, em especial no que diz respeito à proteção de dados judiciais, e também para proporcionar uma avaliação do grau de eficiência do processo eletrônico.

VII- Inclusão digital

Outra questão de extrema importância é a inclusão digital de toda a classe jurídica, porquanto a eficácia do procedimento dependerá, também, do número de profissionais aptos a utilizar as novas tecnologias.

O governo, preocupado com vários temas ligados à tecnologia da informação, realizou, em outubro de 2003, o I Fórum Nacional de Certificação, no qual foram discutidos, dentre outros assuntos, o uso da certificação digital no Judiciário; privacidade e responsabilidade na ICP; validade jurídica dos documentos digitais; viabilidade econômica da certificação digital; padrões de segurança mínimos na ICP; auditabilidade dos softwares na ICP; crimes, provas e contraprovas na ICP e programas de educação para técnicos e usuários na ICP.

Na ocasião, um dos principais pontos enfocados pelos debatedores foi a questão do apartheid digital, que é flagrante no País, onde a maioria da população não tem acesso à rede mundial de computadores. Por isso, há que se promover a inclusão digital do maior número possível de brasileiros, sem olvidar da discussão acerca dos caminhos que se deve trilhar em defesa do software livre, essencial para o encurtamento desse abismo social.

Também relevante foi a discussão acerca da certificação, cuja implementação trará maior presteza às atividades desenvolvidas por órgãos do governo e do Judiciario, garantindo-se aos usuários segurança nas informações, com diminuição de custo e tempo.

Oportunamente, o debate girou em torno do direito à privacidade e à intimidade, o que, no entanto, não é respeitado, gerando dificuldades pela ausência de equilíbrio entre a evolução dos sistemas de informação e o resguardo dos direitos assegurados pela Constituição.

Considerando-se a relevância desses temas para o desenvolvimento do País nos âmbitos interno e internacional, é preciso ampliar a discussão acerca dos mecanismos que tornem efetiva a implementação dos sistemas informáticos no Judiciário.

VIII- Informatização da cultura jurídica

O avanço tecnológico promoveu verdadeira informatização da cultura jurídica. Em conseqüência desse fato, afloram nos tribunais casos envolvendo crimes virtuais, contratos eletrônicos, etc., temas esses ainda não regulamentados pelo legislador. Por conseguinte, deixa-se ao alvedrio do julgador a sua interpretação, que se vale de conhecimentos técnicos próprios e do direito comparado para decidir.

Por outro lado, constata-se que universidades brasileiras oferecem cursos de informática jurídica e de direito eletrônico para orientar os profissionais do Direito a lidar com as questões advindas do mundo virtual.

Mas, apesar da importância da realidade virtual para se alcançar a celeridade processual, criam-se óbices à efetividade dessa revolução. Exemplo disso pode ser verificado nos sites de alguns tribunais, que não atualizam a tramitação do processo, tornando-se ineficaz o serviço de consulta eletrônica.

Daí entendermos primordial rever conceitos antigos, dando lugar às novas teconologias, e avançar no conhecimento do Direito Eletrônico e da informática jurídica para que a virtualização do processo se torne realidade, assim como as aulas virtuais em faculdades de Direito, de modo que cidadãos residentes nas mais distantes localidades do País tenham acesso à educação.

É preciso, portanto, que os profissionais da área jurídica tomem consciência da necessidade de priorizar a inserção do aparato tecnológico em suas atividades, já que o elemento humano se constitui o maior empecilho à implementação das mudanças no campo da informática. A renovação da postura dos lidadores do Direito em relação aos sistemas informáticos é fundamental para resolver, de forma satisfatória e definitiva, o problema da morosidade da Justiça.

Referências

BRASIL. Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 12 fev. 2007.

PERÚ. Conclusões do III Congresso Andino de Direito Informático Disponível em: http://www.alfa-redi.org. Acesso em: 20 de ago. 2005.

BRASIL. Lei nº 9.800, de 26 de maio de 1999. Permite às partes a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 13 jan. 2007.

BRASIL. Lei nº 11.280, de 16 de fevereiro de 2006. Altera os arts. 112, 114, 154, 219, 253, 305, 322, 338, 489 e 555 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, relativos à incompetência relativa, meios eletrônicos, prescrição, distribuição por dependência, exceção de incompetência, revelia, carta precatória e rogatória, ação rescisória e vista dos autos; e revoga o art. 194 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 20 jan. 2007.

PORTUGAL. Wikipédia- Enciclopédia Livre. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1gina_principal. Acesso em: 13 mar. 2007.

Levia, Juan. Documento Electrónico. Disponível em :http://www.monografias.com/trabajos7/delec/delec.shtml#def.). Acesso em: 13 mar. 2007.

Correia Miguel José de Almeida Pupo. Documentos Electrónicos e Assinatura Digital: As Novas Leis Portuguesas. Revista de Derecho Informático de 23 junho de 2000. Disponível em http://www.alfa-redi.com/rdi-articulo.shtml?x=483

COSTA RICA. Seminário Internet y Justicia. Disponível em: http://www.iijusticia.edu.ar/Seminario_Taller/programa.htm. Acesso: 25 jan 2005.

ARGENTINA. Regras de Heredia. Disponível em (http://www.iijusticia.edu.ar/Reglas_de_Heredia.htm). Acesso: 25 jan. 2005.

PAIVA, Mário Antônio Lobato de Paiva. A difusão de informações judiciais na internet e seus efeitos na esfera trabalhista. Disponível em: (http://www.iijusticia.edu.ar/Seminario_Taller/Lobato.rtf). Acesso: 25 jan. 2005.

JÚNIOR, José Cretella. Responsabilidade do Estado por Atos Judiciais, RF, 230:46.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Silenced – international report on censorship and control of the internet, Disponnível em: http://www.privacyinternational.org/survey/censorship/, 10 set. 2003

________________________

Nota

(1) JÚNIOR, José Cretella. Responsabilidade do Estado por Atos Judiciais, RF, 230:46. 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Mário Paiva: Advogado em Belém; Conselheiro da OAB/PA; sócio do escritório Paiva & Borges Advogados Associados; Assessor da Organização Mundial de Direito e Informática (OMDI), sócio-fundador do Instituto Brasileiro da Política e do Direito da Informática (IBDI); membro da Associação de Direito e Informática do Chile; Presidente da Comissão de Estudos de Informática Jurídica da OAB-PA e conferencistAa

Resumo: O presente artigo aborda a questão do impacto da informática na prestação judicial concluindo que a revolução tecnológica é fundamental para o desenvolvimento da justiça. Referida exposição é desenvolvida em torno da lei 11.419/06 que implementou legalmente no país o processo judicial eletrônico abrindo caminho para a mais completa transformação já ocorrida no processo judicial brasileiro. Apresentaremos ainda as principais inovações da lei bem como os cuidados que devem ser observados pelos profissionais a medida em que a mesma for sendo aplicada.

Abstract: The present article approaches the subject of the impact of the computer science in the judicial installment concluding that the technological revolution is fundamental for the development of the justice. Referred exhibition is developed around the law 11.419/06 that implemented legally at the country the electronic lawsuit making way for the more it completes transformation happened already in the Brazilian lawsuit. We will still present the main innovations of the law as well as the cares that should be observed by the professionals the measure in that the same goes being applied.

Palavra-Chave: informática; justiça; lei 11.419/06; processo judicial eletrônico; dados judiciais; privacidade; intimidade.

Key word: computer science; justice; law 11.419/06; electronic lawsuit; judicial data; privacy; intimacy.

 


Cooperativas de Prestação de Serviços. Aspectos tributários relevantes

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* Iran José de Chaves

A Receita Federal vem, sistematicamente, autuando as cooperativas médicas sob o argumento de estarem elas praticando atos definidos, equivocadamente, como não cooperativos, descaracterizando-as desta condição para fazer valer a arbitrariedade na exação fiscal. O procedimento vergastado não é tão simples como pode parecer ao fisco, tal qual será explicitado ao longo deste trabalho, cuja pretensão e provocar uma reflexão jurídica e fustigar um profícuo debate sobre o assunto.

Prima facie, é preciso compreender que não se fortalece o Estado enfraquecendo o direito, de modo que a Constituição Federal há de ser cumprida (arts. 5º, XVIII; 146, III, “c”; e 174, § 2º) tendo-se em vista o Estado Democrático de Direito e todo o ordenamento jurídico pátrio concernente à matéria articulada neste material.

Como disse Geraldo Ataliba: “Pior do que violar a Constituição, é ignorá-la”.

Dessa maneira, falece razão à autoridade fiscal ao tencionar sejam-lhe pagos tributos pelas cooperativas médicas, referentes a atos tidos por não cooperativos – como se as mesmas fossem sociedades mercantis na feição peculiar desses atos – não levando em conta todas as suas particularidades as quais, por sua vez, fazem-nas incorrer em privilégios e prerrogativas, por força de norma constitucional.

Destaca-se, portanto, que, nesse improfícuo terreno de alegações fiscais infundadas – desmerecedoras de qualquer relevância jurídica – o que se observa é a ignorância expressa da genuína e autêntica natureza jurídica dessas entidades, cuja modificação da definição jurídica protegida pela Carta Política é incontestável.

A doutrina especializada não discrepa da lei e da jurisprudência sendo unânime ao afirmar – corroborada pelas previsões constitucionais e infraconstitucionais1 – a necessidade de se impor à Receita Federal a observância do tratamento diferenciado que é dispensado às sociedades cooperativas em face da autêntica natureza não mercantil de suas operações com seus associados e afins, traduzidos estes nos serviços estranhos à relação cooperativista indispensáveis ao exercício da atividade médica (hospitais, laboratórios, clínicas, etc.), para alcance da finalidade social cooperativa de prestação de serviços aos médicos cooperados2.

Tendo em vista que as previsões constitucionais devem ser particularizadas pela legislação ordinária, nela é que se encontra a definição de Cooperativas.

Desse modo, a lei de regência (Lei n. 5764/71) regra que:

Art. 3º – Celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro”. (gn)

Art. 4º – As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características”. (gn)

Várias são as peculiaridades levantadas pelo dispositivo retro mencionado, contudo, para este estudo, o enfoque persistirá no aspecto do inciso VII, referente ao retorno das sobras:

VII – retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembléia Geral”. (gn)

Insta observar – e nesse particular é que reside grande parte da discussão sobre o enfoque tributário incidente nas cooperativas – que esse aspecto das sobras é constantemente confundido com lucro – objeto do equívoco perpetrado pela Receita Federal – o que não autoriza a assemelheação de ambos os institutos.

Em que pese as expressões serem parecidas e induzirem mesmo à aplicação paradigma, o que ocorre com as cooperativas é que, visando a continuidade de sua existência, as mesmas fazem inserir, no custo de seus serviços, uma margem de segurança, a qual, pode ser, ao final de seu período de apuração, um resultado positivo ou negativo. O positivo refere-se à sobra. O negativo, ao prejuízo.

Entretanto, é preciso ressaltar que a sobra, ao anverso do que ocorre com o lucro nas sociedades mercantis criadas justamente visando este fim, sempre na busca do acréscimo patrimonial dos proprietários, não é o objetivo da cooperativa, mas uma conseqüência necessária do intrincado ato de levantar um valor no qual se resgate os custos operacionais da entidade, como: luz, água, seguros, acidentes, etc, e cuja inserção em cada produto (cooperativas de consumos) ou serviço (cooperativas de prestação de serviços, como soe ser o caso das cooperativas médicas objeto deste estudo) é difícil.

Portanto, as sobras não dizem respeito ao lucro, tendo-se em vista que as mesmas são direcionadas aos cooperados, na medida de seus trabalhos. Permite a legislação própria, que as cooperativas façam uma previsão de suas despesas de operacionalização, ajustando sua contabilidade e retornando aos cooperados a diferença na mesma proporção de seus negócios com a entidade.

Desse modo, as cooperativas atuam sem objetivo de lucro, de modo que o patrimônio adquirido é dos cooperados (nesse caso, os médicos cooperados), e os prejuízos ou sobras são acobertados e distribuídos pelos e entre os mesmos3.

Pois bem.

É de sabença que a Constituição Federal prevê, em seu art. 153, III, que a União institua imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Por sua vez, o Código Tributário Nacional, como lei complementar – para os termos do art. 146, III, “a”, da CF – estabelece que:

Art. 43 – O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;

II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

Art. 44 – A base de cálculo do imposto é o montante, real, arbitrado ou presumido, da renda ou dos proventos tributáveis”.

Ora, renda é produto do capital, do trabalho, ou da combinação de ambos, de maneira que, sendo esse resultado (produto) positivo, tem-se o lucro.

Assim, tendo-se em vista que as entidades cooperativas são, pela previsão da lei de regência, sociedades sem fins lucrativos, e considerando que a base de cálculo do imposto de renda leva em conta a obtenção de lucro (e as cooperativas não obtêm lucro), logo elas não estão sujeitas ao recolhimento desse imposto incidente sobre a renda, bem como de seus reflexos, traduzidos estes nas tributações pertinentes à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, COFINS e PIS4.

Questão relevante reside em saber, independentemente de se considerar como faturamento ou receita bruta a base de cálculo dessas contribuições, há destacar que as cooperativas, em virtude das características que lhe são pertinentes, não possuem receita bruta, e tampouco faturamento, no sentido técnico que a palavra apresenta e no sentido técnico utilizado pelo constituinte para permitir a incidência de tributos, tais como os ora mencionados.

Sabe-se assim, e quanto a isto não se tem dúvidas, que as sociedades cooperativas não têm objetivo de lucro, uma vez que são criadas única e exclusivamente para prestarem serviços aos seus associados.

Considerando que as cooperativas não visam lucro – como já analisado, e partindo-se do pressuposto que praticam exclusivamente atos cooperados, há que se reconhecer que o objetivo delas não é mercantil, mas sim, social, a não autorizar a tributação dessas contribuições, especialmente a CSLL.

Por outro vértice, a justificar a não incidência tributária na forma da COFINS, tem-se o parágrafo único do art. 79 da Lei n. 5764/71 dispondo que o ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.

De igual sorte, qualquer que seja a perspectiva de análise – sob a ótica da Lei n. 9.718/98 ou da Lei n. 5.764/71, a conclusão será a mesma: as sociedades cooperativas, relativamente aos atos cooperativos, não estão sujeitas à incidência do PIS.

A sociedade cooperativa, quando pratica atos que lhe são próprios não aufere lucro. As despesas são rateadas entre os associados, assim como o resultado positivo do exercício é partilhado, proporcionalmente, entre aqueles que fazem parte da cooperativa. O ato cooperativo não gera faturamento ou receita para a sociedade. O resultado positivo decorrente desses atos pertence, proporcionalmente, a cada um dos cooperados. Inexiste, portanto, faturamento ou receita decorrente de atos cooperativos que possa ser titularizado pela sociedade. Dessarte, não há base imponível para o PIS. Cuida-se de uma NÃO-INCIDÊNCIA PURA E SIMPLES e não de uma norma de isenção.

Ora, considerando que não há negócio mercantil, como podem os resultados auferidos com a prática de atos cooperados serem considerados como base de cálculo da CSLL, do PIS e da COFINS? A resposta segue na direção única da inexistência de base imponível dessas exações, justamente porque o direito tributário e bem assim o direito comercial privado impõem, para que se tenha receita bruta, a existência inafastável de atos de comércio, fato inocorrente na espécie.

Não obstante os aspectos supra, tem-se que a celeuma posta a lume refere-se ao fato de que o fisco tem insistentemente se conduzido no sentido da arbitrária descaracterização dessas entidades, para, amparando-se em atos tidos por não cooperativos, fazer incidir sobre elas a indevida tributação de IRPF, CSLL, COFINS e PIS. Nada mais absurdo.

De acordo com a previsão do art. 79, da Lei n. 5764/71, atos cooperativos seriam aqueles que se estabelecem entre cooperados e cooperativa, cooperativa e cooperados, e aquelas entre si, sempre visando aos objetivos sociais da entidade, estampados pela prestação de serviços aos cooperados (no caso das cooperativas de prestação de serviços, como é o caso das médicas), na forma de captação de clientes para os mesmos, de maneira que, não se dessome ser esta a finalidade dos atos cooperativos balizadora da hipótese da não incidência tributária5.

Desse modo, tem-se que, se a cooperativa pratica atos, sem visar ao lucro e na busca de seu objetivo social, independentemente de estar-se diante de uma relação efetivada entre cooperativa e cooperados ou entre estas e terceiros, a toda evidência estar-se-á diante de um ato tipicamente cooperativo abrigado de qualquer pretensão fiscal, especialmente no que diz respeito ao Imposto de Renda e seus reflexos6.

Não se olvide ser este justamente o procedimento que se dá nas transações entre as cooperativas de prestação de serviços médicos e terceiros “estranhos” aos médicos cooperativados7.

Na cooperativa médica o cooperado é o profissional de medicina, ao qual em tese, é prestado o serviço – finalidade – que, no campo da realidade, se faz ao paciente – objeto social, de modo que serviços de laboratórios, hospitais, e clínicas, ínsitos que estão no ato cooperativo, não podem dele ser apartados para incidência tributária.

Nesse aspecto, portanto, é evidente a proteção da lei contra a exação fiscal sobre os atos acima tipificados.

Contudo, a questão não tem sido bem resolvida pelo fisco que persiste na autuação dessas entidades sob o fundamento de que, resultante dessas transações, ter-se-ia um ato, na verdade, não cooperativo, por consubstanciar-se em atividade “estranha” à finalidade da cooperativa. Um arrematado despropósito.

Ora, em uma cooperativa de prestação de serviços – que angaria clientes e disponibiliza atividades para os cooperados, sendo este, como dito, seu fim socialtodos os atos praticados por ela para a conquista de uma clientela para os associados são atos cooperativos8, já que, em verdade, constituem a própria essência da atividade das cooperativas assim organizadas a oferta de clientes, sem a pretensão de lucro como ocorrente nas sociedades mercantis.

Assim, é preciso enfocar para o fato de que, no caso dessas cooperativas de prestação de serviços – como soe ser o caso das médicas – a captação de clientes para os médicos cooperados (finalidade cooperativista) já cria o próprio ato cooperativo, incluídos aí aqueles resultantes de suas relações com terceiros – por exemplo, o ato de uma cooperativa médica encaminhar o cliente para um hospital onde um médico cooperado atenda (objeto cooperativista = prestação de serviços médicos, hospitalares, clínicos, etc., aos usuários particulares ou empresas) – estabelecidas justamente para o cumprimento de sua finalidade precípua, qual seja, a prestação de serviços aos profissionais associados.

É de sabença que o médico necessita de um aparato traduzido na utilização de serviços, recursos laboratoriais, clínicos, hospitalares, entre outros, indispensáveis, por sua vez, na modalidade de serviços acessórios, complementares ou mesmo auxiliares, para o pleno desenvolvimento de seu ofício.

Referidos recursos são contratados pelas cooperativas médicas para o alcance do objeto social próprio dessas entidades – prestação de serviços médicos a usuários particulares e empresariais – em cumprimento à sua finalidade essencial, qual seja, a prestação de serviços aos próprios médicos cooperativados.

Desta forma, é evidente que a relação com esses terceiros é inerente ao ato cooperativo, entendido este como resultado da relação contratual instituída entre a cooperativa médica e os serviços auxiliares da prestação da atividade médica, integrante do conceito disposto no art. 79 da lei regente e que não gera, de per se, a hipótese de incidência dos tributos em comento.

É em razão dessa perticularidade – ao contrário do que tem aduzido o fisco brasileiro – que, pela própria lei de regência, o ato cooperativo médico (principal) – traduzido no atendimento aos pacientes – pressupõe relação com terceiros – consubstanciados estes em atos cooperativos instrumentais ao fim colimado pelo ato principal – de modo que sua característica acessória não o descaracteriza como tal.

É inquestionável, portanto, o fato de que estes atos (instrumentais/meios/acessórios), resultantes das relações entre as cooperativas de prestação de serviços médicos e os serviços credenciados – definidos pela Receita Federal como não cooperativos (o fazendo amparada unicamente no aspecto de que os atos cooperativos seriam tão somente aqueles situados no campo das transações ocorridas na forma exposta do art. 79, da lei de regência) – não se distanciam do fim proposto por essas entidades, de modo que incorrem por isso mesmo no conceito e nas prerrogativas dos atos cooperativos (ditos principais).

A verdade, portanto, é uma só: atos cooperativos não são somente os que se dão entre os cooperados e as cooperativas; entre as cooperativas e os cooperados e entre aquelas entre si, de modo que, dizer o contrário, seria o mesmo que estabelecer que as cooperativas médicas só realizam atendimentos a outros médicos cooperados. Nada mais ilógico, descabido, longe de qualquer senso comum.

Insista-se, portanto, que não descaracteriza a definição de ato cooperativo, nem impede a sua proteção contra a exação fiscal, sob pena da ocorrência do aspecto da bitributação, a relação que se estabelece entre a cooperativa e os hospitais, clínicas, laboratórios que a mesma contrata, indispensáveis aos cooperados para execução de seu ofício, os quais, como pessoas físicas (e o hospitais, a exemplo, como pessoas jurídicas), já sofrem a tributação de uma prestação de serviço remunerada9.

De igual sorte, não se referem ditas relações a atos não cooperativos – como quer, erroneamente, fazer crer a Receita Federal – já que, muito embora a relação se estabeleça entre a cooperativa médica e o terceiro credenciado estranho à relação cooperativista (hospitais, laboratórios, clínicas, etc.), é sabido que a mesma atua em nome dos cooperados (como soe ser, por exemplo, o caso do pagamento dos custos de sua estrutura administrativa, com recursos dos cooperados e em nome destes, e não dela como pessoa jurídica), como se a relação se desse entre esses e aqueles, de modo que a atuação do fisco hodiernamente só levaria à ocorrência da bitributação.

Assim, a Receita Federal ao pretender tributar as cooperativas médicas nos absurdos moldes como tem feito, faz com que, neste sistema, a incidência se dê tanto na pessoa jurídica quanto na pessoa física, ao contrário – pásmen! – do próprio sistema comercial e lucrativo!!!

Ocorre que, muito embora pareça evidente a situação mencionada, é pouco crível que o fisco tencione sua observância, em razão dos mesmos motivos que ensejaram este estudo e pela vontade incomensurável que possui em onerar a sociedade com a arrecadação tributária cada vez mais avassaladora, fazendo tabula rasa dos preceitos constitucionais expressos na vigente carta Política.

Por outro lado, quanto à oferta de planos de saúde, incorrendo a cooperativa médica na busca da sua finalidade principal – prestação de serviços aos médicos cooperados através da captação de clientes – sem objetivar lucros, igualmente estará executando ato tipicamente cooperativo e repelente da exação fiscal.

Ora, é sabido que para a operacionalização de seus trabalhos, as cooperativas médicas operam, no mais das vezes, planos de saúde visando, prefacialmente, a oferta de trabalho aos médicos associados, já que o atendimento aos clientes desses planos é feito por eles próprios.

Não é por outra razão que, nas cooperativas médicas, os planos de saúde impõem a utilização, pelo cliente, exclusivamente de médicos cooperativados, sendo, portanto, tipicamente um ato cooperativo em prol dos associados.

À nitidez, portanto, como já ventilado, sendo a utilização de serviços hospitalares decorrência natural dos serviços médicos – quando não-condição essencial de sua prestação – lembrando-se que são os cooperados que escolhem os hospitais onde atenderão seus pacientes, ostentam os planos de saúde, justamente por esse aspecto, perfil fundamentalmente diverso de atividades de caráter lucrativo, prestadas por outras organizações que as exploram comercialmente.

Ao contrário do que tem entendido a Receita Federal, os planos de saúde são exclusivamente voltados para os cooperados que são os beneficiários do ato cooperativo consistente em obter clientes, sendo a utilização da rede hospitalar, elemento muitas vezes indispensável ao exercício da atividade pelos médicos cooperados, com cobertura obrigatória por parte da cooperativa.

É um ato, portanto, instrumental e decorrencial e, sempre que necessária, a prática do ato médico tem característica de ato cooperativo, em face de sua oferta ser inerente à captação de clientela para os cooperados10.

O plano de saúde é, assim, uma forma acrescida para conseguir clientes para os cooperados, em típica ação pertinente às cooperativas de prestação de serviços médicos, não mais que isso.

Ao arremate, cumpre ressaltar um aspecto processual relevante, consubstanciado na forma como a Receita Federal tem desconsiderado, na própria Autuação Fiscal, o aspecto cooperativista dos atos emergentes das relações firmadas pelas cooperativas médicas, para impor seu entendimento “pessoal” e aplicar a exação fiscal.

Não é dado ao fisco, visando, única e exclusivamente, à imposição fiscal, proceder à descaracterização da natureza jurídica das entidades cooperativas utilizando-se do próprio documento de autuação – até porque seu objeto é legalmente definido pelo art. 142, do CTN – sem, para tanto, instaurar o devido processo legal administrativo.

É sabido, por força constitucional (art. 5º, LV), que, mesmo administrativamente, faz-se necessário oportunizar ao interessado a pratica do seu direito de defesa. O contraditório às cooperativas se nos afigura de rigor, justamente para oportunizar lhe o direito de opor resistência a exação fiscal e evitar a descaracterização de atos por ela praticados, que nada tem “estranhos à sua finalidade”.

Extrai-se, assim, da Carta Política, a necessidade veemente de previa instauração de processo administrativo que respeite e incorra nos princípios norteadores do devido processo legal por Ela elencados (ampla defesa e contraditório pleno), ao tencionar-se desconstituir a entidade como cooperativa, para fins de tributação.

Portanto, deve-se entender que, não obstante seja possível a desconsideração da entidade como cooperativa,essa conduta não terá eficácia sem que ao menos exista um processo administrativo prévio, cognitivo, no qual será oportunizada a ampla defesa do ente cooperado.

Em nenhuma hipótese se justificaria um simples despacho da autoridade administrativa para se desconsiderar a pessoa jurídica, como se esta medida fosse comum ou então sob a desculpa de preservar a ordem e interesses públicos.

Não se pode ouvidar que as cooperativas, notadamente as prestadoras de serviços médicos, estabelecem variadas relações jurídicas ao longo de sua existência, de modo que, nada mais justo e legal que lhe seja oportunizada a ampla defesa e o contraditório, assegurando lhe o devido processo legal e administrativo, cuja procedimento encontra ressonância direta e frontal em preceito constituição, que afasta qualquer ato tendente a desviar da apreciação do Poder Judiciário a lesão ou ameaça a direito.

Um simples despacho da autoridade administrativa, ao analisar e autuar a pessoa jurídica, poderá corresponder a uma conclusão desprovida de certeza, comprometendo o próprio livre convencimento.

Não se concebe, assim, à luz de tudo o que foi exposto, que, decida-se primeiro destruir a entidade – compelindo-a ao recolhimento de tributo sabidamente indevido – para depois ver se era necessário fazê-lo – o que quase nunca o é. Verdadeiro contra-senso, como primeiro demolir uma casa, para depois verificar se suas estruturas eram fortes, se o encanamento estava em boas condições…11

Esta análise, portanto, teve o fito de suscitar questionamento processual – ao contrário do aspecto material amplamente articulado neste estudo – referente ao procedimento que o fisco tem, diga-se costumeira e absurdamente, aplicado no sentido da desconsideração das entidades cooperativistas, utilizando-se, para tanto, da pura e simples Autuação Fiscal.

Revelado está, desse modo, não ser permitido ao fisco desconsiderar arbitrariamente atos constitutivos de uma pessoa jurídica como imprestáveis, nem lhe atribuir status diverso do emergente de seus atos estatutários, para fins simplesmente de imposição fiscal, sem que para isso observe, acate e promova o devido processo administrativo, de modo que, pressupor ou decretar, ao seu alvitre, a perda da condição de cooperativa só traduz a invalidade na qual incorrerá o procedimento inadequadamente utilizado para o fim visado.

Concluí-se, assim, não haver nada mais desregrado do que referida conduta, tendo em vista toda a manifestação constitucional (art. 5º, LV) no sentido da necessidade de instauração de um devido processo administrativo que promova, com todas as suas diretrizes, a oportunidade de defesa do ente cooperativista, notadamente quanto à determinação legal do conteúdo que deve conter uma autuação, por força do estabelecido no art. 142, do CTN.

Conclusão:

O presente trabalho tratou da questão sob a ótica constitucional e, também, sob a perspectiva da legislação infraconstitucional que rege o cooperativismo.

Por todo o exposto, não se concebe que, revelando-se as cooperativas médicas como entidades sem fins lucrativos e por prestarem serviços exclusivamente na captação de clientes e no suporte administrativo aos médicos-cooperados, sejam compelidas ao recolhimento de Imposto de Renda e seus reflexos, por meio da lavratura desmedida de autos de infração sem a mínima consistência jurídica, amparados em pareceres ilógicos sobre a atuação dos atos por ela desenvolvidos, ao pálio de que se trata de atos “estranhos à sua finalidade”.

Quando o Fisco desconsidera as particularidades essenciais das cooperativas médicas, traduzida na prerrogativa que a legislação lhes confere de ter tratamento diferenciado face às outras espécies societárias, acaba por colocar por terra a própria razão de sua existência, eis que tais associações terão como única conseqüência a duplicação das incidências tributárias (bitributação) – paga-se tributo na cooperativa e também na pessoa física do cooperado, tudo em face de uma mesma realidade, qual seja, a prática de atos cooperativos.

Atuando assim estará a União propiciando o falecimento de um instituto jurídico protegido pela Constituição Federal por impô-lo à incidência de imposto periféricopásmen!!! – à sua própria essência, e, no mais das vezes, tanto maior do que a das empresas que perseguem lucro. Nada mais irreal ao verdadeiro sentido de existir das cooperativas, aqui entendidas, para efeitos desse articulado, as prestadoras de serviços médicos, cujo ajuste com a justiça e avanço sociais é inquestionável, justamente em virtude do descompromisso com a obtenção de lucros, com a exploração comercial, empresarial.

Revela-se, portanto, descabida a atuação do fisco ao aplicar às escancaras exações às cooperativas médicas sob o argumento de que as mesmas estariam praticando verdadeiros atos não cooperativos, fazendo incidir– conforme toda a exposição ventilada – sobre estas atividades o Imposto de Renda e seus reflexos.

Não é dado ao poder tributante, por tudo e com tudo, sobrepor-se à Constituição Federal, nem a todo o ordenamento jurídico pátrio concernente à matéria em foco (Lei n. 5764/71), enquadrando, equivocadamente, a atuação das cooperativas médicas com serviços credenciados nas referidas justificativas fiscais para, a partir daí, obter o objetivo ilegal aqui combatido.

Não se concebe portanto, que o fisco altere a realidade dos fatos e o direito aplicado ao caso vertente, justamente para prosseguir nas atuações fiscais sem substrato jurídico, procedimento que vem causando intranqüilidade e visível desassossego ao seguimento cooperativista, notadamente quando a doutrina e a jurisprudência já sedimentaram entendimento de que as atividades alhures mencionadas nada tem a ver com ato de comércio e portanto estão a salvo da hipótese de incidência do imposto de renda das contribuições sociais em comento, nos exatos termos da lei de regência das cooperativas (Lei n. 5764/71).

NOTAS DE RODAPÉ CONVERTIDAS

1 Artigos 5º, XVIII; 21, XXV; 146, III, “c”; 174, §§ 2º, 3º e 4º; 187, VI; 192, VIII; e 199, § 1º; Lei Federal n. 5764/71

2 Cf. A. Gonçalves de Oliveira, in A Cobrança do ICM das Cooperativas de Consumo e a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, in Cadernos de Direito Tributário. Revista de Direito Público. n. 23, p. 228/229.

3 REsp 171800/RS, DJ 31.05.1999.

4 REsp 170371/RS, DJ 14.06.1999; REsp 523554/MG, DJ 25.02.2004; REsp 552782/MG, DJ 25.04.2005; REsp 616219/MG, DJ 25.09.2006; AgRg no REsp 727450, DJ 29.05.2006.

5 REsp 152546/SC, DJ 03.09.2001.

6 REsp 544.194/MG, DJ 25/02/2004; REsp 546380/MG, DJ 25/02/2004; REsp 614764/MG, DJ 23/08/2004; REsp 543828/MG, DJ 25.02.2004; REsp 546674/RS, DJ 13.10.2003.

7 REsp 215311/MA, DJ 11.12.2000; REsp 727091/RJ, DJ 17.10.2005.

8 REsp 215311/MA, DJ 11.12.2000; REsp 16096/PR; REsp 158477/SC.

9 REsp 332148/RR, DJ 24.06.2002.

10 Cf. Ives Gandra da Silva Martins, in RDDT 86/152.

11 Cf. Thereza Alvim, in Revista de Processo, n. 22, julho/setembro de 1997, p. 215.

 

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Iran José de Chaves:  Advogado especialista em Direito Tributário e Pós-graduado a nível de especialização em Direito Empresarial. Advogado Sênior da Chaves Consultoria Jurídico-Empresarial. Presidente da Comissão de Estudos de Direito Tributário da OAB-SC.