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Evolução do Direito Penal

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* João Baptista Herkenhoff 

 

O Direito Penal não tem evoluído na direção do agravamento das penas, mas, pelo contrário, no sentido de seu abrandamento. 

Em 15 de outubro de 1833, o juiz Manoel Fernandes dos Santos, da Vila de Porto da Folha, no Estado de Sergipe, condenou Manoel Duda à perda do pênis, por decepamento, conforme sentença guardada no Instituto Histórico de Alagoas. 

Segundo os autos, o réu Manoel Duda tentou manter relações sexuais à força com a mulher de um cidadão de Porto da Folha. Este crime seria hoje o previsto no artigo 213 do Código Penal – “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. (Pena de reclusão de seis a dez anos, se o crime vier a ser consumado).

A conduta de Manoel Duda foi descrita pela sentença com o vocabulário da época: 

“Quando a mulher do Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra, que estava em uma moita de mato, sahiu della de supetão e fez proposta a dita mulher, por quem queria para coisa que não se pode trazer a lume, e como ella se recuzasse, o dito cabra abrafolou-se dela, deitou-a no chão, deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará. Elle não conseguiu matrimonio porque ella gritou e veio em amparo della Nocreto Correia e Norberto Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante.” 

O juiz tece várias considerações sobre o réu chegando a dizer: 

“Que Manoel Duda é um sujeito perigoso e que se não tiver uma cousa que atenue a perigança dele, amanhan está metendo medo até nos homens.” 

Depois das considerações de estilo, o juiz lavra a condenação que transcrevo exatamente como consta do original: 

“CONDENO o cabra Manoel Duda, pelo malifício que fez à mulher do Xico Bento, a ser capado, capadura que deverá ser feita a macete. A execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta Villa. Nomeio carrasco o carcereiro.” 

O Direito Penal moderno prega a individualização da pena e de sua execução. Individualizar a aplicação e a execução da pena é adaptá-la a cada pessoa. 

A lei dos crimes hediondos caminha em sentido oposto ao desenvolvimento do Direito Penal contemporâneo. Isto porque essa lei carimba com a etiqueta de hediondos certos crimes quando, na verdade, o que torna um crime hediondo não é apenas sua definição legal, mas principalmente as circunstâncias em que foi praticado. 

Um crime definido como hediondo pode continuar sendo grave, mas não hediondo, à face de determinadas circunstâncias. Em sentido contrário, um crime menos grave pode assumir contornos de maior gravidade conforme a situação em que tenha sido praticado. 

Somente o juiz, tratando cada caso em particular, com sabedoria, prudência, profundidade psicológica, senso do social, pode realmente aquilatar a gravidade dos crimes e fazer Justiça. Definir um delito antecipadamente como hediondo é um óbice à missão judicial.

 

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

João Baptista Herkenhoff é Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo – professor do Mestrado em Direito, e escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br


Neurociência, moral e direito: seriedade e prudência

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Atahualpa FernandezÓ e Marly Fernandez[1]Æ 

Por mais que a atividade científica seja desde há mais de um século o motor -inclusive econômico- das sociedades avançadas, por muito que resulte exemplar a dedicação dos investigadores à tarefa inacabada sempre de saber os “porquês” deste universo, em ocasiões os logros dos laboratórios têm um ponto de exploração publicitária que atrai tentações de risco por parte do mundo mediático. As notícias acerca dos descobrimentos científicos deveriam tratar-se com um rigor mais apurado, ainda que, para dizer a verdade, essa exigência é também necessária para as notícias políticas e econômicas. Se já não faz nenhuma diferença o fato de que todos dias a imprensa publique o último atropelo político do país, porque no mundo da política já enlouquecemos todos e se manejam cifras de escândalo como se se tratasse de uma troca de figurinhas em uma atividade que já não mais ultrapassa o umbral do trivial, com algo de tanta seriedade como é uma descoberta científica não se pode ir com frivolidades.

Um dos mehores exemplos do que estamos nos referindo parece ser, sem dúvida, a franca e crescente revolução das denominadas neurociências. A cada dia que passa, sucedem-se no noticiário novas tecnologias para obtenção de imagens detalhadas do cérebro em funcionamento, novas substâncias moduladoras da atividade cerebral e novas promessas de aniquilação de flagelos antigos como a depressão, a obesidade, a infelicidade , a perda de memória, etc. Todas essas promessas gritam  para nós das portadas sensacionalistas de livros, revistas, jornais, etc., todos “inspirados” nos recentes ( e constantes) resultados provenientes das investigações neurocientíficas – já há, inclusive, autores que falam de uma nova área de conhecimento: o “neurodireito”. A “neurocultura” parece estar, definitivamente, de moda.

Pois bem, para o que aqui nos interessa, a questão é saber que efeito as neurociências e as neurotecnologias em desenvolvimento têm sobre nosso sentido de natureza humana. Como caberia aplicar a ciência (particularmente a neurociência) ao direito e a moral sem tergiversar o sentido destes últimos? Até que ponto a neurociência e as novas neurotecnologias podem vir a afetar os sistemas jurídicos e éticos e a aplicação da justiça ( por exemplo, nosso senso de liberdade, crime e responsabilidade individual)?

Explicamos: a neurociência, em uma de suas vertentes, é a área de conhecimento que permite uma aproximação ao conhecimento de como se hão construído e que circuitos neuronais estão involucrados e participam na elaboração das decisões que toma o ser humano, a memória, emoção e o sentimento, e até mesmo os juízos e os pensamentos envolvidos nas condutas éticas. Trata-se de uma disciplina que  experimentou um crescimento espetacular nos últimos quinze anos. De seu modesto começo como um ramo da fisiologia, o estudo da relação cérebro/mente – também chamado de neurociência – se expandiu consideravelmente em anos recentes, agora fadado a se tornar a rainha das ciências.

O número de artigos em revistas especializadas ou destinadas ao público em geral cresceu quase exponencialmente desde inícios da passada década. E este incremento no número de estudos e o correspondente aumento dos conhecimentos sobre o cérebro e seus correlatos comportamentais não passou desapercebido. A tal ponto que, recentemente, em um artigo publicado em Nature Neuroscience  por destacados neurocientistas de vários países, se fez um chamamento acerca da importância que os conhecimentos aportados pela nova disciplina, a neuroética, tem para a sociedade, logrando atrair a atenção de um número crescente de investigadores de reconhecido prestígio e removendo os outrora apáticos cimentos das distintas disciplinas das quais emergiu ( isto é, das múltiplas interfaces entre medicina, biologia, psicologia e filosofia – para citar apenas as mais destacadas).

Seja como for , a localização dos correlatos cerebrais relacionados com o juízo moral, usando tanto técnicas de neuroimagem como por meio dos estudos sobre lesões cerebrais , parece ser, sem dúvida,  uma das grandes notícias  da  história  das  ciências sociais normativas. E na medida em que a neurociência permite um entendimento cada vez mais sofisticado do cérebro ( o órgão necessário da consciência, do pensamento, da memória e da identidade), as possíveis implicações e as novas relações provocadas por esses avanços, para além de sua extraordinária relevância científica, também carregam consigo importantes conotações filosóficas, jurídicas e morais, particularmente no que se refere à  compreensão  dos processos  cognitivos superiores relacionados com o juízo ético-jurídico, entendidos estes como estados funcionais de processos cerebrais.

Mas o atual esforço mundial realizado sobre as neurociências, potencialmente louvável, não deixou de gerar alguns problemas porque, como soe ocorrer quando uma área de trabalho e investigação altera súbita e radicalmente sua face, ao igual que um campo imantado de fascinação, acabou por provocar um pouco de desconcerto e desorientação: proliferam novos conceitos, fatos e argumentos a tal ponto que, de um lado, tornam por momentos difíceis – senão impossível – manter um panorama global, coerente e bem informado; do outro, tornam fluxos, débeis e vulneráveis os critérios de avaliação gerais que permitem julgar ditos conceitos, fatos e argumentos. O resultado de tais inconvenientes, pode ver-se, por exemplo, na desmedida produção de uma massa indigesta de fatos em todos os níveis e pelos diferentes discursos (descritivos e/ou explicativos) que estes acabam por gerar sobre a atividade mental e o cérebro.

O objetivo parece ser, em princípio,  o intento de aclarar a localização de funções cognitivas elevadas entendidas como apomorfias do Homo sapiens, ao estilo da capacidade para  a elaboração de juízos morais. Parte-se da convicção de que, para comprender essa parte esencial do universo ético e jurídico, é preciso dirigir-se para dentro do cérebro, para os substratos cerebrais responsáveis por nossos juizos morais e cuja gênese e funcionamento deverão  então ser reintegrados na história evolutiva própria de nossa espécie.

 E em que pese o fato de que as pesquisas da neurociência  acerca do juízo moral e do juízo normativo no direito e na  justiça ainda se encontram em uma fase muito precoce, sua utilidade parece ser indubitável. Com uma condição: que em um terreno tão delicado como o da investigação neurocientífica haverá de tomá-las em conta com muita prudência . Porque a ciência , que seguramente servirá para garantir mais conhecimento sobre a natureza humana, não poderá garantir,  por si mesma, valores morais como podem ser um maior respeito à vida , à igualdade , à liberdade e à dignidade humanas.

O desenho do cérebro que está aparecendo graças aos estudos da engenharia cerebral aponta já algumas pistas dignas de menção. Em primeiro lugar, a confirmação daquelas hipótesis lançadas por Crick e Koch  acerca da consciência como uma atividade sincronizada de neurônios que se encontram situados em lugares distintos do córtex cerebral, coisa que acaba por colocar em cheque algumas das ideáis mais firmes do funcionalismo computacional e da concepção estrita do suposto da modularidade dos processos cognitivos (Fodor), como por exemplo: o de um processador central e um progresso bottom-up da percepção até chegar aos processos superiores. Por outro lado, a caracterização neurológica da moral sim que parece compatível com uma psicologia evolucionista que entenda que uns mesmos processos cognitivos intenvenham em diferentes tarefas ou para resolver diferentes problemas (Shapiro e Epstein).

 Com relação ao Direito, a investigação neurocientífica sobre a cognição moral e jurídica poderá vir, de certa forma, revolucionar nosso entendimento acerca da natureza do pensamento e da conduta humana, com consequências profundas que podem vir a afetar o domínio próprio da “racionalidade” jurídica. Da mesma forma, os avanços neurocientíficos podem vir a ter um destacado papel no âmbito (ontológico e metodológico) do fenômeno jurídico. Em primeiro lugar, em um sentido direto e explícito, algumas técnicas podem constituir-se em elementos de prova, enquanto outras técnicas ou neurofármacos podem vir a ser usadas como medidas associadas à pena ou à reabilitação dos transgressores. Em segundo lugar, e de um modo mais difuso mas também mais profundo, os novos conhecimentos podem influir nas intuições morais da sociedade assim como nas obrigações percebidas. O grau em que isso seja possível e o calibre das resistências que encontrará é algo cuja resposta nos chegará quiçá antes do que podemos prever.

 Mas resulta precipitado pensar que as primeiras investigações neurocientíficas acerca do juízo moral  já nos abrem a porta a uma humanidade melhor. Acreditamos que isso seria simplificar as coisas ao extremo. Assim como o criacionismo ingênuo pode condenar aos humanos a uma minoria de idade permanente, assim também um modelo neurocientífico incompleto pode levar-nos a conceber ilusões impróprias. Porque não é definitivamente certo que um maior e melhor conhecimento dos condicionantes neuronais dos humanos nos proporcione automaticamente uma vida humana mais digna. Oxalá fossem as coisas tão simples!

Pensar que a relação cérebro/moral/direito é tudo pode levar-nos a olvidar que a medida do Direito, a própria idéia e essência do Direito, é o humano, cuja natureza resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural.

O mistério dos humanos consiste precisamente em advertir que cada um é um mistério para si mesmo. A neurociência nos ajudará a entender uma série de elementos que configuram o mistério, mas não o eliminará de todo. A mente humana se desenvolve baixo contínuas influências que interatuam desde o exterior e desde o interior. De fato, ainda resulta muito difícil especificar relações diretas entre os descobrimentos das neurociências (ou os elementos do genoma) e os diferentes aspectos da mente . E o intento de fazê-lo pode vir a conformar um caminho desviado e inútil para a compreensão  da mente humana. (Dupré).

Ainda assim, dando por sentado que o mistério permanecerá sempre, a ciência talvez possa levar-nos a entender melhor que a compreensão da conduta humana pode considerar-se, antes de tudo, como a arqueologia dessas estruturas e correlatos cerebrais relacionados com o processamento das informações morais e ético-jurídicas, em forma de uma explicação científica da mente , do cérebro e da natureza humana, isto é, em forma de uma explicação de  como são os seres humanos, considerados sob uma ótica muito mais empírica e respeitosa com os métodos científicos.

Poderá, inclusive, ajudar-nos a compreender que a moral e o direito se formulam precisamente a partir de uma posição antropológica e põe em jogo uma fenomenologia do atuar humano; que somente situando-se desde o ponto de vista do ser humano e de sua natureza será possível  representar o sentido e a função da moral e do direito como unidades de um contexto vital, ético e cultural. Esse contexto estabelece que os seres humanos  vivem das representações e significados desenhados para a cooperação, o diálogo e a argumentação e que são processados em suas estruturas cerebrais . Que, em seu "existir com" e situado em um determinado horizonte histórico-existencial, os membros da humanidade reclamam continuamente aos outros, cuja alteridade interioriza, que justifiquem suas eleições aportando as razões que as subjacem e as motivam.

Estamos longe ainda de contar com um mapa preciso das ativações espaço-temporais relacionadas com os processos cognitivos, mas parece que vamos trilhando  um bom caminho para começar a fazê-lo e a compreendê-lo. Já sabemos, por exemplo, que na tarefa de realização de juízos morais (assim como de juízos normativos no direito e na justiça) é essencial a conexão fronto-límbica (p.e., Damasio, Adolphs et al., Greene et al., Moll et al., Goodenough e Prehn, Hauser). Sabemos que a percepção estética implica a ativação do córtex préfrontal esquerdo (Cela-Conde et al.). Sabemos como se realiza o processamento das cores a partir dos centros visuais primários do córtex ocipital (p.e., Zeki e Marini, Bartels e Zeki), assim como a ativação neuronal relacionada com a identificação de objetos percebidos mediante a visão (Heekeren, Marrett, Bandettini e Ungerleider). Em termos gerais vai aparecendo um panorama em que o córtex préfrontal joga um papel de primera ordem respeito do que são os processos cognitivos superiores, coisa que, por outra parte, havia sido já sugerida, ainda que fosse a título de hipóteses especulativa, pelos paleoantropólogos (Deacon).

O ardente antidarwinismo nas ciências  sociais e humanas  tem, tradicionalmente, temido que uma abordagem evolutiva acabe por afogar seus imaculados modos de pensar – junto com seus heróicos autores, inventores, filósofos, juristas e outros defensores e amantes de idéias. Eles tendem a declarar, com convicção desesperada, mas sem provas ou argumentos, que a cultura e a sociedade humanas só podem ser interpretadas, e nunca explicadas por meios causais, usando métodos e pressuposições que são completamente incomparáveis com os ou  intraduzíveis nos métodos e pressuposições das ciências naturais: “o abismo é intransponível”, afirmam.

Sem embargo, hoje já sabemos que a evolução cultural e a evolução genética estão interligadas. Todos os seres humanos são produtos da co-evolução de um grupo de genes ( que é quase idêntico em todas as culturas) e um grupo de elementos culturais (que é diferente nas várias culturas, mas assim mesmo limitado pelas capacidades e predisposições da mente humana). Dessa maneira, os genes e as culturas co-evoluíram ; estes são afetados mutuamente e nenhum processo pode ser estudado isolado para os seres humanos: somos objetos físicos (corpo e cérebro) dos quais as mentes emergem  e, de algum modo, de nossas mentes  se formam as sociedades e as culturas. Dito de outro modo, o ser humano, em cérebro e mente, é claramente o resultado de um processo evolutivo.

E nossa natureza, em toda sua plenitude, surje dessa contínua e recíproca interação :  cérebro, corpo e mundo. Como demonstram os resultados das investigações neurocientíficas, quando miramos dentro do cérebro vemos que nossas ações derivam de nossas percepções e nossas percepções (assim como nossa consciência) são um produto ou são construídas pela atividade do cérebro. Essa atividade, por sua vez, é ditada por uma estrutura neuronal  formada pela interação de nossos genes com o entorno. Não há nenhum rastro de uma antena cartesiana que sintonize com outro mundo, não há nenhum fantasma em nosso solo, não há monstros nas profundidades, não há terras regidas por dragões. O que os viajantes da mente estão descobrindo é um sistema biológico de assombrosa complexidade. Já não temos mais a necessidade de satisfazer nossa ânsia de assombro conjurando fantasmas: o mundo que há dentro de nossas cabeças é mais maravilhoso (e misterioso) que qualquer coisa que possamos inventar em sonhos (Carter).

Daí que  para  entender-nos  completamente temos que tomar em consideração o físico, o psicológico e o sociocultural, a partir de uma perspectiva evolutiva. O abismo é uma ficção da imaginação temerosa. Poderemos nos perceber melhor como campeões de idéias, elaboradores de normas de conduta  e defensores de valores se primeiro examinarmos como chegamos a ocupar esse lugar especial.

Sem olvidarmos, claro está, de outros aspectos distintivos da natureza do comportamento humano à hora de decidir sobre o sentido da justiça concreta e a existência de universais morais determinados pela natureza biológica de nossa arquitetura cognitiva (neuronal). Afinal é o cérebro que nos permite dispor de um sentido moral, o que nos proporciona as habilidades necessárias para atuar e viver em sociedade, para tomar decisões e solucionar determinados conflitos sociais, e o que serve de base para as discussões e reflexões filosóficas mais sofisticadas sobre direitos, deveres, justiça e moralidade.

Mas o trato mediático de tudo isso requer , acima de tudo, seriedade e prudência.



REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Atahualpa FernandezÓPós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular da  Unama/PA;Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

Marly Fernandez[1]Æ:  Doutoranda em Filosofía (Cognición y Evolución Humana)/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha ;Research Scholar  da Universitat de les Illes Balears/ UIB-Espanha (Etología, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana).

Æ Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2006; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez: Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, 2007.

 

Fecundação

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* Juliana Frozel de Camargo

Resumo: Surgindo para auxiliar os problemas de esterilidade, as tecnologias reprodutivas, especialmente a técnica da fecundação “in vitro” com transferência embrionária, têm trazido desafios aos estudiosos dos mais diversos campos do conhecimento. No campo jurídico, os progressos não atingiram somente o casamento em si mesmo considerado, privilegiando a relação marido e mulher, mas afetaram a filiação que vincula uma criança a seu pai e a sua mãe. Até que ponto a biotecnologia “age” em benefício da humanidade? Quando parar? Surge a verdade afetiva no lugar da verdade biológica. No Brasil, percebe-se a lacuna jurídica nesta matéria, pois a única norma a respeito é a Resolução nº1.358/92 do Conselho Federal de Medicina. Há uma disparidade entre a Ciência e o Direito o que tem gerado insegurança no âmbito familiar já que não existe, até o momento, um critério que  estabeleça a maternidade e paternidade no caso de utilização desta técnica. Diversos questionamentos éticos têm sido levantados e a discussão e conscientização em matéria reprodutiva deve ser incentivada para que os recursos tecnológicos sejam postos realmente em favor de toda a humanidade.

Palavras-chave: reprodução humana, filiação, lacuna jurídica, dignidade humana.


A família , desde a Antigüidade, é matéria de muita discussão e o modelo herdado do século XIX de uma família nuclear, heterossexual, monógama e patriarcal vem sofrendo inúmeras transformações.

Um dos aspectos substanciais  da alteração do Instituto familiar se deu com a posição jurídica da mulher, que deixou de exercer a função de simples colaboradora do marido na direção da família , através do poder doméstico, para estar ao lado dele tomando em conjunto as decisões. Essa realidade foi confirmada pela Constituição Federal de 1988, que adotou o princípio da igualdade entre os cônjuges e não discriminação entre os filhos, alargando o conceito de família que ganhou destaque não só no casamento, mas também na união estável e ambientes monoparentais. Ressalte-se, também, o crescimento das relações homossexuais.

A esterilidade, reconhecida como uma doença que merece tratamento, sempre foi um grande problema na história da humanidade. Os casais que passam por este sofrimento psicológico e a angústia de não realizarem o sonho de ter um filho ainda enfrentam a discriminação da sociedade.

Com o surgimento das mais variadas técnicas da reprodução  humana assistida, esse problema tem sido contornado, mas outros surgiram e necessitam de rápida solução.

As transformações mais recentes sofridas no universo familiar, e que fizeram surgir a “Nova  Família”, são, sem sombra de dúvida, os avanços da biotecnologia, dando início à procriação  artificial,  tornando  realidade  o  sonho  de  milhões de pessoas estéreis – ter um filho. Embora a reprodução humana assistida tenha se iniciado há muito tempo com a prática da inseminação artificial, nos últimos anos conseguiu grande impulso a partir da prática, cada vez mais freqüente, da fecundação “in vitro” com transferência embrionária (FIVET).

Esta técnica supõe a união do óvulo e o espermatozóide em um laboratório; a fecundação se pratica em uma placa de cultivos sobre um óvulo previamente extraído, procedente da própria mulher ou de uma doadora e do sêmen que também pode ser procedente de um doador. Em seguida, transfere-se o embrião resultante ao útero materno através de um cateter.

Foi no ano de 1978 – mais precisamente em 25 de julho – fruto do trabalho da equipe inglesa, que nasceu na clínica Oldham de Londres, Louise Brown, o primeiro “bebê de proveta” do mundo. No Brasil, esse sucesso foi alcançado em 7 de outubro de 1984, com o nascimento de Ana Paula, no laboratório de Fecundação “in vitro” do Hospital Santa Catarina em São Paulo.

Importante ressaltar que somente oito anos depois deste nascimento é que foi instituída norma a respeito dessas técnicas, a Resolução nº1.358/92 do Conselho Federal de Medicina. Trata-se de uma norma ética-médica.

Apesar dos aspectos positivos desses avanços, como a felicidade do casal de ter filhos, percebe-se a transformação nos conceitos de maternidade e paternidade. Há crianças com três mães – uma genética (provedora do óvulo), uma de nascimento (que deu à luz) e outra chamada de social ou intencional (que efetivamente cria o bebê) – e dois pais – um genético (provedor de sêmen) e outro intencional. Casais estéreis podem trocar a paternidade biológica pela intencional e escolher as características dos pais genéticos e da mulher que vai gerar seu filho.

É neste ponto, dizem os especialistas em ética, que começam os problemas pois a prática está fazendo surgir, especialmente nos Estados Unidos, uma indústria da vida.

No Brasil, a obtenção de sêmen, óvulos e mães substitutivas ainda não virou indústria. Além disso, a Resolução do Conselho Federal de Medicina, que orienta os especialistas em reprodução, determina que a mãe substitutiva deve pertencer à família da doadora genética e proíbe também a venda de óvulos e sêmen.

Assim, os benefícios desses avanços têm trazido também problemas éticos e neste aspecto, entram as diversas indagações sobre o direito dos indivíduos sobre a vida, o direito de serem pais, a transformação do corpo em material de exploração e o ponto máximo em que se pode avançar nesta matéria.

O assunto leva a uma reflexão, sobre qual a prioridade que deve haver entre o biodireito e a bioética , deixando o próprio legislador perplexo diante das incertezas das decisões científicas. Percebe-se que os conceitos são transdisciplinares.

A questão é polêmica justamente porque diz respeito ao direito de reprodução. Diante deste contexto, a grande problemática é, sem dúvida, o descompasso entre o desenvolvimento das técnicas com as regras jurídicas, ou seja, quanto mais crescem as soluções para casos de esterilidade, maior se torna o problema jurídico.

Comprova-se a lacuna jurídica, a incompletude da ordem jurídica nesta matéria. Os adágios mater semper certa est e pater semper incertus est tornaram-se relativos conduzindo o jurista a se interrogar sobre a validade de certos princípios tidos como adquiridos e absolutos. Assim, o progresso científico também trouxe dúvidas sobre as regras de parentesco e sucessão.

O início da vida humana é um marco decisivo para a verificação da legitimidade ou ilegitimidade moral da manipulação de seres humanos, qualquer que seja seu estado de desenvolvimento. Acreditando que a vida humana tem início no próprio momento da concepção, ou seja, com o início da fertilização ou fecundação, começa, por sua vez, uma nova vida humana, única e irrepetível – as coisas então se complicam.

A difusão das novas tecnologias de intervenção sobre o processo da procriação humana nos faz pensar nos aspectos da filiação que agora se divide em filiação de fato e filiação de direito. Tudo isso gera problemas morais relativos ao respeito ao ser humano desde sua concepção: pode-se e deve-se desenvolver tudo que é científica e tecnicamente possível, em matéria de experiência sobre o homem e sua procriação? Como utilizar esses conhecimentos e técnicas em benefício da sociedade sem discriminações? Até onde podemos chegar? Dignidade humana?

Sem dúvida, é um desafio para a Justiça. Mais ainda, um desafio à ciência, a todo o passado e ao presente do gênero humano.

Percebe-se que a técnica em si já foi dominada no campo médico, e, ainda que haja pequenos problemas, esses com certeza serão superados pela ciência em pouco tempo. A grande polêmica está nos questionamentos ético-legais dela advindos. Será que também em pouco tempo esses problemas estarão resolvidos?

A saída para os problemas éticos é, sem sombra de dúvidas, a utilização desses conhecimentos de forma racional, respeitando-se os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, como a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, levando-se em conta todos os envolvidos e principalmente o novo ser que não pediu para nascer. Sem dúvidas, é preciso uma resposta comum para os problemas da biotecnologia que devem ser baseadas nas exigências de uma ética global.

Deve-se destacar que ao fazer referência à aplicação das técnicas de reprodução  assistida, sempre se fala do casal, nunca da vida humana futura, ignorando-se, com ou sem intenção, que todo ser humano tem direito a nascer dignamente.

É importante lembrar que os procedimentos para a técnica da fecundação "in vitro" com transferência embrionária possibilitaram outros benefícios, como por exemplo, a possibilidade de pessoas portadoras de HIV recorrerem a essas tecnologias tendo em vista o risco de contaminação através dos "meios naturais" de procriação, ou ainda, pessoas com doenças de natureza oncológica que deverão se submeter a tratamentos de quimioterapia e radioterapia, podendo perder a capacidade de fertilização, pudessem congelar seus gametas para uma futura utilização e realização de um sonho que poderia desaparecer não fossem os avanços da ciência reprodutiva. Daí a importância da divulgação e esclarecimento à população sobre as tecnologias reprodutivas e os benefícios que elas podem trazer à humanidade, se utilizadas de forma responsável e ética.

Embora existam algumas normas éticas, como a Resolução do Conselho Federal de Medicina, não há uma legislação específica para o assunto, deixando, muitas vezes, decisões muito sérias mercê dos médicos e leigos envolvidos. Ressalte-se, porém, a existência de diversos Projetos de Lei em andamento, mas que estão longe de manifestar uma posição pacífica e eficiente para a regulamentação das técnicas reprodutivas.

É claro que, paralelamente a uma legislação específica, deve existir um programa de divulgação e conscientização sobre as tecnologias reprodutivas para que fique esclarecido quando da indicação para seu uso, os benefícios que ocasionam e, principalmente, para que se evite o uso criminoso delas, já que toda pesquisa deve ter por objetivo não só uma relevância científica, mas, especialmente, relevância e contribuição social.

O Brasil carece de uma legislação apropriada para a questão da reprodução  assistida. A falta de disciplina nessa matéria põe em risco a saúde das mulheres e das futuras crianças, desorganiza parte substancial do Direito de Família e das Sucessões, bem como incentiva os pesquisadores às novas técnicas sem qualquer parâmetro de ética .

Diante de tantas transformações, o direito não pode “fechar os olhos” e manter a convenção tradicional de governo da família. É preciso que um novo direito surja e caminhe junto com essas mudanças, preocupado em criar as condições elementares à estabilidade dos grupos familiares, constituídos ou não, segundo o modelo oficial.

Os progressos científicos da prova da filiação paterna fizeram evoluir o critério da verdade afetiva, e o desenvolvimento genético nos afasta, paradoxalmente, da verdade biológica, tão somente considerada pelo mundo jurídico.

Outro ponto polêmico é saber se o embrião gerado “in vitro” pode ser equiparado e, portanto, ter os mesmos direitos que o embrião gerado “in vivo”, ou seja, no útero materno, já que o artigo 2º do Código Civil Brasileiro preceitua: “a personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro”.

Não é pacífica a questão da equivalência do embrião ao nascituro. O Projeto de lei do Senado nº 90/99, apresentado pelo Senador Lúcio Alcântara, bem como seu Substitutivo de 2001, apresentado pelo Senador Tião Viana, estabelecem que não se aplicam aos embriões originados “in vitro”, antes de sua introdução no aparelho reprodutor da mulher, os direitos assegurados ao nascituro.

Embora a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº1358/92 não admita a destruição dos embriões excedentes, eles devem ser criopreservados, mas até quando?

O assunto, que antes fazia parte da intimidade das famílias, tornou-se interesse público, não podendo mais ser ignorado.

 As regras devem surgir não para coibir e impedir o progresso da biotecnologia  mas, sim, evitar abusos, discriminações e atos que tragam conseqüências ainda mais sérias, já que a inexistência de disciplina legal dá margem para a atuação de profissionais e clínicas inidôneas, e mesmo de meros agenciadores de vida humana, pelo desvirtuamento das técnicas reprodutivas, cujo essencial objetivo é socorrer a infertilidade humana.

É necessário que se crie uma legislação devendo, especialmente, preservar os valores éticos socialmente aceitos. Porém, uma norma legal para a utilização dessas técnicas deve acompanhar a sua modernidade, não podendo ficar vinculada a dogmas jurídicos ultrapassados, sob pena de incentivar processos clandestinos.

Há necessidade de se estabelecer vinculação e controle estatal junto aos laboratórios de pesquisa médica na área de reprodução  humana assistida, como forma de inibir a comercialização da técnica, promoção médica, e restrição do acesso aos métodos disponíveis, bem como proibir a formação de banco de gametas e embriões  sem uma fiscalização do Ministério da Saúde.

Antes de iniciar o procedimento das técnicas reprodutivas é imprescindível uma declaração, através de documento público, dos doadores de gametas e embriões , bem como da doadora do útero para expressar a concordância com a doação irretratável, renunciando da mesma forma a qualquer direito sobre a criança que venha a nascer, evitando um futuro embate entre  pais genéticos ou intencionais.

Este é um tema extremamente complexo e que no Brasil ainda é tratado como um problema privado, e não de ordem pública, o que parece ser um grande erro, tendo em vista tratar-se de vida! Envolve questões etiológicas que merecem reflexão, sem falar nos problemas sociais envolvidos e interesses mundiais de controle da população.

A linha básica das razões morais e jurídicas atuais parte da idéia da proteção dos direitos da pessoa. Se for possível melhorar a condição humana, curar enfermidades e aliviar o sofrimento, não parece haver razão para não seguir tal linha de atualização e investigação desde que não sejam violados os direitos de terceiros.

Ademais, a idéia de família moderna  não se restringe ao ato da procriação  ou revelação dos laços de sangue; há necessidade de outro elemento, caracterizado pelos laços de afeto. A idéia de pai e mãe passa a ser não só ato físico, mas, principalmente, ato de opção.

Embora a legislação pátria não adote de forma explícita a "posse de estado de filho", muitos doutrinadores acreditam que este pode ser o caminho para concretizar os elementos essenciais da relação filial.

Através destes novos desafios trazidos pelos avanços da ciência, percebe-se um processo de descentralização do Código e uma importante função da jurisprudência nestes casos.

As novas técnicas de reprodução assistida são altamente custosas, o que significa que muitos países de escassos recursos econômicos não apresentam essas técnicas na ordem de prioridades da política de saúde do Estado, e, por outro lado, as pessoas de baixa renda também não têm acesso a referidos recursos.

Diante de tantas mudanças surgem mais dúvidas que soluções e repensar a família  e a filiação  é um desafio que sugere refletir sobre a própria razão de ser do Direito.

Ponto quase pacífico é a necessidade de uma orientação psicológica para todos os envolvidos, esclarecendo-se as intenções e expectativas de cada um, para o sucesso da técnica. Como exemplo, os CECOS (Centros de Estudos e Conservação de Óvulos e Espermas Humanos) na França, que têm uma Comissão Psicológica para saber se o casal está realmente preparado para assumir tamanha responsabilidade, e, posteriormente, analisando-se, também, o desenvolvimento físico, psíquico e intelectual da criança.

O desenvolvimento tecnológico nesta área, de fato revoluciona nossas coordenadas de tempo e espaço. Podem existir “gêmeos” com anos de diferença, pode-se gerar vida após a morte, mulheres destinadas a serem “avós”, podem ser mães.

São imensas modificações que podem causar sentimentos de felicidade, mas também de indignação e terror se tais tecnologias forem utilizadas de maneira egoísta e errônea. Afinal, constatar que a humanidade possui em suas mãos a possibilidade efetiva de criar e manipular a vida é algo realmente assustador.

No entanto, apesar da medicina estar evoluindo a passos largos, os Tribunais brasileiros praticamente ainda não se manifestaram sobre casos concretos envolvendo questões decorrentes dessas técnicas.

A jurisprudência, em nível mundial, é paupérrima e a doutrina começa, apenas, a engatinhar. Em particular, no caso brasileiro, o novo Código Civil (art. 1.597, III, IV e V), apesar de reconhecer a realidade das técnicas reprodutivas, não contempla de maneira satisfatória as regras sobre essa temática.

Mas se é verdade que essas técnicas não são mais novidade para a medicina atual, então é indispensável discuti-las, questioná-las, despertar a consciência de todos para a necessidade de discipliná-las sob o prisma da legalidade, moralidade e ética .

Neste momento, todos os caminhos parecem perigosos, pois poderão nos levar a uma série de manipulações com os mais diversos fins. É fundamental que se estabeleça uma discussão séria em torno do assunto para que não se obstaculize o progresso de uma ciência que realmente esteja vinculada a fins positivos.

De tudo o que foi dito, não se deve inferir, de maneira alguma, a existência de qualquer atitude negativa para com a ciência, ou seja, com uma regulamentação o que se pretende não é subverter a ciência e o desejo do casal estéril, mas, sim, uma atitude positiva, consciente e não discriminatória com vistas a algo muito mais importante: o HOMEM e sua DIGNIDADE.

 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AZEVEDO, Ana  Lucia.  Ciência  transformou  o  conceito de  maternidade . Disponível  em: <http://www.oglobo.com.br>. Acesso em:  28 out. 1999.

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______.  Novo Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Brasília: Senado Federal, 2002.

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CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução Humana: Ética e Direito. Campinas: Edicamp, 2003.

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______________________

[1] Artigo baseado na obra: CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução Humana: Ética e Direito. Campinas: Edicamp, 2003.


Referência  Biográfica

Juliana Frozel de Camargo  –  Advogada; Mestre em Direito Civil; Professora de Direito Civil das Faculdades Integradas de Itapetininga; Membro da Comissão Organizadora e Revisora da Revista “Cadernos de Direito” – Mestrado em Direito – UNIMEP;  Membro do Núcleo de Estudos de Direito Ambiental, Empresarial e Propriedade Intelectual – UNIMEP.  2004

camafroju@hotmail.com

 

Tribunais de Contas dos Municípios

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*Kiyoshi Harada 

A Constituição Federal de 1988, a fim de evitar a criação indiscriminada de Corte de Contas pelos municípios, prescreveu em seu artigo 31, § 4º: 

§ 4º É vedada a criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais. 

A vedação constitucional está dirigida aos legisladores  municipais, que não mais poderão instituir Cortes de Contas, ressalvados os Tribunais de Contas dos Municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro, criados antes do advento da Carta Política de 1988. 

Dessa forma, com exceção dos Municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro todos os demais devem ter as suas contas fiscalizadas pelas respectivas Câmaras Municipais, com auxílio do Tribunal de Contas do Estado. 

Nada impede, contudo, de o Estado membro instituir Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios, para apreciar e julgar exclusivamente as contas dos municípios integrantes de seu território.  

De fato, um Estado membro, que contenha grande quantidade de municípios, acabaria por sobrecarregar o exercício de atribuições de seu órgão específico, o Tribunal de Contas do Estado, que tem por função controlar e fiscalizar a execução orçamentária, no âmbito estadual. Daí a faculdade de os Estados membros, nessas condições, criarem Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios, unicamente com o fito de para desafogar a Corte de Contas do Estado. 

É oportuno esclarecer que, para os efeitos de limites de despesas com pessoal por Poder, fixados pela Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, os Tribunais de Contas estão incluídos na esfera dos respectivos Poderes Legislativos. E aqui é importante observar que esse fato não faz dos Tribunais de Contas meros órgãos auxiliares do Legislativo, com sustentado por alguns doutrinadores, pois aqueles Tribunais de Contas receberam atribuições próprias, diretamente da Constituição Federal (arts. 71 e 75). 

A LRF, após fixar o limite global de despesas com pessoal, à razão de 50% da receita corrente líquida para a União e 60% para os Estados e Municípios (art. 19) estabeleceu limites por Poder. De conformidade com o art. 20 esses limites ficaram assim discriminados: 

I – Na esfera federal:

(a) 2,5% para o Legislativo, incluindo o Tribunal de Contas da União;

(b) 6% para o Judiciário;

© 40,9% para o Executivo;

(d) 0,6% para o Ministério Público da União; 

II -Na esfera estadual:

(a) 3% para o Legislativo, incluindo o Tribunal de Contas do Estado;

(b) 6% para o Judiciário;

(c) 49% para o Executivo;

(d) 2% para o Ministério Público dos Estados;

 III – Na esfera municipal:

(a) 6% para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas do Município, quando houver;

(b) 54% para o Executivo. 

Guardando harmonia com o texto constitucional, que faculta aos Estados membros a criação de Corte de Contas dos Municípios, dispõe o § 4º do art. 20 da LRF que “nos Estados em que houver Tribunal de Contas dos Municípios, os percentuais definidos nas alíneas ‘a’ e ‘c’ do inciso II do caput serão, respectivamente, acrescidos e reduzidos em 0,4% (quatro décimos por cento)”.

Isso significa que, no Estado em que for instituído o Tribunal de Contas para examinar as contas dos municípios, o limite de despesas com pessoal do respectivo Poder Legislativo fica acrescido de 0,4%, implicando redução ipso fato de igual percentual em relação às despesas com pessoal do Poder Executivo.

Finalmente, de conformidade com o § 1º do art. 20 da LRF, “nos Poderes Legislativo e Judiciário de cada esfera, os limites serão repartidos entre seus órgãos de forma proporcional à medida das despesas com pessoal, em percentual da receita corrente líquida, verificadas nos três exercícios financeiros imediatamente anteriores ao da publicação desta Lei Complementar”.

Uma vez fixado o limite percentual de cada órgão, segundo a regra prevista no § 1º retrotranscrito, ele perdurará até que sobrevenha modificação legislativa.

Na hipótese de criação pelo Estado membro de Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios não há como aplicar a forma proporcional de que cuida o § 1º do art. 20 da LRF. Deve-se entender que, nesse caso, caberá ao novo órgão de controle e fiscalização da execução orçamentária (Tribunal ou Conselho de Contas dos Municípios) o equivalente a 0,4% da receita corrente líquida a título de limite para despesas com seu pessoal, implicando, redução de igual percentual no limite de despesas com pessoal do Executivo.

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Kiyoshi Harada: Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Membro do Conselho Superior de Estudos Jurídicos e Legislativos da Fiesp – Conjur. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas – APLJ. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.  SP, 02.01.2008.

Site:www.haradaadvogados.com.br

E-mail: kiyoshi@haradaadvogados.com.br


Advocacia sofreu com truculência do Estado

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*Cezar Britto

"A advocacia nutre-se das conquistas da cidadania, sendo pivô de muitas delas. No Brasil, os avanços são lentos e freqüentemente marcados por recuos, que impõem estado de permanente alerta. Em 2007, vivemos circunstâncias assim.

Foi um ano de muitas lutas, que colocaram em destaque três temas recorrentes e fundamentais para a advocacia: o Estado Democrático de Direito, ameaçado pela truculência invasiva do Estado Policial, a reforma política e a banalização dos cursos jurídicos, que ameaçam a já de si precária prestação jurisdicional em nosso país.

O Estado Policial mostrou-se presente em operações que desrespeitaram o constitucional direito de defesa, não coincidentemente obtendo mais efeito cênico que resultados concretos. Nada contra o combate à corrupção. Ao contrário, a luta contra a corrupção, sobretudo a do colarinho branco, mobiliza há décadas a sociedade brasileira – a advocacia em particular.

Essa luta, no entanto, não pode – nem essa, nem nenhuma outra – dar-se ao arrepio da Constituição Federal. Seria admitir que a lei é impotente para combater o crime, o que implicaria reconhecer a supremacia do mal. Por essa razão, a advocacia, por intermédio da OAB, condenou os métodos que desrespeitavam o direito de defesa, utilizados em diversas operações policiais, várias delas com a infeliz e plena concordância do Estado-juiz e do Estado-Ministério Público.

É uma luta tão séria e indispensável que não pode ser comprometida por métodos inadequados. Quando o é, o resultado é conhecido: os atingidos obtêm reparação judicial, transformando-se de réus em vítimas, e os prejuízos são repassados ao contribuinte. Esse, no entanto, é o prejuízo menor. O maior é a tentação de instalar no país um estado policial.

A banalização dos procedimentos de espionagem, regulados por lei e admissíveis em determinadas circunstâncias, é desserviço à democracia – e, por extensão, à cidadania. Grampos ambientais em escritórios de advocacia, violando o sigilo que, segundo a lei, deve presidir as relações do advogado com seus clientes, tornaram-se rotineiros. Idem a tentativa de obstar o acesso do advogado aos autos dos processos, em nome do sigilo das investigações. Não pode haver sigilo para quem é detido. É direito elementar de quem está preso saber as causas de sua detenção. O contrário disso é o estado policial, descrito com maestria nas páginas de O Processo, de Franz Kafka.

Outro ponto a se destacar tem relação com a reforma política. A advocacia compreendeu que política é vida, não se confundindo com politicagem. Exatamente por assim pensar a OAB e mais de 40 entidades fizeram encaminhar ao Congresso Nacional proposta visando o aperfeiçoamento da democracia participativa e a valorização de institutos que dignifiquem a democracia representativa. Encontrou barreiras em suas proposições, especialmente daqueles que pensam mais nas próximas eleições do que nas próximas gerações.

A frustração a se registrar é no campo político-institucional, em que a proposta de reforma política que encaminhamos ao Congresso não avançou. Mas a OAB nunca desanimou, por isso debateu e organizou manifestações em centenas de cidades brasileiras. No campo da valorização da política, ampliou-se o alcance da mobilização população no combate à corrupção eleitoral, estimulando e criando Comitês 9840 em diversos pontos do país.

Com relação aos cursos jurídicos, outra batalha antiga da advocacia brasileira, registre-se o engajamento do Ministério da Educação. Tivemos diversas reuniões de trabalho proveitosas com o ministro Fernando Haddad, em que pudemos expor as razões que sustentam essa peleja. A OAB não pleiteia fechamento de instituições de ensino. Quer, isto sim, que se qualifiquem para o cumprimento da missão. Caso contrário, continuarão a frustrar o sonho de ascensão social pelo saber de milhares e milhares de brasileiros.

Dentro dessa questão, alguns segmentos, tomando a conseqüência pela causa, puseram em discussão a legitimidade do Exame de Ordem. Querem, assim, esconder que os índices expressivos de reprovação indicam que a qualidade do ensino jurídico fornecido por parte das instituições de ensino superior é má. Prova disso é que as aprovações são maciças entre os formados pelas boas instituições, avaliadas pela OAB. Mas, em relação àquelas que há anos são denunciadas como desqualificadas, dá-se o inverso: reprovação em massa. A eventual supressão do Exame de Ordem, sugerida por alguns oportunistas, tão-somente estimularia os mercenários do ensino e pioraria substantivamente a qualidade da prestação jurisdicional no país.

Eliminar o Exame de Ordem em face do número de reprovações seria como quebrar o termômetro para curar a febre. O Exame, tal como o termômetro, apenas constata uma anomalia – e é ela que precisa ser tratada. No caso, a indústria do ensino de má qualidade.

O Exame de Ordem é uma defesa para a sociedade e tem merecido da parte da OAB o máximo empenho para aprimorá-lo e preservá-lo de eventuais irregularidades. Medida decisiva adotada este ano – e assimilada por quase todos os conselhos seccionais da OAB – é a profissionalização e unificação dos Exames de Ordem.

O ano de 2007, o primeiro do triênio da diretoria que presido na OAB, evidenciou que as lutas da cidadania não cessam e dependem, para que não haja recuos, de permanente vigilância. O aprimoramento democrático do país exige de nós esta permanente vigilância, e dela não nos descuidaremos em 2008".


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

CEZAR BRITTO:  é presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

NATUREZA ALIMENTAR DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOSHonorários contratados com sociedade de advogados têm caráter alimentar

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DECISÃO:  *STJ – A sociedade de advogados é mera associação de profissionais e, por isso, os honorários contratados com ela têm caráter alimentar, constituindo crédito privilegiado, como se fossem devidos a pessoa física. A posição é do Superior Tribunal de Justiça (STJ), manifestada em julgamento na Quarta Turma. Os ministros analisaram o recurso de uma empresa química, agora falida, contra a decisão de segunda instância que garantiu a uma sociedade de advogados de São Paulo o pagamento privilegiado de honorários contratados.

A empresa Industrial Química Girardi contratou a Advocacia Antônio Carlos Ariboni S/C para uma determinada ação fiscal, que teve êxito. Ocorre que o crédito referente aos honorários contratados acabaram sendo objeto de habilitação no processo, já que a empresa estava quebrada. Em 1996, o valor era de cerca de R$ 35 mil.

A sociedade de advogados apelou ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP), pedindo que não fosse feita distinção entre o seu crédito e os de natureza alimentar. Argumentou que o Estatuto de Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também seria aplicável às sociedades de advogados, já que elas estão igualmente sujeitas aos princípios éticos e disciplinares das pessoas físicas. O escritório teve sucesso no apelo, sendo reconhecido o caráter de contraprestação de serviços profissionais realizados pelos advogados, resultando, assim, em créditos privilegiados.

A empresa devedora recorreu ao STJ. Alegou que o caráter alimentar deveria ser aplicado somente aos honorários advocatícios contratados com pessoas físicas, o que não seria o caso. No entanto o relator do recurso especial, ministro Aldir Passarinho Junior, entende que o Estatuto da OAB não traça qualquer distinção sobre o titular da verba referente a honorários contratados ou arbitrados.

“Os honorários advocatícios são sempre honorários advocatícios, independentemente de quem os receba. Constituem a remuneração pelo serviço de assistência jurídica prestada ao cliente”, afirmou o ministro. Assim, o relator concluiu que não é possível a distinção entre honorários devidos a advogados pessoas físicas e jurídicas, quando se discute sua natureza (se alimentar ou não). A decisão da Quarta Turma foi unânime. 


 

FONTE:  STJ, 27 de dezembro de 2007.

IMPENHORABILIDADE ABSOLUTAProventos de aposentadoria não podem ser penhorados nem a pedido do devedor

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DECISÃO:  TJ-RS  – Os proventos de aposentadoria são absolutamente impenhoráveis. Com esse entendimento, a 9ª Câmara Cível do TJRS negou pedido de Mirim Aviação Agrícola Ltda. que pretendia o bloqueio de conta de poupança de cliente devedor.

A empresa alegou que o executado recebe os rendimentos da aposentadoria na poupança da Caixa Econômica Federal, desde agosto de 2005, e que não realiza saques. Afirmou também que o crédito não é utilizado para a subsistência do aposentado e que a poupança não é movimentada, estando reservada apenas para lucro. Referiu ainda que a impenhorabilidade desses valores representa séria restrição ao princípio de que o patrimônio do devedor responde por suas obrigações.

O Desembargador Odone Sanguiné, Relator, destacou que conforme jurisprudência da Corte os proventos de aposentadoria não podem ser objeto de penhora nem mesmo a pedido do devedor. O magistrado fundamentou o voto no artigo 649, inciso IV, do Código de Processo Civil, que dispõe sobre a impenhorabilidade dos vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios.

Também participaram do julgamento, em 19/12, as Desembargadoras Iris Helena Medeiros Nogueira e Marilene Bonzanini Bernardi.  Proc. 70022332894


FONTE:  TJ-RS, 27 de dezembro de 2007.

Reforma política e Inelegibilidades

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 *João Baptista Herkenhoff

 Aplaudo com entusiasmo a eclosão, em Juiz de Fora (MG), do “Movimento Tiradentes”, que assume como bandeira a ampliação das inelegibilidades, para coibir a eleição e reeleição de políticos enredados em processos criminais.

Defendemos esta tese no Jornal do Brasil (10.4.1998) e em nosso livro “Escritos de um jurista marginal” (Livraria do Advogado, de Porto Alegre, 2005).

Um dos pontos que, a meu ver, deve integrar a agenda da reforma política, em debate neste momento, é este de ampliar as inelegibilidades para suspender, provisoriamente, o direito de candidatar-se, de quem tenha contra si condenação, mesmo que não transitada em julgado, nos casos de crimes contra a administração pública.

Integra o elenco dos direitos e garantias fundamentais a presunção de inocência, que perdura enquanto não ocorra o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Este é um princípio essencial para preservar a liberdade, a dignidade e a honra das pessoas.

Em outro artigo, a Constituição diz que a suspensão dos direitos políticos, no caso de sentença criminal condenatória, só ocorre quando esta transita em julgado.

Em algumas hipóteses, dependendo dos recursos que sejam interpostos e da matéria, a sentença criminal só transitará em julgado através de decisão do Supremo Tribunal Federal.

Em face da inumerável quantidade de recursos e da morosidade da Justiça, uma sentença criminal poderá levar quinze ou até mesmo vinte anos para que se torne definitiva.

Numa primeira abordagem, tendo presente o cidadão comum, a garantia de presunção da inocência, em termos amplos, constitui uma salvaguarda da pessoa humana.

Mas, numa outra abordagem, penso no homem público, condenado até em mais de um processo, por crimes como peculato, concussão, corrupção passiva, prevaricação e tantos outros. Através dos recursos, a que toda pessoa tem direito, retarda por longo tempo o trânsito em julgado da sentença. Enquanto a sentença não se torna definitiva, pode candidatar-se, tantas vezes quantas queira, a cargos públicos e pode vencer eleições.

O requisito da “reputação ilibada” é exigido para diversos cargos relevantes na estrutura do Estado. Muitos desses cargos, que exigem reputação ilibada, não têm a importância de funções como a de deputado, senador, prefeito, governador. Não seria razoável que uma presumível reputação, assegurada pela ausência de condenação criminal, fosse condição para postular funções de representação popular?

Alguém que seja condenado em crimes contra a administração pública, ainda que apenas pela Justiça de primeiro grau, tem a reputação ilibada que deve ser exigida daqueles que detêm o poder de governar, fazer leis, fiscalizar os administradores?

Quando, a partir de 1985, defendemos, juntamente com muitas outras pessoas, a convocação de uma Assembléia Constituinte exclusiva, em vez da Constituinte congressual que foi adotada, pensávamos em pontos como este. Só uma Constituinte exclusiva teria independência e condições para sufragar certos princípios que contrariam interesses das velhas oligarquias políticas.

Agora mais uma vez coloca-se a questão. Somente com muita pressão popular, o atual Parlamento incluirá na reforma política a tese pela qual se bate, com muita oportunidade, o “Movimento Tiradentes”.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA 

JOÃO BAPTISTA HERKENHOFF: Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo – professor do Mestrado em Direito, magistrado aposentado e escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br

 

 

 


O Noblesse Oblige, a Ética da Convicção, e a Ética da Responsabilidade como a base para o Decoro Parlamentar

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*Bruno J. R. Boaventura 

Muito se fala em necessidade de moralização da política brasileira, mas raros sãos momentos em que existe o necessário aprofundamento teórico desta questão.

O dia a dia demonstra que convivemos com uma moralidade destorcida, como uma vida sem pudor, sem credo e sem o menor dos menores valor. A imagem televisa nos mostra o que não acreditávamos que fosse possível acontecer, e que amanhã já será comum ter acontecido, e isso é o retrato da visão da sociedade sobre a moralidade política.

Da doutrina do Noblesse Oblige como razão da diferenciação da Ética Política

As Casas Legislativas no Brasil possuem instrumentos a fim de que seus membros devam obrigatoriamente seguir os primados éticos que, necessariamente, fazem parte da atividade parlamentar, sob pena de perderem seus mandatos.

Tais instrumentos visam resguardar o Congresso, as Assembléias Legislativas e as Câmaras Municipais de agentes políticos que não tenham conduta compatível com o cargo ocupado, tentando principalmente preservar a incolumidade da própria instituição, como bem lecionou o professor Miguel Reale:

“O ‘status’ do deputado, em relação ao qual o ato deve ser medido (e será comedido ou decoroso em razão dessa medida) implica, por conseguinte, não só o respeito do parlamentar a si próprio, como ao órgão ao qual pertence (…). No fundo, falta de decoro parlamentar é falta de decência no comportamento pessoal, capaz de desmerecer a Casa dos representantes (incontinência de conduta, embriaguez etc.) e falta de respeito à dignidade do Poder Legislativo, de modo a expô-lo a críticas infundadas, injustas e irremediáveis de forma inconveniente.[1] 

Esta respeitabilidade institucional é a própria garantia da integridade do parlamento, é a base para que as ações resultantes da ação institucional (leis e fiscalização) sejam respeitadas pela sociedade, e isto somente existe quando seus próprios membros a respeitam e se respeitem, como ensina Raul Livino Ventim de Azevedo: 

“Cumpre insistir na asserção de que a prática de atos atentatórios ao decoro parlamentar, mais do que ferir a dignidade individual do próprio titular do mandato legislativo projeta-se, de maneira altamente lesiva, contra a honorabilidade, a respeitabilidade, o prestígio e a integridade político-institucional do parlamento, vulnerando, de modo extremamente grave, valores constitucionais que atribuem, ao Poder Legislativo, a sua indisputável e eminente condição de órgão da própria soberania nacional.[2] 

O respeito mútuo como parte integrante da respeitabilidade institucional é a causa da necessidade de conduta diferenciada daqueles que integram o poder público. 

Os poderes diferenciados da representação, exercidos através do mandato parlamentar, devem ser concretizados com respeito as responsabilidades próprias desta função pública.  

Em razão do contexto diferenciado das relações vividas cotidianamente, as responsabilidades próprias, como o decoro parlamentar, proíbem aos homens públicos a prática de ações que ao homem comum são permitidas, é a chamada doutrina do noblesse oblige, trazida por Noberto Bobbio

“O que talvez caracterize a conduta do soberano é a extraordinária freqüência com que se vê em situações excepcionais se comparado com o homem comum: essa freqüência deve-se ao fato de que lê opera em contexto de relações, em especial com os outros soberanos, no qual a exceção é elevada, por mais que possa ser considerado contraditório, a regra (mas contraditório não é, porque aqui se trata de regra no sentido de regularidade, e a regularidade de um comportamento contrário não invalida a regra dada). Mesmo que possa parecer essa que a derrogação é sempre vantajosa para o soberano (e precisamente essa vantagem foi vista com hostilidade pelos moralistas), também pode acontecer o contrário, ainda que mais raramente: a derrogação de fato pode agir extensivamente porque permite ao soberano aquilo que é moralmente proibido, mas pode também agir restritivamente porque proíbe o cumprimento de ações que ao homem comum são permitidas: noblesse oblige[3]. 

Esta necessidade de conduta diferenciada pode ser representada pela máxima que todo grande poder tem a sua grande responsabilidade, e fazer parte de uma instituição pública que representa o povo é ter consciência que o comportamento dentro do plenário das deliberações é a janela para visualização do comprometimento ético com o decoro parlamentar. 

A base do decoro parlamentar: ética da convicção e a ética da responsabilidade.

Bobbio esclarece que pelas lições de Weber a ação de um político comprometido eticamente com o decoro parlamentar é a não dissociação de sua convicção com a sua responsabilidade. A prática política convicta sem responsabilidade gera o fanático que todo sabe e tudo faz, e a prática política com responsabilidade mas sem convicção leva ao cínico que em tudo quer ter sucesso[4]. 

Figuras estas, a do fanático e do cínico, são moralmente desprezíveis, pois não atentam para o decoro parlamentar, não acreditam na respeitabilidade institucional, pois agem, respectivamente, sem  responsabilidade em suas ações, e sem convicção ideológica em seus resultados. 

Agir com decoro parlamentar é fazer de sua conduta diária um exemplo desta elevada moralidade (ética da convicção e da responsabilidade), e não ferir uma só vez a dignidade do Parlamento, ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho[5]. Agir com decoro parlamentar é ter uma conduta impecável com padrões éticos proporcionais a dignidade da função que exerce como representante de um povo, dita Celso Bastos[6]. 

Assim a Casa Legislativa deve ser a juíza daqueles que possuem ou não decoro o suficiente para exercer os poderes inerentes a atividade parlamentar, devendo punir com a cassação aqueles que em suas ações e falas dentro da Casa demonstrem serem incompatíveis com a dignidade do parlamento. 

Acaso tal poder não existisse seria impraticável as deliberações com decência e ordem, seria crer que comportamentos destemperados se tornassem a regra de convivência entre os parlamentares, seria permitir na Casa que deve criar a normas de conduta social a total desobediência as normas de conduta institucional, assim a punição com cassação daquele que não exerce a atividade parlamentar com decoro não é uma questão de conveniência, e sim de indispensável medida para sobrevivência institucional, assim já alertava Joseph Story[7]. 

O político é ser impetuoso com ego inchado pelas benesses e reconhecimento público de autoridade advindo do poder de representação de centenas, milhares e em alguns casos de milhões, precisa não tão somente ser probo, necessita ser eticamente convicto e responsável. Conceitos estes que remetem a uma conduta moralmente mais elevada do que ser simplesmente incorruptível, precisa demonstrar respeito por aqueles que lhe confiaram o poder de representação do interesse público pelo voto e também respeitar todos os outros que como ele decidirão o futuro de um ente federado. Então poderíamos chamar de decoro parlamentar: a prática da consciência da dignidade de ser um representante do povo.


NOTAS

[1] In: Decoro Parlamentar e Cassação de mandato Eletivo”. in Revista de Direito Público, vol. X, p.89

[2]In: Renúncia e Decoro Parlamentar. Revista do Administrador Público. Boletim Legislativo. Curitiba:Governet. 05/2007. p. 266.

[3] In: Teoria geral da política. RJ:Campus, 2000, p.187.

[4] “Na ação do grande político, ética da convicção e ética da responsabilidade não podem, segundo Weber, caminhar separadas uma da outra. A primeira, tomada em si mesma, levada às últimas conseqüências, é própria do fanático, figura moralmente repugnante. A segunda, totalmente apartada da consideração dos princípios a partir dos quais nascem as grandes ações, e totalmente voltada apenas para o sucesso (recordemos o maquiavélico “faça um príncipe de modo a vencer”), caracteriza a figura, moralmente não menos reprovável, do cínico.” In: Teoria geral da política. RJ:Campus, 2000, p.197.

[5] “Entende-se por atentatório ao decoro parlamentar a conduta que fira os padrões elevados da moralidade, necessários ao prestígio do mandato, à dignidade do Parlamento.” In: Comentários à constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 1. p.330.

[6] “O parlamentar deve ter conduta impecável, condizente com o prestígio da função que desempenha. O comportamento incompatível do congressista com os padrões éticos exigidos pela dignidade do Parlamento é causa bastante para a perda do mandato.” In: Comentários à constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 4, t. 1. p.243.

[7] “if the power did not exist, it would be utterly impracticable to transact the business of the nation, either at all, or al least with decency, deliberation, and order. The humblest assembly of men is understood to posses this power; and it would be absurd to deprive the councils of the nation of a like authority. But the power to make rules would be nugatory, unless it was coupled with a power to punish for disorderly behaviour, or disobedience to those rules. And as a member might be so lost to all sense of dignity and duty, as to disgrace the house by the grossness of his conduct, or interrupt its deliberations by perpetual violence or clamour, the power to expel for very aggravated misconduct was also indispensable, not as a common, but as an ultimate redgress for the grievance.” In: Commentaries on the Constitution of the United States. Hilliard, Gray and Company. 1833. p.298.

 


 

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA 

BRUNO J. R. BOAVENTURA: advogado militante em Cuiabá em direito público, sócio-gerente da Boaventura Advogados Associados S/C;  Especialista em Direito do Estado, com ênfase em Constitucional, pela Escola Superior de Direito de Mato Grosso.

E-mail: bboaventura@hotmail.com

O “outro” e a dignidade humana

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Atahualpa FernandezÓ  e  Manuella Maria Fernandez[1] 

Basta com  folhear qualquer jornal, ver a televisão ou  passear por qualquer  cidade brasileira, para perceber o aberrante e desmesurado  fracasso que  cada dia suporta a dignidade humana. Ontem  a vergonha de um regime militar que governava sob o manto da mais “estrita legalidade”, hoje a pobreza e a desigualdade social avançando a passos incontroláveis e amanhã  a  (sempre) possível  complacência  dos  tribunais  com os desmandos da administração  estatal.  Estas são  somente  algumas das circunstâncias  que caracterizam um circular e perverso  despreço  pelo  reconhecimento  dos  direitos, deveres e garantias assegurados  a todo e qualquer cidadão.

Parece, assim , que a ocasião  nos obriga não somente a uma sensibilização social , senão também  a uma reflexão  acerca do conteúdo  de nossos direitos  e de nossos deveres, que derivam  do simples fato de nossa condição de ser humano (direitos)  e de que há outros seres no mundo cuja situação podemos contribuir para melhorar (deveres). Eles (nossos direitos e deveres) nos situam em um marco de humanidade sem precedentes  , além  de estimular e potencializar aquelas ações  que tornam possível  uma comunidade verdadeiramente ética.

Nesse particular sentido ,  a Constituição da República  assegura não somente  um conjunto de direitos , deveres e garantias  fundamentais  senão que ademais  consagra um princípio que, a modo de máxima, fundamenta e dilata sua legitimidade e potencial eficácia a âmbitos e horizontes de novas exigências . Em verdade, e na ordem dos valores incondicionais , coloca em lugar de destaque o “interesse humano”  ( do sujeito-cidadão) como princípio e fim dos valores nela consagrados: o interesse humano pela liberdade[2], o interesse humano pela igualdade[3], o interesse humano pela segurança, enfim, o interesse humano por uma sociedade justa.

E o humano, como valor primeiro e essencialmente social , afirma  a dignidade da pessoa. Não somente da  pessoa como expressão  da  capacidade moral  e  de raciocínio, com aptidão para  sentir,  eleger  , cooperar ,  dialogar e de  ser  , em última instância,   capaz de autodeterminar-se no  âmbito de sua peculiar existência ;  mas também da pessoa em sua dimensão comunitária, como expressão de  uma  humanidade compartida e sempre relacional  que se projeta desde sua circunstância  ou realidade  à construção  dos valores indispensáveis de uma sociedade livre, justa e solidária .

O interesse humano, como valor prioritário  na ordem dos valores , vem a converter-se, desde a  perspectiva  da dignidade humana, em  um convite a viver humanamente nossa existência  a partir  do   reconhecimento do  “outro” como um  legítimo outro na  realização do ser social , que tanto vive na aceitação e respeito por si mesmo quanto na aceitação e respeito pelo próximo . Este  convite nos  leva ao   entendimento de que a mera existência de outros seres humanos  impõe-nos obrigações morais iniludíveis e proporciona  assim uma justificação existencial para uma ética essencialmente  humanitária .

Ademais ,  um convite de tal magnitude  requer seu espaço  não somente em nossa vida pessoal  como  também  em  nossa  cotidiana vida comunitária, porque supõe um compromisso com o justo em uma sociedade democrática : o compromisso de ter  no respeito pelo  “outro”  o núcleo central de nossa convivência plural e mundana, de abrir um espaço de interações sociais  com o outro e no qual  sua  presença é ( e deve ser) sempre legítima e igual. Com efeito , a responsabilidade  para com o próximo, que emana de sua mera existencia, é uma dimensão necessária para a autodeterminação da autonomia e  da dignidade humana.

E aqui talvez seja razoável intercalar um parêntese para lembrar que, sobre este aspecto, nos filiamos à idéia  que tende a conceber a dignidade a partir  da situação básica de relação do homem com os outros homens, em lugar de fazê-lo em função do homem singular encerrado em sua esfera individual e que havia servido  às caracterizações  deste valor na fase do Estado liberal de direito. Esta dimensão intersubjetiva ( relacional, coexistencial )  da dignidade é  de suma trancendência para calibrar o sentido e  o alcance atual dos direitos humanos e fundamentais que encontram nela (na dignidade) seu princípio fundante.

Por outro lado, nunca é demasiado insistir no fato de que resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma dignidade humana de certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre a natureza humana e meramente como condição transcendental da possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da sociedade igualitária ou da liberdade. Neste particular, parece oportuno observar ainda que a própria idéia de dignidade é um conceito relativo, a qualidade de ser digno de algo.

Ser digno de algo é merecer algo. Uma ação digna de aplauso é uma ação que merece o aplauso. Um amigo digno de confiança é um amigo que merece nossa confiança. Se alguém é mais alto ou gordo ou rico (ou o que seja) que outro, então merece que se registre seu record, quer dizer, é digno de figurar no Guinness World Records. O que não significa nada é a tão popular dignidade genérica, sem especificação alguma. Dizer que alguém é digno, sem mais, é deixar a frase incompleta e, em definitiva, equivale a não dizer nada.

De todos modos, palavras como “dignidade”, ainda que privada de conteúdo semântico, provocam secreção de adrenalina em determinados juristas acadêmicos e proclives à retórica. De fato, resulta inclusive  muito difícil aceitar a própria noção kantiana da dignidade humana. E a razão consiste em que tal noção obriga a aceitar uma forma de dualismo de duvidosa cientificidade: que há um reino da liberdade humana paralelo ao reino da natureza e não determinado por ele. Depois, Kant mesmo não oferece prova alguma de que o livre arbítrio existe; se limita a dizer simplesmente que é um postulado necessário da razão prática pura sobre a natureza da moralidade.

Ora, o fundamento da moral e do direito não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso cérebro, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir, de gozar e sofrer. Daí  que nenhuma teoria social normativa (ética ou jurídica) coerente deveria admitir termos tão vazios como o de dignidade sem uma base empírica acerca da natureza humana , sob pena de converter-se em uma cerimônia da confusão revestida de um esquema teórico abstrato, vazio e meramente formal.

 Assim como assim, que não se diga que carecemos de meios para o fim de assumir a responsabilidade  para com o próximo. A promoção de uma cultura fundada  na exaltação da dignidade humana e do respeito pelo próximo será possível com o apoio e o desenvolvimento de uma práxis que permita, ademais de situar no humano um valor incondicional, entender , justificar e lutar por  uma cultura de liberdade, de  igualdade e de  fraterna solidariedade. 

Isto é, da capacidade não somente de lutar por nossos direitos , mas também  de assumir responsavelmente nossos deveres , de respeitarmos (desinteressadamente) o próximo como um fim em si mesmo  ,  de um ardente desejo de compreender e outorgar sentido ao sofrimento humano e de aspirar por uma efetiva e legítima realização da justiça  ou, para dizer em termos mais modestos e realistas: de lutar contra toda e qualquer  forma  de  injustiça.

E uma vez que toda esta visão não é algo que se possa provar logicamente senão que a intuímos em exemplos e discussões acadêmicas, permitimo-nos concluir estas considerações com o seguinte  conto: “Um velho monge budista perguntou certa vez a seus discípulos como se sabe a hora em que a noite termina e o dia começa. Será, disse um dos discípulos, quando se pode distinguir de longe um cachorro de uma ovelha? Não, contestou o monge. Será, disse outro, quando posso distinguir de longe uma palmeira de uma oliveira? Tampouco, contestou o monge. Como saberemos então?, perguntaram os discípulos. Saberemos, disse o velho monge, quando, ao olhar para qualquer rosto humano, reconheças nele a teu irmão ou a tua irmã. Enquanto isso não ocorrer, seguiremos estando na escuridão”.


 

Ó Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular- Unama/PA ;Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

[1] Doutoranda em Direito Público (Ciências Criminais) e em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears/UIB ; Research Scholar en el Laboratorio de Sistemática Humana/UIB.

[2] Uma observação paralela acerca da noção de liberdade: para começar, diremos que para ser plenamente indivíduo, para gozar de  plena existência individual, separada e autônoma, é necessária a liberdade plena. E a liberdade (plena), a exemplo do que ocorre com a individualidade, também não pressupõe a  (plena) existência  ab initium et ante saecula  de indivíduos (plenamente) separados e autônomos, senão que a  (plena) existência separada e autônoma desses indivíduos pressupõe a  (plena) institucionalização histórico-secular da liberdade. De fato, na vida social tudo é possível : o melhor – se houver – e, desde logo, o pior. Tão é tudo possível na vida social, que até é possível nela  a declaração de inexistência individual, o certificado de defunção social de alguns humanos: a escravidão é a morte do  “indivíduo”  para todos os efeitos do trâmite social, sua  desumanização total por via de redução  do sujeito a mero  instrumentum vocale  , segundo a célebre formulação do direito romano ( ou  “instrumento animado” , para usar a expressão de Aristóteles).Para existir como indivíduo separado e autônomo é , pois, e ao menos , necessária a prévia institucionalização da liberdade; é necessário não ser escravo, não ser tratado como um instrumento , senão como um fim em si mesmo – aliás , dito seja de passo, perde-se habitualmente de vista que quando Kant formula a exigência de tratar aos demais como fins em si mesmos, não está dizendo nada radicalmente novo e  “moderno”, mas que está repetindo o mesmo que sustentaram  todos os filósofos morais e todos os juristas republicanos ao menos desde Aristóteles, ou seja: que aos livres não se lhes pode tratar como escravos , quer dizer, como instrumentos ( “vocais”  ou  “animados”). Pois bem, o liberalismo entende por liberdade somente a liberdade negativa, e esta é definida de tal maneira que uma pessoa é livre quando está livre de coerção, quer dizer, que não há ninguém nem tampouco uma lei que lhe ponha impedimentos. De liberdade positiva se fala, em câmbio, quando uma pessoa tem a capacidade e a oportunidade de atuar, ou seja, de que o Estado não só deve proteger senão também ajudar o indivíduo, de criar oportunidades para que o indivíduo se possa ajudar a si mesmo. Para citar um exemplo que se encontra em Hayek: no primeiro caso, um montanhês que cai em um abismo do qual é incapaz de sair, é livre neste sentido porque não há ninguém que o impeça de sair; já no caso de liberdade positiva, nosso montanhês precisamente não seria livre neste sentido, se não pode sair, ainda que ninguém o impeça – falta-lhe a capacidade e a oportunidade de atuar.  O direito proíbe, por exemplo, matar a outro indivíduo se não é em circunstâncias muito extremas, e isso supõe uma restrição óbvia de meus cursos de ação, supõe uma interferência. Mas dita interferência não é arbitrária, senão que precisamente está justificada pela proteção geral da liberdade dos cidadãos, assim que não pode implicar uma violação de minha liberdade mais que em um sentido muito primário. Trata-se, em síntese, de uma concepção robusta de liberdade, aqui entendida em seu sentido republicano-democrático, como “não interferência arbitrária”, ou seja, como um aparato histórico-institucional que imponha ao Estado a obrigação de assegurar e de promover, no contexto de uma sociedade igualitária, a liberdade necessária para que o indivíduo possa autoconstituir-se como entidade separada e autônoma, e que, em igual medida, garanta ao mesmo – como já dissemos antes, plena capacidade para resistir à interferência arbitrária não somente  do próprio Estado, mas também de si mesmo e de todos os demais agentes sociais.  

[3] Desde suas primeiras formulações, a justiça sempre foi associada com a igualdade e, nessa mesma medida, foi evolucionando ao compasso desse princípio ilustrado. No Livro V da Ética a Nicómaco, por exemplo, Aristóteles desenvolveu a sua doutrina da justiça  ( que, ainda hoje, representa o ponto de partida de todas as reflexões sérias sobre a questão da justiça ) situando a igualdade (proporcional ou geométrica) como o cerne deste valor, isto é, como núcleo básico da justiça. De fato, e neste particular sentido,  tanto em situações experimentais como de observação, já se demonstrou que o objetivo da justiça baseado na igualdade é capaz de anular quaisquer outras considerações contrapostas. Inclusive o princípio básico do comportamento humano que é maximizar o próprio benefício, é rechaçado em favor de maximizar uma distribuição equitativa (um princípio da igualdade): alguns estudos indicaram que, ademais de sentir-se desgraçadas quando obtêm menos do que crêem que merecem, as pessoas se sentem verdadeiramente incômodas quando obtém mais do que merecem ou quando outras pessoas obtêm mais ou menos do que merecem. Em síntese, dado um conjunto determinado de condições qualificativas, as pessoas sempre tratarão de atuar de uma maneira que pareça justa, quer dizer, igualitária (Clayton e Lerner). Mas, como é quase ocioso recordar, a igualdade não é um fato. Dentro do marco da espécie humana, que estabelece uma grande base de semelhança, os indivíduos não são definitivamente iguais. O princípio ético-político da igualdade não pode apoiar-se portanto em nenhuma característica “material”; é mais bem uma estratégia sócio-adaptativa, uma aspiração desenvolvida ao longo de nossa história evolutiva, que passou de aplicar-se a entidades grupais mais reduzidas até englobar a todos os seres humanos (como proclamam, aliás, as mais conhecidas normas acerca dos direitos humanos da atualidade). A justificação de tal princípio descansa, desde suas origens, no reconhecimento mútuo, dentro de uma determinada comunidade ética, de qualidades comuns valiosas e valores socialmente aceitos e compartidos, os quais representaram uma vantagem seletiva  ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não  haveria podido prosperar biologicamente. A regra, portando, é do trato igual, salvo nos casos em que, por azar social (origem de classe, adestramento cultural, etc.) ou azar natural (loteria genética – que inclui a distribuição aleatória de talentos e de habilidades – enfermidades e incapacidades crônicas sobrevindas, etc.), dos quais não somos absolutamente responsáveis, o tratamento desigual esteja objetiva e razoavelmente justificado. Que embora a igualdade constitua o núcleo básico da justiça ( e  parece muito intuitivo que se trata de uma emoção moral arraigada em nossa arquitetura cognitiva mental : o mais canalha dos homens  sempre reagirá ante um tratamento desigual no que se refere a sua pessoa), as reais e materiais desigualdades entre os membros de nossa espécie exigem o desenho de estratégias compensatórias para reparar, na medida em que se possa fazer, as desigualdades nas capacidades pessoais e na má sorte bruta. Dito de outro modo, justiça e igualdade não significam, necessariamente, ausência de desníveis e assimetrias, já que os indivíduos são sempre ontologicamente diferentes, mas, sim, e muito particularmente,  ausência de exploração de uns sobre outros. Daí que tratar como iguais aos indivíduos não necessariamente entranha um trato idêntico: não implica necessariamente, por exemplo, que todos recebam uma porção igual do bem, qualquer que seja, que a comunidade política trate de subministrar, senão mais bem a direitos ajustados às diversas condições (Dworkin). Nas palavras de Zeki e Goodenough: “For instance, in a literal sense, human equality is a myth. Variation ensures that each of us has our own package of strengths and weaknesses. Neither of us has the ability to paint respectably, write good detective fiction, compose songs or play sweeper for even a middling kind of football team. Yet, as a legal matter, the democratic societies in which we live treat us as the equal of those who can do these things. This equality myth is a key element in the maintenance of a particularly admirable kind of social order, a counterfactual that pays dividends in fairness and stability. Proving the law wrong in its declared assumptions may not actually affect the utility of those assumptions (p.e. Goodenough)”.

 

ATAHUALPA FERNANDEZPós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular- Unama/PA ;Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

MANUELLA MARIA FERNANDEZDoutoranda em Direito Público (Ciências Criminais) e em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears/UIB ; Research Scholar en el Laboratorio de Sistemática Humana/UIB.