Home Blog Page 26

Embaraçar investigação de organização criminosa é crime material e pode ocorrer no inquérito ou na ação

0

​Impedir ou embaraçar a investigação de organização criminosa, delito previsto pelo artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 12.850/2013, é crime material, inclusive na modalidade embaraçar – portanto, é possível a condenação pela forma tentada. Esse tipo penal pode ser configurado tanto na fase de inquérito policial quanto na ação penal, após o recebimento da denúncia.

O entendimento foi firmado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao reformar parcialmente acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) que manteve a condenação de quatro pessoas por embaraço à investigação de organização criminosa. A corte estadual concluiu que elas atuaram para mudar o depoimento de uma testemunha já na fase judicial e que o ato de embaraçar é crime formal, consumado quando o réu age para perturbar de qualquer modo a investigação, independentemente de conseguir seu objetivo.

Ao recorrer ao STJ, a defesa sustentou – entre outros argumentos – que o tipo penal descrito no artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 12.850/2013 trata da conduta de embaraço à investigação, e não de embaraço ao processo judicial. Ainda de acordo com a defesa, a inexistência de mudança no depoimento da vítima configuraria, no máximo, a tentativa de embaraço, devendo ser afastado o delito consumado.

Investigações ocorrem tanto no inquérito quanto na ação penal

Segundo o relator, ministro Joel Ilan Paciornik, a tese de que a investigação criminal está restrita à fase do inquérito não tem cabimento, pois a apuração dos fatos se prolonga durante toda a persecução penal – que inclui tanto o inquérito policial quanto a ação judicial, após o recebimento da denúncia. “Não havendo o legislador inserido no tipo a expressão estrita ‘inquérito policial’, compreende-se ter conferido à investigação de infração penal o sentido de persecução penal”, afirmou o magistrado.

Além disso, ele destacou que não seria razoável punir de forma mais severa a obstrução das investigações no inquérito do que a obstrução realizada na ação penal.

Mesmo reconhecendo haver diferentes posições doutrinárias a respeito, o ministro considerou que a melhor interpretação quanto à consumação e à tentativa na modalidade embaraçar está no entendimento de que se trata de crime material.

“A adoção da corrente que classifica o delito como crime material se explica porque o verbo ‘embaraçar’ atrai um resultado, ou seja, uma alteração do seu objeto. Na hipótese normativa, o objeto é a investigação, que pode se dar na fase de inquérito ou na instrução da ação penal, ou seja, haverá embaraço à investigação se algum resultado, ainda que momentâneo e reversível, for constatado”, destacou.

Em reforço a essa tese, o relator citou decisão do Supremo Tribunal Federal que recebeu denúncia por tentativa de obstrução à investigação de organização criminosa, reconhecendo como indícios de materialidade e autoria as conversas em que um político discutia com outras pessoas a necessidade de interferir na atividade da polícia durante a Operação Lava Jato.

Novo julgamento para a verificação de tentativa

Sobre o caso em julgamento, Joel Paciornik comentou que a testemunha supostamente assediada pelo réu pode ter ficado embaraçada, mas não há informação de que isso tenha afetado a investigação em curso na fase judicial. Em consequência, a Quinta Turma determinou que seja realizado novo julgamento do recurso de apelação, para a análise da ocorrência da modalidade tentada.

“Forçoso o retorno dos autos ao tribunal de origem para que seja adotada a classificação de crime material e feita nova análise da ocorrência de tentativa em razão do resultado observado no trâmite da ação penal que apura o delito de organização criminosa, com eventuais reflexos na dosimetria da pena”, concluiu o relator.   REsp 1.817.416.

FONTE:  STJ, 28 de outubro de 2021.

Dano moral: suspensão de prazo prescricional de menor de idade não se aplica a irmã maior

0

A 3ª Turma considerou prescrito o direito à reparação da filha maior de idade de montador morto em acidente de trabalho.

A Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho declarou prescrita a pretensão da filha maior de idade de um montador eletromecânico terceirizado da MW Projetos e Construções, de Goiânia (GO), de pleitear reparação por danos morais e materiais em razão da morte do pai em acidente de trabalho. Embora a contagem do prazo prescricional seja interrompido quando se trata de menor de idade, a ação foi ajuizada em 2015, quando ela já tinha 23 anos.

Acidente

O acidente ocorreu em 2007, quando o montador, que prestava serviços para a Celg Distribuição S.A., sofreu uma descarga elétrica, ao fazer um conserto em rede de alta tensão próxima a São Miguel do Araguaia (GO). Em 2015, os dois filhos do trabalhador, nascidos em 1992 e em 2000, ajuizaram a ação, com pedido de reparação por danos morais e materiais.

Prescrição

O juízo da Vara do Trabalho de Porangatu (GO) determinou o prosseguimento da ação apenas em relação ao filho menor de idade. O fundamento foi o dispositivo do Código Civil que prevê a interrupção do prazo prescricional contra o herdeiro menor até que ele atinja a maioridade. Como a irmã já tinha 23 anos ao propor a ação, sua pretensão estaria prescrita.

Obrigação indivisível

O Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região (GO), entretanto, entendeu que as indenizações decorrentes de acidente de trabalho são obrigações indivisíveis, e, portanto, a interrupção da prescrição se aplicaria aos dois irmãos. Segundo o TRT, o artigo 201 do Código Civil determina que, no caso de obrigação indivisível, a suspensão da prescrição em favor de um dos credores solidários atinge todos os outros credores.

Direito próprio em nome próprio

O relator do recurso de revista da empresa, ministro Mauricio Godinho Delgado, explicou que, embora o direito à compensação decorra do falecimento do empregado, pai dos dois filhos, trata-se de dano reflexo, cuja ação pode ser julgada de forma independente, pois a pretensão é própria e individual de cada filho. Segundo ele, a situação difere do direito sucessório, em que os direitos dos titulares têm caráter patrimonial e são transmitidos aos herdeiros como obrigação indivisível.

No caso, o relator assinalou que não se trata de pretensão ao pagamento de indenização pelo dano moral sofrido pelo empregado, que seria passível de transmissão aos herdeiros, mas pelos danos morais e materiais sofridos por cada um dos filhos (danos em ricochete), que postulam direito próprio em nome próprio. Trata-se, assim, de obrigação divisível. Nessa circunstância, a suspensão do prazo prescricional do herdeiro menor de idade não se aplica à herdeira maior de idade.  A decisão foi unânime.

(DA/CF) – Processo: RR-5-97.2015.5.18.0251

FONTE:  TST, 26 de outubro de 2021.

Dívida de internação por Covid-19 não será assumida pela Fazenda Pública, decide TJ

0

A 9ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve decisão do juiz Olavo Sá Pereira da Silva, da 2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Osasco, que negou pedido para que a Fazenda Pública estadual assumisse dívida de internação de paciente com Covid-19 em hospital particular por falta de leitos disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). Também foi mantida a improcedência do pedido de declaração de inexigibilidade de débito decorrente do contrato firmado pela autora com o hospital réu.

Consta nos autos que a autora da ação levou sua mãe a hospital particular para atendimento de Covid-19. Ao final da consulta, percebeu-se um agravamento do quadro de saúde e a necessidade de internação. Devido à falta de vagas no sistema público de saúde naquele momento, a autora celebrou contrato de assistência médica e sua genitora seguiu com tratamento por 12 dias, quando foi disponibilizada vaga no SUS e efetuada a transferência. Do atendimento no hospital particular, foi cobrado o valor de R$ 230.393,34, que a autora pretende que seja pago pela Fazenda do Estado.

De acordo com o relator da apelação, desembargador Décio Notarangeli, na verificação de possível negligência na disponibilização de leito para a internação deve ser considerado o contexto da pandemia. “A escassez de leitos diante da demanda decorrente do elevadíssimo número de casos diários de Covid-19 registrado nos picos de contaminação no país é fato público e notório, inexistindo indícios de que o Estado de São Paulo tenha falhado na condução da crise sanitária e possa ser responsabilizado pela falta de leitos nos momentos mais graves da pandemia”, apontou o relator. “Em suma, da imprevisibilidade e inevitabilidade da pandemia advém a inexigibilidade de conduta diversa que rompe o nexo causal entre a omissão apontada pela parte e o dano por ela experimentado, o que exclui o dever de indenizar acarretando a improcedência dos pedidos.”

Quanto à declaração de inexigibilidade de débito, o magistrado também não acolheu o pedido. “Não sendo questionada a necessidade dos serviços prestados, ou demonstrado que o preço cobrado está acima da média daqueles que são usualmente praticados no mercado, o sacrifício patrimonial extremo por si só não basta para caracterização do estado de perigo. Mesmo em se tratando de emergência médica, situação crítica, súbita e imprevista, com risco de vida para a paciente, não está configurado vício de consentimento para invalidação do contrato conscientemente celebrado pela apelante, em especial pela ausência de demonstração de prática abusiva pelo hospital apelado”, concluiu.

Completaram o julgamento os desembargadores Oswaldo Luiz Plau e Moreira de Carvalho. A decisão foi unânime.              Apelação nº 1012046-55.2020.8.26.0405

FONTE:  TJSP, 31 de outubro de 2021.

Mudança de nome de criança é possível quando demonstrada situação vexatória

0

A 7ª Turma Cível do TJDFT manteve sentença que julgou improcedente pedido para que nome do time de futebol fosse retirado do registro de nascimento de duas crianças. O colegiado explicou que a retificação de registro de nascimento para alterar o prenome de menor incapaz só é possível quando demonstrada exposição ao ridículo ou à situação vexatória, o que não ocorreu no caso.

Consta nos autos que o pai das autoras registrou em seus nomes a expressão “Vasco”, em homenagem ao time do coração. A representante das autoras alega que a expressão é vexatória e que as crianças podem ser vítimas de constrangimento social tanto na idade escolar quanto na vida adulta. Em ação de retificação de registro civil, pedem que o termo seja excluído da certidão de nascimento. Em primeira instância, o pedido foi julgado improcedente, o que fez com que as autoras recorressem, sob a alegação que poderiam estar sujeitas a dissabores, humilhações e bullying.

Ao analisar o recurso, a Turma explicou que o nome “constitui um direito da personalidade dotado de imutabilidade” e que a Lei de Registros Públicos só permite a alteração em caso de justo motivo devidamente comprovado. No caso, segundo o colegiado, “não restou demonstrada, seja documentalmente, seja por meio de testemunhas, qualquer situação vexatória ou constrangedora vivenciada pelas menores em razão do nome intermediário”.

“Tal nome, embora alegue-se que decorre de homenagem a time de futebol, não se reveste de expressão esdrúxula ou extravagante a ponto de que possa expor ao ridículo as menores, não se verificando comprovação de justo motivo apto a permitir a alteração neste momento. Assim, ausente a comprovação de que o nome prejudica as menores, o que se observa é que o incômodo parte da própria genitora e não das portadoras do nome, situação que não enseja a retificação, uma vez que o nome é direito personalíssimo e subjetivo, devendo ser demonstrado o sofrimento e insatisfação das próprias titulares do direito”, afirmou.

Turma explicou ainda que, quando completarem 18 anos, as autoras poderão solicitar a alteração dos nomes. “Em ocasião futura, acaso as requerentes sintam efetivo constrangimento com o nome, sendo expostas, de fato, a situações vexatórias em razão disto, nada impede que, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, elas busquem administrativamente, mediante apresentação do pedido em cartório, a retificação do nome intermediário, ou, ainda, posteriormente, via judicial, “por exceção e motivadamente”, consoante dispõem os artigos 56 e 57 da Lei dos Registros Públicos”, explicou

Dessa forma, a Turma manteve, por unanimidade, a sentença que julgou improcedente o pedido para que o nome do time de futebol fosse retirado do registro das autoras.

Processo em segredo de justiça.

FONTE:  TJDF, 28 de outubro de 2021.

 

O que vem a ser a ciência jurídica? Definição de Direito ontem e hoje.

1

Resumo: O modesto texto aborda o significado, conceito e finalidade do Direito. E, ainda, aborda os contornos do Direito Contemporâneo.

Palavras-Chave: Teoria Geral do Direito. Conceito de Direito. Finalidade de Direito. Interpretação do Direito. Teoria Pura do Direito.

Résumé: Le texte modeste aborde le sens, le concept et le but de la loi. Et, encore, il aborde les contours du droit contemporain.

Mots-clés: Théorie générale du droit. Notion de droit. Objet de la loi. Interprétation de la loi. Théorie pure du droit.

 

Na obra intitulada “Teoria Pura do Direito” de autoria de Hans Kelsen desqualificou-se a  importância do jusnaturalismo como teoria válida para o Direito e, pretendendo conferir caráter definitivo ao monismo jurídico do Estado, fez deste um alvo perfeito de críticas, principalmente, calcadas nos déficits éticos do pensamento jurídico que assim purificado e com conseguinte desinteresse dos juristas em realizar cientificamente um Direito atrelado aos critérios de legitimidade não apenas formais.

De fato, a obra citada foi um marco do paradigma positivista, não poderia deixar de resultar em uma ciência das normas que atingisse seus objetivos epistemológicos de neutralidade e visando expulsar os juízos de valor e aspectos morais subjetivos.

Com a Teoria Pura do Direito[1] era, portanto, possível galgar a autonomia disciplinar para a ciência jurídica. No princípio do século XX, Kelsen[2] apresentou sua obra e trouxe a concepção de ciência jurídica que procurava promover a depuração alcançando maior objetividade e exatidão. Foi expressiva a ousadia de Kelsen desqualificar a relevância do jusnaturalismo como teoria para o direito e, imprimir caráter definitivo ao monismo jurídico estatal.

A relação entre direito e ciência segundo Kelsen começa logo pela definição do objeto da ciência do direito, que para ele é constituído em primeiro lugar pelas normas jurídicas e também pelo conteúdo dessas normas, isto é, pela conduta humana regulada por estas.

E, enquanto normas reguladoras de conduta, o Direito se traz em ser um sistema de normas em vigência, situando-se no campo da teoria estática do Direito.

Por outro viés, se o objeto do estudo se desloca para a conduta humana regulada como atos de produção, aplicação e observância de certas normas jurídicas, o processo jurídico em sua dinâmica de criação e aplicação, realiza ao que chamamos de teoria dinâmica do Direito.

E, tal dualismo é, apenas, aparente já que a dinâmica se subordina à estática por uma relação de validade formal pois os atos de conduta humana que desencadeiam o movimento do Direito são peculiares ao conteúdo das normas jurídicas e, só nesta medida, é que interessam para o estudo da ciência jurídica.

Segundo Kelsen, a ciência jurídica representa uma interpretação normativa dos fatos: “Descreve as normas jurídicas produzidas através de atos de conduta humana e que hão-de ser aplicadas e observadas também por atos de conduta e, consequentemente, descreve as relações constituídas, através dessas normas, entre os fatos por elas determinados”.

A diferença conceitual entre proposições jurídicas da ciência, que são os juízos hipotéticos que enunciam que, de acordo com o ordenamento, sob certas circunstâncias ali previstas, devem ocorrer certas consequências também previstas por este ordenamento e normas jurídicas, que não são juízos acerca de uma realidade  externa, mas sim, mandamentos que encerram comandos, permissões e atribuições de poder ou de competência é então estabelecida pelas funções: descritiva, da ciência e prescritiva, do Direito.

Afinal, é que, para Kelsen, a ciência não produz direito, não possui essa função criadora, pois limitada ao papel de conhecimento do direito produzido pela autoridade jurídica, isto é, por aquele a quem o ordenamento atribui capacidade ou competência para produzir normas jurídicas, na relação entre estática e dinâmica do Direito, que aprendemos como a teoria dogmática das fontes do Direito.

Essa distinção entre ciência jurídica e Direito, Kelsen a situa no plano da validade formal, afastando do campo do Direito as questões relativas à veracidade ou falsidade de seus imperativos de conduta, in litteris:

          “A distinção revela-se no fato de que as proposições normativas formuladas pela ciência jurídica, que descrevem o Direito e que não atribuem a ninguém quaisquer deveres ou direitos, poderem ser verídicas ou inverídicas, ao passo que as normas de dever-ser estabelecidas pela autoridade jurídica – e que atribuem deveres e direitos aos sujeitos jurídicos – não são verídicas ou inverídicas, mas  válidas ou inválidas, tal como também os fatos da ordem do ser não são quer verídicos, quer inverídicos, mas apenas existem ou não existem, somente as afirmações sobre esses fatos podendo ser verídicas ou inverídicas”.

A ciência é o conhecimento que explica os fenômenos obedecendo as leis que foram verificadas por métodos experimentais. Portanto, a ciência baseia-se na regularidade, na previsão e no controle de fenômenos que podem ser observados. Toda ciência traduz um modo de conhecer fundamentado em um método, o chamado método científico.

As teorias são constantemente testadas, objetivando sua comprovação ou a substituição por outra teoria que resista à checagem. Enfim, o objetivo da ciência é explicar, descrever e prever os fenômenos a partir do desenvolvimento de procedimentos metodológicos que possam ser constantemente verificados e reproduzidos.

O método começa pela observação do fenômeno, através de sistemática controlada, a verificação de fatos, a elaboração de hipóteses que sejam testáveis ou falseáveis, a produção de implicações, conclusões e previsões e, a realização de experimentos, para produzir novas observações e a análise lógica e, assim, produzir novos fatos e, descobrir se os resultados corroboram com a teoria.

A ciência se opõe ao senso comum, pois não é dotada de rigor ou comprovação, sendo baseado somente em crença. O senso comum traduz apenas um saber subjetivo e, portanto, varia de pessoa para pessoa e de grupo para grupo. Já a tecnologia é conjunto de práticas e conhecimentos de um determinado campo teórico elaborado a partir de um ideal científico.

Pode ser igualmente definida como sendo o estudo e processo de métodos usados para transformação e domínio do meio. Sem dúvida, a ciência vem galgando cada vez maior espaço no século XXI. Mas, é importante afirmar que a ciência não é crença inquestionável, o que a difere, por exemplo da religião.

Pois, a religião se fulcra em um dogma, isto é, numa hipótese incondicional, que deve ser aceita pela fé, toda afirmação científica necessita de ser fundamentada e passível de teste, de forma que qualquer posso, inerentemente ao que acredita ou não, possa acessar as mesmas conclusões ou refutá-las ao analisar a forma como esta fora construída e formulada.

Importante, ainda recordar que a ciência não é argumento de autoridade, fruto de um só pensador, por mais que seja reconhecido, como Sócrates, Platão, Aristóteles e Tales de Mileto ou Pitágoras.

A ciência não é o senso comum, isto é, saberes adquiridos e transmitidos socialmente seja por nossas experiências de vida, que oferecem respostas prontas e acabadas para questões corriqueiras e frequentes do nosso cotidiano.

A história da ciência é composta por uma série de pensadores – muitos deles cujos nomes se perderam ou são pouco lembrados – que, por seus trabalhos, foram fornecendo contribuições para os métodos científicos que utilizamos hoje. Citaremos aqui alguns nomes importantes.

Aristóteles[3], nascido em 384 a.C, em Estagira, na Grécia, Aristóteles foi discípulo de Platão, mas, diferente de seu mestre que focou seus estudos no mundo das ideias, como médico, Aristóteles estava mais interessado no mundo natural.

Desse modo, foi um dos pioneiros a introduzir a observação metódica da natureza, com descrições precisas do que observava. Ao tentar entender as causas dos fenômenos que observava, foi também responsável por introduzir a lógica a ciência.

Galileu[4] mesmo quase dois mil anos depois, em 1564, em Pisa, na Itália, nascia outro grande nome para a ciência. Galileu Galilei, mais do que físico, astrônomo, inventor do telescópio, escritor, entre diversas outras qualidades, foi um dos responsáveis por introduzir ao método de observação de Aristóteles uma característica fundamental, a da experimentação metódica.

Dessa forma, hipóteses derivadas da observação precisariam ser testadas através de experimentos. Diversas teses físicas de Aristóteles, como a de que corpos com maior massa cairiam mais rápido, puderam, com isso, ser provadas falsas.

Newton é uma figura que um ano após de quando morreu Galileu, 1643, nasceu, no Reino Unido, Isaac Newton. Indo além de Galileu, ao estudar os movimentos dos corpos, Newton conseguiu esquematizar suas observações e experimentos em um sistema de equações que montava um quadro de análise a partir do qual poderiam ser tiradas conclusões exatas.

Em sua obra “Princípios Matemáticos de Filosofia Natural” ele cria e demonstra as ferramentas matemáticas que sustentam sua lei da gravitação universal, que serviam tanto para explicar o porquê de objetos caírem quando soltos quanto o movimento de corpos celestes.

Karl Popper[5]

As descobertas e leis de Newton prevaleceram por séculos e contribuíram para visões deterministas (de que a ciência poderia determinar o comportamento de qualquer fenômeno físico) que só viriam a ser desfeitas com nomes como Einstein e Heisenberg, respectivamente, com a Teoria da Relatividade e o Princípio da Incerteza, no século XX, que demonstraram erros na teoria de Newton.

Entre esses séculos, sobretudo no século XIX, predominou um “cientificismo”, ou seja, uma supervalorização da ciência como capaz de determinar qualquer coisa. É num ambiente assim que nasce Karl Popper, na Áustria, em 1902. Popper é o responsável por estabelecer o princípio da falseabilidade, segundo o qual uma teoria só é   científica se for possível prová-la falsa. Ou seja, ela deve ser capaz de ser testada.

Enquanto os testes não demonstrarem que ela é falsa, ela pode ser considerada válida. Abandonava-se assim o caráter de infalibilidade da ciência, dominante nos momentos cientificistas.

Thomas Kuhn[6], por sua vez, nascido nos Estados Unidos, em 1922, traz a ideia de paradigmas e revoluções científicas.

Observando atentamente para fatores sociológicos, Kuhn estabelece o progresso da ciência no esquema abaixo, conforme trazido por Alam F. Chalmers no livro “O que é Ciência, afinal?”: pré-ciência – ciência normal – crise-revolução – nova ciência normal – nova crise

A pré-ciência seria uma atividade desorganizada e diversa. Ela se torna estruturada e dirigida quando a comunidade científica se atém a um paradigma. Um paradigma pode ser entendido como relações científicas passadas reconhecidas pela comunidade científica como legítimas para uma prática posterior, como resumido por Nuno Borja Santos, no artigo “A aprendizagem segundo Karl Popper e Thomas Kuhn”.

Dessa forma, a mecânica de Newton pode ser considerada um paradigma e os cientistas que trabalhavam tendo ela como base praticam o que Kuhn chama de ciência normal. Ao fazê-lo, eles se aprofundarão e realizarão uma série de experimentos. Quando esses experimentos encontram uma série de falsificações, têm-se uma crise naquele paradigma.

Essa crise levará a uma revolução científica, como a Teoria da Relatividade de Einstein[7], por exemplo, que gerará um novo paradigma, no qual se dará uma nova ciência normal, à espera de uma nova crise.

Dessa forma, para Kuhn, se constrói o progresso da ciência. Assim, mesmo que um paradigma se prove falso, sua existência é importante pois só através dela poderão ser feitos estudos aprofundados que concluirão que ele é falso. A ciência é vista, dessa forma, como um constante avanço baseado em tentativa e erro.

São vários os tipos de ciência. Apesar de suas diferenças, todos tentam se adequar a algum tipo de método[8] para sustentar suas afirmações e o sonho de toda nova disciplina é ser reconhecida como científica. Os principais “tipos” de ciência são: ciências humanas, ciências exatas e ciências biológicas.

As ciências humanas, como o próprio nome diz, tratam das relações entre diferentes grupos de pessoas, tentando compreender hábitos, acontecimentos o funcionamento da sociedade, do Sistema Internacional, a política, a história, entre diversos outros fenômenos. São exemplos a História, Filosofia, Sociologia, Economia, Relações Internacionais, Direito, entre outras. Entre as ciências humanas, estão as ciências sociais.

As ciências exatas, por sua vez, são baseadas em raciocínios lógicos sustentados com base em aplicações quantitativas, com a utilização de números, fórmulas, equações, etc. São exemplos a matemática, a química, a física.

Já as ciências biológicas envolvem a aplicação da biologia para o estudo de organismos vivos (espécies, reprodução, sistemas, saúde, etc.).  Envolvem toda espécie de organismos vivos, independentemente de seu reino, filo, classe, ordem, família, gênero ou espécie.

As ciências sociais são uma ampla área de estudos voltada a entender a forma de funcionamento, desenvolvimento e organização das sociedades. Nas ciências sociais são estudados todos os aspectos importantes relacionados a uma sociedade: suas origens, processos históricos, funcionamento, aspectos de desenvolvimento, transformações sociais, conflitos, características culturais e hábitos.

A área de Ciências Sociais Aplicadas reúne campos de conhecimento interdisciplinares, voltados para os aspectos sociais das diversas realidades humanas. Ou seja, estão reunidos nessa área cursos que, embora tenham conteúdos diferentes, têm o mesmo objetivo: entender quais são as necessidades da sociedade e, também, quais são as consequências de viver em sociedade.

Em 23 de janeiro de 2008, por meio da Portaria nº 9, o Ministério da Educação (MEC), por meio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), estabeleceu que este grupo comporta os cursos nas áreas de Administração, Arquitetura e Urbanismo, Ciências Contábeis, Ciência da Informação, Comunicação, Desenho Industrial, Demografia, Direito, Museologia, Planejamento Rural e Urbano e Serviço Social.

Mas essa divisão pode não deixar as coisas muito claras. Por exemplo, em um primeiro olhar, Ciências Contábeis pode parecer se encaixar perfeitamente no campo das Ciências Exatas e não nas Ciências Sociais Aplicadas.

De acordo com o Censo da Educação Superior, em que Administração aparece como o segundo curso mais procurado no país? Pois bem, estamos diante do primeiro colocado: Direito.

Essa é uma das profissões mais tradicionais da história da humanidade e, não por acaso, uma das que mais trazem impactos na sociedade.

Em geral, os estudantes de Direito são engajados com questões sociais e políticas, Direitos Humanos e resolução de conflitos. Depois da formação, o campo de atuação é amplo e envolve um plano de carreira: advocacia, procuradoria, consultoria, defensoria pública, magistratura, diplomacia, entre muitas outras.

Cada uma dessas profissões tem suas particularidades, mas, em geral, as carreiras do Direito compartilham algumas funções em comum, como: resolução de disputas legais; aplicação e auditoria do cumprimento de leis; intermediação em relações jurídicas; condução de investigações sobre infrações da lei; elaboração de inquéritos e processos e, etc.

Em resumo, o profissional está sempre em busca de fazer valer a ordem prevista na Constituição Federal Brasileira e em legislações de órgãos e instituições. Por ser uma área tão ampla e necessária, há oportunidades de atuação na iniciativa privada, na pública e no terceiro setor.

Algumas das matérias da faculdade de Direito são: Direito Civil; Direito Penal; Direito Trabalhista; Direito da Tecnologia da Informação; Direito Constitucional; Direito Ambiental e Sustentável; Psicologia e Relações Humanas; Resolução Simulada de Conflitos.

O estudante precisa de uma formação extensa — com a duração de 5 (cinco) anos — para ter contato com todas as áreas do Direito e preparar-se para prestar a prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que é a porta de entrada para o mercado de trabalho.

A ciência do direito, também denominada de dogmática jurídica, é a principal dentre as ciências jurídicas. Em sentido amplo, refere-se ao estudo do direito visando sua aplicação e, em sentido estrito, à operação do direito com sentido tecnológico, tendo em vista o problema da decidibilidade[9].

A ciência jurídica in stricto sensu[10] é normalmente associada ao positivismo jurídico, que a partir de uma distinção entre fato e valor, teria buscado excluir ou pelo menos mitigar a influência da moral dos valores no direito. E, nesse sentido, a ciência do direito estaria   baseada num fenômeno objetivo e observável e não valores relativos e subjetivos.

Em tempo, convém frisar que a ciência do direito é distinta da filosofia do direito, da teoria geral do direito e da doutrina jurídica disciplinas que, apesar de todo rigor metodológico, não dependem da observação, verificação e falseabilidade com explanações fundamentadas em uma teoria científica, como é o caso da ciência do direito.

Segundo a lição de Tércio Sampaio Ferraz Junior, o vocábulo “ciência” não é unívoco, apesar de designar um tipo específico de conhecimento, porém, não existe um critério único que determine sua extensão, natureza e características devido ao fato de existirem vários critérios possuidores de diversos fundamentos filosóficos que extrapolam a prática científica.

Recentemente, destaquei em um texto de minha autoria intitulado “A morte de Deus e o Direito como muleta metafísica”. Disponível em: https://letrasdopensamento.com.br/autor/gisele-leite-articulista/artigo/a-morte-de-deus-e-o-direito-como-muleta-metafisica que o Direito é uma muleta metafísica[11] como tantas outras ciências normativas e, quiçá, como Ciência Social Aplicada. As memoriais disputas sobre tal termo restam mesmo ligadas à metodologia.

O Direito pretende estabelecer a ordem e o justo. Para dar conta desse anseio, ele está amparado em princípios que não escapam daquilo que Nietzsche entenderia também como muleta metafísica: a liberdade, a igualdade, a vida e etc.

A plurivalência do vocábulo “direito” comporta numerosas expressões conceituais. E, em razão da generalização vocabular, ou porque falte-nos maior capacidade de abstração para formular um conceito tão abrangente capaz de abrigar todo fenômeno jurídico nas suas causas mais antigas, na sua expressão pura, na coercibilidade da norma, e na sujeição do indivíduo e do Estado, ao seu imperativo, é mesmo difícil encontrar uma sintética fórmula que dê a exata noção do direito, independentemente de qualquer restrição.

Del Vecchio[12] apontou que as manifestações jurídicas ordinárias são facilmente perceptíveis. Portanto, a ideia abstrata do direito nos direciona ao conceito cultural, e sua extremação, com os conceitos afins, a fixação de elementos essenciais, que ainda não encontram uma formulação imediata.

O palpável e perceptível fenômeno jurídico é patente principalmente ante a ideia de sua negação que corresponde à ofensa, à contrariedade ou distorção, onde jaz vivaz a ideia de direito.

Ressalte-se que os demasiadamente influenciados pelo positivismo o confundem com a lei, mas pecam pelo excesso, e Cícero há mais de dois milênios já vislumbrava que quando havia um furto ou assassínio, se tornassem justos em razão de o legislador, num gesto, o permitir como norma de comportamento.

Porém, não foram mais felizes os historicistas, os normativistas, os finalistas e os sociólogos do direito que trouxe contaminadas concepções dos prejuízos decorrentes da visão unilateral sobre o direito.

Enfim, diante tantas ilustres pensadores e doutrinadores tais como Kant, Ihering, Regelberger ou Levy-Ullman, Kelsen, Del Vecchio, Savigny ou Radbruch, todos foram impotentes em consagrar uma noção capaz de consagrar receptividade pacífica e aceita por todos.

Caio Mário da Silva Pereira, grande doutrinador brasileiro, apontou de forma mais sintética que direito é o princípio de adequação do homem à vida social. E, está na lei, como exteriorização do comando do Estado, mas também, integra-se na consciência do indivíduo que pauta sua conduta pelo espiritualismo do seu elevado grau de moralidade, está no anseio de justiça, como ideal eterno do homem, está imanente na necessidade de contenção para a coexistência.

O direito positivo num acepção geométrica, pode-se enxergar a vida jurídica de certo povo, numa certa época, e verificar que a normação da coexistência social, em certo momento histórico, se encontra submetida às regras dirigidas à vontade de todos. E, não importa se é um momento contemporâneo ou pretérito. Dá-se o nome de direito positivo o que se define como sendo conjunto de princípios que pautam a vida social de determinado povo em determinada época. Assim, encontramos o direito positivo de Roma, da Inglaterra, da Alemanha e do Brasil.

E, não importa se escrito ou não escrito (consuetudinário). O direito positivo, na boa síntese de Henri Capitant[13], é o que está em vigor num povo determinado e compreende toda a disciplina da conduta, inclui todas as leis votadas pelo poder competente, bem como os regulamentos, as disposições normativas de qualquer espécie. Ligado ao conceito de vigência, o direito positivo fixa nesta o fundamento de sua existência. Portanto, é contingente e variável.

Já o Direito natural em contraposição ao direito positivo, surge a ideia sobre a qual se manifestam as correntes filosóficas e as escolas em divergência, reduzindo-o, ou tentando fazê-lo, às suas dimensões sectárias.

É fato que se costuma afirmar que o direito positivo se opõe ao direito natural, aquele representando o regime de vida social corrente, este o conjunto de princípios ideais preexistentes e dominantes. Enquanto o direito positivo é nacional e contingente. Ao passo que o direito natural é universal e eterno.

Em verdade, não há contraposição ou antinomia, pois que, se um é fonte de inspiração de outro, não exprimem ideias antagônicas, mas, ao revés, tendem a uma convergência ideológica, ou, ao menos, devem procurá-la, o direito positivo amparando-se na sujeição ao direito natural que a regra realize o ideal e, o direito natural inspirando o direito positivo para que este se aproxime progressivamente da perfeição.

Ainda na Antiguidade Clássica, os filósofos pré-socráticos já sustentavam a existência de princípios eternos e imutáveis geradores da noção de justiça, que seria por isso mesmo eterna e imutável.

Embora os romanos fossem menos dados à tanta especulação filosófica, nem por isso, deixaram de admitir a eternidade do ius naturale que não era limitado a uma concepção abstrata, porém, considerado como inspiração da tendência que sempre se viu, no sentido da crescente humanização dos princípios jurídicos, dentro da evolução histórica do direito romano.

Com advento do cristianismo, os doutores da Igreja[14] retomaram a noção de direito natural, de origem divina e desenvolveram a dualidade de princípios, uns constituindo a ordem eterna e, outros a ordem humana que Santo Tomás de Aquino, em suas deduções, expôs quando enumerou três espécies de leis, a saber: a lex alterna, que governa o mundo e é inacessível ao comum dos mortais; a lex naturalis que é perceptível pela razão do homem, porém ditada pela expressão divina; e a lex humana que tende à perfeição na medida em que se aproxima da lex naturalis. (In: Summa Theologiae, Prima Secundae, Quaestio, 91).

No século XVI, Hugo Grócio[15] sustentou que em oposição ao direito positivo, imperfeito e transitório, havia o direito ideal e eterno, impregnado na consciência humana e gerado pela razão, criou a chamada Escola de Direito Natural, que se estendeu por toda a Europa, conquistando muitos pensadores para o qual o direito natural é paradigma da lei mutável e humana e, por essa razão, as leis não possuem base na vontade do legislador, que é apenas seu intérprete ou veículo da lei natural.

Em combate ao jusnaturalismo, veio a Escola Histórica[16] que se opôs a ideia de um direito que seja universal e eterno, pois que o fenômeno jurídico como produto do meio social não tem origem sobrenatural nem emerge da razão humana. Ao revés, elaborado em consequência de fatores históricos e peculiares a cada nação, está em permanente processo de evolução e aperfeiçoamento.

Era adversária igualmente do direito natural é a Escola Positivista, que se expandiu muito no século XIX e que não enxerga senão a realidade concreta do direito positivo que seria suficiente então para explicar e preencher o jurídico, uma vez que o direito não é mais do que o legislado, ou complexo de normas elaboradas pelo Estado, sem qualquer sujeição a uma ordem superior ou imanente, e sem se  cogitar de sua justiça, pois que o fundamento do direito é a força, e seu objeto a realização do anseio de segurança.

No século XX, retoma a ideia jusnaturalista seus foros de predominância, renascendo no movimento neotomista, na ideia neokantiana, na expressão contraditória de Rudolf Stammler, que afirma a existência de um direito natural de conteúdo variável. E, na técnica de François Gény[17], a que não é estranha a ideia   paranaturalista do donné, em contraposição ao construit, resultante este da técnica, na submissão do direito positivo à regra moral de Georges Ripert.

O jusnaturalismo viu-se revigorado a partir da segunda metade do século XX – após a Segunda Guerra Mundial, frente a necessidade de reincorporar valores antes esquecidos, mas que se mostraram imprescindíveis para a proteção do ser humano em face das arbitrariedades perpetradas por regimes totalitários.

Na França, Michel Villey (1914-1988) assume uma postura crítica à modernidade e procura voltar às origens de nossa civilização, resgatando noções jusnaturalistas da Antiguidade. John Finnis (1940) talvez seja o jusnaturalista mais influente do presente. Em sua visão, os seres humanos, ao agir, identificam seus fins e somente depois buscam meios razoáveis para obtê-los.

Tais fins e tais meios deveriam ser limitados pelo direito. Os fins deveriam ser estabelecidos entre os bens humanos básicos e os meios deveriam ser limitados pelas exigências da justiça e do bem comum.

Ludwig Enneccerus[18] assinalou que no caso de insubordinação do direito positivo ao direito ideal ou à justiça absoluta, caberá ao legislador corrigir a falha pela derrogação da lei má, mas não ao juiz recusar-lhes a aplicação em nome da justiça ideal.

Enfim, o direito natural é a expressão destes critérios de justo absoluto e de direito ideal. Certo que há na norma jurídica um princípio moral, porém, a coincidência não é absoluta.

Quando o devedor invoca a prescrição para deixar de pagar, vale-se de faculdade assegurada na ordem jurídica, com a qual foge ao cumprimento da obrigação e, deixa de restituir ao credor o que lhe cabe. O direito disciplina a alegação, mas a ação do devedor, juridicamente incensurável, não satisfaz às exigências da moral.

Distingue-se, portanto, o conceito de liceidade a de moralidade, afirmando-se que a submissão à norma jurídica nem sempre implica a aprovação da regra moral, o que as fontes já assinalavam pelas palavras de Paulo: “non omne quod licet honestum est” (nem tudo o que é lícito é honrado.).

E quando no Livro I do Digesto[19], vem definindo o conteúdo da norma jurídica através de Ulpiano: “honeste vivere, neminem laedere, suum   cuique tribuere” (“viver honradamente, não fazer mal a ninguém, dar a cada um o que é seu”), o que se enunciam simultaneamente conceitos fundamentais de moral.

Outro exemplo, é quando se fulmina o ato viciado de dolo ou fraude, quando impõe a responsabilidade do que voluntariamente torna impossível a prestação, quando agrava o dever de indenizar em quem aliena, o que não lhe pertence, o direito dá satisfação à moral, imprimindo maior rigor ao preceito, em função da moralidade da ação.

A determinação do objeto de conhecimento[20] é, em sua gênese, a coisa descircuntacializada pela atividade teorética J. M. Vilanova, em sua obra “Filosofia del derecho y fenomenologia existencial, Buenos Aires Coperadora de Derecho y Ciencias Sociales, p. 22, ao se referir ao sujeito cognoscente desprende de todo intramundo da circunstância em que se dava: a atividade teorética implica em desprendimento de todo interesse circunstancial, pretendendo uma mera contemplação.

Esclarece o doutrinador, que o objeto é o cogitatum de algum ato de consciência (cognitio) e como se trata de conhecimento, o cogito apropriado modo que o objeto será aquilo que o sujeito pensante fala quando julga.

O objeto é aquilo que a ciência tende ou ela conhece.

Questiona-se qual é o ponto capital em torno do qual desenvolve o jurista o seu estudo? Outro questionamento: qual é o objeto da jurisprudência? É o conhecimento do direito, mas na verdade, é a concretização da norma jurídica abstrato que redunda no julgamento e na interpretação.

Para que o jurista possa conhecer o direito, que se determine escrupulosamente o objeto, qual seja a essência do direito. Nessa reflexão, de caráter ontológico é que se poderá conhecer o direito.

Direito é realidade da vida social e não da natureza física ou do mero psiquismo dos seres humanos. O Direito não existiria sem a sociedade. A sociedade não é só de pessoas, mas também de coisas produzidas pelo trabalho. Ao homem não seria dado produzir se não fosse dotado de qualidades biopsíquicas que o singularizam.

O conceito da ciência do direito jamais poderá determiná-lo. A definição essencial do direito é tarefa que ultrapassa a sua competência. É problema jusfilosófico pois a questão do ser do direito constitui campo próprio dos questionamentos da ontologia jurídica[21].

O grande busilis consiste em encontrar uma definição única, concisa e universal que abranja em que se pode apresentar o direito e que, assinalando as essências que fazem dele tema de realidades diversas das demais, purifique-o de notas contingentes, que velam por sua verdadeira natureza.

Segundo Miguel Reale, o direito é a ordenação ética coercível, heterônoma e bilateral atributiva das relações sociais, na medida do bem comum. Sua definição, portanto, apresenta a soma das características gerais e distintivas das normas éticas. “O Direito é a norma das ações humanas na vida social, estabelecida por uma organização soberana e imposta coativamente à observância de todos”, segundo Ruggiero e Maroi, em Istituzioni di diritto privato, 8 ed., Milão, 1955, v.1, § 2º.

Miguel Reale, em Lições Preliminares de Direito, afirma que “aos olhos do homem comum o Direito é a lei e ordem, isto é, um conjunto de regras obrigatórias que garante a convivência social graças ao estabelecimento de limites à ação de cada um de seus membros”. O direito, assim, é um conjunto de normas éticas (uma “ordenação ética”).

A teoria do “mínimo ético”[22] consiste em dizer que o Direito representa o mínimo de moral imposto para que a sociedade possa sobreviver. Como nem todas as pessoas levam em consideração a moralidade de um ato ao praticá-lo, ou seja, sempre existe um violador da moral, surge então a figura do direito, como instrumento de imposição das normas de forma mais rigorosa.

Para a concepção normativista, o direito essencialmente como norma, surgem várias perspectivas de estudo. Em primeiro lugar, há a perspectiva científica, a da ciência do direito, conjunto de conhecimentos ordenados segundo princípios e, dotado de método próprio.

Ocupa-se da estrutura do direito, de suas normas, institutos, conceitos e categorias, material com que trabalha toda a doutrina jurídica no processo de análise, interpretação e aplicação de regras e normas. Em segundo lugar, há a perspectiva sociológica, da sociologia do direito que estudo a relação existente entre direito e sociedade, preocupando-se com a eficácia e as funções das normas jurídicas, propriamente, com a análise sociológica de sistemas jurídicos, o que lhe permite apreciar o sistema em sua totalidade e em relação ao seu contexto. Interessa-se, sobretudo, pelo que o direito deve ser. Em terceiro lugar há a perspectiva filosófica que se ocupa dos fundamentos da ordem jurídica, ou seja, os valores que lhes dão sustentação e legitimidade, e dos quais, os mais importantes são a justiça, a segurança e o bem comum.

A justiça é tida como especial valor a realizar e, ainda, na perspectiva histórica que permite conhecer a gênese e a evolução das instituições jurídicas, matéria que é objeto de estudo da história do direito. E, estuda, particularmente como o direito se formou, ao longo dos séculos.

Pela filosofia do direito, tem-se ainda a perspectiva metodológica, com crescente relevância do estudo dos processos de aplicação e de realização do direito. A metodologia jurídica não como disciplina autônoma, mas como proposta de reflexão filosófica sobre o processo de realização do direito, não procura somente definir as técnicas ou estabelecer as regras instrumentais para aplicá-lo, mas também refletir sobre este de modo crítico, vendo-o mais como prática social e prudencial do que como conjunto de regras vigentes em determinada sociedade.

O direito é um pensamento que se destina a resolver problemas práticos, configurando-se mais como ciência da decisão do que como ciência do conhecimento. Estuda como o direito se realiza.

O direito como produto histórico e, ipso facto, cultural, resulta de processo de institucionalização de práticas e de comportamentos típicos, de órgãos e critérios de decisão, que a sociedade e o Estado estabelecem, para o fim de dirimirem os conflitos de interesses, previsíveis e tipificados.

Conforme destacou Miguel Reale, o direito surge quando os jurisconsultos romanos, com sabedoria empírica, quase intuitiva, vislumbraram na sociedade “tipos de conduta” e criaram, como visão antecipada dos comportamentos prováveis, os estupendos modelos jurídicos do direito romano.

Tais modelos jurídicos funcionam como diretivas para a ação, fins ou valores a realizar, formalizam-se em estruturas jurídicas compreendendo as normas, os institutos, as instituições, os conceitos, enfim, todos os elementos que, de natureza essencialmente técnica formal, ajudam a construir o sistema de direito.

Quanto as funções do direito, principalmente em face da sociedade contemporânea, trata-se de problema teórico da sociologia do direito. E, nesta perspectiva, enfatiza-se a dimensão social do direito, que focaliza a relação entre este e a sociedade, suas recíprocas influências e modificações.

Considera-se, portanto, a função, a tarefa como sendo um conjunto de fazeres que o direito desempenha, ou pode desempenhar, na sociedade humana. A noção de função exprime o conjunto de tarefas que se espera realizar com o direito, de acordo com os objetivos e propósitos de ação dos sujeitos jurídicos, que formulam, aplicam ou se utilizam do direito na sua experiência de vida em sociedade.

Entre as principais funções do direito seriam as resolver conflitos de interesses, as de regulamentar e orientar a vida em sociedade e as legitimar o poder político e jurídico. Assim, o direito, revela-se em ser instrumento de integração e de equilíbrio, oferecendo ou impondo regras de comportamento para a decisão que o caso concreto sugere.

O direito não é uma ordem de paz, mas de conflitos. E, nesse particular, são importantes a mediação e a conciliação como métodos alternativos de solução de conflitos de interesses.

Dentre as várias funções que podem se atribuir ao direito, destaca-se, especial a importância do direito civil, a de resolução de conflitos de resolução privada, quer pelos meios formais de procedimento judicial, quer por meio de mecanismos alternativos e informais, tal como a mediação, conciliação e arbitragem.

Dá-se a mediação quando as partes aceitam ou solicitam a intervenção de terceiro neutro, não se obrigando a acatar sua opinião, a arbitragem quando as partes elegem livremente um árbitro, obrigando-se, previamente, a aceitar a sua decisão.

A vivência social que tanto interessa ao direito é chamada de experiência jurídica, sendo a de conflitos de interesses quando o direito é chamado a disciplinar no exercício de uma das suas mais importantes funções, a de resolver os referidos problemas, visando garantir a realização dos ideais humanos, de ordem, justiça e bem comum.

Lembremos que as normas jurídicas não são proposições neutras, desvinculadas de razões, motivos, contextos ou finalidades que lhes justificam a criação. Toda técnica jurídica é tida como conjunto de processos de realização do direito e, modela-se ao projeto político-filosófico a serviço da justiça. Tal projeto visa a realização de objetivos que a sociedade considera fundamentais e que, por traduzirem uma escolha entre diversas opções, exprimem-se por meio de valores que constituem a ética da comunidade.

O fundamento da norma jurídica ou do sistema de direito são, portanto, os valores, as ideias básicas que apresentam como qualidades ideais de bens e, que por isso mesmo, determinam os modos de comportamento individual e social e os subordinando a um sistema de normas cujo cumprimento permite ou destina-se à realização de tais valores.

O direito é instrumento de controle social constituído de normas que representam a escolha que o legislador faz entre diversos valores, como resposta às necessidades de solução de conflitos ou de organização social. Portanto, o direito é, assim, uma realidade cultural e histórica que somente se compreende com a referência e o conhecimento dos valores que constituem a sua finalidade e a razão de ser.

Com razão, nos ensinou Bobbio que o jurista que não for capaz de ultrapassar o direito positivo é capaz de estabelecer o que é juridicamente válido (problema de validade), porém, não é capaz de reconhecer o que vale como direito (problema do valor do direito). A única via para compreender o direito como ideia de justiça é a de abandonar o terreno empírico, ascendendo ao fundamento do direito que são os valores.

Os valores jurídicos podem ser classificados conforme seu grau de importância, em valores jurídicos fundamentais[23], valores jurídicos consecutivos e valores jurídicos instrumentais. E, a Constituição Federal do Brasil de 1988 já enuncia logo em seu preâmbulo que os valores que presidiram à sua elaboração: “(…) a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade, a justiça. (…)”.

Os valores jurídicos fundamentais são aqueles de que depende todo o sistema jurídico. E, os valores jurídicos consecutivos são os que se configuram como efeito imediato da realização de valores fundamentais. Os mais importantes são a liberdade, a igualdade, a paz social de grande relevância para o direito civil e direito penal.

Os valores jurídicos instrumentais são os que traduzem em meios, processos e procedimentos para a realização dos valores anteriores. Seu objetivo é possibilitar que se concretizem e consistem nas chamadas garantias constitucionais[24] e nos procedimentos judiciais que estão à disposição dos cidadãos.

Enfocarei prioritariamente a justiça que é um valor jurídico fundamental e sua definição unitária é difícil. Desde os filósofos gregos passando por Sócrates, Platão, Aristóteles, pelos juristas romanos, pelos grandes mestres do Direito natural e pelas modernas teorias jurídicas, uma definição precisa e exata jamais fora possível.

A justiça é valor cultural e como standard é produto histórico e relativo conforme o momento histórico e os povos que a estabelecem. Em priscas eras, ainda na cultura grega, a ideia de justiça pressupunha conformidade e igualdade, já na cultura hebraica-cristã, a obediência à lei de Deus; na cultura romana, uma ordem de paz através de contínuo confronto com a noção de autoridade.

Ulpiano afirmava que justitita est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi, a justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um, o que é seu. É um virtude, uma atitude dos homens no seu relacionamento social.

Antes de tudo, representa a preocupação com a igualdade, o que pressupõe a escorreita aplicação das regas e normas de direito, evitando-se o arbítrio, e com a proporcionalidade, ou seja, tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, mas na proporção de sua desigualdade e de acordo com seus méritos.

O problema central, consiste, todavia, em determinar o devido, o justo meio, dando-se a cada um de acordo com seu trabalho e a utilidade social do que produz. É possível visualizar duas espécies de justiça, uma geral que é a conformidade do comportamento humano com a lei moral e, uma particular, que se manifesta nas relações da pessoa com os demais membros da sociedade.

Aristóteles distinguia a justiça particular em três espécies, a saber: a comutativa, a distributiva e a legal. A primeira visa a igualdade entre os sujeitos, a equivalência entre as prestações, o equilíbrio patrimonial entre as partes da relação jurídica. É a justiça dos contratos, de vida particular.

A justiça distributiva consiste, por sua vez, em repartir proporcionalmente entre os membros da comunidade as vantagens sociais e os encargos comuns e, adota o princípio da proporcionalidade, o que significa aduzir, a cada um conforme, sua necessidade.

A justiça legal ou geral é a justiça nas relações dos sujeitos com a autoridade, que se traduz na submissão à ordem jurídica vigente. A justiça comutativa representa o ideal do cidadão, já a distributiva corresponde ao ideal do governante e, a justiça legal ao ideal do cidadão enquanto pessoa.

A dinâmica e a complexidade das relações e do processo de desenvolvimento econômico, político e social veio a exigir do direito, um sentido de harmonizar os interesses individuais e coletivos, fez surgir outra modalidade de justiça. A chamada justiça social que foi revelada em doutrina da Igreja e visa estabelecer conexão entre a consciência moral e a consciência social da coletividade, exigindo que a ordem jurídica se mantenha ligada à ordem moral.

Defende a luta contra os privilégios e exalta a preservação da dignidade humana, no sentido de fazer com que cada um contribua para o desenvolvimento, em todos os seus aspectos, da comunidade.

A fundamentação dos valores da justiça social[25] exerce assim uma função corretora do individualismo, equilibrando a atividade e os interesses dos mais variados setores sociais.

A justiça social não surge como uma virtude, mas sim, como uma tomada de consciência do conceito do bem comum, em uma perspectiva do direito como instrumento de controle, mudança e promoção social[26].

É por força da justiça social que há a legislação especial de proteção do consumidor, de locação de imóveis urbanos, a da reforma agrária, da política agrícola e, etc.

A crítica de Friedrich Hayek à Justiça Social que concebeu a justiça social como uma expressão desprovida de sentido, apesar de possuir uma aura sacra. Além de ser um pleonasmo (pois justiça é fenômeno social). Hayek também diz que o uso de “justiça” no termo é apenas porque trata-se de uma palavra eficiente e atraente.

Para ele, os defensores da expressão promovem uma ideia de distribuição de riquezas ou bens que não apresentam um consenso: quando se considera como critério para tal as virtudes ou o mérito, nasce a necessidade de se determinar o que constitui o merecimento. Se distribuir pela necessidade, seria um ato de caridade, e isto seria inviável se não fosse orientado por regras formais. Se for pela igualdade, sem considerar as diferenças, todos os indivíduos seriam tratados como iguais.

Hayek analisou a Justiça Social no mesmo sentido da expressão justiça distributiva, porque, segundo ele, atualmente as duas são empregadas como equivalentes[27].

Para Hayek, a justiça social, por vezes, a justiça econômica, por se tratar sempre de redistribuição de renda, passou a ser considerada algo que as ações da sociedade ou o tratamento dado pela sociedade aos indivíduos e grupos, deveriam ter.

As críticas de Hayek se concentram principalmente em seu livro Direito, legislação e liberdade. Conforme o autor, a vinculação do termo ao tratamento dado pela sociedade aos indivíduos com base em ‘merecimento’ cria um distanciamento com a justiça pura e simples, além de mostrar um vácuo no conceito – discorre Hayek (1985, p. 99), in litteris:

Para Hayek, justiça social é uma miragem, algo inatingível, e a busca por esse ideal destruirá o único

“clima em que os valores morais tradicionais podem florescer, ou seja, a liberdade individual.” (HAYEK, 1985, p.103).

Friedrich Hayek alega que a expressão ‘justiça social’ não é ingênua, de boa vontade para com os menos afortunados, mas sim uma “insinuação desonesta de que se tem o dever de concordar com uma exigência feita por algum grupo de pressão incapaz de justificá-la concretamente.”

Conclui Hayek[28], no livro Direito, legislação e liberdade, sobre justiça social:

          “Para que o debate político seja honesto, é necessário que as pessoas reconheçam que a expressão é desonrosa, do ponto de vista intelectual, símbolo da demagogia ou do jornalismo barato, que pensadores responsáveis deviam envergonhar-se de usar, pois, uma vez reconhecida sua vacuidade, empregá-la seria desonesto.”. (In: HAYEK, Friedrich von. Direito, legislação e liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. São Paulo: Visão, 1985).

Em artigo de minha lavra intitulado “Direito Contemporâneo e Principiologia Jurídica, disponível em: https://www.jornaljurid.com.br/colunas/gisele-leite/direito-contemporaneo-e-a-principiologia-juridica destaquei que:

“A luta do Direito timbrada pelo humanismo procura valorar a sobrevivência dos princípios em relação às normas. O Direito está além da prescrição e nem se resume na norma em sua dimensão coercitiva.

Não basta apenas cumpri-la para garantir seu cumprimento e a convivência pacífica, há um suntuoso aparato de instrumentos dotados de força suficiente e com poderes capazes de viabilizar o pacto social”.

Kelsen ressaltou em sua Teoria Pura do Direito que a concepção do Direito como ordem coativa da conduta humana se subsume num entendimento de ordem racionalista.

O Direito contém normas que se encontram graduadas em escalões dentro de uma pirâmide hierárquica. Desta forma, uma norma depende da outra e, assim, a norma fundante é a que dá origem e fundada e, esta, por sua vez, passa a ser fundante relativamente à norma inferior e, assim, sucessivamente.

De modo quando no neoconstitucionalismo que esquadrinha um Estado que prima pela garantia de direitos fundamentais-sociais, os legados da modernidade não se harmonizam com este novo modelo estatal, de Direito e de processo.

O Direito precisa atender com eficiência às necessidades da sociedade complexa e de risco, a qual pertence. O Direito precisa disciplinar a presente modernidade líquida conforme a dicção de Zygmunt Bauman.

Lembremos que o Direito Processual desde a época medieval fora marcado pela inquisitoriedade, uma herança indelével da Santa Inquisição, de onde se tinha a persecução penal, caracteriza-se pela busca verdade, de maneira que esta é imposta antecipadamente. O que infelizmente delegou alguns aspectos presentes no processo penal moderno.

A inquisitoriedade como paradigma moderno racionalista reverencia a verdade como imutável e eterna, não afetada pelo transcurso do tempo e nem mesmo pelas mudanças sociais e históricas.

Enfim, o conceito de Direito produzido pela modernidade estava assentado no que fora teoricamente positivismo jurídico. E, com as transformações ocorridas na sociedade e, também na teoria do direito, o paradigma jurídico contemporâneo se traz pelo trinômio composto por moral, princípios e discricionariedade.

Portanto, há o predomínio da utilização de princípios, de pela incorporação da moral ao Direito; e conceito de direito parece ganhar nova resposta, criada, a partir do chamado pós-positivismo.

O pós-positivismo é considerado pela eclosão de diversas construções teóricas que pretendiam romper com a visão positivista de Direito. E, assim, a teoria de Ronald Dworkin através de seu conceito interpretativo de Direito, reconhece a moral da comunidade política com a instituidora do Direito, bem como relevante missão dos princípios no fechamento da aplicação dos direitos, elementos que conformam a sua tesse da possibilidade de uma única resposta correta.

Também Neil MacCormick, com sua proposta de reconciliação entre o caráter argumentativo do Direito e o Estado Democrático de Direito, trouxe o reconhecimento de freio fundamental no processo de argumentação jurídica, que é a conformação da argumentação às condições de racionalidade e razoabilidade que se aplicam a todos tipos de razão prática.

Cumpre ainda lembrar de Jürgen Habermas, ou até de Niklas Luhmann, que, com as particularidades e a sofisticação de suas teorias, por vias diversas, trazem ao Direito a questão da comunicação.

Apesar de todos estes doutrinadores, em sentido amplo, considerados pós-positivistas, não é esse movimento que se pretende explorar. E, colocar o problema pois há a pretensa tentativa de mudança paradigmática no Direito operada a partir de uma relação consequencial (se quiser, causal) entre o trinômio moral, princípios e discricionariedade.

E, este pós-positivismo é próprio de grande parte das teses neoconstitucionalistas, que inauguraram novo modo de pensar o Direito.

Todavia, especialmente observando o fenômeno jurídico brasileiro, é possível identificar um núcleo comum a todas essas novas teorias. Sem dúvida alguma, no paradigma jurídico contemporâneo, este núcleo comum traz a marca do trinômio moral-princípios-discricionariedade.

Apenas para ilustrar o que foi referido acima, veja-se, por exemplo, o posicionamento de Susanna Pozzolo a respeito da questão da moral. Para a autora, a constituição, axiologicamente concebida, retoma a ligação entre direito e moral, o que conduz a uma interpretação do direito vinculada a valorações éticas. Como consequência, a interpretação moral da constituição possui uma dupla face: ao mesmo tempo em que concretiza a justiça substancial, “vuelve al derecho incierto” através da “elección de los valores que se creen prevalentes”

Assim, dando continuidade, apesar de alertar para o perigo da formação de um “governo de juízes”, Pozzolo entende a leitura moral da constituição como equivalente à realização de uma “reflexão moral individual” do julgador no processo decisório.

Pode-se então afirmar que a incorporação da moral ao direito produz elasticidade interpretativa, que, ao fim, acaba afirmando a discricionariedade judicial, por meio da eleição de valores.

E, com relação aos princípios, a situação não é diferente e, para Prieto Sanchís, a diferença entre a interpretação da constituição e a de uma lei é quantitativa, porque, considerando que a constituição é formada por princípios, eles aumentam as possibilidades interpretativas, ou seja, as zonas de penumbra. E, para Sanchís, os princípios: a) possuem elasticidade interpretativa; b) quando não positivas no texto constitucional, aparem como standards débeis simples razões para decidir; c) são aplicados com a ajuda de critérios por este chamados de valores extrajurídicos.

Ainda sobre os princípios, Paolo Comanducci, por sua vez, afirma que as Constituições do novo constitucionalismo tendem a potenciar politicamente os juízos.

No seu entendimento, a positivação de princípios e sua aplicação na resolução de casos concretos através da ponderação, sem que haja a fixação de hierarquia entre estes, gera a atribuição de juízos constitucionais com margem ampla de discricionariedade e que convive com colegisladores. Ou seja, os princípios constitucionais abrem espaços para o livre-arbítrio do julgador, ao ponto de torná-los constituintes.

Quanto ao tema da discricionariedade judicial está presente nesta nova tendência, sendo relevante Gustavo Zagrebelsky. E, para o juristas italiano, sua ideia de constituição viva, cuja atualização não depende apenas de reformas, mas de uma contextualização, está vinculada à discricionariedade. Isso porque, em sua concepção, o poder discricionário dos juízes é inevitável, ou, nas palavras do doutrinador, irremontable.

A respeito dos posicionamentos de Susanna Pozzolo, Prieto Sanchís, Paolo Comanducci e Gustavo Zagrebelsky, é necessário que sejam feitas pelo menos três observações. Primeira, que eles demonstram o quanto o tema da moral e, principalmente, dos princípios estão interligados com a discricionariedade decisória, são inclusive, os motivos pelos quais é possível se afirmar uma elasticidade interpretativa que conduz a uma questão de discricionariedade, eleição, escolha.

Segunda, que eles estão inseridos no contexto da construção de novo paradigma, isto é, a incorporação e da moral ao Direito e o reconhecimento da discricionariedade dos juízes são concebidos como elementos inéditos rupturais para a teoria do Direito, que inauguram uma nova tradição jurídica. Terceira, que eles são representantes de uma vasta doutrina que influenciou diretamente o sistema jurídico brasileiro.

Na contemporaneidade, o paradigma jurídico é marcado pelo predomínio dos princípios, o que atinge os âmbitos da aplicação, da teoria, e inclusive, da produção (legislativa) do direito, com a incorporação e criação, na dogmática jurídica, de novos princípios.

Para comprovar esta afirmação basta observar que: a) na esfera legislativa, o CPC incluiu em seu bojo numerosa quantidade de novos princípios, como o da razoabilidade, da eficiência, da confidencialidade, da alternatividade, do sorteio, dentre outros; b) na esfera jurisdicional, a não aplicação pelo Superior Tribunal de Justiça, do artigo 212 do CPP, que estabelece que, no inquérito, as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida, que sucumbe em face da primazia dada ao chamado princípio do prejuízo; e, c) na esfera doutrinária, a numerosa quantidade de novos princípios que são teoricamente criados.

No mesmo sentido dos princípios, também não houve outro período em que mais tenha se defendido a liberdade do juiz no julgamento da causa ou a possibilidade de que decida com base em critérios

 

extrajurídicos, tais como seus sentimentos. Nunca antes, houve tanta evidência a polêmica acesa ativismo e a judicialização da política. Ainda, parece ser atributo deste período o reconhecimento de uma centralidade da jurisdição, caracterização por um forte papel de última palavra na determinação do conteúdo do direito.

Enfim, por que obedecemos ao Direito? E, qual a relação verdadeira entre Direito e moral? É um Direito apenas mero sistema formado por regras. Por meio de tais questionamentos é possível para

Herbert Hart e seu respectivo positivismo são os principais aspectos pelos quais versa a questão, ao longo dos tempos, pois, para muitos doutrinadores, o que é mesmo o Direito?

Eis que há três perspectivas a serem consideradas, mas partem do eixo apresentado por Hart. No fundo a questão da obediência do Direito é também uma pergunta por sua validade, o que nos remete aos seus fundamentos, e retoma a polêmica sobre a moral e o conteúdo do Direito, ou seja, de se saber se este apenas se constitui de um sistema de regras.

Os três enfoques formam uma só teoria compondo o denominado positivismo jurídico moderado de Hart. Primeiramente, o conceito do doutrinador não exclui completamente o conteúdo moral do Direito, como tradicionalmente se caracterizou o positivismo jurídico.

E, pode ser atribuído a Hart, e sua obra, que enfrentou veemente o realismo jurídico de Oliver Wendel e Holmes, e, assim, se o direito não é aquilo que os tribunais dizem o que é, então, a questão da discricionariedade judicial fica, no mínimo, suavizada.

MacCormick afirma que uma das principais características do positivismo é negação de elo conceitual necessário entre o Direito e moral. Portanto tem a negação de que o Direito seja essencialmente um caráter moral em sua fundação. Apresentou Hart, tese diferenciada e apontou inevitável superposição entre o Direito e moral.

Reconhece nitidamente que o Direito possa a ser influenciado pela moral, entretanto, ressalta que isso não ocorre necessariamente.  Isto é, ele não nega a possibilidade de ligação entre direito e moral, mas apenas afirma que dessa relação não depende a validade das regras jurídicos. Portanto, não existe uma obrigação moral de obedecer à lei.

Mas, qual seria o lugar da moral para o doutrinador Hart? Enfim, tanto a moral como o Direito compartilham um conteúdo mínimo de Direito Natural e, existe um mínimo naturalmente necessário para que exista estabilidade social. E, afinal, aqueles que têm o desejo de sobreviver devem participar das ordenações sociais.

E, são estas regras essenciais ao convívio harmônio humano que também fazem parte de um código moral, de modo, que as regras jurídicas básicas sã também, de quase todos os pontos de vista, regras morais básicas.

É preciso lembrar, neste ponto, que, para Hart, o sistema jurídico é um sistema composto por regras – primárias e secundárias. As primárias são aquelas que impõem deveres e obrigações; as secundárias são as que concedem poderes (em uma linguagem mais simples, são regras procedimentais, de competência). Ambas, são regras sociais, que “devem sua origem e existência exclusivamente

 

às práticas sociais humanas” e, portanto, seu cumprimento não se traduz em uma exigências de obediência moral.

Onde fica, então, a validade deste sistema de regras? O que torna as regras primárias e secundárias Direito? Para responder a estas perguntas, Hart cria a regra de reconhecimento: uma regra secundária que estabelece critérios para que as demais sejam válidas.

Uma regra que quem “impõe deveres sobre aqueles que exercem o poder público e oficial, especialmente o poder de julgar”. E é aqui que, novamente, entra a questão da moral, pois, em resposta à crítica de Dworkin, no posfácio de sua obra, Hart afirma que “a norma [regra] de reconhecimento pode incorporar, como critério de validade jurídica, a obediência a princípios morais ou valores substantivos”.

Hart desenvolve uma noção forte de sistema de regras. Isso é resultado de sua insurgência contra o realismo jurídico, que preconizava o papel dos tribunais na determinação do conceito de Direito, como já demonstrado pelo posicionamento de Oliver Wendell Holmes.

Com isso, preconizava um conceito de Direito que não dependesse exclusivamente do entendimento dos juízes, mas que reconhecesse a importância das regras, pois, para ele, um jogo de beisebol cujas regras fossem desconsideradas ou ignoradas por decisão do árbitro seria qualquer outro tipo de jogo – o jogo do árbitro, talvez – menos o jogo de beisebol.

Apesar disso, desta defesa “das regras do jogo”, Hart admite que as regras que constituem o Direito possuem uma textura aberta. Isto é, para o autor, todas as regras possuem um núcleo rígido de significado e uma zona de incerteza, que ele denomina de zona de penumbra. Na decisão judicial, o juiz (ou o tribunal), em face dessa zona de incerteza, tem o poder de escolha.

Se fosse possível resumir Herbert Hart e seu conceito de direito, poderiam ser feitas as seguintes anotações:

  1. a) que o Direito é um sistema de regras;
  2. b) que este sistema de regras não possui uma necessária relação com a moral;
  3. c) que o Direito possui uma textura aberta;
  4. d) que, diante desta textura aberta, a moral abre as possibilidades interpretativas, pela numerosidade de princípios morais existentes; e) que a textura aberta exige escolha dos órgãos jurisdicionais; e f) que esta escolha não significa desconsiderar as regras do jogo.

Enfim, concluo que há mesmo uma superação do positivismo jurídico através do neopositivismo ou pós-positivismo que efetiva uma ruptura com o original positivismo jurídico. É inegável que a relação consequencialista no trinômio moral, princípios e discricionariedade. Com essa era principiológica vai-se além do que inicialmente propôs o positivismo, pois a ponderação prevalece e anuncia maior progresso para a concretização de direitos.

Referências

ARENDT, Hannah. O que é política? 3ª edição. Organização Úrsula Ludz. Prefácio Kurt Sontheimer. Tradução de Reinaldo Guarany.  Rio de Janeiro: Bertrand Brasi, 2002.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. 7ª Tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10ª edição. São Paulo: Malheiros, 1994.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant.  Acesso à Justiça. Tradução e Revisão Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.

CLÈVE, Clèmerson Merlin. (Coordenação). Direito Constitucional Brasileiro. Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

_____________; LORENZETTO, Bruno Meneses. Corte Suprema, Agir Estratégico e Autoridade Constitucional Compartilhada. Belo Horizonte: Fórum, 2021.

DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37ª edição. São Paulo: Malheiros, 2014.

DE CASTRO, Flávia Lages. História do Direito Geral e Brasil. 8ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

DE MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 36ª edição. São Paulo: Atlas, 2020.

DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press, 1986.

______. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University, 1978.

______. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

ENCARNAÇÃO, João Bosco da. Que é isto, o Direito? Introdução à Filosofia Hermenêutica do Direito. 5ª edição. Maio, 2010. Texto registrado. ISBN da 3ª edição impressa: 85-86633-55-0.

GALLO, Sílvio. Filosofia. Experiência do Pensamento.  São Paulo: Scipione, 2016.

HABERMAS, Jürgen. Conciencia moral y acción comunicativa. Barcelona: Península, 1996.

HART, Herbert. O conceito de direito. Tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fonte, 2009.

HOLMES JR., Oliver Wendell. The path of the law. In: BURTON, Steven J. (Editor). The Path of the Law and its influence. The legacy of Oliver Wendell Holmes Jr. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

HUFFER, Haide Maria. Educação Jurídica e Hermenêutica Jurídica. São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos,2006.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

KELSEN, Hans. A Justiça do Direito Natural. 2ª ed. (trad. João Baptista Machado), Coimbra, Américo Amado, 1979.

_____. Teoria Pura do Direito, 6ª edição. Coimbra, Armênio Amado, 1984.

LAFER, Celso. A reconstrução dos Direitos Humanos – um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, São Paulo, Cia Das Letras, 1988.

_____. O Brasil e a Crise Mundial: paz, poder e política externa, São Paulo, perspectiva. 1984.

LASTA, Letícia Lorenzoni; DA SILVA, Jerto Cardoso; WITCZAK, Marcus Vinicius Castro (Organizadores) Pandemia Covid-19: Saúde Mental e Práticas Sociais. Santa Cruz do Sul: EDUMISC, 2021.

LUHMANN, Niklas. Teoría de la sociedad. Tradução de Miguel Romero Pérez e Carlos Villalobos. México: Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Occidente, 1993.

MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. Uma teoria da argumentação jurídica. Tradução de Conrado Hübner Mendes e Marcos Paulo Veríssimo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.

MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial. Tradução de Giasone Rebuá. 5ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do Direito, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 1983, 2v.

POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. Doxa. Cuadernos de Filosofia del Derecho, Biblioteca Virtual Miguel Cervantes, n.º 21, 1998, p. 339-353. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/235828443225707 40087891/cuaderno21/volII/DOXA21Vo.II_25.pd . Acesso em 10.10.2021.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito.  19ª edição. São Paulo: Saraiva,

SANCHÍS, Luis Prieto. Notas sobre la interpretación constitucional. Revista del Centro de Estúdios Constitucionales, n. 9, pp. 175-198, 1991. Disponível em: http://www.cepc.es/rap/Publicaciones/Revistas/15/RCEC_09_173.pdf Acesso em: 10.10.2021.

SCHELEDER, Adriana Fasolo [et al]. Jurisdição constitucional e democracia. Itajaí: Ed. da Univali, 2016.

SCHEREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. 3ª edição. São Paulo: SaraivaJur, 2020.

STRECK, Lenio Luiz. Direito. In: BARRETTO, Vicente de Paulo; CULLETON, Alfredo (Coords.). Dicionário de filosofia política. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2010. p. 145- 150.

______. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas no direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

______. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, v. 1. (Coleção “O que é isto?”).

SGARBI, Adrian. Introdução a Teoria do Direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013.

TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do Direito Civil. Volume 4. Responsabilidade Civil 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

ZAGREBELSKY, Gustavo. Jueces Constitucionales. Tradução de Miguel Carbonell. In: CARBONELL, Miguel. (Org.). Teoría del neoconstitucionalismo. Ensayos escogidos.  2v. Madrid: Trotta, 2007.

[1] A Teoria Pura do Direito desenvolvida por Kelsen reduz a expressão do Direito à norma jurídica. Kelsen criou uma teoria que se refere somente ao Direito Positivo, desprezando os juízos axiológicos, rejeitando a ideia jusnaturalista, combatendo a metafísica, compreendendo o Direito como estrutura normativa. O direito se preocupa com o “dever ser” e não com o “ser” (fatos), a interpretação vai regulamentar o que dever ser e o ser que é o aplicado somente se ele se enquadrar no dever ser. A norma prevê de forma abstrata que dever ser a atitude então se há enquadramento haverá fundamento.

[2] Kelsen deixou claro que esta obra não se trata de teoria do direito puro, mas sim da teoria pura do direito, descreve cientificamente o Direito, qual possui um objeto: o Direito Positivo, estudando as estruturas que se constrói o Direito Positivo. A teoria identifica o estudo da validade, da vigência, da eficácia voltada para a norma jurídica, busca o funcionamento e o maquinismo descrevendo os múltiplos sentidos da interpretação da norma. Hans Kelsen, pensador do direito, fez parte do movimento do positivismo jurídico foi mais um na corrente do juspositivismo ou positivismo jurídico e para entendê-lo temos que entender essa corrente que vai anivelar a ciência jurídica, o estudo do direito enquanto ciência independente, trouxe autonomia para o direito como ciência e só é possível ter autonomia quando ela tem um objeto próprio, com princípios próprios.

[3] Aristóteles: o homem é um ser social porque é um animal que precisa dos outros membros da espécie.

Não é à toa que precisamos voltar para a Grécia, pois quem nos dará essa lição é Aristóteles. Para ele, o homem precisa de outras pessoas porque é um ser carente. Assim, precisa de outras pessoas para se sentir pleno e feliz. De acordo com o filósofo, é possível dividir as espécies animais em diferentes grupos. São eles: as gregárias (koinonia), as solitárias (monadika), aquelas que são propensas a uma vida sociável (politika), e aquelas que vivem de maneira esparsa (sporadika). Nessa conjuntura, o ser humano pertence aos três primeiros grupos. Ainda que algumas pessoas prefiram um certo isolamento, ninguém vive bem absolutamente sozinho. Além disso, só seria possível manifestar a maior grandeza humana na convivência. Estamos aqui falando da linguagem, pois apesar de existir linguagens animais, nenhuma outra espécie consegue falar.

[4] O processo de Galileu Galilei (em italiano: Il processo a Galileo Galilei) foi uma sequência de eventos, começando em torno de 1610, culminando com o julgamento e condenação de Galileu Galilei pela Inquisição Católica Romana em 1633 por sua defesa do heliocentrismo. Em 24 de fevereiro os qualificadores entregaram seu relatório unânime: a proposição de que o Sol está parado no centro do universo é “tola e absurda na filosofia e formalmente herética, pois contradiz explicitamente em muitos lugares o sentido da Sagrada Escritura”; a proposição de que a Terra se move e não está no centro do universo “recebe o mesmo julgamento na filosofia, e em relação à verdade teológica é pelo menos errônea na fé”. O documento original do relatório foi amplamente disponível em 2014. No entanto, os amigos de Galileu, Giovanni Francesco Sagredo e Castelli, relataram que havia rumores de que Galileu tinha sido forçado a retratar-se e fazer penitência. Para proteger seu bom nome, Galileu solicitou uma carta de Belarmino esclarecendo a verdade do assunto. Esta carta assumiu grande importância em 1633, assim como a questão de saber se Galileu tinha sido ordenado a não “manter ou defender” as ideias copernicanas (o que teria permitido o seu tratamento hipotético) ou não ensiná-las de forma alguma. Se a Inquisição tivesse emitido a ordem de não ensinar o heliocentrismo, teria ignorado a posição de Belarmino. No final, Galileu não persuadiu a Igreja a permanecer fora da controvérsia, mas viu o heliocentrismo declarado como formalmente falso. Por conseguinte, foi categorizado como herético pelos Qualificadores, uma vez que contradizia o significado literal das Escrituras, embora essa posição não fosse vinculativa para a Igreja.

[5] O princípio de verificabilidade dos pensadores do Círculo de Viena foi um dos principais pontos combatidos por Popper. Para ele, uma proposição poderia ser considerada verdadeira ou falsa não a partir de sua verificabilidade, e sim da sua refutabilidade (ou falseabilidade). A observação científica, segundo ele, é sempre orientada previamente por uma teoria a ser comprovada, ou seja, a ciência que se baseia no método indutivo seleciona os fenômenos que serão investigados para a comprovação de algo que já se supõe. Por essa razão, o critério de verificabilidade nem sempre será válido. O princípio proposto por Popper, em vez de buscar a verificação de experiências empíricas que confirmassem uma teoria, buscava fatos particulares que, depois de verificados, refutariam a hipótese. Assim, em vez de se preocupar em provar que uma teoria era verdadeira, ele se preocupava em provar que ela era falsa. Quando a teoria resiste à refutação pela experiência, pode ser considerada comprovada. Com o princípio da falseabilidade, Popper estabeleceu o momento da crítica de uma teoria como o ponto em que é possível considerá-la científica. As teorias que não oferecem possibilidade de serem refutadas por meio da experiência devem ser consideradas como mitos, não como ciência. Dizer que uma teoria científica deve ser falseável empiricamente significa dizer que uma teoria científica deve oferecer possibilidade de refutação – e, se refutadas, não devem ser consideradas.

[6] Thomas Kuhn, em oposição a Popper, que pensava que a ciência progrediria por meio de refutações, forjou o conceito de “paradigma”. No entanto, o que ele pretendia dizer com “paradigma” não tem um sentido único em sua obra, A Estrutura das Revoluções Científicas: nela constam vinte e dois significados diferentes. Tal pluralidade de sentidos levou-o a escrever um “posfácio”, em 1969, no qual admitia dois sentidos. Em uma definição simples, para Kuhn, a ciência desenvolver-se-ia pela criação e abandono de paradigmas, modelos consensuais adotados pela comunidade científica de uma época. Depois do estabelecimento de um paradigma, haveria um período histórico em que os cientistas desenvolveriam as noções e problemas a partir do paradigma adotado. Esse período foi chamado por ele de “Ciência Normal”, período no qual se acumulam descobertas, um período de estabilidade de opiniões a respeito de pontos fundamentais. Quando o paradigma é questionado, surge um momento de crise; no entanto, o paradigma ainda não é abandonado. Os cientistas mobilizam seus esforços para resolver as anomalias. Chega-se a um ponto, porém, em que não é mais possível resolver tais anomalias e isso leva a uma revolução científica, momento no qual desponta um novo paradigma. Esse paradigma não é superior ao anterior, apenas atende mais as necessidades do período histórico em que os cientistas estão inseridos.

[7] A teoria da relatividade geral de Albert Einstein, publicada em 1915, revolucionou completamente a compreensão da ciência sobre o universo. Ela só foi confirmada pela primeira vez em 1919, com um experimento feito durante um eclipse total do Sol em Sobral, no Ceará, e na Ilha de Príncipe, no arquipélago de São Tomé e Príncipe. Até o início do século 20, a Física era regida pelas leis de Isaac Newton. O físico e matemático inglês dizia que a gravidade era uma força causada pela massa dos objetos e fazia com que eles fossem atraídos um em direção ao outro. O objeto com mais massa atrai mais intensamente. Por isso, nos mantemos sobre o chão na Terra. Ela nos atrai para o seu centro. Por isso também os planetas se movem ao redor do Sol. Mas imagine que o Sol, de repente, desaparecesse por completo. Segundo a teoria de Newton, os planetas do Sistema Solar sairiam instantaneamente de suas órbitas, já que não haveria mais a força de gravidade do Sol atraindo-os. Para ele, a gravidade era uma força de ação imediata, independente da distância entre os corpos. Mas Einstein encontrou um problema: segundo seus cálculos, a luz era a coisa mais rápida do Universo. Nenhum corpo com massa alcançava uma velocidade superior à da luz. Nem a gravidade. Nos dez anos que passou pensando nisso, entre 1905 e 1915, o físico alemão criou a teoria da relatividade geral. Ele imaginou as três dimensões do espaço e a dimensão do tempo juntas, como uma espécie de tecido que nos rodeia e que é deformado pela presença dos corpos celestes massivos, como os planetas e estrelas. Essas deformações criam o que nós sentimos como força de gravidade Então a Terra e os outros planetas permanecem em órbita não porque o Sol simplesmente os atrai, como pensava Newton. Para Einstein, isso acontece porque o Sol é uma estrela tão massiva que os outros corpos seguem a curvatura que ela gera no tecido do espaço-tempo. A relatividade geral permitiu explicar desde o nascimento do Universo até a órbita dos planetas e os buracos negros. Até hoje, algumas de suas previsões são testadas e confirmadas pelos cientistas, que se surpreendem com a precisão das ideias do físico alemão. Por causa dela, ele se tornou uma das figuras mais icônicas da ciência mundial.

[8] Método, é uma palavra derivada do grego, significando literalmente, “caminho pelo qual”, e podemos dizer que é o meio para atingir um fim. A partir do pensamento moderno, contudo, perseguindo-se a objetividade no conhecimento, caracterizou-se a ciência tão somente pelo método empírico, isto é, o conhecimento constatável e experienciado positivamente pelos sentidos, de maneira que apenas as ciências naturais, aquelas que estudam a natureza, como a física, a química e a biologia, podiam ser consideradas ciências. É o chamado Cientismo, onde as ciências humanas, ou ciências do espírito, como eram chamadas, não tinham lugar e, por isso, não podiam ser levadas a sério como ciência.

[9] A decidibilidade é, portanto, a adequação da norma prevista à situação fática. É o instrumento de exteriorização prática do Direito. Observa Tércio Sampaio Ferraz Jr., que, nessa adequação, a Ciência do Direito se apoia em variados modelos interpretativos. O primeiro modelo, denominado de analítico, vê essa questão da decidibilidade, como sendo uma adequação do sistema normativo de regras com uma situação fática de um ser humano dotado de necessidades. É uma possibilidade de decisão com caráter organizatório. Se apoia na unidade do sistema, tendo como objetivo máximo a justiça (ideal guia do Direito) e neutralizando assim influências políticas e econômicas nessa adequação. É um modelo preocupado, sobretudo, com a validade da norma vigente. Segundo Maria Helena Diniz, essa validade deve ser analisada sob dois aspectos: fática e ideal. Enquanto a primeira se refere à efetividade da norma, à coerção pelo Estado nas incidências comportamentais previstas, a segunda observa a situação em que está presente um conflito argumentativo (doutrinário). Outro modelo teórico usado nessa adequação é o denominado hermenêutico. Enxerga na decibilidade uma problemática entorno da relevância significativa do comportamento humano. Todo agir do ser humano é dotado de significações, e cabe a Ciência do Direito, sua interpretação. Esse método torna todos os conflitos decidíveis, uma vez que minimiza suas contradições ao ordenamento. É uma interpretação extensiva do texto legal, presente em lacunas jurídicas ou antinomias. Observa o valor resguardado pela norma (voluntas legis).

[10] O Direito é um fenômeno decorrente da própria natureza do ser humano, dadas as suas condições existenciais como animal político, como disse Aristóteles, de maneira que a convivência é baseada na limitação de liberdades, como observou Kant.  Para este, há uma clara distinção entre o imperativo categórico e o imperativo hipotético, sendo que o primeiro, fundado na autonomia, é a ação por princípio, por autoconvencimento, da necessidade de preservar determinados valores, ao passo que o segundo funciona quando o primeiro falha e, fundado na heteronomia, é a ação por consequência, por determinação de normas extrínsecas à consciência, ou seja, por causa de normas dadas pela sociedade.

[11] Aliás, a expressão “muletas metafísicas” é uma metáfora que aponta para um corpo fraco que se apoia sobre algo para mitigar seu sofrimento. É justamente o que impede a evolução da humanidade, porque

ao invés de a pessoa viver a vida como ela é, vive-se apenas pensando num mundo que não existe. A muleta metafísica é conceito marcante do pensamento de Nietzsche, pois compreende todas as verdades que sustentam os comportamentos do mundo real em função de um mundo ideal. Trata-se de verdades que se apresentam para solucionar o problema da insegurança e da fragilidade e, que, por derradeiro, subtraem o homem do mundo da vida (efêmero) e o projeta em um mundo eterno (estático).

[12] Giorgio Del Vecchio foi professor de Direito da Real Universidade de Roma. (1878-1970) Foi importante filósofo jurídico italiano do início do século XX. Entre outros, influenciou as teorias de Norberto Bobbio, é famoso por seu livro “Justiça”. Entre os maiores intérpretes do neocantantismo italiano, Giorgio Del Vecchio, como seus colegas alemães, criticou o positivismo filosófico, afirmando que o conceito de direito não poderia ser derivado da observação de fenômenos jurídicos. Nesse sentido, ele entrou na disputa entre filosofia, teoria geral e a sociologia do direito que estava em fúria na Alemanha, redefinindo a filosofia do direito. Em particular, ele atribuiu a ela três tarefas: uma tarefa lógica que consistiria na elaboração do conceito de direito; uma tarefa fenomenológica, consistindo no estudo do direito como um fenômeno social; uma tarefa deontológica, que consiste em “buscar e avaliar a justiça, isto é, o direito como deveria ser”

[13] Henri Capitant (1865-1937). Foi professor e notável professor de Direito em Grenoble (1891) e na Faculdade de Direito de Paris (1908). Suas várias obras de direito tiveram um efeito duradouro na educação jurídica francesa, incluindo a Introdução à l’etude du droit civil (1898), Cours élémentaire de droit civil (1914-16) com Ambroise Colin, Questions de droit civil (1933) e Grands arrêts de la jurisprudence civile (1934). Henri Capitant considera a distinção entre direito real e direito obrigacional “a espinha dorsal do direito privado”. Por isso, a melhor técnica para se conceituar o direito real é compará-lo e distingui-lo do direito obrigacional.

[14] Doutor da Igreja é aquele cristão ou aquela cristã que se distinguiu por notório saber teológico em qualquer época da história. O conceito de Doutor da Igreja difere do de Padre da Igreja, pois Padre da Igreja é somente aquele que contribuiu para a reta formulação dos artigos da fé até o século VII no Ocidente e até o século VIII no Oriente. Há Padres da Igreja que são Doutores. Assim os quatro maiores Padres latinos (S. Ambrósio, S. Agostinho, S. Jerônimo e S. Gregório Magno) e os quatro maiores Padres gregos (S. Atanásio, S. Basílio, S. Gregório de Nazianzo e S. João Crisóstomo). Interessante é notar que nenhum mártir foi proclamado doutor da Igreja (tal poderia ter sido o caso de S. Cipriano de Cartago, vigoroso defensor da unidade da Igreja), e não o foi porque o martírio é con­siderado o maior título de glória, que não necessita de algum comple­mento para enaltecer a figura do cristão. No século XVI a Igreja renunciou à nota da antiguidade e pas­sou a designar como Doutores figuras de épocas mais recentes. A primeira proclamação neste sentido foi feita pelo Papa S. Pio V, aos 11/4/1567, em favor de S. Tomás de Aquino (+ 1274). Outras procla­mações ocorreram posteriormente, como se depreende da lista publicada a seguir.

[15] Hugo Grotius, Hugo de Groot, Huig de Groot ou Hugo Grócio (Delft, 10 de abril de 1583 – Rostock, 28 de agosto de 1645) foi um jurista a serviço da República dos Países Baixos. É considerado o fundador, junto com Francisco de Vitória e Alberico Gentili, do Direito internacional, baseando-se no Direito natural. Foi também filósofo, dramaturgo, poeta e um grande nome da apologética cristã. Em 1618, após um inesperado golpe de Estado calvinista, foi preso com van Oldenbarnevelt e Rombout Hoogerbeets (pensionário de Leyden) em nome dos novos Estados Gerais.  Havia apoiado o parlamento holandês e van Oldenbarnevelt em sua disputa com Maurício de Nassau, e com a ascensão deste último, acabou preso. Em 1619, um tribunal especial de 24 juízes julgou os prisioneiros políticos, sentenciando à morte Van Oldenbarnevelt (executado em 13 de maio de 1619) e Grócio e Hoogerbeets à prisão perpétua no castelo de Loevestein. Em 1620, um segundo julgamento declarou Grócio culpado de traição (laesa majestas).  Vendo-se perdido, empreende, com ajuda de sua mulher, uma fuga espetacular, escondendo-se numa arca de livros, e escapa para Amsterdam; de lá, segue para Paris.

[16] A Escola Histórica do Direito foi uma escola de pensamento jurídico – precursora do positivismo normativista que apareceria com a Jurisprudência dos conceitos – que surgiu nos territórios alemães no início do século XIX e exerceu forte influência em todos os países de tradição romano-germânica. A escola histórica do direito foi desenvolvida pelos jusfilósofos alemães Gustav Hugo, Friedrich Carl Savigny (seu maior corifeu) e Georg Friedrich Puchta. Os três defenderam, em seus estudos, a investigação do Direito sob o prisma histórico, utilizando-se na interpretação e aplicação do mesmo o método histórico. Na concepção historicista, o Direito não emana do Estado, ou seja, não é representado pela lei ou jurisprudência, mas advém do povo, que o concebe espontaneamente, na forma de costume. Eis que o costume era visto como a manifestação genuína do povo, para qual o direito é direcionado. Nesse viés, o Direito reduz-se ao direito consuetudinário.

[17] Numa época quando se ensinava o Código Civil Francês de 1804 nas cadeiras de direito civil, Gény escolheu um método de interpretação independente da vontade do legislador, entendendo que tal vontade não prevalecia ao longo dos anos. No seu “Método de Interpretação e Fontes em Direito Privado Positivo: Ensaio Crítico”, publicado em 1899, ele procura demonstrar que não é necessário procurar na lei mais soluções além das que estão contidas em sua fórmula e que, sobretudo, o costume, a tradição doutrinária e a livre investigação científica forneciam ou criavam o complemento de um direito positivo que não era vinculado artificialmente à lei. Em Ciência e Técnica em Direito Privado Positivo, publicado entre 1914 e 1924, Gény procura descobrir a exata fonte de onde brotam os princípios e as regras, ou seja, o direito em si, e a atingir pelas vozes combinadas do conhecimento e da ação. Segundo ele, a ciência se serve de todos os procedimentos do conhecimento e se aplica ao dado. Sociologia, economia, linguística, filosofia e teologia figuraram entre as fontes da livre investigação científica.

[18] Enneccerus também atuou politicamente. Ele foi um dos nacional-liberais influenciados pela fundação do Império Alemão. De 1882 a 1898 ele foi membro do governo representando o distrito eleitoral de Kassel 3 (cidade de Kassel) na câmara dos deputados Prussiana, e foi um parlamentar ativo. De 1887 a 1890 e de 1893 a 1898, ele também foi representante do Grão-Ducado de Oldenburg 1 (Oldenburg Principado de Lubeck – Birkenfeld) no Reichstag. Envolveu-se na redação do Código Civil Alemão (BGB) em 1896, já no final do processo.

[19] O Digesto (do latim digerere, que significa pôr em ordem) ou Pandectas (do grego pandékoma, que significa “recolho tudo”), é uma compilação de fragmentos de jurisconsultos clássicos. Escrito em latim e grego (daí a dupla denominação), é a obra mais completa que a Codificação Justinianéia tem e ofereceu maiores dificuldades em sua elaboração. Realizada a compilação das leges (constituições imperiais), era necessário resolver um problema com relação aos iura (direito contido nas obras dos jurisconsultos clássicos), que não tinham sido ainda compilados. Havia entre os jurisconsultos antigos uma série de controvérsias a solucionar.  Para isso, Justiniano expediu 50 constituições (as Quinquaginata Decisiones). É provável que durante a elaboração delas surgisse a ideia da compilação dos iura. O Digesto diferenciava-se do Código por não ter havido anteriormente trabalho do mesmo gênero. A massa da jurisprudência era enorme, frequentemente difícil de ser encontrada. Havia muitos autores, com pontos de vista diversos, por vezes antagônicos. A tarefa parecia ciclópica, e era temerário juntar todo esse amálgama de opiniões num trabalho homogêneo. Para o término desse projeto grandioso, previu Justiniano prazo mínimo de dez anos. No entanto, sob a presidência de Triboniano, a comissão de 16 membros, depois de compulsar cerca de 1 625 livros (com três milhões de linhas), extratando 39 jurisconsultos, concluiu o trabalho em apenas três anos. Era o Código de doutrinas seletas, Codex enucleati iuris, oficialmente denominado Digesto (Digesta) ou Pandectas (Pandectae), o qual foi promulgado em 15 de dezembro de 533, para entrar em vigor daí a 15 dias. A obra é composta de 50 livros, subdivididos em aproximadamente 1 500 títulos, segundo ao assunto.  Sob cada um dos títulos figuram fragmentos de obras de mais de quarenta jurisconsultos romanos do período clássico, de Quinto Múcio Cévola, que morreu no ano 82, a Hermogeniano e Carísio (dos séculos III e IV). As Pandectas constituíam uma suma do direito romano, em que inovações úteis se misturavam a decisões clássicas. Restritas, na prática, ao Império Bizantino, só no século XI foram descobertas pelo Ocidente. A comparação dos manuscritos existentes no Código de Justiniano foi o primeiro passo para o renascimento do direito, que teve como centro a Universidade de Bolonha. Quase todos os direitos modernos decorrem do direito romano e das Pandectas.

[20] Na Antiguidade Clássica, o direito (jus) era fenômeno de ordem sagrada, em Roma, essa ideia foi transmitida por meio de tradições, delineando sua expansão na forma de império. Assim, o Direito é forma cultural sagrada, era um exercício de uma atividade ética, a prudência, virtude moral do equilíbrio e da ponderação dos atos de julgar. E, nesse quadro a prudência ganhou importância especial, sendo qualificada como Jurisprudentia.

[21] A ontologia jurídica, então, é a parte da Filosofia do Direito que tem, entre outras funções, a de determinar o conteúdo do direito, fazendo conhecer seu objeto e por fim possibilitando a determinação de seu conceito e posterior definição. A palavra “ontologia” vem do grego, em que a partícula on vem do particípio que significa “o que é”, “o ente”, dando origem ao termo ontos. A indagação inicial, sugerida pela etimologia, busca investigar o que é o ente. Discutir o tema da ontologia jurídica, pois, requer certos esclarecimentos de sentido de emprego do respectivo termo. Para tanto, há uma incursão pela análise de certos marcos que, a princípio, não seriam rigidamente fixáveis, mas que, em virtude da necessidade de se realizarem estudos com bases sólidas, requerem uma estipulação de “tipos ideais” para efetivar tal mister.  Tais tipos ideais, por conseguinte, podem não corresponder com total exatidão aos fenômenos da realidade; todavia, são formas de observar os fenômenos a partir de standards que, mesmo não totalmente exatos, são necessários para a tentativa de análise da vida social.

[22] Uma das teorias apresentadas é chamada de “Teoria do Mínimo Ético”, que correlaciona esses dois itens indispensáveis à vida em sociedade, demostrando como o Direito representa o mínimo de Moral, declarada obrigatória para que a sociedade possa se ordenar de forma pacífica e, por vezes, se justifica, na necessidade social de suprir uma lacuna exposta pela falta de capacidade que o indivíduo apresenta de guiar-se por uma razão prática. É apresentado como questão de controvérsia a que nem tudo que é moral é legal, nem tudo que é legal é moral. A teoria do mínimo ético foi desenvolvida pelo jurista Georg Jellinek (1851-1911) e aperfeiçoada por Jeremy Bentham (1748-1823). Essa teoria consiste na ideia de que todas as normas jurídicas são normas morais. Desse modo, considera-se que as normas morais mais relevantes para a sociedade são transformadas, pelo Estado, em normas jurídicas. Assim o direito representa apenas o mínimo de preceitos morais necessários para que a sociedade possa viver em harmonia.

 

 

.

[23] Direitos fundamentais são aqueles inerentes à proteção do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Elencados na Constituição Federal, possuem a mesma finalidade que os direitos humanos. A diferença se dá no plano em que são instituídos: se os direitos declaram, as garantias fundamentais asseguram. Os direitos fundamentais são aqueles essenciais ao ser humano. Há certa confusão entre eles e os direitos humanos. Por isso, importa saber: direitos fundamentais estão positivados no ordenamento constitucional de uma nação, já os direitos humanos estão além das fronteiras, supranacionais, independentemente de positivação constitucional.  José Afonso da Silva utiliza o termo “direitos fundamentais do homem” para tratar desses direitos. Para se respeitar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, segundo o autor, é necessário que esses direitos sejam prerrogativas que o direito positivo concretize. Podemos dizer que estes são os direitos básicos individuais, coletivos, sociais e políticos presentes na Constituição.

[24] Ou seja, as garantias fundamentais defendem os direitos consagrados pelo nosso ordenamento jurídico, mas que não estão sendo respeitadas.  Como exemplo das garantias temos os remédios constitucionais elencados no art. 5º, que são eles: a ação popular, o habeas corpus, o habeas data, o mandado de segurança, o mandado de segurança coletivo e o mandado de injunção. Garantias em face da proteção de grupos minoritários são meios de defesa, uma maneira de precaução para que estes se mantenham “armados” constitucionalmente, e possam efetivar direitos os quais constituem liberdades civis e políticas. A Constituição de 1988 inovou com um debate, em um momento histórico entre individualistas e coletivistas, através da positivação de direitos fundamentais sobre natureza individual e não individual. Com esta discussão, chegou-se à pesquisa e pensamento cultural com a positivação dos direitos culturais, voltados para o reconhecimento de diferenças como elemento de realização do princípio da igualdade. Bonavides coloca que garantias constitucionais são garantias individuais não havendo distinção de significados no emprego de ambas, pois elas concretizam os direitos no sentido de protegê-los. Garantias individuais são normas constitucionais as quais asseguram a todos os cidadãos seus direitos individuais e dão a estes direitos a sanção vinda da lei constitucional (2010). O que procura- se com a pesquisa aqui desenvolvida é mencionar as garantias individuas dentro de grupos identificáveis, no sentido de caracterizar e proteger sua cultura determinada. Neste sentido há de se cogitar em um relacionamento com os direitos fundamentais, e no que se referem a direitos individuais as garantias constitucionais são uma espécie de escudo contra os desvios de poder do Estado.

[25] Justiça social é uma construção moral e política baseada na igualdade de direitos e na solidariedade coletiva. Em termos de desenvolvimento, a justiça social é vista como o cruzamento entre o pilar econômico e o pilar social. O conceito surge em meados do século XIX, referido às situações de desigualdade social, e define a busca de equilíbrio entre partes desiguais, por meio da criação de proteções (ou desigualdades de sinais contrários), a favor dos mais fracos. Para ilustrar o conceito, diz-se que, enquanto a justiça tradicional é cega, a justiça social deve tirar a venda para ver a realidade e compensar as desigualdades que nela se produzem. No mesmo sentido, diz-se que, enquanto a chamada justiça comutativa é a que se aplica aos iguais, a justiça social corresponderia à justiça distributiva, aplicando-se aos desiguais. O mais importante teórico contemporâneo da justiça distributiva é o filósofo liberal John Rawls. Em Uma Teoria da Justiça (A Theory of Justice), de 1971, Rawls defende que uma sociedade será justa se respeitar três princípios: garantia das liberdades fundamentais para todos; igualdade equitativa de oportunidades; manutenção de desigualdades apenas para favorecer os mais desfavorecidos.

[26] O professor e filósofo John Rawls apresenta contribuições importantíssimas na área da filosofia política, tendo em sua autoria diversos artigos e livros que trabalham a ideia de justiça na sociedade, sendo os principais: ‘’A Theory of Justice’’ (1971), ‘’Political Liberalism’’ (1993), ‘’The Law Off Peoples’’ (1999), e ‘’Justice as Fairness: A Restatement’’ (2001). Em seu primeiro livro há um conjunto de oito capítulos que sistematizam os seus conceitos. A teoria da justiça de Rawls apresenta os princípios do que é justiça delimitando-a a partir da ideia de uma estrutura de democracia constitucional.

A justiça equitativa de Rawls surge da busca por um ideal de justiça que de certa forma neutralize o modo de ser, social e biológico (no que diz respeito as habilidades naturais que dão vantagens aos indivíduos) que de algum modo pode ser arbitrário. Rawls utiliza do contrato social como método para estabelecer “os dois princípios da justiça“, sendo eles: liberdade e igualdade. Por fim, pode-se concluir que a obra de John Rawls fundamenta o conceito de justiça, atentando para as liberdades e direitos fundamentais, mas também buscando um bem comum, seja ele político, social ou econômico, assim como aponta o juiz federal e professor Ricardo Perligeno Mendes da Silva: “O sistema social deve ser concebido por forma a que o resultado seja justo, aconteça o que acontecer. Para atingir este objetivo, é necessário que o processo econômico e social seja enquadrado por instituições políticas e jurídicas adequadas”.

[27] Apesar de ter sido criado em 26 de novembro de 2007, o Dia Mundial da Justiça Social só começou a ser comemorado 2 anos mais tarde, no dia 20 de fevereiro de 2009. A ONU, responsável pela idealização da data, o fez como uma maneira de reforçar tudo o que precisar ser promovido para que o conceito de justiça social possa realmente ser posto em prática. O conceito de Justiça Social começou a ser discutido no final do século XIX, quando sua ideia central era buscar um equilíbrio entre todas as pessoas.  Dessa forma, já àquela época, estava estabelecido que em uma sociedade na qual uma parcela dos seus membros não tem acesso a direitos básicos, como segurança, alimentação, educação e moradia, não existe justiça social. Atualmente, as situações de pobreza moderada ou pobreza extrema atingem pelo menos 20% da população mundial. Mais do que isso, a OIT lembra afirma que “muitos trabalhadores recebem salários estagnados, a desigualdade de gênero prevalece e as pessoas não estão se beneficiando igualmente do crescimento econômico”. No Brasil, as desigualdades são estruturais, racismo e machismo são pilares institucionais e os números relacionados à distribuição de renda no país são prova disso. Aqui, o 1% mais rico fica com quase 30% da renda nacional, e uma trabalhadora que vive de um salário-mínimo levaria 19 anos para ganhar o que um super-rico recebe em um mês.

[28] Hayek toma como modelo de suas contribuições no domínio do social a teoria da evolução de Darwin. Claramente não se inclui entre os que, no passado, trouxeram para a teoria social o que se denominou de Darwinismo social. Sua posição relativamente a Darwin é outra. Na verdade, o que ele retira de Darwin, é sua tese de que pequenas mudanças, por acaso produzidas num organismo, se resultam em vantagens em termos de melhor ajustamento ao meio, são preservadas e, logo, transmitidas geneticamente. Vale que se registre que essa tese foi minuciosamente analisada por Bergson em seu clássico trabalho “L’Évolution Créatice”, assinalando-se maior vantagem para a concepção de De Vries.  De qualquer modo, Hayek a transpõe para o domínio do social passando a sustentar a tese de que, também aqui, pequenas mudanças registráveis nas interações humanas, fixam-se, se elas se revelam úteis, e em processos cumulativos, geram estruturas novas e novas formas institucionais. Tudo se regularia pelo acaso e pelo critério da utilidade e nunca pela razão.

Angélica GiorgiaGisele Leite
Professora Universitária há mais de três décadas. Pedagoga. Mestre em Direito UFRJ. Mestre em Filosofia UFF. Doutorado em DIreito USP. Autora de 29 obras jurídicas. Diretora-Presidente da Seccional RJ da Associação Brasileira de Direito Educacional (ABRADE). Consultora IPAE Instituto de Pesquisas e Administração da Educação. Pesquisadora-Chefe do INPJ Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Articulistas dos principais sites e revistas jurídicas, como JURID, LEX, Portal Investidura, COAD, Bonijuris, Revista Prolegis,  etc. Ganhadora da Medalha Paulo Freire pela Câmara Municipal de Duque de        Caxias, Rio de Janeiro.

STJ tem assegurado melhor interesse de crianças e adolescentes à espera de adoção

0

Decisões recentes reafirmam a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ, fundamentada pela doutrina da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente, princípios também preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/1990) e que norteiam a defesa dos direitos desse grupo vulnerável.

A ministra do STJ Nancy Andrighi, destaca que, nas ações que envolvem interesse da infância e da juventude, não são os direitos dos pais ou responsáveis que devem ser observados. “É a criança que deve ter assegurado o direito de ser cuidada pelos pais ou, ainda, quando esses não manifestam interesse ou condições para tanto, pela família substituta, tudo conforme balizas definidas no artigo 227 da Constituição Federal, que seguem estabelecidas nos artigos 3º, 4º e 5º do ECA.”

Confira, a seguir, julgados neste sentido. Os números dos processos citados não são divulgados em razão de segredo judicial.

Conflito de competência

Recentemente, a Segunda Seção estabeleceu a competência do juízo da localidade onde uma adolescente se encontrava – e não o do domicílio de sua guardiã legal – para examinar medidas protetivas propostas pelo Ministério Público estadual. A jovem estava sob a guarda legal de uma mulher, em uma cidade do Paraná, desde a morte de sua mãe biológica, quando tinha quatro meses de idade.

Em razão da denúncia de violência física e psicológica por parte da guardiã, o Ministério Público estadual ajuizou medida protetiva em favor da adolescente, tendo o juízo da localidade determinado o acolhimento emergencial em abrigo municipal. Em menos de um mês, a adolescente fugiu e se abrigou com parentes biológicos maternos residentes no Rio Grande do Sul – o que levou o juízo do Paraná a declinar da competência para julgar a medida protetiva.
O juízo da cidade gaúcha, por sua vez, suscitou o conflito de competência perante o STJ, ao argumento de que o artigo 147, incisos I e II, do ECA estabelece que o foro competente para apreciar e julgar medidas, ações e procedimentos que tutelam interesses, direitos e garantias legais é determinado pelo domicílio dos pais ou responsáveis. Segundo o relator do caso, ministro Marco Buzzi, a orientação pacífica do colegiado é no sentido de que, em se tratando de questionamentos acerca da guarda, prevalecerá a competência do foro da comarca daquele que detém a guarda legal da criança ou do adolescente (Súmula 383).

O ministro ponderou que o caso dizia respeito à competência para julgar medida protetiva em favor de adolescente em situação de risco, e não à discussão sobre guarda legal. Em situações semelhantes, o tribunal considerou mais adequada a declaração de competência do juízo do local onde se encontrava o menor, uma vez que, pela proximidade, seria possível atender de maneira mais eficaz aos objetivos do ECA, bem como entregar a prestação jurisdicional de forma rápida e efetiva. “Na resolução de conflitos que versam sobre o atendimento das necessidades de crianças e adolescentes, o norte hermenêutico deve ser sempre o interesse do menor.”

Segundo ele, tendo em vista esse princípio e ainda o princípio do juízo imediato (artigo 147 do ECA), a fixação da competência no juízo que tem a possibilidade de interação mais próxima com o menor e seus responsáveis viabiliza a concretização dos objetivos traçados na lei.

Afastamento familiar e ação de guarda

Mesmo que a sentença em ação de afastamento de convívio familiar transite em julgado, com a determinação de acolhimento institucional do menor, é possível o ajuizamento de ação de guarda por quem pretende reavê-la. Este foi o entendimento definido pela Terceira Turma no ano passado ao dar provimento ao recurso de um casal para determinar o prosseguimento da ação de guarda ajuizada em abril de 2018, na qual pretendiam reaver a guarda que exerciam irregularmente sobre uma criança no período de 2014 a 2016 – quando o Ministério Público obteve tutela antecipatória em ação de afastamento de convívio familiar para o acolhimento institucional da menor.

A ação de guarda foi extinta. O Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP entendeu que o casal careceria de interesse processual, na modalidade utilidade, para rediscutir as mesmas questões que já haviam sido objeto de decisão na ação de afastamento.

Segundo a relatora, ministra Nancy Andrighi, as ações de guarda e de afastamento do convívio familiar têm pretensões ambivalentes. Enquanto na primeira pretende-se exercer o direito de proteção da pessoa dos filhos (guarda sob a ótica do poder familiar) ou de quem, em situação de risco, demande cuidados especiais (guarda sob a ótica assistencial); na segunda, pretende-se a cessação ou a modificação da guarda em razão de risco para a pessoa que deve ser preservada.

Adoção à brasileira

Com relação a adoção à brasileira, tema sensível e caro ao Direito de Família no país, as turmas de direito privado que compõem a Segunda Seção do STJ adotam o entendimento de que, “salvo evidente risco à integridade física ou psíquica do menor, não é de seu melhor interesse o acolhimento institucional, devendo ser prestigiada, sempre que possível, a sua manutenção em um ambiente de natureza familiar, desde que este se mostre confiável e seguro, capaz de recebê-lo com conforto, zelo e afeto”.

Neste sentido, em agosto de 2020, a Quarta Turma confirmou liminar e concedeu habeas corpus para revogar a decisão que, no curso da ação de nulidade do registro civil de um bebê de um ano e seis meses, determinou o seu acolhimento institucional. O entendimento é de que, mesmo com fortes indícios de irregularidades na adoção, inclusive com suspeita de pagamento, a transferência para um abrigo não seria a solução mais recomendada.

No caso concreto, o STJ permitiu a permanência da criança com a família adotiva até a conclusão da ação de nulidade do registro. De acordo com a ministra Isabel Gallotti, relatora, deveria prevalecer no caso o princípio do melhor interesse do menor, que conviveu desde o nascimento com a mãe registral.

Segundo a ministra, a criança foi entregue de forma irregular para a mãe registral logo após o parto. A decisão de acolhimento institucional foi proferida quando ela contava com oito meses de vida. Por força de liminar deferida pela Presidência do STJ, o infante voltou ao convívio da família registral, após ter passado poucos dias no abrigo.
A ministra Gallotti pontuou que a mãe registral e sua companheira estavam inscritas no Cadastro Nacional de Adoção, e não havia menção de risco algum à integridade física e psicológica do infante. Além disso, estava comprovado no processo que a mãe biológica era uma adolescente usuária de drogas que não tinha condições nem interesse na criação do filho.

Em decisão oposta, a Terceira Turma negou provimento ao recurso em habeas corpus interposto por uma mulher acusada de praticar adoção à brasileira, no qual pedia a guarda da criança. O Tribunal considera que, em situações excepcionais, quando os laços socioafetivos ainda não se consolidaram, e sendo a adoção irregular, a jurisprudência recomenda o acolhimento institucional, tanto para evitar o estreitamento do vínculo afetivo quanto para resguardar a aplicação da lei.

Neste processo, a mãe biológica do infante foi convencida a deixá-lo aos cuidados da filha da idosa para quem trabalhava, até resolver problemas financeiros. Algum tempo depois, foi demitida por mensagem de aplicativo e não teve o filho de volta. A filha da idosa ajuizou ação para adotar a criança, mas o juízo de primeiro grau rejeitou o pedido por reconhecer que ela agiu de má-fé, aproveitando-se das dificuldades financeiras da mãe biológica para obter a guarda de fato. Na tentativa de evitar o recolhimento a uma instituição, a guardiã ajuizou habeas corpus no tribunal estadual, o qual foi denegado.

Para o relator do recurso, ministro Marco Aurélio Bellizze, as conclusões da Justiça de primeiro e segundo graus deixam clara a necessidade de afastar a criança dos cuidados da mulher que tentou praticar a adoção irregular. Ele ponderou ainda que o imediato acolhimento da criança em abrigo, na cidade onde residia sua mãe, poderia oferecer a proteção integral e viabilizar a reaproximação gradativa dos dois.

Cuidado na pandemia

A pandemia de Covid-19 levou a Terceira Turma a conceder habeas corpus para permitir à família substituta acolher novamente uma criança, que havia sido internada em abrigo após decisão judicial fundamentada na tese de que o casal buscava burlar o procedimento de adoção legalmente previsto, incorrendo na prática de adoção à brasileira. O colegiado concluiu que a ameaça da doença era mais uma razão para manter a criança com a família que cuidava dela desde o nascimento – pelo menos até a conclusão do processo de adoção.

Conforme consta nos autos, a família substituta alegou não se tratar de adoção à brasileira, tendo em vista as suas tentativas de regularizar a adoção do infante. Justificaram ainda a fragilidade pulmonar da criança, o que a tornaria mais vulnerável diante dos riscos de contaminação pelo novo coronavírus caso permanecesse em abrigo.
O relator do caso, ministro Villas Bôas Cueva, destacou que a convivência familiar é direito fundamental das crianças e adolescentes, previsto pela Constituição de 1988, sendo que “a afetividade, no âmago familiar, é tão ou mais importante do que a consanguinidade”.

O magistrado considerou que, em virtude da pandemia de Covid-19, é preferível manter a criança em uma família que a deseja como membro do que em um abrigo. Além disso, chamou atenção para as dificuldades que envolvem o procedimento de adoção no Brasil, que é “burocrático e demorado”.

Cueva frisou, em seu voto, que o papel do Judiciário é aferir, a cada caso, como se realizará o bem-estar de crianças e adolescentes entregues por familiares, informalmente, aos cuidados de padrinhos ou terceiros interessados em exercer o poder familiar – o que, notoriamente, burla o cadastro e pode estimular práticas dissimuladas e criminosas, a exemplo da conduta tipificada no artigo 242 do Código Penal.
Indenização após fracasso da adoção

Em maio de 2021, o IBDFAM noticiou que uma mulher que foi adotada na infância e retornou ao acolhimento institucional na adolescência teve reconhecido o direito de ser indenizada em R$ 5 mil pelo casal adotante, conforme decisão da Terceira Turma. Vinda de destituição familiar anterior, ela havia sido adotada aos nove anos de idade por um casal com 55 e 85 anos, que desistiu de levar adiante a adoção e praticou atos que acabaram resultando na destituição do poder familiar.

Apesar de não se descartar a falha do Estado no processo de concessão e acompanhamento da adoção, o Colegiado reconheceu que não é possível afastar a responsabilidade civil dos pais adotivos, os quais criaram uma situação propícia à propositura da ação de destituição do poder familiar pelo Ministério Público, cuja consequência foi o retorno da jovem, então com 14 anos, ao acolhimento institucional.

“O filho decorrente da adoção não é uma espécie de produto que se escolhe na prateleira e que pode ser devolvido se se constatar a existência de vícios ocultos”, apontou a ministra Nancy Andrighi, no voto que foi seguido pela maioria da turma.

Vanguarda

O juiz Fernando Moreira, vice-presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, considera que o STJ tem consolidado posição de vanguarda em matéria de destituição do poder familiar e colocação em família substituta, privilegiando o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. “Isso fica evidente em todas as decisões em que se prestigia a guarda ou a adoção em detrimento do acolhimento institucional, inclusive nos casos de adoção irregular, desde que os vínculos afetivos estejam consolidados.”

Segundo o magistrado, em tempos de pandemia, a possibilidade concreta de contágio pela Covid-19 foi um argumento a mais em favor da desinstitucionalização no país. “A cada dia estou mais convicto de que devemos acabar com o modelo de acolhimento institucional no país, tal como fizemos em relação aos hospícios.”

“Por mais que haja algumas instituições que conseguem fazer um bom trabalho protetivo, uma instituição nunca será uma família. Alguns países, como Itália e Paraguai, já previram em suas legislações prazos para o fim do acolhimento institucional, embora ainda não os tenham concretizado”, pondera o especialista.

Para Fernando, a família acolhedora, garantida no ECA desde 2009, representa um modelo para substituição do acolhimento institucional, “porém ainda enfrenta grandes dificuldades para a sua implementação no país”. “Requer um grande empenho das entidades componentes da rede de proteção na sua efetivação, além da própria sociedade civil.”

“Estudo que publicamos em 2020 revela que, no Estado de Mato Grosso do Sul, apenas 12,65% dos municípios implementaram o programa de família acolhedora, o que não é muito diferente dos demais municípios brasileiros. Ainda que a família acolhedora seja uma boa opção à institucionalização, não se deve esquecer que também se trata de uma opção temporária”, ressalta o juiz.

Para ele, a finalidade deve ser sempre uma família, natural, extensa ou adotiva. “Como se pode ver, ainda temos muito a caminhar se pretendemos a proteção integral.”

“O debate sobre o acolhimento institucional é muito atual e de grande importância para a sociedade, razão pela qual o IBDFAM tem empreendido diversas frentes de estudos, debates, atuação perante os tribunais superiores e o CNJ, além do auxílio na elaboração de novos projetos legislativos sobre a matéria. É importante que se diga que a jurisprudência nacional tem reescrito o ECA, ampliando o sentido da norma para garantir uma maior proteção à criança e ao adolescente”, destaca Fernando.

O juiz entende que é passada a hora de substancial reforma legislativa nos institutos do ECA, sobretudo aqueles ligados à adoção, “de modo que haja uma sintonia entre o texto legal e a jurisprudência nacional, notadamente aquela construída pelo STJ ao longo dos últimos anos”. “Um bom exemplo disso é a necessidade de ampliação das hipóteses de adoção intuitu personae, previstas no art. 50, §13, do ECA, que abordaremos mais detidamente por ocasião XIII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões do IBDFAM.”

FONTE: IBDFAM, 21 de outubro de 2021.

O regime de responsabilização da pessoa jurídica e o Programa de Integridade na Lei Anticorrupção

0

No regime da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) não há, a rigor, um comportamento típico administrativo ou uma norma administrativa interna própria que a lei pretenda tutelar. As condutas pontuadas tratam-se, de regra, de comportamentos ilícitos que tem na sua gênese elementos típicos de verdadeiros crimes tradicionalmente reconhecidos pelo sistema jurídico-penal.

De outra parte, a também chamada Lei da Empresa Limpa tem por objeto a tutela de um bem jurídico supraindividual: a higidez da moralidade e do patrimônio da administração pública (efeito sancionatório). Secundariamente preocupa-se em tutelar um objeto material porventura individualizável: os valores malversados, o prejuízo ou o dano efetivamente sofrido pelo erário (efeito reparatório). Há, na verdade, na Lei Anticorrupção, condutas que substancialmente configuram crimes pertencentes à seara da normal penal, que é regida por cânones próprios.

Daí a dicotomia existente entre os regimes – sanção administrativa-civil e sanção penal – e, no caso brasileiro, a dificuldade para sistematizar a responsabilidade (administrativa) que decorre da violação da Lei Anticorrupção e o dever de indenizar ou reparar o dano à administração pública (esta última obrigação baseada em fundamentos do Direito Civil).

Como na hipótese aqui tratada a opção legislativa foi incorporar a responsabilidade da pessoa jurídica âmbito do Direito Administrativo Sancionador e, a priori, a norma anticorrupção afirma que a culpa é objetiva e independe da responsabilização da pessoa física (gestor, administrador, empregado, etc.), é sobremaneira influente a existência de um Programa de Integridade efetivo e eficaz para a análise da culpabilidade empresarial, aspecto que deve desbordar do efeito pretendido pelo legislador: somente atenuar a gravidade da sanção pecuniária.

É preciso advertir: para conferir eficácia plena à Lei Anticorrupção e manter sua coerência interna e sistêmica é imprescindível estabelecer um corte metodológico e dogmático. Doutrina autorizada tem sustentado que tanto o efeito sancionatório quanto o efeito reparatório derivam de um mesmo pressuposto intrínseco à norma anticorrupção: a responsabilidade que decorre da teoria do risco.

Mas afinal, é sistematicamente sustentável e legítimo apoiar a responsabilidade administrativa (sancionatória) e a responsabilidade civil (reparatória), ambas na teoria do risco? Ou há razões dogmáticas para a afirmação de que a sanção administrativa está alicerçada em fundamento próprio outro – por exemplo, a culpa empresarial por déficit organizacional -, e a obrigação de reparar o dano causado à administração pública, como consectário lógico, está fundamentada na teoria civilista do risco criado pela normal e regular atividade empresarial? Ou, ainda, nenhuma dessas hipóteses: estaria, na verdade, o dever de indenizar (e de reparar os danos) fundado no corolário lógico da existência do ilícito e, portanto, observará a disciplina geral da responsabilidade civil “ex delicto”?

Estas são algumas das questões que, em breve síntese, serão abordadas no texto que se oferece ao leitor.

Se a opção do legislador foi incorporar num mesmo diploma legal um efeito dissuasório e repressivo, prevendo, desde logo, mecanismos de integral reparação dos danos causados à administração pública, então é deveras importante precisar os pressupostos da responsabilidade administrativa nesta seara específica, de um lado, e da responsabilidade civil, de outro, não obstante o fato subjacente comum: o cometimento de atos fraudulentos e de corrupção.

Nesse contexto de análise, o artigo tem por finalidade essencialmente demonstrar que é possível reconhecer na Lei Anticorrupção a opção pela responsabilidade administrativa por déficit organizacional e o papel de protagonismo desempenhado pelo Programa de Integridade, cuja ausência ou ineficiência poderá pressupor e justificar a culpabilidade empresarial administrativa e, consequentemente, a responsabilidade civil (ex delicto) em face da administração pública.

A responsabilidade administrativa da pessoa jurídica. A Lei Anticorrupção, no seu art. 2°, preceitua: “As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não”.

O art. 5º, caput, por sua vez, preocupa-se em informar qual é o conjunto de valores, interesses ou o bem jurídico tutelado pela norma: o patrimônio público, nacional ou estrangeiro, os princípios da administração pública e os compromissos internacionais firmados pelo Brasil.

Na sequência, quanto ao sujeito passivo, o mesmo art. 5º expressamente consagra: pertence a pessoa jurídica o dever de proteção do bem jurídico tutelado, conferindo-a capacidade de ação e culpa própria em consonância, ainda, com o teor do art. 3º, § 1º, que reconhece a responsabilidade autônoma e independente.

Nesse aspecto, a pretexto do menor rigor metodológico supostamente atribuível ao Direito Administrativo Sancionador (em relação ao Direito Penal), a Lei Anticorrupção brasileira pretende conferir culpa própria à pessoa jurídica, entretanto, sem regular as nuances da responsabilização (objetiva) a partir das teorias conhecidas e recentemente adotadas normativamente em outros ordenamentos ao regular matéria semelhante (ora no âmbito penal, ora na esfera administrativa), de que são exemplos a teoria da culpa pela dupla imputação necessária e a teoria da culpa por defeito de organização.

O regime de responsabilidade da pessoa jurídica em Direito comparado por atos de corrupção e outros ilícitos: Argentina – Lei nº 27.401/2017 (responsabilidade penal); Chile – Lei nº 20.393/2009 (responsabilidade penal); Espanha – Código Penal, art. 31.bis, com a alteração da Lei Orgânica nº 1/2015 (responsabilidade penal); França – Código Penal de 1994, art. 121-2, alterado pela Lei nº 2004-204 (responsabilidade penal); Itália – Decreto Legislativo nº 231/2001 (responsabilidade administrativa); Peru – Lei nº 30.424/2016 (responsabilidade administrativa); Portugal – Código Penal, art. 11, com a alteração da Lei nº 59/2007 (responsabilidade penal); Reino Unido – UK Bribery Act, 2010 (responsabilidade penal).

Nesse tema, como poderá ser constatado, a teoria do risco (vocacionada ao Direito Privado) por certo poderá ser fundamento válido e suficiente ao efeito reparatório, mas não ao efeito sancionatório da Lei Anticorrupção.

Relativamente aos atos lesivos objetivamente descritos no 5º e seus incisos é necessário também coerência dogmática. Os bens jurídicos tutelados pela Lei Anticorrupção tradicionalmente sempre incorporaram o Direito Penal pela gravidade daquelas condutas e em razão dos desajustes sociais que causam. Ademais, atos de corrupção de toda sorte e fraudes contra acordos e contratos firmados com o Estado atentam contra valores republicanos e democráticos, daí a dignidade penal que historicamente se confere a tais ilícitos.

Estas são algumas das razões pelas quais não é incomum a afirmação em doutrina que a Lei Anticorrupção, embora formalmente uma norma de Direito Administrativo Sancionador, é substancialmente uma norma penal.

Entretanto, como concebida pelo legislador, a Lei Anticorrupção adquiriu os contornos de norma de responsabilização administrativa. Relevante, destarte, situá-la no contexto histórico de sua edição.

A Lei Anticorrupção foi editada (já tardiamente é preciso dizer) não a pretexto somente de cumprir acordos e tratados internacionais ou promover a paz social fragilizada pelos movimentos populares insatisfeitos com sucessivos escândalos de corrupção e malversação do patrimônio público.

Como de resto no mundo contemporâneo, também no Brasil é interminável o debate sobre situar a pessoa jurídica como centro de imputação jurídico-penal. É tema sobre o qual no Brasil não há nenhum consenso e sobram divergências de toda ordem.

A dificuldade deve-se, sobretudo, porque não é tarefa simples responsabilizar penalmente os gestores, dirigentes, empregados e colaboradores da pessoa jurídica que comentem os mais diversos delitos em seu nome e no seu interesse.

É inegável que nas complexas sociedades empresariais e nos grandes grupos econômicos a cadeia de comando e execução de tarefas é excessivamente dispersa pelos vários setores e departamentos, dificultando demasiadamente a identificação e individualização do delinquente econômico (White Collar Criminal).

Outrossim, importa mencionar as esferas e instâncias obscuras de amplas estruturas corporativas adrede preparadas para o cometimento de corrupção, fraudes, sonegação fiscal etc., tudo a dificultar a persecução penal e a identificação da pessoa física que atua criminosamente no interesse da pessoa jurídica.

Some-se a isso o problema da dispersão dos elementos do tipo penal econômico ou do crime relacionado à pessoa jurídica, posto que, nestas circunstâncias, aquele que executa materialmente o delito nem sempre é detentor das qualidades ou circunstâncias específicas exigidas pelo tipo de ilícito (pertencentes à pessoa jurídica, inimputável à luz do Direito Penal).

De sorte que, o legislador quando opta por responsabilizar administrativamente a pessoa jurídica por uma conduta substancialmente penal – a corrupção e a fraude à licitação, na acepção da norma anticorrupção, são figuras típicas de crime -, propõe resolver o debate sobre a (i)legitimidade da responsabilidade penal das sociedades empresárias.

É disso que se trata, na verdade. O texto de lei permite imputar administrativamente à pessoa jurídica comportamentos que tem no seu substrato fático tipos clássicos de ilícitos penais, nomeadamente nos casos de corrupção. Novamente: esse é o ponto.

Caso a Lei Anticorrupção imputasse expressamente à pessoa jurídica a conduta de “omitir ou deixar de implantar políticas ou programas de integridade” ou, ainda, “deixar de se organizar adequadamente, com o fim de mitigar riscos de cometimento daqueles crimes pressupostos” (ilícitos de infração de dever), então a situação seria diversa: essa uma das soluções possíveis em Direito Comparado como deixa em evidência o Bribery Act ou UKBA (Reino Unido).

Entretanto, não foi essa a orientação do legislador. Somente de forma subliminar é possível interpretação nesse sentindo pela compreensão sistemática do regime de responsabilidade objetiva, conjugada à firme orientação para que a pessoa jurídica se organize mitigando riscos de corrupção e fraude praticados contra a administração pública, por via da implantação de Programas de Integridade.

Devido à gravidade das condutas que encerram os ilícitos, o raciocínio implica em afirmar que é indissociável ao intérprete analisar a Lei Anticorrupção e sua aplicação em consonância com preceitos que primam por preservar direitos e garantais individuais que são típicos de norma de incriminação penal, nessa matéria, extensíveis ao Direito Administrativo Sancionador, segundo pensamos e como já também pontuou autorizada doutrina.

A escolha do legislador pátrio em não responsabilizar penalmente a pessoa jurídica (mas sim administrativamente) tem também as suas implicações metodológicas e de integração normativa, que não se resolvem simplesmente por caracterizar como objetiva a culpa empresarial pelo cometimento de verdadeiros crimes que, rigorosamente, são condutas materialmente executadas por pessoas físicas, não pela entidade empresarial.

A propósito da celeuma é o debate que inaugurou a ADIN nº 5261-DF, ainda em trâmite, na qual a pretensão é exatamente o reconhecimento da inconstitucionalidade da responsabilidade objetiva preconizada na Lei Anticorrupção. Aguardemos, pois, o pronunciamento do Excelso Pretório.

O efeito sancionatório e reparatório da Lei Anticorrupção: modelos de imputação de responsabilidade. A responsabilidade da pessoa jurídica preconizada é de duas ordens. A norma anticorrupção responsabiliza a empresa pelo cometimento de fraude ou ato de corrupção praticados em seu nome e no seu interesse (efeito sancionatório) e, consequentemente, pela integral reparação do dano (material e moral) causado à administração pública (efeito reparatório).

O efeito reparatório é consectário do cometimento dos ilícitos previstos no art. 5º da Lei Anticorrupção. A formação da culpa com a condenação da pessoa jurídica impõe o dever de indenizar a administração pública.

Não obstante o debate em torno da opção político-legislativa que rotula de objetiva a responsabilidade da pessoa jurídica pela prática de atos de corrupção e fraudes contra a administração pública e também pela obrigação de reparar integralmente os danos causados, fato é que dispositivos da Lei Anticorrupção (§ 3o do art. 6º; § 3o do art. 16; e art. 21, par. único) indicam que o fundamento do dever de indenizar derivam do regramento imposto pelo Direito Privado, baseado no risco criado pela atividade empresarial, posto que, de ordinário, a corrupção ou a fraude serão perpetrados objetivando o incremento ou a maximização dos lucros por métodos escusos em prejuízo da administração pública e com violação das regras de livre concorrência e do mercado.

Todavia, a discussão perde um pouco do seu sentido em face do que dispõe o art. 21, parágrafo único, categórico ao consagrar a disciplina geral da responsabilidade civil “ex delicto” nas hipóteses dos ilícitos da Lei Anticorrupção.

Para tal desiderato a norma anticorrupção preceitua que a responsabilidade administrativa da pessoa jurídica é objetiva e independe da responsabilização individual das pessoas naturais. E mais, determina que a “responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito” (art. 3º, §1º).

O texto legal supramencionado, a rigor, não responde a indagação se o modelo de imputação adotado pelo legislador supõe que, para responsabilizar a pessoa jurídica (efeito sancionatório), em procedimento administrativo ou judicial, será imprescindível se proceder à individualização ou investigação sobre a conduta própria da pessoa física: dirigentes e administradores (diretores, conselheiros, empregados e terceiros – art. 3° da Lei Anticorrupção); ou, por outro lado, se é suficiente demostrar que a empresa, há época dos fatos, “não mantinha uma organização adequada” ou “não cumpria o dever de vigilância sobre suas atividades, empregados e prepostos” (infração de dever: deixar de manter um eficiente e eficaz sistema de integridade e governança corporativa), fato revelado, sob a perspectiva da Lei Anticorrupção, simplesmente pelo cometimento do ilícito, que seria indício suficiente de “déficit organizacional” (na hipótese: por ter falhado na prevenção da fraude ou corrupção), logo, presumindo o legislador a responsabilidade da pessoa jurídica.

Culpa pela dupla imputação necessária. Para o sistema da culpa fundada na dupla imputação necessária (sistema vicarial ou da representação), o delito praticado deve desvincular-se de qualquer interesse ou sentimento próprio da pessoa física.

Assim, o ato deve ser praticado para a satisfação de interesse da pessoa jurídica, que será a beneficiária da ilicitude, não seu representante legal (ou empregado, colaborador, etc.) que se limitará a concretizar a conduta ilícita em benefício do ente moral.

Por isso que se diz que a imputação dirigida à pessoa jurídica também se estenderá à pessoa física ou ao seu representante legal: na verdade, a culpa da pessoa física é a própria culpa da pessoa jurídica, estando ambas indissociavelmente imbricadas.

Uma variante dessa concepção da culpa empresarial encontra-se na teoria da identificação, segundo a qual, “a intenção ou o conhecimento de um órgão” (dirigente da alta administração, que deverá ser identificado, por pressuposto) corresponde à vontade da empresa ou da corporação, justificando uma atribuição de culpa própria. Na prática o que se tem é uma extensão da culpa da pessoa física atribuída à pessoa jurídica, o que em certa medida não se afasta do regime da responsabilidade vicarial.

Culpa por defeito de organização. A responsabilidade fundamentada na teoria da culpa por defeito de organização trata-se de um juízo de reprovabilidade que decorre da ausência de medidas exigíveis para que a pessoa jurídica exerça suas atividades negociais com estrito cumprimento do ordenamento jurídico. O déficit organizacional deve anteceder o cometimento do ilícito, praticado em nome e no interesse da pessoa jurídica.

A culpabilidade por defeito de organização pode restar evidenciada não somente pela conduta individual da pessoa física representante do ente coletivo ou empresarial, mas também desde que demonstrado que a infração deriva de um acúmulo de orientações indevidas ou operações individuais inadequadas de pessoas físicas que compõem a estrutura social do ente coletivo; a culpabilidade, diz-se, poderia ser devido, ainda, da falta de vigilância ou regular orientação da pessoa física que deveria praticar a conduta de modo adequado.

No mais, a responsabilidade por déficit organizacional assume como própria a culpa da pessoa jurídica. Ao desconsiderar a necessidade de produzir prova da culpa da pessoa natural, a mencionada teoria tem como prescindível à responsabilização da pessoa jurídica a demonstração da conexão entre a culpa do dirigente, gestor, empregador ou terceiro e a culpa empresarial.

Neste sentido, a teoria poderá concentrar-se em apurar em que medida a pessoa jurídica, antes do cometimento do ilícito, mantinha (ou não) um Sistema de Governança Corporativa e Programa de Integridade efetivo e eficaz.

Responsabilidade da pessoa jurídica por culpa própria e o Programa de Integridade. A autonomia e a independência da responsabilidade da pessoa jurídica por (fato) culpa própria parecem mesmo estar consagradas na dicção dos artigos 2º e 3º da Lei Anticorrupção, em consonância com a exigência implícita para implantação de mecanismos e procedimentos internos de mitigação de riscos de descumprimento de normas, regulamentos e leis por meio dos denominados Programas de Integridade (artigos 41 e 42 do Decreto Federal n° 8.420/2015), que poderá evidenciar, ademais, a existência de boa Governança Corporativa e uma cultura organizacional de fidelidade ao Direito.

A leitura sistemática desses diplomas normativos, s.m.j., nos conduz ao entendimento que, nesta seara, há fundamento hábil à responsabilização da pessoa jurídica sustentada na culpa por déficit organizacional, embora o legislador não tenha instituído dogmaticamente (ou explicitado) um verdadeiro e autêntico sistema de imputação de responsabilidade do ente coletivo ou empresarial baseado naquela teoria.

As lacunas de punibilidade em face das organizações empresariais complexas. Saber se a responsabilidade da pessoa jurídica está baseada na teoria da dupla imputação necessária da culpa ou na teoria da culpa por defeito de organização é de fundamental importância para uma correta leitura e interpretação da Lei Anticorrupção.

Se o que se pretende com a responsabilização da pessoa jurídica (na esfera administrativa), em razão de fraudes ou atos de corrupção nas circunstâncias apontadas na Lei Anticorrupção, é combater a impunidade e proteger o patrimônio da administração pública em face de possíveis lacunas de punibilidade quando no caso concreto não houver meios de individualizar ou identificar qualquer pessoa física que materialmente cometeu o delito, em nome e no interesse da pessoa jurídica (devido à complexidade interna das organizações empresariais) então, responsabilizar a pessoa jurídica independentemente da evidência de culpa da pessoa física é de crucial importância.

Nesse aspecto, na seara do Direito Administrativo Sancionador a culpa por defeito (ou déficit) organizacional pode representar uma solução dogmaticamente viável e adequada aos propósitos da Lei Anticorrupção e, nesse caso, seu texto merece atualização legislativa adequada.

O Projeto de Lei nº 7149/2017 e a obrigatoriedade do Programa de Integridade. A rigor, por ora, a Lei Anticorrupção não obriga a empresa a implantar um Programa de Integridade ou a manter Governança Corporativa comprometida com a observância da lei como critério para avaliação de sua culpabilidade (poderia tê-lo feito). Somente considera tais elementos como causa de redução da pena.

No âmbito das legislações que mais influenciam o Brasil nessa matéria – o FCPA Act (EUA) e o Bribery Act ou UKBA (Reino Unido) -, não é desconsiderada (ainda que por interpretação sistemática) a possibilidade de exclusão da responsabilidade da empresa, caso demonstrada a adequação, eficácia e eficiência do Programa de Integridade e que o ilícito foi um episódio isolado e imprevisível, creditado ao total descumprimento ou inobservância pelo empregado, dirigente, administrador, colaborador ou terceiro, de todas as políticas de conformidade e orientações especificas de “due diligence”, não obstante terem sido submetidos a treinamento e a constatação da atuação preventiva da pessoa jurídica.

Essa a razão pela qual a Lei Anticorrupção não possui coerência interna entre os seus dispositivos e não cumpre substancialmente o princípio da razoabilidade e proporcionalidade na sua função de prevenção e combate à fraude e à corrupção, na medida em que impõe penas severas à empresa presumindo sua culpa, mesmo nos casos em que tenha trilhado calvário dispendioso para implantar Governança Corporativa e Programa de Integridade efetivo e eficaz.

Senão por outras razões, essas duas indefinições ou incoerências da Lei Anticorrupção (modelo de imputação da culpa e atenuação – sem exclusão – da culpa), dentre outras, farão com que, uma vez judicializada uma demanda qualquer, a tendência é ocorrer o mesmo que já se dá em relação à ação para punição de atos de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/1992), também vocacionada à proteção do patrimônio público: alguns casos levarão anos e anos para se definirem nos tribunais, com reflexo na continuidade da impunidade e ineficácia da Lei Anticorrupção, salvo se o legislador resolver, coerentemente, atualizá-la, em respeito ao devido processo legal substancial: estrita observância da legalidade e da razoabilidade, adequação e proporcionalidade.

Importa ressaltar, em arremate, que atualmente encontra-se tramitando na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 7149/2017 para alteração da Lei Anticorrupção, acrescentando-lhe a exigência de implantação de Programa de Compliance para contratação com a administração pública, modificação salutar para o incremento das finalidades para as quais a referida norma foi editada, colocando-a no mesmo patamar do Estatuto Jurídico das Empresas Estatais – Lei nº 13.303/2016 e Resolução nº 4.595/2017 que dispõe sobre a Política de Conformidade das instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, diplomas normativos que exigem expressamente a implantação de Sistema de Integridade (Governança Corporativa + Programa de Compliance).

No contexto da Lei Anticorrupção, o Programa de Integridade e a necessidade de implantar e manter cultura organizacional de fidelidade ao Direito, ou seja, postura proativa constante, comportamento contumaz de respeito às leis, normas, regulamentos, etc., deve ter reflexos não somente na aplicação ou dosimetria da sanção administrativa: se trata de medida de justiça e equidade, sendo dogmaticamente correto o entendimento de que a presença de um sistema de integridade hígido e boa governança corporativa sejam valores levados a efeito na aferição da própria culpabilidade da pessoa jurídica.

É imprescindível, s.m.j., superar o esquema tradicional de meramente utilizar o Programa de Integridade como fator de atenuação da pena, inviabilizando a exclusão da sanção ou da própria responsabilidade administrativa, sem que isso importe afastar o dever de indenizar amplamente a administração pública pelos danos materiais e morais causados (que decorre do efeito reparatório da Lei Anticorrupção, cuja obrigação permanece incólume, mesmo em face da isenção da culpa, pois fundamentada em pressupostos diversos da sanção-pena pela prática do ilícito administrativo).

Por outro lado, autorizar a exclusão da culpa da pessoa jurídica quando demonstrada a eficácia e eficiência do Programa de Integridade, como instrumento de mitigação de riscos de fraude ou corrupção, converte-se em medida de grande incentivo às empresas para que implantem seus sistemas de integridade corporativa que, apesar dos seus indissociáveis benefícios à corporação e à higidez dos seus negócios, importa em dispêndio de tempo e às vezes grandes somas, conforme o porte e complexidade das organizações empresariais.

Para além da proposta de alteração para obrigar a pessoa jurídica a implantar Programa de Integridade (Compliance), o legislador poderia aproveitar o ensejo das alterações pretendidas com o Projeto de Lei nº 7149/2017 para fazer acrescentar à norma previsão de que a existência de sistema de integridade efetivo e eficaz, que anteceda o cometimento do ilícito, e cultura organizacional de conformidade às leis, normas e regulamentos aos quais estejam submetidos a pessoa jurídica, são circunstâncias a serem consideradas na avaliação da sua culpabilidade e aplicação das sanções pela violação das disposições previstas na Lei Anticorrupção.

Com esta previsão a Lei Anticorrupção brasileira daria um grande salto de qualidade nas suas disposições, com respeito à legalidade e aqueles outros princípios supramencionados, reverberando em mais um grande fator de justiça e equidade que motivaria mais incisivamente as empresas à implantação de seus Programas de Integridade.

Ademais, estes acréscimos à atual redação da Lei Anticorrupção colocariam o Brasil em igualdade de condições com algumas das mais importantes legislações anticorrupção em Direito Comparado e que influenciam diuturnamente os negócios e o cotidiano de muitas empresas brasileiras e estrangeiras aqui sediadas, que precisam constantemente se adaptar àquelas normas de que são exemplos o Foreing Corrupt Practices Act (FCPA, Estados Unidos) e o United Kingdom Bribery Act (UKBA, Reino Unido).

Não obstante a Lei Anticorrupção preveja, de regra, a responsabilidade objetiva, princípios que norteiam o Direito Administrativo sancionador não podem desconsiderar o modo como a empresa se comporta no mundo corporativo, sua cultura interna e a existência ou não do Programa de Integridade, elementos que se circunscrevem em critérios de avaliação da culpabilidade empresarial.

Logo, atende aos cânones constitucionais da razoabilidade, adequação e proporcionalidade e do devido processo legal, ter em conta a existência de Programa de Integridade efetivo e eficaz (que anteceda o ilícito), não somente para fins de aplicação da sanção, mas também como instrumento de defesa da pessoa jurídica, principalmente nos casos em que ficar demonstrado que o ilícito foi praticado por empregado, gestor, ou colaborador que, atuando premeditadamente, com ardil e fraudulentamente, superou os melhores mecanismos de controle e prevenção, a pretexto de estar atuando em nome e no interesse da empresa.

 

Bibliografia

Almeida, Arnaldo Quirino de. Direito Penal Econômico e autoria no crime tributário praticado em nome e no interesse da pessoa jurídica. Florianópolis: 2015.

Bacigalupo, Silvina e Lizcano, Jesús. Responsabilidad penal y administrativa de las personas jurídicas en delitos relacionados con la corrupción. Madrid: Programa Eurosocial, Cyan Proyectos Editoriales, S.A., 2013.

Carvalhosa, Modesto. Considerações sobre a Lei Anticorrupção das pessoas jurídicas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

Díez, Carlos Gómez-Jara. Fundamentos modernos de la Responsabilidad Penal de las Personas Jurídicas. Montevideo-Buenos Aires: Editorial B de F, 2010.

Nieto García, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. Madri: Editorial Tecnos, 2012, 5ª ed.

Sarcedo, Leandro. Compliance e responsabilidade penal da pessoa jurídica: construção de um novo modelo de imputação baseado na culpabilidade corporativa. São Paulo: Editora LiberArs, 2016.

Tamasauskas, Igor Sant’Anna e Bottini, Pierpaolo Cruz. A interpretação constitucional possível da responsabilidade objetiva na Lei Anticorrupção. São Paulo: Revista do Tribunais vol. 947, Setembro/2014.

Veríssimo, Carla. Compliance: incentivo à adoção de medidas anticorrupção. São Paulo: Editora Saraiva, 2017.

Weber, Mark. Compliance e Responsabilidade Empresarial. Curitiba: Juruá Editora, 2018.

Angélica GiorgiaArnaldo Quirino de Almeida. Pós-graduado em Direito Penal Econômico & Europeu (Universidade de Coimbra, Portugal). Pós-graduado em Direito e Processo Penal (Universidade Mackenzie, São Paulo). Pós-graduado em Direito Corporativo & Compliance (Escola Paulista de Direito, São Paulo). Governança Corporativa, Compliance, Controle de Riscos e Lavagem de Capitais (Saint Paul Escola de Negócios, São Paulo).

Usucapião de imóveis – Das suas vantagens, definição e requisitos

0

É pergunta recorrente no escritório: mas afinal “Doutora”, vale a pena ou não fazer essa usucapião?!

 

Assim, visando esclarecer de forma breve e suscinta, o presente artigo trata alguns pontos abordados por pessoas interessadas no tema, seja para estudo como na aplicação de seu caso concreto.

 

            Das vantagens:

 

Um questionamento recorrente é saber se existe ou não vantagem em promover a regularização imobiliária, adquirindo-se a propriedade através da ação de usucapião, uma vez que se trata de uma ação burocrática, com custos elevados e mesmo que na via extrajudicial, é um procedimento moroso.

 

Inicialmente, analisemos que esse questionamento se deve ao fato de que muitas pessoas negociam imóvel do qual não detêm a propriedade, mas apenas a posse, através de contratos de compra e venda, muitas vezes bem simples, baseados muito na confiança mutua entre as partes, ou ainda, compram com pagamento parcelado, e após a quitação, não encontram mais os vendedores para a regularização.  Há ainda aqueles casos, onde a pessoa passa a exercer a posse de um imóvel, e ao longo do tempo, nele constrói sua moradia ou nele estabelece o seu sustento, agindo como se dono fosse daquele imóvel.

 

Tais situações nos trazem à memória o velho ditado popular que diz que “quem não registra não é dono”, o que significa dizer que, enquanto você não tiver o registro do imóvel em vosso nome, você não será o proprietário, nem poderá exercer todos os direitos que um proprietário tem.

 

Não bastasse tal fato, se pensarmos no mercado imobiliário, é certo que um imóvel com a documentação devidamente regularizada, tem mais valor do que aquele que não tem, principalmente porque gera segurança a quem pretende comprar. Suficiente pensarmos em um pequeno imóvel residencial ou comercial numa região urbana em acelerada expansão e verticalização, com a consequente e natural valorização do entorno, e dada a escassez de imóveis com grandes áreas para a implantação de empreendimentos imobiliários urbanos, como ocorre nas regiões metropolitanas, fatalmente as grandes empresas que atuam no segmento iniciarão a busca e a aquisição de pequenos imóveis, tanto faz se residenciais ou comerciais, para que a soma da área permita a viabilização do empreendimento. Nessa oportunidade, os proprietários de imóveis terão superior poder de negociação em comparação aos que possuem somente a posse, pendente de regularização. Em valores monetários os proprietários desses pequenos imóveis podem obter um diferencial de preço superior de, aproximadamente, quarenta a cinquenta por cento em relação aos que detêm somente a posse. Se levarmos esse raciocínio para imóveis de maiores dimensões, sejam urbanos ou rurais vizinhos de zonas de expansão urbana, constataremos facilmente que o valor superior de um imóvel com a documentação regularizada, comparativamente ao imóvel com somente a posse, pode atingir cifra de milhões. O benefício que se verifica ao longo do tempo é muito superior ao custo da regularização, na esmagadora maioria dos casos práticos, ressalvando-se as particularidades de cada pretendente a “colocar em ordem a documentação”.

 

Importante esclarecer ainda, e em complementação, que, sendo proprietário, com a documentação regularizada, o imóvel poderá ser dado em garantia para financiamentos, negócios, entre outros que se fizerem necessário e, por fim, para não estender muito, temos que, o proprietário exerce livremente a administração sobre o bem.

 

Um exemplo é nas questões junto à municipalidade, quando é exigida a escritura ou matricula do imóvel em nome de quem vai requerer algo relacionado ao imóvel.

 

Definição e requisitos

 

Uma das formas de se adquirir a propriedade de um imóvel é através da usucapião, que basicamente se aplica a quem possuir um imóvel, por determinado tempo, como se dono for, de forma mansa e pacífica, variando-se tais requisitos conforme a modalidade prevista em lei, tais como a Constituição Federal, Código Civil, Lei de Registros Públicos e Provimento 65/CNJ.

 

É uma forma originária de se adquirir a propriedade o que significa dizer que é “um fato jurídico que permite a aquisição da propriedade sem qualquer ônus ou gravame”[i][1] que venham a recair sobre o imóvel.

 

Ressalte-se que no tocante aos ônus e gravames incidentes sobre o imóvel, há certa discussão no que tange à aplicação do artigo 21 do provimento 65 do CNJ[ii][2], mas isso é matéria para um estudo mais aprofundado, que podemos desenvolver em outro momento.

 

As modalidades de usucapião são: extraordinária, ordinária, especial urbana e rural e familiar e, para saber em qual modalidade a situação se enquadra, considerando que a posse deve ser mansa e pacífica, com ânimo de dono e exercida de forma ininterrupta, deverão ser analisados alguns requisitos previstos em lei tais como:

 

(i) a forma como adquiriu a posse e a documentação que eventualmente possuir;

(ii) o tempo e a continuidade da posse;

(iii) se já possui ou não outros imóveis;

(iv) se houve oposição do proprietário ou de terceiros;

(v) a existência ou não de boa-fé;

(vi)em algumas modalidades avalia-se o tamanho da área e se utiliza ou não para moradia, ente outros que a lei aplicável exigir.

 

Após análise de tais requisitos e já definindo a modalidade de usucapião cabível, ainda será analisada se a melhor opção é a via judicial ou extrajudicial.

 

A via judicial é o procedimento comum, através do poder judiciário, seguindo as regras processuais que são regidas principalmente pelo Código de Processo Civil.

 

A via extrajudicial foi instituída com a atualização do Código de Processo Civil em 2015, através do artigo 1.071, que acrescentou o artigo 216-A à Lei de Registros Públicos. Nas palavras do Professor Elyselton Farias[3]:

 

 “Em suma, ante a inexistência de lide sob imóvel a usucapir, havendo acordo entre o proprietário e possuidor, será plenamente possível utilizar-se da Usucapião Extrajudicial como instrumento de regularização da propriedade.”

 

Importante destacar que para ter o reconhecimento da usucapião, tanto na esfera judicial quanto extrajudicial, será necessária a contratação de advogado, bem como elaboração de planta e memorial descritivo do imóvel por engenheiro ou topógrafo, além de outros documentos previstos nas leis, aos quais poderão ser livremente acrescentados outros que robusteçam ainda mais a posse, que comprovem o preenchimento dos requisitos já mencionados acima.

 

É um procedimento moroso, haja vista a necessidade de se intimar os proprietários dominiais, os confrontantes do imóvel – tanto os possuidores quanto proprietários dominiais, eventuais compromissários compradores que constarem do registro imobiliário, além das Fazendas Públicas Municipal, Estadual e Federal, que deverão manifestar interesse ou não no lote, especialmente porque, não cabe usucapião de bem público, além de eventuais perícias e audiência, sendo certo afirmar que tal rigor se faz necessário para evitar prejuízos a terceiros ou mesmo às fazendas públicas.

 

E nesse ponto, é de se ponderar que, ao advogado não é possível prever o tempo de tramitação de todo o processo, bem como não pode garantir o resultado do procedimento, pois apesar de analisar todos os requisitos previamente, no decorrer do procedimento, podem surgir impugnações das partes intimadas, interesse das fazendas públicas entre outros que podem influenciar o resultado.

 

Por fim, com relação aos custos envolvidos, há que se ter em mente que irá investir na regularização do imóvel, que passará a ter maior valor de mercado. E para isso, arcará com os seguintes custos, geralmente calculados com base no valor do imóvel:

 

– honorários advocatícios

– honorários do engenheiro ou topografo

– custas e despesas processuais (judiciais) ou taxas de cartório (extrajudicial)

– eventuais perícias

– eventuais verbas de sucumbência

 

 

Conclusão

 

Esperamos ter elucidado algumas das dúvidas mais frequentes no escritório de direito imobiliário com o presente artigo, o qual podemos resumir dizendo que, a regularização da documentação imobiliária através da usucapião traz vantagens, em especial no que diz respeito à valorização do imóvel, porém restou demonstrado que trata-se de um processo moroso, com muitos requisitos a serem avaliados, tanto na esfera judicial como na extrajudicial, eis que há que se evitar prejuízos a terceiros e entes públicos.

 

 

 

 

 

 

 

Angelica Giorgia Affonso e Carlos Cassiano……

[1] Fábio Pinheiro Gazzi.  https://www.lfg.com.br/conteudos/artigos/geral/aquisicao-derivada-e-aquisicao-originaria-de-propriedade-entenda-a-diferenca

[2] Art. 21. O reconhecimento extrajudicial da usucapião de imóvel matriculado não extinguirá eventuais restrições administrativas nem gravames judiciais regularmente inscritos.

(https://atos.cnj.jus.br/files/provimento/provimento_65_14122017_19032018152531.pdf)

 

[3] Professor Elyselton Farias – Portal Carreira do Advogado – https://carreiradoadvogado.com.br/2020/08/24/usucapiao-extrajudicial-na-pratica/

[i] Fábio Pinheiro Gazzi.  https://www.lfg.com.br/conteudos/artigos/geral/aquisicao-derivada-e-aquisicao-originaria-de-propriedade-entenda-a-diferenca

 

[ii] Art. 21. O reconhecimento extrajudicial da usucapião de imóvel matriculado não extinguirá eventuais restrições administrativas nem gravames judiciais regularmente inscritos.

(https://atos.cnj.jus.br/files/provimento/provimento_65_14122017_19032018152531.pdf)

 

Angélica GiorgiaAngelica Giorgia Affonso, OAB/SP n 208996, inscrita na subseção de Guarulhos/SP, formada pela Universidade de Guarulhos, no ano de 1998, atuante desde 2003. Pós Graduada em Processo Civil, pela ESA-Unisul, com habilitação para o Magistério Superior. Atua ainda, como monitora no curso de Usucapião do Portal Carreira do Advogado.

CO-AUTOR:

CARLOS AUGUSTO CASSIANO: Advogado, Corretor de Imóveis. Ex-diretor junto ao Sindicato dos Corretores de Imóveis de São Paulo-SCIESP, como integrante da Junta de Conciliação da Delegacia Regional-Guarulhos do CRECI e um dia fundadores e presidente da Associação Guarulhense de Administradores e Corretores de Imoveis-AGACI,

Da sentença e da coisa julgada no código de processo civil

0

RESUMO: O presente artigo, elaborado a partir de pesquisa doutrinária e jurisprudencial, objetiva analisar, com um viés histórico-constitucional e crítico, a sentença e a coisa julgada. Nesse sentido, será apresentada a evolução histórica do conceito de sentença, desde os primórdios até o atual Código de Processo Civil, bem como estudados os seus requisitos e efeitos produzidos. No que se refere à coisa julgada, também serão analisados os seus aspectos introdutórios, tais como sua origem, conceito, espécies, requisitos e exceções

PALAVRAS-CHAVE: Sentença. Coisa Julgada. CPC.

 

SUMÁRIO. INTRODUÇÃO. 1. Sentença. 1.1. Evolução do conceito. 1.2. Requisitos e efeitos produzidos. 2. Coisa Julgada. 2.1. Origem histórica. 2.2. Natureza jurídica: teorias. 2.3. Conceito e espécies. 2.4. Requisitos para a formação da coisa julgada. 2.5. Efeitos (ou limites) da coisa julgada. 2.6. Exceções à coisa julgada. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

 

INTRODUÇÃO

 

A doutrina nacional narra que o berço da sentença e da coisa julgada foi o Direito Romano primitivo (ou das legis actiones), que compreendeu o período entre a fundação de Roma (754 a. C.) até o ano 149 a. C.

 

Naquela época, o processo era dividido em duas fases ou estágios, que se desenvolviam de forma oral e solene: a primeira fase tinha como figura principal o pretor (ou magistrado), sendo conhecida como “in iure”, por meio da qual o juiz concedia ou não a ação e apresentava a fórmula escrita para o caso concreto; a segunda fase tinha como figura principal o árbitro e os jurados, sendo chamada de “in iudicio”, na qual as provas eram produzidas e a sentença era proferida.

 

Frise-se que, ante a precariedade do sistema processual à época, o árbitro não era uma autoridade e sequer um funcionário do Estado, tampouco havia a figura do advogado, sendo que as partes postulavam pessoalmente em juízo.

 

Assim, para o Direito Romano antigo, o processo era tido como instrumento de aplicação da lei para os casos concretos postos em juízo (res in judicium deducta), culminando na edição de um ato de vontade estatal, denominado sentença (sententia), que punha termo final ao processo e produzia a coisa julgada (res judicata), decidindo de forma definitiva acerca do mérito da demanda e do destino do bem jurídico disputado pelos litigantes, no sentido da condenatio (condenação) ou da absolutio (absolvição).

 

Não havia previsão, na época do Direito Romano, do termo “decisão interlocutória”, ou seja, para os romanos, somente a sentença poderia traduzir a vontade da lei e decidir acerca do destino de determinado bem jurídico.

 

Acrescente-se, ainda, que o procedimento romano da “legis aciones” somente se aplicava aos cidadãos romanos, não abarcando os estrangeiros em território romano.

 

Durante a segunda fase do Direito Romano, conhecida como “período formulário”, que vai do ano de 149 a. C. até o Século III d. C., o sistema processual per formulas substituiu o anterior sistema da legis aciones, sendo aplicado também aos estrangeiros. Essa fase caracterizou-se, ainda, pela redução do rigor formal e das solenidades, pelo ingresso da figura do advogado e do princípio do contraditório, pelo livre convencimento do magistrado, bem como pelo fato de que a obrigatoriedade do cumprimento da sentença passou não mais a ser decorrência da autoridade de quem decidia, mas sim pela convenção entre o autor e o réu acerca do cumprimento do que viesse a ser decidido pelo árbitro.

 

Na terceira fase, conhecida como “cognitio extraordinária”, que vigeu no período de 294 a 534 d. C., a função jurisdicional passou a ser exclusiva de funcionários do Estado, e não mais de árbitros privados. Desse modo, um mesmo juiz passou a conhecer da causa e, ao final, prolatar e executar a sentença. A partir dessa fase, surgiu a semente que posteriormente foi resgatada no direito processual civil moderno, materializado de forma escrita, com contraditório e ampla defesa, sendo que a obrigatoriedade da sentença passou a se justificar pelo fato de o juiz ser um funcionário do Estado.

A fase do processo romano-barbárico foi marcada pelo retrocesso jurídico, pois, com a queda do império romano (476 d. C.), a jurisdição passou a ser exercida por assembleias populares de homens livres, com procedimentos de forma oral e o compromisso das partes em acatar as decisões tomadas, que eram irrecorríveis. Ao juiz cumpriria somente fiscalizar o desenvolvimento das solenidades e o resultado do experimento.

Por fim, no processo civil moderno, foi atribuída ao magistrado a livre análise das provas e da sua produção. A jurisdição, a sentença e a coisa julgada voltaram a ser entendidas como expressão da vontade soberana do Estado, tendente à pacificação social, com natureza de interesse público e dotadas de soberania, com presunção de validade e de eficácia.

O Código de Processo Civil Brasileiro de 1973 e o atual CPC de 2015, assim como a maioria dos Códigos civis europeus, seguem esse entendimento.

 

1– Sentença

1.1– Evolução do conceito

 

Durante o direito romano, conforme visto acima, o conceito de sentença limitava-se ao pronunciamento do pretor (ou juiz) que viesse a rejeitar ou acolher o pedido do autor, resolvendo o mérito da demanda e aplicando a lei definitivamente ao caso concreto, pacificando, assim, os conflitos sociais.

Nesse sentido, anteriormente à edição da Lei nº 11.232/2005, o conceito de sentença apresentado pelo CPC de 1973 era “o ato do juiz que colocava termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa”. Assim, o legislador anterior à lei 11.232/2005 adotou o critério topológico, definindo o ato como sentença caso encerrasse definitivamente o processo e como decisão interlocutória caso combatesse ato jurisdicional proferido no curso do processo.

Em razão das alterações ao CPC de 1973 promovidas pela Lei 11.232, de 22.12.2005, o processo passou a ser sincrético, em que há uma fase preliminar de conhecimento e uma fase posterior de execução – e não mais dois processos distintos. Dessa forma, o conceito de sentença passou a ser definido como “o ato do juiz que implica em uma das situações previstas nos artigos 267 e 269 desta lei”.

Verifica-se que a mencionada alteração legislativa procurou adequar o conceito de sentença à realidade pela qual passa a sociedade, tendo em vista que, a título de exemplo, os provimentos jurisdicionais que determinam o cumprimento de uma obrigação de fazer, de não fazer, de entrega de coisa e de pagar quantia em dinheiro não encerram o processo, mas dão início a uma nova fase, que é denominada de cumprimento de sentença.

Segundo a doutrina de BARBOSA MOREIRA (2005, p. 241):

“De acordo com a nova sistemática, os atos executivos devem praticar-se à guisa de prosseguimento do processo em que se julgou, sem solução de continuidade. Em outras palavras: passa a haver um só processo, no qual se realizam sucessivamente a atividade cognitiva e a executiva”.

Ante o exposto acima e há luz das disposições do novo Código de Processo Civil, não podemos definir mais a sentença como um ato que extingue processo, mas sim como um pronunciamento judicial que contém uma das hipóteses dos arts. 485 ou 487, incisos e parágrafos, do novo CPC, e que poderá ou não extinguir o processo.

 

1.2 – Requisitos e efeitos produzidos

 

Nos termos do art. 489, I a III, do CPC de 2015, os requisitos essenciais da sentença são os seguintes:

I- o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;

II- os fundamentos em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;

III- o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem”.

Em relação ao relatório, em regra, será requisito essencial da sentença, entretanto, há uma exceção, prevista no art. 38, caput, da Lei n. 9.099/95, no que tange aos Juizados Especiais Cíveis, onde as sentenças proferidas dispensam o relatório, in verbis: “A sentença mencionará os elementos de convicção do Juiz, com breve resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência, dispensado o relatório”.

Ademais, a jurisprudência pátria tem admitido, em diversos casos, que o juiz faça referência ao relatório feito em outra decisão proferida no processo, desde que, por óbvio, não cause prejuízo às partes (relatório per relationem).

A fundamentação constitui garantia essencial ao jurisdicionado, pois por meio dela será possível às partes entenderem o raciocínio utilizado pelo magistrado para decidir a causa à luz das provas produzidas no decorrer da lide, possibilitando a interposição de recursos de forma mais objetiva.

O dispositivo é a conclusão da sentença, no qual o magistrado resolverá as questões a ele submetidas pelas partes, reconhecendo ou não o direito de ação e a procedência ou não do pedido. A sentença será chamada de ultra petita quando decidir além do pedido feito pelo autor, de extra petita quando for proferida sem ter havido qualquer pedido nesse sentido e de citra petita quando deixar de analisar o pedido formulado pelas partes.

Embora o atual Código de Processo Civil não tenha trazido alterações na previsão da legislação pretérita quanto aos requisitos da sentença, o parágrafo primeiro do referido artigo foi inovador, ao prescrever as hipóteses nas quais o legislador não considera fundamentadas as decisões interlocutórias, sentenças e acórdãos, tais como nos casos em que o juiz limita-se a indicar ou a reproduzir o ato normativo, a invocar precedente ou enunciado de súmula, a empregar conceitos jurídicos indeterminados ou a utilizar-se de argumentos genéricos, sem analisar o caso concreto.

Assim dispõe o mencionado dispositivo legal:

§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.

Referido parágrafo e incisos do art. 489 do CPC de 2015 estão sendo questionados por associações da classe dos magistrados, que o taxam de inconstitucionais, uma vez que violariam princípios constitucionais, por exemplo, da independência do Judiciário e o da celeridade processual, porquanto, segundo a ótica das referidas associações, o legislador estaria se imiscuindo na atividade jurisdicional, ditando regras de como o juiz deverá decidir o caso concreto.

Quanto aos efeitos da sentença, a doutrina os divide em principais e secundários: os efeitos principais são aqueles que decorrem diretamente do conteúdo da decisão, tais como, por exemplo, a declaração da existência ou da inexistência de uma relação jurídica (sentenças meramente declaratórias), a previsão de sanção que incidirá caso a parte sucumbente deixar de cumprir o comando sentencial (sentenças condenatórias) e a criação, a modificação ou a extinção de uma relação jurídica (sentenças constitutivas).

No tocante aos efeitos secundários, segundo a doutrina, são aqueles decorrentes de previsão legal, ou seja, não são conseqüência do conteúdo da decisão, mas de uma determinação legislativa específica. São efeitos indiretos e automáticos que resultam do fato de a decisão existir.

No CPC de 2015, os efeitos da sentença supramencionados foram condensados no art. 495, que estabelece que a decisão que condenar o réu ao pagamento de prestação consistente em dinheiro e a que determinar a conversão de prestação de fazer, de não fazer ou de dar coisa em prestação pecuniária valerão como título constitutivo de hipoteca judiciária.

O CPC de 2015 inova, ainda, prevendo no art. 491 que, na ação relativa à obrigação de pagar quantia, ainda que formulado pedido genérico, a decisão definirá (de ofício) desde logo a extensão da obrigação, o índice de correção monetária, a taxa de juros, o termo inicial de ambos e a periodicidade da capitalização dos juros, se for o caso, salvo e não for possível determinar, de modo definitivo, o montante devido ou a apuração do valor devido depender da produção de prova de realização demorada ou excessivamente dispendiosa, assim reconhecida na sentença.

Por fim, segundo a redação do art. 494, I e II, do CPC de 2015, publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la: a) para corrigir-lhe, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais ou erros de cálculo; e b) por meio de embargos de declaração, não havendo inovações em relação à redação do art. 463, I e II, do CPC de 1973.

 

2- Coisa julgada

 

2.1- Origem histórica

 

A origem da coisa julgada, tal como a da sentença, decorre do Direito Romano (res judicata), onde era utilizada principalmente por razões práticas de pacificação social e de atribuição de certeza final ao processo.

Nesse sentido, a coisa julgada, para ser conhecida tal como nos dias de hoje, passou por diversos períodos, que podem ser assim resumidos:

A – Período da “legis actionis” (759 a.C. e 149 a.C.): nos ensinou o conceito antigo de coisa julgada, desprovido de atuação estatal, sendo rígido, oral, formalista, sacramental, baseado na Lei das XII Tábuas (a partir de 450 a.C.).

Como característica principal desse período, temos a ausência de advogados (as partes postulavam pessoalmente), com prejuízo do contraditório e da ampla defesa, onde prevalecia a vontade da parte mais poderosa econômica ou socialmente.

Observamos ainda que a sentença era proferida por um árbitro particular, escolhido pelas partes, que emitia mera opinião, sem os requisitos próprios da sentença (relatório, fundamentação, dispositivo e força mandamental).

Nessa fase, a coisa julgada era formada pela simples “litis contestatio” (contestação), ou seja, era anterior ao próprio pronunciamento final sobre a questão.

Por fim, temos que o procedimento romano da “legis aciones” somente se aplicava aos cidadãos romanos, não abarcando os estrangeiros em território romano.

B – Período formulário ou processo formular (149 a.C. a 294 d.C.): esse período foi uma fase de transição da justiça privada para a justiça estatal, no qual o processo era dividido em 2 fases: in iure, que consistia na consulta ao pretor, que estabelecida uma fórmula escrita e a entregava às partes; e in iudicio no qual o árbitro ou colégio de juízes (particulares) proferiam a decisão. O procedimento era oral, salvo a fórmula, que era escrita.

Verificamos, outrossim, que no período formulário houve redução do rigor formal e das solenidades, bem como o ingresso da figura do advogado, o surgimento do contraditório e do livre convencimento do magistrado. Por fim, a coisa julgada não era decorrência da autoridade de quem decidia, mas sim pela convenção entre o autor e o réu acerca do cumprimento do que viesse a ser decidido pelo árbitro.

C – Processo extraordinário (cognitio extraordinária – 294 d.C. a 534 d.C.): nesse período, ocorreu a consolidação do monopólio da atuação estatal, sendo a base do processo moderno, no qual o objetivo do processo passou a ser a atuação Estatal por meio da aplicação da lei em relação a determinado bem da vida (res in iudicium deducta).

A coisa julgada, por sua vez, se tornou justificável passou a ser justificada por razões práticas, de utilidade social, imprimindo certeza ao gozo dos bens da vida e garantindo o resultado do processo, visando sobretudo a pacificação social, em decorrência da aplicação da lei ao caso concreto, pondo fim ao processo em definitivo (res iudicata). Isso porque, para os Romanos, não se falava em autonomia do direito material ante o processual, de forma que a coisa julgada nada mais era do que o próprio direito consumado pela actio.

D – Período romano-barbárico: esse período foi marcado pelo retrocesso jurídico, pois, com a queda do império romano (4 de setembro de 476 d. C.), a jurisdição passou a ser exercida por assembleias populares de homens livres, com procedimentos de forma oral e o compromisso das partes em acatar as decisões tomadas, que eram irrecorríveis (a coisa julgada era automática). Ao juiz cumpriria somente fiscalizar o desenvolvimento das solenidades e o resultado do experimento (papel secundário).

E – Processo civil moderno: nesse último período de transição, volta a ser atribuída ao magistrado a livre análise das provas e da sua produção. A jurisdição, a sentença e a coisa julgada voltaram a ser entendidas como expressão da vontade soberana do Estado, tendente à pacificação social, com natureza de interesse público e dotadas de soberania, com presunção de validade e de eficácia. O Código de Processo Civil Brasileiro de 1973 e o atual CPC de 2015, assim como a maioria dos Códigos civis europeus, seguem esse entendimento.

 

2.2 – Natureza jurídica: teorias

 

Segundo a doutrina, resumidamente, temos diferentes acepções sobre a natureza jurídica da coisa julgada, destacando-se as seguintes:

  1. Teoria alemã: a coisa julgada como efeito da decisão judicial. De acordo com essa teoria, originária do italiano Carnelutti, dos alemães Hellwig e Rosenberg, bem como dos brasileiros Pontes de Miranda, Ovídio Batista e Araken de Assis, a coisa julgada se restringe a coisa julgada ao elemento (efeito ou eficácia) declaratório da decisão. A autoridade da coisa julgada decorre da declaração de certeza que pretende ser expressada pela eficácia imperativa da sentença, enquanto vontade do Estado. Assim, para tal teoria, a imperatividade da sentença e a sua imutabilidade ocorreriam em etapas diversas e a coisa julgada material seria anterior e pressuposto à coisa julgada formal
  2. Teoria italiana: a coisa julgada como uma qualidade dos efeitos da decisão judicial. Segundo essa teoria, defendida pelo italiano Enrico Túlio Liebman, seguido por Cândido Rangel Dinamarco e Ada Pellegrini Grinover, não se podem confundir os efeitos da sentença com a autoridade da coisa julgada (imutabilidade que qualifica esses efeitos). A coisa julgada não é um efeito (declaratório) da sentença, mas, sim, o modo como se produzem, como se manifestam os efeitos em geral (não só o declaratório, como todos os outros). Assim, a coisa julgada se situa fora dos efeitos da sentença.
  3. Teoria moderna: a coisa julgada como uma situação jurídica do conteúdo da decisão judicial. Para tal teoria, capitaneada por Alexandre Câmara, Fredie Didier Jr. e Barbosa Moreira, não há que se falar em imutabilidade dos efeitos da decisão, vez que estes podem ser disponíveis e, pois, alteráveis ou mesmo não serem produzidos a critério da parte vencedora. Assim, a coisa julgada trata da imutabilidade do conteúdo da decisão, do seu comando – dispositivo -, que é composto pela norma jurídica concreta.

 

2.3 – Conceito e espécies

 

Nos termos do art. 502 do CPC de 2015, denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso; o CPC de 1973, por sua vez, definia, no art. 467, a coisa julgada material como sendo a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário. Logo, o termo “sentença”, previsto na legislação pretérita, foi substituído pela expressão “decisão de mérito”, o que abrange também as decisões interlocutórias de mérito.

A coisa julgada se divide em formal e material.

A coisa julgada formal é a impossibilidade de modificação da decisão judicial dentro do mesmo processo, em razão da preclusão dos recursos. Todavia, o tema atingido pela coisa julgada formal poderá ser questionado em nova relação jurídica processual. A coisa julgada formal é uma qualidade comum a todas as decisões, de mérito ou não.

Já a coisa julgada material é a impossibilidade de alteração da decisão judicial dentro do mesmo processo ou em qualquer outro, tendo em vista que os seus efeitos se irradiam para além do processo no qual foi decidida a questão.

Apenas as decisões judiciais de extinção do processo com resolução de mérito fazem coisa julgada material, uma vez que, nos termos do art. 486, caput, do atual CPC, “o pronunciamento judicial que não resolve o mérito não obsta a que a parte proponha de novo a ação”.

Desse modo, os pronunciamentos judiciais sem resolução de mérito possibilitarão a nova discussão da lide em outro processo, desde que (a) a parte corrija o vício que levou à sentença sem resolução do mérito nos casos de extinção por litispendência e nas hipóteses dos artigos 485, I, IV, VI e VIII, e (b) o autor comprove, quando da propositura da nova ação, o pagamento ou o depósito das custas e dos honorários de advogado (art. 486, §§ 1º e 2º, do novo CPC).

Importante citar, também, a inovação contida no art. 488 do CPC de 2015, ao prescrever que, “desde que possível, o juiz resolverá o mérito sempre que a decisão for favorável à parte a quem aproveitaria eventual pronunciamento nos termos do art. 485”. Isso demonstra uma grande preocupação do legislador para que o mérito seja decidido logo, formando a coisa julgada material e impedindo a nova propositura de ações judiciais.

2.4 – Requisitos para a formação da coisa julgada

 

Relativamente à coisa julgada formal, observa-se que o requisito para a sua produção é mais simples, ou seja, basta o trânsito em julgado decisão proferida pelo juiz no processo, independente do exame ou não do mérito da lide. Contudo, como já visto, os seus efeitos limitar-se-ão ao processo no qual proferida a decisão.

Já para a configuração da coisa julgada material, os requisitos são mais complexos, pois envolvem, concomitantemente: a) a existência de um processo constituído de forma válida e regular; b) o adequado exercício do direito de ação; c) a prolação de uma decisão de mérito, nos termos do art. 487 do novo CPC; e d) o trânsito em julgado dessa decisão judicial, ou seja, a impossibilidade da interposição de recursos.

 

2.5 – Efeitos (ou limites) da coisa julgada

 

Podemos diferenciar os efeitos (ou limites) da coisa julgada em objetivos e subjetivos. Enquanto os limites objetivos da coisa julgada buscam saber qual parte da decisão transita em julgado, ou seja, aquilo que se reveste pelo manto da coisa julgada, os limites subjetivos buscam saber quem será beneficiado ou prejudicado pela decisão transitada em julgado.

Nesse sentido, a coisa julgada material produz efeitos objetivos, sendo o primeiro o efeito positivo, que gera a vinculação do julgador de outra causa ao que foi decidido na causa em que a coisa julgada foi produzida, ou seja, o juiz fica adstrito ao que foi decidido em outro processo, pois a coisa julgada sempre deverá ser levada em consideração.

Observe-se, no ponto, o art. 503 do CPC de 2015, que estabelece que, “a decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida”, com pequena alteração em relação ao art. 468 do CPC de 1973, que continha o termo “sentença”.

Importante regra consta do parágrafo 1º e incisos do art. 503 do atual CPC, no sentido de que as questões prejudiciais, decididas expressa e incidentalmente no processo, também poderão fazer coisa julgada material, desde que, concomitantemente, sejam preenchidos os seguintes requisitos: a) dessa resolução depender o julgamento do mérito; b) a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia; c) o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal; e d) no processo não houver restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial.

Consigne-se que, por questões prejudiciais, entendemos aquelas cuja decisão influenciará ou determinará na resolução da questão principal que lhe seja vinculada. Por exemplo, em uma ação de alimentos, a filiação é uma questão prejudicial que deve ser decidida previamente, pois influencia diretamente na questão principal sobre a qual versa a ação judicial, qual seja: a concessão ou não de alimentos. Isso porque, se verificado que o autor da ação não é filho do réu, nada será devido.

Pois bem. Para o CPC anterior, as questões prejudiciais não transitavam materialmente em julgado, a não ser que o réu em contestação ou o autor apresentassem a ação declaratória incidental. O § 1º do art. 503, do CPC de 2015, que trata das questões prejudiciais, extinguiu a ação declaratória incidental. Assim, mesmo sem iniciativa do réu e/ou do autor, as questões prejudiciais, decididas expressa e incidentalmente no processo, também poderão fazer coisa julgada material, desde que, preenchidos, cumulativamente, os requisitos acima narrados.

A par de tal previsão do art. 503, § 1º, do CPC, verificamos que o novel legislador processual se inclinou no sentido da utilidade e da eficácia processual, tendo em conta que, quanto maior a parte do conflito que puder se tornar imutável, maior será o atendimento ao escopo social do processo.

Importante ressaltar, entretanto, que os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença, e a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença, não fazem coisa julgada material (art. 469, caput, I e II, do CPC/1973, sem alterações no CPC de 2015, cf. art. 504, I e II).

Ademais, vemos que o CPC de 2015, embora tenha ampliado os limites objetivos da coisa julgada (abarcando decisões de mérito e questões prejudiciais), criou uma exceção no tocante à antecipação de tutela, conforme previsão do art. 304, § 6º, da norma processual civil:

“A decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes, nos termos do § 2o deste artigo’’.

Entendemos, com todo respeito e amparados na doutrina de Barbosa Moreira (1967, p. 212), que o legislador, nesse ponto, se equivocou, uma vez que, caso a imutabilidade fosse estendida também aos motivos da sentença, a pacificação do conflito se daria em maior amplitude, evitando o surgimento de novas lides (eficácia negativa da coisa julgada) e simplificando o julgamento de outros processos idênticos (eficácia positiva da coisa julgada).

O efeito objetivo negativo, por sua vez, impede que a questão principal seja novamente julgada em outro processo, nos termos do art. 505 do CPC de 2015: “nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo: I – se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença; II – nos demais casos prescritos na lei”, regra que não inovou a previsão do art. 471, caput, I e II, do CPC de 1973.

Há, ainda, o efeito preclusivo, ou seja, com a formação da coisa julgada, preclui a possibilidade de rediscussão de dos argumentos suscitados pelas partes, conforme dispõe o art. 474 do CPC/1973: “passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido”. Referida regra consta também do art. 508 do novo CPC, com pequena modificação, com substituição do termo “sentença” pelo termo “decisão”.

Ademais, é vedado às partes discutir, no curso do processo, as questões já decididas a cujo respeito e operou a preclusão (art. 507 do CPC de 2015, com redação semelhante ao art. 473 do CPC de 1973).

Em relação aos efeitos subjetivos da coisa julgada, a regra do art. 506 do CPC de 2015 é clara de que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros”, o que inovou em relação ao art. 472 do CPC de 1973, que previa que a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros, salvo nas causas relativas ao estado da pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados.

Desse modo, com a nova redação do art. 506 do CPC de 2015, surge a seguinte indagação: com o CPC/2015, quem não é parte no processo pode se favorecer da coisa julgada?

Para NERY JR. e ANDRADE NERY (2015, p. 1238), não é possível quem não é parte no processo se favorecer com a coisa julgada, uma vez que, a despeito da nova redação, a vedação persiste:

“Se alguém pretender aproveitar-se da sentença proferida em determinada ação, estará prejudicando a outrem, em contrapartida – o que ainda é vedado. Além disso, o dispositivo ainda é bastante claro no sentido de que a sentença faz coisa julgada apenas entre as partes entre as quais é dada’’.

Já MARINONI, ARENHART e MITIDIERO (2015, p. 629) entendem ser possível um indivíduo que não é parte no processo se favorecer pela coisa julgada, pois argumentam que não foi por acaso o silêncio, no CPC/2015, quanto ao favorecimento da coisa julgada em relação ao terceiro:

“(…) o novo Código não veda que terceiros se beneficiem da coisa julgada – na esteira do que já sugeria a doutrina diante do direito anterior. Isso quer dizer que o art. 506 acolheu a possibilidade de formação da coisa julgada `secundum tenorem rationis’, cuja introdução no direito brasileiro era já requerida pela doutrina. A ausência de restrição ao aproveitamento da coisa julgada ao terceiro, inclusive, harmoniza-se com o disposto no art. 274, CC, segundo o qual o terceiro, credor ou devedor solidário, desde que o resultado do processo tenha lhe sido favorável e não fundado em qualidade especial ligada tão-somente ao autor ou réu da demanda, pode aproveitar a coisa julgada formada inter alios’’.

Com a devida vênia à doutrina negativista, aliamo-nos à teoria positivista, que entende ser possível a um terceiro que não foi parte no processo se favorecer pela coisa julgada, pelos motivos acima delineados.

Superada a possibilidade de a coisa julgada beneficiar terceiros, surge uma nova questão: todo e qualquer terceiro poderá ser beneficiado?

A resposta obviamente é negativa, pois somente pode ser beneficiado o terceiro que, não tendo figurado como parte na relação processual que culminou com a coisa julgada, esteja vinculado ou seja sujeito daquela mesma relação de direito material que fundamentou a causa. Por exemplo, no caso de devedores solidários de uma mesma obrigação, caso seja julgada improcedente a cobrança em face de um deles, v.g. pela prescrição, em demanda futura, que trate da mesma dívida, os outros devedores solidários poderão se valer da coisa julgada em seu favor.

 

2.6 – Exceções à coisa julgada

 

Por fim, as principais exceções à coisa julgada, citadas pela doutrina e pela jurisprudência, são as seguintes:

  1. a) O cabimento da ação rescisória, que permite a modificação da decisão no prazo (regra) de até 2 (dois) anos do seu trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais (cf. arts. 966 e 975 do CPC de 2015); no caso de prova nova ignorada pelo autor, o prazo é de 5 anos do trânsito em julgado (art. 966, VII, combinado com o 975, par. II, CPC);
  2. b) As decisões proferidas em relações de caráter continuado, como o pagamento de pensão alimentícia, que não transitam em julgado caso haja alteração da situação fática que ensejou a sua prolação;
  3. c) A possibilidade de modificação das sentenças em processos de investigação de paternidade, proferidas anteriormente à existência do exame de DNA, uma vez que, de acordo com entendimento do STJ, o exame de DNA constitui “documento novo” para fins do ajuizamento da ação rescisória;
  4. d) Erros materiais e de cálculo, que também não transitam em julgado, podendo ser corridos de ofício pelo juiz ou a requerimento da parte interessada.

 

CONCLUSÃO

 

Vimos que o conceito de sentença anterior à lei 11.232/2005 adotava o critério topológico, definindo o ato como sentença caso encerrasse definitivamente o processo e como decisão interlocutória caso combatesse ato jurisdicional proferido no curso do processo.

Em razão das alterações ao CPC de 1973 promovidas pela Lei 11.232, de 22.12.2005, o processo passou a ser sincrético, em que há uma fase preliminar de conhecimento e uma fase posterior de execução – e não mais dois processos distintos. Dessa forma, o conceito de sentença, posteriormente a 2005 e em especial à luz do atual Código de Processo Civil de 2015, passou a ser definido como o pronunciamento judicial que contém uma das hipóteses dos arts. 485 ou 487, incisos e parágrafos, do novo CPC, e que poderá ou não extinguir o processo.

Embora o art. 489 do atual Código de Processo Civil não tenha trazido alterações na previsão da legislação pretérita quanto aos requisitos da sentença (relatório, fundamentos e dispositivo), o parágrafo primeiro do referido artigo foi inovador, ao prescrever as hipóteses nas quais o legislador não considera fundamentadas as decisões interlocutórias, sentenças e acórdãos, tais como nos casos em que o juiz limita-se a indicar ou a reproduzir o ato normativo, a invocar precedente ou enunciado de súmula, a empregar conceitos jurídicos indeterminados ou a utilizar-se de argumentos genéricos, sem analisar o caso concreto. Tal dispositivo é alvo de críticas doutrinárias, que o taxam de inconstitucional, por supostamente ofender os princípios da celeridade processual e da independência dos magistrados no ato de fundamentar.

Nos termos do art. 502 do CPC de 2015, denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso; o CPC de 1973, por sua vez, definia, no art. 467, a coisa julgada material como sendo a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário. Logo, o termo “sentença”, previsto na legislação pretérita, foi substituído pela expressão “decisão de mérito”, o que abrange também as decisões interlocutórias de mérito.

A coisa julgada se divide em formal (produz efeitos apenas dentro do processo) e material (produz efeitos dentro e fora do processo), e os seus requisitos variam, sendo que, para a coisa julgada formal, basta haver o trânsito em julgado da decisão (de mérito ou não), e, para a coisa julgada material, são exigidos requisitos mais complexos, tal como o trânsito em julgado de uma decisão de mérito.

Em relação aos efeitos (ou limites) da coisa julgada, é importante destacar a inovação do parágrafo 1º e incisos do art. 503 do novo CPC, no sentido de que as questões prejudiciais, decididas expressa e incidentalmente no processo, também poderão fazer coisa julgada material, desde que, concomitantemente, sejam preenchidos alguns requisitos previstos naquele dispositivo.

Por fim, a doutrina elenca alguns limites à coisa julgada, a exemplo da possibilidade do ajuizamento de ação rescisória, das relações de caráter continuado, nos casos de investigação de paternidade que envolvam novas técnicas (como o exame de DNA), e a existência de erros materiais ou de cálculo.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao código de processo civil. 12 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Questões prejudiciais e coisa julgada. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1967.

JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 49. Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008.

JUNIOR; Nelson Nery. Comentários ao Código de Processo Civil. 1ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil, volume 2: processo de conhecimento. São Paulo: Editora RT, 2015.

MARQUES, José Frederico. Curso de Direito Processual Civil – Processo de Conhecimento. São Paulo: Editora Saraiva, 1999.

NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Editora RT, 2015.

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. Vol. 2. 24. Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2007.

SILVEIRA. Artur Barbosa da. Inovações no processo civil brasileiro. 3ª edição. Curitiba: Editora Juruá, 2017.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, pesquisa de julgados em www.stj.jus.br. Data da pesquisa: 15/11/2017.

Angélica GiorgiaARTUR BARBOSA DA SILVEIRA. Procurador do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor de pós graduação. Pós graduado em Direito Processual Civil, Administrativo, Constitucional, Tributário. Palestrante. Autor de livros e de artigos jurídicos.

Uma reflexão em torno da ética na gestão pública

0

A conduta ética não é tão somente sinônimo de capacidade técnica em qualquer ramo profissional, seja de caráter público ou privado, mas, é parte da conduta do ser humano, valores extralegais que por sua vez encontram-se compactados em normas específicas de cada profissão, que são os códigos de ética e disciplina que conhecemos.

Trata-se a ética de um estado subjetivo e abrangente, e por mais que exista um controle da máquina administrativa, com mecanismos de transparência, prestação de contas e probidade na gestão pública, o verdadeiro gestor público precisa ser agregador e estar preparado para enfrentar os desafios no ambiente corporativo, com capacidade de escutar no sentido emocional, ter comunicação oral e escrita, estabelecer estratégias e administrar conflitos.

No campo externo dos atos efetivos, o gestor público precisa ser um influenciador positivo, com energia e flexibilidade, comprometimento, empatia, sensibilidade, consciência e humildade para perceber que as coisas devem ser vistas por outros ângulos, e o mais importante, ser um motivador.

Pois bem, a ética como a moral é mais abrangente do que o Direito, e pensar que o gestor público está lidando com o sentimento e patrimônio alheio. São direitos muito “fortes” como a vida, propriedade, saúde e até mesmo o lazer.

Independente do grau de comprometimento do gestor público, com a sociedade, este precisa entender que no mundo há uma transformação cultural muito significativa. Um controle social por parte do gestor público embasado no caráter extremo, na dominação tradicional como um líder heroico e o salvador da pátria, não comportam muito espaço no cotidiano de uma sociedade contemporânea.

O gestor público precisa gerir com analogia ao entendimento que todos são iguais perante a lei, entendimento que nem precisaria do instrumento normativo do “caput” do artigo 5º, da nossa Carta Magna, mas simplesmente no princípio da lei natural de uma ordem Suprema que cada qual na sua doutrina entende ao seu modo, que ao meu humilde pensar vem de “Deus”.

Assim, a conduta ética é mais consciência do que inteligência, é mais sabedoria do que regramento, é ter estabilidade e navegar ao tempo com destemor, mas com legalidade, respeitando as fronteiras do lícito e do ilícito, do justo e do injusto. “Trata-se da consagração do denominado princípio da juridicidade, que impõe ao administrador o respeito não apenas à lei, mas também a todo ordenamento jurídico”[1].

Não haverá eficácia de qualquer gestão pública, se não houver comprometimento com a vida. Imaginamos se por ventura todos os instrumentos normativos fossem revogados, nem mesmo existindo a lei maior, a ética como um elemento natural, mesmo menos significante que a moral, não deixaria o homem desprovido de regras, pois a sua essência está na consciência incutida pelo sentimento interno dos primórdios até a mais nova geração.

Por isso, o gestor púbico tem por obrigação na sua essência buscar a ética não como um instrumento normativo próprio ou conhecimento esotérico, e sim educar a si mesmo, transformando a sua pedra bruta em pedra polida, aperfeiçoando e deixando espaço para uma oxigenação política social caminhando a frente da sua geração, do contrário, iremos trilhar para o mesmo caminho de alguns países que já buscam implementar instrumentos de governança capazes de garantirem o denominado “direito à boa administração. “Os padrões éticos, a eficiência administrativa e o controle da gestão pública são características indissociáveis da gestão pública pós-moderna”[2].

As instituições mais bem avaliadas em confiabilidade são aquelas desprovidas de qualquer sentimento de vaidade, centralismo e liderança autocrática, pois contrariamente, desenvolvem uma liderança liberal e democrática. Não há fórmula para o gestor público enfrentar os desafios, o que existe é o senso de ouvir e pensar, ter a sensibilidade e a capacidade de identificar o melhor caminho e a mais saudável solução, em suma, isso é ética!

[1] Sobre o princípio da juridicidade, vide nossa obra: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Resende. A constitucionalização do direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[2] Improbidade Administrativa, vide NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Resende. Improbidade Administrativa. 8. ed. São Paulo: Forense, 2019.

Angélica GiorgiaRégis José de Oliveira Rocha, Advogado, Pós-Graduado, Especialista em Direito Administrativo e Público.