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Ditadura da Televisão

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*João Baptista Herkenhoff  

Impõe-se a democratização dos meios de comunicação e especialmente da televisão.  Não pode haver democracia real, se um grupo limitadíssimo de pessoas "faz a cabeça" daquela parte  da população que não jornais, nem revistas e livros, mas que se guia  pela "telinha" colorida.

É preciso que haja uma maior regionalização dos programas.  Mesmo os fatos nacionais deveriam ser interpretados e discutidos à luz das realidades locais, por jornalistas locais, por pessoas da comunidade. Nas diversas redes, o tempo destinado às programações locais não condiz com o respeito que merecem o senso crítico e a criatividade das comunidades telespectadoras.  Com programação mais regionalizada, seria possível um controle mais eficaz da sociedade sobre os meios de comunicação.

A regionalização contribuirá para que se preservem as riquíssimas culturas regionais brasileiras. 

É preciso que haja conselhos éticos dentro de cada emissora, com participação de jornalistas e representantes da comunidade. Deve ser maior o poder dos comunicadores dentro de cada veículo.  A frase de Assis Chateaubriand, captada por Fernando Moraes, de que para ter opinião própria era preciso que o jornalista fosse dono do meio de comunicação, não pode prosperar, se temos uma concepção não-autoritária de imprensa.

Televisão é serviço público, é instrumento de educação popular, como também o rádio. 

As imagens da TV e as ondas do rádio não pedem licença para entrar em nossas casas. São invasoras.  Podem falar aos filhos, sem o consentimento dos pais, inclusive quando os pais não estão em casa.  A sociedade tem o direito de controlar essa máquina, para não ser por ela controlada, tragada e escravizada.

A violência na TV tornou banal a violência.

A supressão de qualquer referência ética caracteriza alguns dos programas de maior audiência.

A sociedade foi consultada se concorda com todo esse culto da violência, com a supressão da ética no universo televisivo?

A outorga e a renovação das concessões deveria ser submetida a controle da sociedade. Canal que sistematicamente desinforma, deseduca e embrutece deve ser cassado por órgão democrático da sociedade civil.

Seria extremamente útil algum controle dos jornalistas das afiliadas na condução das emissoras matrizes.

Numa outra vertente, muito bom seria que a sociedade civil organizada, através de suas instituições, premiasse programas positivos de televisão, incentivasse uma linha educativa nas transmissões, destacasse com elogio a publicidade com mensagem humanamente construtiva, enobrecesse com a palma do reconhecimento o telejornalismo honesto e investigativo.

Como sociedade civil, não podemos nem devemos concordar em ser mero apêndice dos que controlam, pela televisão, a opinião pública brasileira.

Na afirmação da cidadania, temos de exigir que se cumpra a Constituição Federal de 1988, cujo artigo 221 estabelece que a programação das emissoras de rádio e televisão dêem preferência a finalidades educativas, promovam a cultura nacional e regional, estimulem a produção independente, respeitem os valores éticos da pessoa e da família.

Depois que lemos o que está escrito na Constituição e ligamos nossos aparelhos de TV, a impressão que temos é a de que estamos lendo a Constituição de um outro país.

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

João Baptista Herkenhoff é Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo, membro emérito da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória e escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br

 


Cartões corporativos infringem princípios de Direito Financeiro

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*Kiyoshi Harada

Estamos estarrecidos com as notícias transmitidas diariamente pela mídia dando conta de que autoridades e servidores graduados do Executivo vêm fazendo uso de cartões corporativos para realização de despesas pessoais em free shops, bares, aluguéis de carros, compras em supermercados, e o que é pior, saques em dinheiro.

Esse mecanismo de utilização de dinheiro público, introduzido pelo governo FHC em nome da praticidade, teve as despesas dele decorrentes consideravelmente aumentadas no atual governo, ironicamente, em nome da transparência dos gastos públicos. E a cada ano que passa essas despesas vão crescendo em proporções gigantescas. Citemos alguns exemplos, confrontando os valores gastos em 2006 e 20071:

                                    2006                            2007                           aumento

Planejamento………… 4.514.833………………. 34.446.016………………… 662,95 %

Cultura…………………..….35.932 …………………117.4442.…………………..26,85 %

Turismo…………………..…….348………………..……. 2.780………………….. 699,41 %

Previdência Social………436.810 ………………….282.095…………………..193,51 %

Igualdade Racial………… .55.532…..………………171.556…..………………208,93 %

No total foram gastos 177,5 milhões de reais, no exercício findo de 2007, por 11.500 portadores de cartões corporativos.

É claro que dados estatísticos, por si sós, não servem para apreciação qualitativa das despesas feitas. Quem gastou mais em termos de valores não significa, necessariamente, que auferiu vantagens indevidas.

Mas, não é propósito deste artigo analisar os gastos feitos por esta ou aquela autoridade, nem por este ou aquele servidor público, tarefa já suficientemente desempenhada pelos meios de comunicação de massa (jornais, revistas, rádio e televisão).

Examinemos a matéria exclusivamente pelo prisma jurídico-financeiro.

A despesa pública pela modalidade de cartão corporativo não tem base legal, nem constitucional.

A Lei nº 4.320/64, bem como a Lei Complementar nº 101/00 – LRF – não permitem despesas públicas que não se enquadrem previamente nos “elementos de despesas”, que devem constar da Lei Orçamentária Anual – LOA.

Essa exigência é uma decorrência direta do princípio da fixação de despesa pública que está expresso no § 8º, do art. 165 da CF, o qual, se desdobra em outro princípio, o da quantificação dos créditos orçamentários (art. 167, VII da CF), que veda a concessão ou utilização de créditos ilimitados.

A inobservância desse princípio constitucional torna inócuo e ineficaz o controle interno da execução orçamentária, bem como o controle externo exercido pelo Congresso Nacional, com auxílio do Tribunal de Contas da União.

Por isso, o máximo que a Lei nº 4.320/64 permite é a inclusão nas dotações orçamentárias pertinentes às despesas públicas de um elemento de despesas sob a rubrica “adiantamento de despesas”, para oportuna prestação de contas pelo servidor público contemplado. Adiantamento de despesas, segundo a definição dada pelo art. 68 da Lei nº 4.320/64, só é admissível em casos expressamente previstos em lei, e “consiste na entrega de numerário a servidor, sempre precedida de empenho em dotação própria, para o fim de realizar despesas que não possam subordinar-se ao processo normal de aplicação”. O art. 69 veda o adiantamento ao “servidor em alcance”, expressão técnica que significa aquele servidor a quem foi atribuída culpa ou dolo na despesa feita irregularmente. Nessa hipótese, anula-se o empenho e propõe-se contra o servidor ímprobo o competente executivo fiscal.

Dir-se-á que tal procedimento dificulta a realização de despesas necessárias. É verdade, mas em se tratando de dinheiro público o seu dispêndio deve atender aos rigores do princípio da legalidade, que é um corolário do princípio da legalidade tributária. Não há justificativa, por exemplo, para promover contratação sistemática de carros de aluguel, ou de abastecer residências oficiais ou repartições públicas com alimentos e bebidas, de forma usual, com dispensa do certame licitatório, onerando a respectiva dotação orçamentária.

A despesa pública deve ser feita de forma a possibilitar o seu controle e fiscalização efetiva, o que não será possível se os gastos públicos forem feitos por meio de cartões corporativos, que até saques em dinheiro permitem. O princípio da transparência não se resume na verificação do quantum da despesa feita, mas na exteriorização da causa e da finalidade da despesa, inclusive, para efeito de confrontar a despesa realizada com o princípio da legitimidade da despesa pública, que antecede o princípio da legalidade dessa despesa. Aliás, cartões corporativos é infeliz na própria denominação dada, por denotar uma idéia contrária à moralidade administrativa. Traduz a idéia de corporativismo, que conduz à política de gastança dos detentores do poder.

As despesas públicas, como as de início mencionadas, atentam contra os princípios da administração pública, insertos no art. 37 da CF, e enquadram-se, em tese, nos atos de improbidade administrativa nas três modalidades previstas nos artigos 9, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92.

Tais despesas, necessariamente, implicam violação do tão comentado princípio da impessoalidade. Na ausência de “elementos de despesas”, os gastos com cartões corporativos dependem apenas da subjetividade de cada um dos agentes portadores, permitindo-se até saques em dinheiro, sem prévia especificação de sua finalidade. Não há Regulamento capaz de eliminar a dose de subjetividade fora das normas da lei de regência da matéria, que não abriga esse tipo de despesas. Daí a ineficácia das medidas governamentais tentando conter despesas pessoais, estabelecendo proibições casuísticas com base nas notícias de irregularidades veiculadas pela grande imprensa. Essa matéria insere-se no âmbito de reserva legal, cabendo ao Congresso Nacional, se for o caso, adequar a Lei nº 4.320/64 às necessidades dos dias de hoje, em que o quadro de pessoal nas administrações públicas das três esferas políticas não para de inchar. Uma coisa é a preservação da segurança nacional, que é um dever do Estado e responsabilidade de todos, a exigir despesas sigilosas, e outra coisa bem diversa é colocar os cartões corporativos em mãos de 11.500 servidores das mais diferentes categorias funcionais.

As despesas com cartões corporativos têm sua matriz na DRU, que representa um cheque em branco de mais de R$ 125 bilhões em mãos do Executivo, considerando-se o montante das receitas tributárias estimadas na proposta orçamentária de 2008.

A origem dessa DRU, que está no Fundo Social de Emergência, instituído pela Emenda de Revisão de nº 1/94, para vigorar nos exercícios de 1994 e 1995, em uma situação emergencial (o Congresso não teve tempo para discutir e aprovar a LOA de 2004, por conta do processo de impeachment do Presidente da República), vem sendo prorrogado desde então com o nome de Fundo de Estabilização Fiscal e agora sem nome, conhecido pela sigla DRU, que significa desvinculação da receita da União no montante equivale a 20% de todos os tributos federais. À época em que a DRU ostentava a denominação de Fundo, dizíamos que “de fundo em fundo o orçamento anual vai parar no fundo do poço”. É o que está acontecendo. O orçamento deixou de ser o instrumento do exercício de cidadania, para transformar-se em uma peça decorativa, apesar do grande trabalho que tem dado ao Parlamento para sua aprovação, quase sempre, fora do prazo constitucional.

A DRU, por não corresponder a nenhuma dotação específica, representa um ralo por onde são sugados os recursos financeiros do Estado sem prévia destinação legal, e por isso mesmo, não passíveis de controle e fiscalização. É pior do que a “reserva de contingência”, que esvazia em parte a função legislativa para abertura de créditos adicionais especiais (art. 167, V da CF).

Enquanto o Congresso Nacional não extinguir a DRU, infelizmente, prorrogada até 2011 pela Emenda nº 56, de 20-12-07, originária da PEC nº 50/07, que previa também a prorrogação das CPMF, as despesas do tipo cartão corporativo ou algo pior continuarão acontecendo.

Em conseqüência, iremos protelando indefinidamente a oportunidade de crescimento econômico nos moldes dos demais países emergentes, porque a manutenção do crescente nível de imposição tributária se tornará indispensável, mesmo à custa de coações indiretas dos contribuintes, por meio de instrumentos normativos cada vez mais truculentos e distanciados dos direitos e garantias fundamentais, que deveriam estar pairando acima do poder político do Estado, porque resultantes de soberania popular (parágrafo único do art. 1º da CF).

NOTA

1 Fonte: O Estado de São Paulo, de 31-1-2008, p. A4.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Kiyoshi HaradaEspecialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

E-mail:  kiyoshi@haradaadvogados.com.br

Site: www.haradaadvogados.com.br  

Exame de ordem: purificação de poucos e angústia de muitos

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* Atahualpa Fernandez 

 

Na quase totalidade das vezes em que a OAB publica o resultado dos aprovados em alguma das fases do  Exame de Ordem o discurso oficial que varre o País parece ser sempre o mesmo: que os números “ continuam revelando as deficiências do ensino jurídico no preparo dos bacharéis…” ( por exemplo, www.oabsp.org.br, “Destaque Especial” – Exame de Ordem n. 134, OAB/SP). Sem menosprezar a seriedade ou o eventual grau de boas intenções oculto nesse tipo de discurso, estou particularmente convencido de que são  inúmeros os equívocos, as limitações e os preconceitos pressupostos nessa maneira simplista e reducionista de apreciar o problema.

Ninguém põe em dúvida que a cultura jurídica passa por um momento deveras delicado, mas insistir com desproporcional veemência no fenômeno das “deficiências” do ensino jurídico não constitui, por si só, razão necessária e suficiente para continuar condenando ao desemprego milhares de Bacharéis que reprovam no mencionado Exame, taxando-lhes (implícita e indiretamente) de desonestos, incultos e incapazes, vítimas inocentes de um modelo de ensino esclerosado e assumidamente ineficiente – e digo “assumidamente” ante a aparente impotência e o silêncio conformista por parte das instituições de ensino apontadas como responsáveis por tais “deficiências”.

Parece até que o objetivo último do Exame de Ordem é dar à sociedade a impressão de que não somente não sabemos educar, senão que sequer sabemos em que consiste educar. Isso para não falar ( na linha de Baudrillard)  de que se trata de um poderoso instrumento de purificação periódica da própria OAB que não perde tempo em alardear o “escândalo” do elevado índice de reprovação, de maneira parecida ao modo em que o corpo se beneficia de pequenas doses de enfermidade em forma de inoculações. E se entendemos a educação num sentido mais próximo de como a entendia Aristóteles nada menos que 24 séculos atrás, nem as estúpidas distinções entre teoria e prática, nem as lutas acerca de quem dá a última palavra sobre a capacidade e aptidão profissional servem  aqui de muita coisa.

O certo é que não se pode negar o fato da presença, aparentemente cada vez mais insistente, de indivíduos que se encontram como flutuando na estrutura social e que povoam seus interstícios sem conseguir um lugar no mercado de trabalho. Essa situação de flutuação, de ausência de lugar, de errante, não deixa de recordar a inquietude e a angústia dos “filhos da deficiência”  ante a completa falta de oportunidades de trabalho gerada por um “instrumento de controle” injusto, despropositado e inconstitucional. Esta é a angústia que cria a privação cada vez mais drástica de oportunidades e a consequente (e quase patológica) busca pelos epidêmicos cursinhos preparatórios extra-universitários, periodicamente incrementada e agravada pelo fenômeno de “reprovação em massa” nos Exames de Ordem  e  que, em certa medida, já começa a acariciar os limites de situações socialmente degradantes.

A que se deve esses números que “continuam revelando as deficiências do ensino jurídico no preparo dos bacharéis”? Cada cidadão interessado por estas coisas tem seu próprio diagnóstico mas é provável que a dispersão coincida em alguns aspectos de notória evidência. Por exemplo,  o de que um único exame escrito não parece ser , definitivamente, um instrumento legítimo e fiável para medir  a capacidade (ou honestidade) profissional de um Bacharel em Direito, de um cidadão. Segundo, que nenhum sistema aprovado de interação e estrutura social regulado pelo Direito ( uma relação jurídica) pode funcionar legitimamente de forma unilateral, onde somente uma das partes tem o “direito de” ( no caso, da OAB de exigir um Exame de Ordem sem nenhuma contraprestação específica)  e a outra somente o “dever de”(no caso, dos bacharéis de se submeterem ao referido Exame). Fora de um contexto integral de responsabilidades compartidas, qualquer discurso acerca da qualidade da preparação ética e profissional dos Bacharéis em Direito não passa de um conjunto de hipóteses escritas na areia.

Assim que parece haver chegado o momento de lutar contra e eliminar este tipo de prática ou, ao menos, reconfigurá-la, a despeito das  boas intenções, dos prejuízos ideológicos, interesses corporativos e/ou políticos em jogo. Ser resiliente a práticas unilaterais e ilegítimas, baixar a guarda do silêncio, aceitar às vezes fazer explosão ( para usar a expressão de Catherine Malabou) e ser ativo e não passivo com relação a nossos motivos e eleições ( isto é, sujeitos autônomos, na concepção de Harry Frankfurt) : isso é o que se deve fazer. É o momento de recordar que existem explosões que não são terroristas, como por exemplo as explosões de indignação.

Talvez se deva voltar a aprender a indignar-se, a rebelar-se contra certa cultura da docilidade, da submissão, da interferência arbitrária, da impotência e do conformismo, enfim, da eliminação de todo conflito justamente agora que vivemos em um estado em que no plano da política já enlouquecemos todos e se manejam cifras de escândalo como se se tratasse de uma troca de figurinhas em uma atividade que não mais ultrapassa sequer o umbral do trivial. Trata-se, ademais, de um compromisso (de luta) incondicional que cabe e deve ser assumido por todos os agentes envolvidos e responsáveis pelo processo de ensino jurídico. Afinal, as práticas que soem prosperar são exatamente as que contribuem a conservar os sistemas que lhes permitem ser transmitidas.

Perguntar-se “o que fazer com o Exame de Ordem?” é, em boa medida e sobretudo, considerar a possibilidade de dizer não a um tipo de “controle” deplorável e a uma política institucional de exploração que parece só saber bazofiar o triunfo do fracasso, apontar culpados e responsáveis , e consagrar o reino de indivíduos obedientes e “incompetentes” que não tem mais mérito que saber baixar a cabeçar, conformar-se e voltar a preparar-se para o Exame de Ordem n. 135, 136, 137, 138…

Seja como for, é muito provável que, depois de tudo, todo esse problema resida unicamente no fato de que, como disse certa vez Karl Marx, “os homens fazem sua própria história, mas não sabem que a fazem”.


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

ATAHUALPA FERNANDEZ;  Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e  Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular da  Unama/PA e Cesupa/PA;Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado) ; Advogado.

Exame de Ordem e apatia universitária

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*Atahualpa Fernandez       

“Eu e meu clã contra o mundo;

 eu e minha família contra meu clã;

eu e meu irmão contra minha família;

eu contra meu irmão”.

PROVÉRBIO SUMALÍ                                                                                    

Uma das coisas que mais me intriga  no discurso “oficial” da OAB acerca da “má qualidade e das deficiências do ensino jurídico no preparo dos bacharéis” como a principal – para não dizer a única – causa dos alarmantes índices de reprovação no Exame de Ordem, não é o discurso em si ( por demais simplista e reducionista) mas a apatia e o silêncio conformista por parte das instituições de ensino (pelo menos da grande maioria) insistente, periódica e veementemente apontadas como as verdadeiras – para não dizer as únicas –  responsáveis por tais “deficiências” e a consequente “reprovação em massa” nesses exames .

Em termos comparativos, essa inusitada situação parece indicar que, por mais que os redatores da “lei das leis” tenham imposto grande empenho retórico na questão da liberdade e autonomia universitária e de que a educação deve ter como objetivo prioritário o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua (real) qualificação para o trabalho, o que conta é apenas o resultado final : a entrega do diploma universitário. E se damos essa situação por normal, se não parece razoável fazer nada para corrigí-la, talvez possamos economizar os gastos que se investem na educação porque, de uma maneira ou outra, já não servem ou servirão de grande coisa.

Assim que me preocupa a atitude das instituições de ensino quando,  diante de  de tais acusações, continuam a adotar uma “política de avestruz”, como se o baixo índice de aprovação nos exames de ordem por parte dos egressos dessas mesmas facultades de direito não lhe diga respeito ou se trate apenas de um episódio que não tem a dimensão e a transcendência que parece ter. Nada mais longe da realidade: o que de fato salta à vista, por mais que possam negá-lo – que certamente não o fazem – as autoridades e as instituições de ensino com responsabilidades na formação desses profissionais, desde as governamentais até as que dirigem o mercado da educação, é que, já faz algum tempo, alcançamos sobre essa questão uma situação de stress, reprovável e feia.

Na verdade, qualquer parecido com o que caberia chamar uma postura universitária de compromisso ético  brilha, hoje,  de maneira clamorosa por sua ausência.E nem se diga, ao melhor estilo kantiano, que em temas como esses o que conta são as “boas intenções”, porque a ação é a única prova fiável e fidedigna para valorar a intenção: se a ação nunca aparece, é muito provável que a intenção seja uma farsa. E embora não exista – parafaseando Churchill- nenhuma terra neutral entre o bem e o mal onde alguém possa viver uma vida moralmente tranquila, nossas instituições de ensino jurídico se comportam como se estivessem vivendo esse tipo de vida.

Depois,  nunca é demais recordar que a essência da apatia reside precisamente no fato de que carrega consigo a completa perda de interesse no que sucede. Nada nos preocupa nem nos importa. E uma consequência natural disso é que nossa disposição a estar atentos se debilita e nossa vitalidade ou sensibilidade moral se atenua.Em suas manifestações mais habituais e características, o conformismo apático implica uma redução radical da agudeza e constância de atenção ao que realmente importa. Nossa consciência moral perde a capacidade de perceber injustiças, convertendo-se em algo cada vez mais homogêneo. E à medida que se expande e se apodera de nós, a indiferença faz com que nossa consciência ou compromisso ético experimente uma diminuição progressiva de sua capacidade de perceber os fatos importantes. A justiça só é um valor para os que se interessam e desejam a justiça. A humanidade só é um valor para os que  desejam viver humanamente; a vida só vale para quem a busca ativamente; e nenhuma coisa comanda a não ser proporcionalmente ao interesse que temos por ela. Dito de modo mais simples: ter interesse por alguém ou algo significa ou consiste essencialmente, entre outras coisas, em considerar seus interesses como razões para atuar ao serviço dos mesmos.  

Visto desde essa perspectiva, as facultades de direito estão fazendo muito pouco (ou quase nada) para combater a lógica do discurso das “ deficiências do ensino jurídico”. Parece até que o que se predica só se aplica e afeta aos bacharéis; as instituições que os formaram durante 5 longos anos não têm nada que dizer a respeito. Sem embargo, se é certo que a distância faz coisas estranhas a nosso sentido moral, não menos certo é o fato de que se deixas a um grupo de indivíduos privado de oportunidades reais na estrutura social e que povoam seus interstícios sem conseguir um lugar no mercado de trabalho, o distancias das práticas e instituições sociais das que forma parte; e muito provavelmente os membros desse grupo se convertirão em fatores ou números estastíticos que desvalorizam essas mesmas instituições.

Assim que à medida que a esfera de preocupação das instituições de ensino se faz cada vez mais estreita, começamos a ser testemunhas de um fenômeno de “definhamento moral”. Sequer nos podemos surpreender de que o compromisso ético das instituições de ensino com os bacharéis saídos de suas entranhas esteja tornando-se cada vez mais avaro e insípido,  e se converta em uma simples preocupação pelas “leis da terra”. E se tomamos o fenômeno do Exame de Ordem  e da indústria dos cursinhos preparatórios como indício, este processo já está bastante avançado no Brasil.

Os que se calam não sentem nenhuma vergonha se a lei permite condenar  ao desemprego milhares de Bacharéis que reprovam no mencionado exame, taxando-lhes (implícita e indiretamente) de desonestos, incultos e incapazes, vítimas inocentes de um modelo de ensino esclerosado e assumidamente ineficiente. Os problemas morais e sociais gerados por esse instrumento de “controle de qualidade” se resolvem recorrendo a legislação. E as instituições culpadas dessa falta moral atroz defendem rotinariamente seu direito de continuar com tal prática sob o argumento  de que “não fazem nada ilegal”. O que se espera é que quando não se imcumpre a lei não se pratica nenhum mal. Nada mais longe da verdade ( verdade, aqui – diga-se de passo – , empregada no sentido dado por Harry Frankfurt).

Por vezes, ainda que nos encontremos na presença de mandados emitidos por um legislador formalmente habilitado e acompanhados por uma organizada garantia coativa, o que se nos oferece são autênticas perversões do ato de legislar. Não podem, com efeito, considerar-se de outro modo as normas abertamente contrárias à idéia de Direito e, portanto, violadoras daquela mesma função axiológico-normativa em que terão de justificar-se como normas jurídicas válidas e legítimas.

Há um sentido comum de que o Direito  segue exigindo um momento de incondicionalidade que obedece a sua necessária vinculação com a moral , ou seja, de que não se tornou exclusivamente instrumental como pretendem fazer ver alguns discursos motivados por prejuízos ideológicos, políticos e/ou interesses corporativos. De fato, é essa pretensão de correção moral que permite distinguir entre o Direito  e a força bruta , que permite distinguir (ou não) entre a ordem de um delinquente (“a bolsa ou a vida”) e a ordem de cobrança de uma determinada contribuição , enfim, que não  permite conceber o Direito, inclusive o direito legislado, de outra maneira que não esteja destinado a servir a justiça.

E porque as perguntas sobre a justiça são perguntas morais,  as instituições que desconsideram essa incondicional dimensão do Direito, que negam conscientemente a vontade de justiça ou quando violam arbitrariamente  os princípios, os direitos e as garantias consagradas, cometem, por essa via, uma falha moral e a pretensão de correção transforma essa deficiência moral em deficiência jurídica : as normas perdem seu caráter jurídico se sobrepassam certos limites de injustiça. Dito de outra forma,  parece ser que a única atitude legítima  em face de um instrumento de controle” injusto, despropositado e inconstitucional é a de lutar aberta e criticamente contra sua aplicação.

Às instituições de ensino lhes corresponde  o dever moral e jurídico de reagir contra essa prática deplorável e a atual política institucional de exploração que parece só saber bazofiar o triunfo do fracasso, apontar culpados e indicar responsáveis. A virtude , a independência e a autonomia universitária não são outra coisa que a manifestação da autonomia do Direito e, em razão disso, essas mesmas universidade se encontram comprometidas eticamente com o imperativo moral ( e constitucional) de que capacitar o ser humano para o exercício virtuoso de uma atividade profissional, como valor primeiro, somente se afirma a partir do respeito incondicional por sua dignidade: não somente de um aluno ou de um Bacharel, mas de um ser humano com plena aptidão para sentir, reagir, amar, eleger, cooperar, dialogar e de ser, em última instância, capaz de autodeterminar-se livremente no âmbito de sua formação pessoal e profissional.

Mas se em realidade  nada disso importa, melhor para todos. Sem embargo, a mensagem que há que enviar àqueles que realmente educam é que não é insignificante ou “sem sentido” o que está sucedendo: que a indiferença, a pusilanimidade e a falta de uma postura mais firme e aberta não são ( e não devem ser) a regra. Que a simples suspeita de que algo vai mal já constitui razão suficiente para ficar atento e pressionar os verdadeiros responsáveis por uma situação que já começa a acariciar os limites de situações socialmente degradantes, até averiguar o que efetivamente está ocorrendo. E que, depois de tudo, se obrará em consequência.

Somente assim os “filhos da deficiência” terão a oportunidade para emancipar a si mesmos em uma sociedade “livre, justa e solidária”. Enquanto  houver indivíduos vivendo  sob o manto perverso da mais bárbara , injustificada e completa falta de oportunidades de trabalho,  dignidade humana, liberdade e igualdade , não são para eles sequer meras possibilidades humanas. Por conseguinte, até que as “mães da deficiência” (as universidades) não tomem partido e lutem em favor de seus egressos, todo e qualquer discurso universitário sobre “qualidade de ensino” , cidadania e justiça não passará de mera retórica dessorada e vazia de conteúdo.

Em resumo, se entendemos como correto e pertinente o princípio de Kant de que “onde há um posso, há um devo”, já é hora de que as instituições de ensino , no que se refere ao problema do Exame de Ordem, deixem de uma vez por todas de habitar no primeiro círculo do inferno de Dante: o da  indiferenzza, o reino do puro interesse próprio egoísta, a “origem de todo mal” e a mais cruel e perversa forma de castigo moral .



REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

ATAHUALPA FERNANDEZ:  Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e  Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular da  Unama/PA e Cesupa/PA;Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado) ; Advogado.

Abolição da prisão civil por dívida?

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Ricardo Kalil Fonseca*   

Sumário: 1. Eufemismo da lei de alienação fiduciária. 2. Teses a favor e contra a prisão civil. 3. Disposições legais incompatíveis com a prisão civil 4. Posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal 5. Considerações finais. 6. Fontes.

1.  Eufemismo da lei de alienação fiduciária 

        O decreto lei n. 911/1969, que trata da alienação fiduciária em garantia, discretamente, não contém os termos  “prisão civil” como medida de coerção em caso de mora ou inadimplência. 

        Porém, uma ponte, conduz a este resultado, pois dispõe o decreto, que em caso de mora ou inadimplemento, o credor pode propor ação de busca de apreensão, e não encontrado o bem, requerer sua conversão ao rito da ação de depósito, previsto do art. 901 a 906 do Código de Processo Civil, que pode resultar em prisão civil de até um ano.  

        Assim, descontado o eufemismo da legislação, se trata mesmo de prisão civil por dívida, porque, a  pretensão do credor fiduciário, é o recebimento da dívida, e não o de reaver o bem, como ocorre no instituto do depósito tradicional, que se classifica em voluntário e necessário,  nos termos dos artigos 627 e 647, respectivamente, do Código Civil.  

         O decreto foi criado na época da ditadura militar, e  tal era a instabilidade do País naquele momento, que ocuparam o cargo de Presidente, cinco militares apenas naquele ano[I] 

          A criação da fórmula naquele contexto, provavelmente não causou espanto.

2.       Teses a favor e contra a prisão civil 

        Atualmente, várias teses são apresentadas a favor ou contra a prisão civil neste caso, e as decisões dos tribunais também se dividem. Vêm de longe, por exemplo, os questionamentos: 

1.   Se o decreto 911/69, foi recepcionado pela Constituição de 1988;

2.   A ilegalidade da aplicação das regras do depósito tradicional, nos contratos de alienação fiduciária;

3.    Aplicabilidade do princípio do pacta sunt servanda, já que o consumidor aceita as regras na contratação.

4.   A aplicabilidade o Pacto de San José de Costa Rica, que admite a prisão civil apenas no inadimplemento de dívida alimentar.

5.   Status de Emenda Constitucional deste Pacto, conferido pela Emenda n.º 45. 

        A extravasar os debates sobre a literalidade da lei, outra preocupação é quanto à segurança e agilidade dos negócios entabulados com a utilização deste decreto, por suposto fator inibitório ao descumprimento do contrato, em razão da possibilidade de prisão civil.  Justificável, já que é significativo o volume de veículos adquiridos por esta via. 

        Pelos registros da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores – ANFAVEA,  no ano de 2007, dos veículos novos comercializados, 70% foram  através de financiamento.[II] 

3.  Disposições legais incompatíveis com a prisão civil 

        Em novembro de 2002, mediante o decreto n.º 678, o Brasil aderiu ao Pacto de São José da Costa Rica, que trata da convenção americana sobre direitos humanos. 

        O item 7 do  art. 7º deste decreto, admite apenas uma forma de prisão civil, a decorrente de crédito alimentar, in verbis 

7. Ninguém deve ser detido por dívida.  Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.  

        Ratificando este decreto, posteriormente, dispôs o §3º do art. 5º da Emenda Constitucional de n.º 45, de dezembro de 2004: 

Art. 5º

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

4. Posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal

        O Plenário do Supremo Tribunal Federal enfrenta atualmente a matéria, através do Recurso Extraordinário de nº. 466.343, sendo que oito (8) Ministros já expressaram seu voto, reconhecendo a  inconstitucionalidade da prisão civil nos casos de alienação fiduciária.[III] 

        Enquanto tramita este julgamento, o  entendimento já esposado pela maioria do julgadores do STF, tem servido de fundamento para julgamento nos tribunais, e no próprio Supremo: 

(…) 3. Reiterados alguns dos argumentos expendidos em meu voto, proferido em sessão do Plenário de 22.11.2006, no RE nº 466.343/SP: a legitimidade da prisão civil do depositário infiel, ressalvada a hipótese excepcional do devedor de alimentos, está em plena discussão no Plenário deste Supremo Tribunal Federal. No julgamento do RE nº 466.343/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, que se iniciou na sessão de 22.11.2006, esta Corte, por maioria que já conta com sete votos, acenou para a possibilidade do reconhecimento da inconstitucionalidade da prisão civil do alienante fiduciário e do depositário infiel. 4. Superação da Súmula nº 691/STF em face da configuração de patente constrangimento ilegal, com deferimento do pedido de medida liminar, em ordem a assegurar, ao paciente, o direito de permanecer em liberdade até a apreciação do mérito do HC nº 68.584/SP pelo Superior Tribunal de Justiça.

 5. Considerada a plausibilidade da orientação que está a se firmar perante o Plenário deste STF – a qual já conta com 7 votos – ordem deferida para que sejam mantidos os efeitos da medida liminar.[IV]

 5.  Considerações finais         

        A par de tudo isto, cabe a refletir se – com exceção de dívida alimentar, cuja obrigação está diretamente associada à vida, a sobrevivência do alimentando –  é razoável nos dias atuais, a prisão civil por dívidas em geral.  

    A olhar pela história, se vê que, a manutenção do dispositivo da prisão civil do decreto 911/69, é uma válvula aberta de retorno a eras primitivas, quando as dívidas eram pagas com a vida ou com a liberdade.  

     Já a sua manutenção, pode servir de precedente para a criação de outras espécies de contrato, com igual jaez, pois ainda que por via oblíqua, o contrato de alienação fiduciária na prática, prevê a prisão civil por dívida.

       E a considerar a versatilidade empresarial, com a abolição da prisão civil neste caso, se manterá o fluxo de negócios, especialmente porque não faltam outros instrumentos de garantia, tais como: seguro, leasing, garantia fidejussória, aval, crédito pré-aprovado em bancos, e até, pela toada da carruagem, aquisições de veículos com cartão de crédito. 

        Sem descarte também, para exercício de direito de seqüela sobre o bem, pelo sistema de bloqueio e rastreamento de veículos, mecanismo aliás, que será obrigatório em todos os veículos novos, a partir de 2009, conforme resolução n.º 245, do Conselho Nacional de Trânsito[V]. 

        Por este prisma, a prisão civil decorrente dos contratos de alienação fiduciária, é medida extrema, desnecessária, e incompatível com os tempos atuais.

6.  Fontes:

[II] Jornal O Estado de São Paulo.

http://www.estado.com.br/editorias/2008/01/07/eco-.93.4.20080107.1.1.xml  – Acesso em 05/02/2008.

[IV] STF.HC 90172/SP – São Paulo. Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgamento: 05/06/2007. Segunda Turma Publicação: DJE-082 17-08-2007 PP-00091.  

[V]  DOU 1.08.2007.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

RICARDO CALIL FONSECA:  Advogado em Itaberaí, Goiás, atuante desde 1992, nas áreas: cível e trabalhista, inscrito na OAB/GO sob nº. 12.120.  Pós-graduado em direito do trabalho, pelo convênio Universidade Católica de Goiás/PUC-SP.  

Afinal! De quando se conta o prazo do art. 475-J do C.P,C.?

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Márcio Archanjo Ferreira Duarte* 

         Hermenêutica… Denotada publicamente pelo célebre professor e lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda, é definida – dentro outros sentidos semânticos – como “arte de interpretar leis”. Arte essa, tão íntima dos profissionais do Direito quanto o próprio vernáculo. Através dela, o ordenamento jurídico de um país pode tomar um ou outro sentido, podendo afetar poucos ou muitos indivíduos.  

Contudo, notoriamente prescreve-se que o objetivo maior da lei é o bem comum. Não obstante sua imperatividade e obrigatoriedade, por (muitas) vezes aquela só é acatada por via Poder Judiciário, através da força coercitiva do Estado, subjetiva e sumariamente aplicada, sobretudo, também arrimada na lei. Ou seja, se constata que a ordem judicial é subsidiária da ordem legal, de qualquer forma sob lei. 

Deste preâmbulo, se concluiu que, ou o indivíduo atende logo o que a lei determina ou terá que atendê-la sob o púlpito judiciário. Então terá de acatá-la de qualquer maneira. Mas não seria mais fácil atender a lei imediatamente? A resposta desta indagação vai depender de como o Legislador dispõe-na. Já, se a forma de interpretar a lei é tão-somente e claramente gramatical ou literal, aí a resposta daquela indagação está no caráter de cada um. 

Após esta necessária introdução, passa-se ao tema versado no título deste artigo: afinal! De quando se conta o prazo do Art. 475-J do C.P.C.? Esse dispositivo legal é um exemplo de atecnia do Legislador, que deveria ter previsto todas as possíveis interpretações quando não permitiu que fosse possível unicamente a interpretação gramatical à redação do Art. 475-J do Código de Processo Civil, introduzido pela Lei Federal nº. 11.232/2005. E assim, trazendo discussões doutrinárias e jurisprudenciais. O que apenas contribui mais para o atolamento da máquina judiciária brasileira, já bastante emperrada. E em tais discussões, entra a hermenêutica para tentarmos entender e aplicar a real intenção do Legislador, no tocante. 

Pessoalmente, este humilde exegeta prefere não citar o entendimento individual e seus respectivos nomes de operadores do Direito, doutrinadores ou juristas. Na análise de um dispositivo legal – graças à atecnia do Legislador – prefere analisar a própria letra da lei, primando sempre pela interpretação gramatical. Senão, vejamos o artigo legal, ipsis litteris:

Art. 475-J. Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação. (grifado)

Pois bem, é no trecho grifado que incide a celeuma. A discussão gira em torno do prazo de quinze dias, se contam da decisão publicada; se contam da intimação pessoal (discute-se até se do patrono ou da parte); se contam do trânsito em julgado (entendimento recentemente decidido no Superior Tribunal de Justiça); ou se contam até da devolução dos autos na serventia judiciária mesmo já tendo havido o trânsito.  

Com o devido e merecido respeito a todos os nobres colegas, doutrinadores e juristas, este, pessoalmente, entende pelo espírito da lei, ou seja, independentemente de se estar na defesa do credor ou devedor.

O artigo legal dispõe que o devedor arcará também com multa de dez por cento, caso não efetue o pagamento determinado na condenação. Assim, apesar do Legislador não complementar expressamente de quando correrá o prazo para incidência da multa, o entendimento tácito está implícito na interpretação gramatical, sem olvidar de sopesar o espírito da lei que deverá sempre atender à complexidade e dinâmica da sociedade no tempo presente (pois este é um dos segredos da aplicação da Justiça em cada sociedade: analisar o comportamento humano social no tempo e no espaço).

E se a sociedade brasileira atual anseia por justiça imediata para tentar mitigar o sofrimento por tantos descasos do poder público, óbvio que a interpretação que se deve dar ao referido artigo legal – devendo-se considerar também os modernos princípios pós-positivistas como celeridade e eficiência, dentre outros – é a de que o prazo deve contar da condenação! Ora, está lá prescrito! Será acrescida a multa de dez por cento ao pagamento de quantia certa a que o devedor restou condenado. E se a condenação vigora a partir da publicação da decisão (que pode ser da leitura na própria audiência, da intimação às partes ou da publicação em Diário Oficial, conforme Art. 506, C.P.C.), sensato entender que o prazo correrá da condenação, relativa à forma da publicação da decisão, geralmente da publicação em Diário Oficial.

Questões processuais atinentes a prazos recursais não devem interferir no específico prazo mencionado no Art. 475-J, ora citado. Pois sensato vislumbrar que o efeito que será exarado judicialmente ao respectivo recurso (suspensivo ou devolutivo ou duplo efeito) é peculiar a cada tipo de instrumento recorrente. Portanto, é risco do devedor que recorre, lograr êxito em seu recurso ou não. E na hipótese deste último caso, já tendo depositado judicialmente o valor da condenação, ficará livre da incidência da multa de dez por cento.

Em suma, entende-se pessoalmente que o prazo de quinze dias do Art. 475-J, do Código de Processo Civil, deve correr da publicação da decisão condenatória, ficando ao alvitre do devedor atender ao comando judicial – dentro dos quinze dias da ciência da decisão – depositando simplesmente o valor a que foi condenado ou arriscar recorrer, arcando também com a multa de dez por cento, caso não logre êxito em seu recurso.

____________________________ 

NOTA

Pensamento pessoal: o presente artigo é dedicado ao Direito como ciência, no intuito de contribuir para sua perfeição, para que seja mais justo, mais Direito.  

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Márcio Archanjo Ferreira Duarte, advogado, natural do Rio de Janeiro.

e-mails: patrono@ferreiraduarte.adv.br  / marcio.duarte@adv.oabrj.org.br   

A evolução do conflito capital x trabalho: novos paradigmas e a nova competência da Justiça do Trabalho

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*Rafael Cruz Bastos

1. INTRODUÇÃO 

A cada dia que se passa, a humanidade descobre novas necessidades, alcança seus objetivos e traça novas metas. Estas transformações atingem todas as áreas do conhecimento humano, e entre elas, a ciência jurídica.

 Gregário por natureza, o homem é um ser eminentemente social, não só por seu instinto, mas também em virtude de sua inteligência, que lhe demonstra a vantagem de se viver em sociedade para alcançar seus objetivos. Todavia, esta convivência não está isenta de conflitos que emanam de razões diversas, tais como religiosas, políticas, econômicas e políticas. E para uma pacífica coexistência, torna-se necessária uma força coercitiva para regular tais conflitos a fim de resguardar determinados valores. 

Oriundo do conflito social, o direito é, portanto, dinâmico. Novas relações sociais e econômicas surgem de tempos em tempos e trazem consigo anseios e demandas das mais diversas origens. Tal fenômeno pode ser vislumbrado quando novos hábitos são introduzidos no seio social, impulsionados por uma revolução tecnológica, ou pelo êxodo rural, ou por situações políticas, econômicas e sociais. 

Neste sentido, sem descurar do aspecto dinâmico do direito, surge a teoria tridimensional de Miguel Reale: 

O direito não é um fenômeno estático. É dinâmico. Desenvolve-se no movimento de um processo que obedece a uma forma especial de dialética na qual se implicam, sem que se fundam, os pólos de que se compõe. Esses pólos mantêm-se irredutíveis. Conservam-se em suas normais dimensões, mas correlacionam-se. De um lado, os fatos que ocorrem na vida social, portanto a dimensão fática do direito. De outro, os valores que presidem a evolução das idéias, portanto a dimensão axiológica do direito. Fatos e valores exigem-se mutuamente, envolvendo-se num procedimento de intensa atividade que dá origem à formação das estruturas normativas, portanto a terceira dimensão do direito.[1]  

Assim, a norma jurídica é fruto da tensão entre a energia dos fatos e dos valores que pressionam um ao outro numa constante busca de harmonia da dialética que insurge do influxo de novos fatos diante da estima de certos valores, ou seja, o direito é “formado de contínuas ‘intenções de valor’ que incidem sobre uma ‘base de fato’, refrangendo-se em várias proposições ou direções normativas, uma das quais se converte em norma jurídica em virtude da interferência do Estado”[2]. 

A evolução da sociedade traz consigo novos fatos e conflitos, levando os legisladores a elaborarem novas leis, e que juízes e tribunais estabeleçam novos precedentes a fim de que seja estabelecido o equilíbrio entre os três fatores: fato, valor e norma. 

Neste sentido, o direito é uma realidade dinâmica, em constante movimento, a fim de acompanhar as relações humanas, modificando-as e adaptando-as às novas exigências e necessidades da vida, abrangendo experiências históricas, sociológicas e axiológicas. 

Assim, como ressalta Miguel Reale,  

a norma jurídica, uma vez emanada, sofre alterações semânticas, pela superveniência de mudanças no plano dos fatos e valores, até se tornar necessária a sua revogação; e, também, para demonstrar que nenhuma norma surge ex nihelo, mas pressupõe sempre uma tomada de posição perante fatos sociais, tendo-se em vista a realização de determinados valores.[3] 

 

Torna-se necessário que o cientista do direito reconheça que a lei, uma vez impotente para prever e regular juridicamente a totalidade das relações humanas, não pode conter o avanço da dinâmica histórico-social. Desse modo, 

Uma lei, por exemplo, uma vez promulgada pelo legislador, passa a ter vida própria, liberta das intenções iniciais daqueles que a elaboraram. Ela sofre alterações inevitáveis em sua significação, seja porque sobrevêm mudanças no plano dos fatos (quer fatos ligados à vida espontânea, quer fatos de natureza científica ou tecnológica, ou, então, em virtude de alterações verificadas na tela das valorações. É sobretudo este domínio que as “intuições valorativas”, em curso no mundo da vida, sempre em contínua variação, mas nem sempre de caráter evolutivo ou progressivo, atuam sobre o significado das normas jurídicas objetivadas e em vigor. A semântica jurídica, em suma, como teoria das mudanças dos conteúdos significativos das normas de direito, independentemente da inalterabilidade de seu enunciado formal, não se explica apenas em função do caráter expansivo ou elástico próprio dos modelos jurídicos, mas sobretudo em virtude das variações operadas ao nível da Lebenswelt, na qual o Direito funda as suas raízes.[4] 

 

Nesse sentido, é forçoso concluir que, a lei não tem conteúdo fixo e invariável. Sua fórmula verbal deve se adaptar às mutações do progresso, numa evolução paralela à sociedade, implicando nova significação à medida de novas valorações. 

Não raramente, através da interpretação progressiva ou histórico-evolutiva é possível adaptar a lei às novas condições sociais inexistentes ao tempo de sua formação, uma vez que na interpretação deve-se buscar sobretudo a vontade atual da lei ( voluntas legis), e não a vontade pretérita do legislador ( voluntas legislatoris).

Outras vezes, tal desiderato só se torna possível através de uma interpretação que se afaste totalmente da letra e da vontade do primitivo legislador ou conferindo àquela um sentido forçado, formando-se um direito extra-estatal ou Direito Livre, sendo esta uma prática abominável, considerando que é uma ameaça à própria existência do Estado.

 Quando se chega a tal ponto, sendo ineficaz aquela primeira modalidade, torna-se necessário a confecção de uma nova lei. Pontes de Miranda sabiamente dizia que, 

a norma jurídica tem certa elasticidade. A norma é elástica. Mas chega um certo momento em que a elasticidade não resiste e a norma se rompe. Logo, as variações na interpretação da norma devem ser compatíveis com a sua elasticidade. Pois bem, quando uma norma deixa de corresponder às necessidades da vida, ela deve ser revogada, para nova solução normativa adequada, o que nos revela a riqueza das soluções que a vida jurídica apresenta.[5]  

2. A DINAMICIDADE DO DIREITO DO TRABALHO 

O caráter dinâmico do direito é mais acentuado no ramo laboral, haja vista que este tem por escopo principal resolver o conflito capital x trabalho. Assim, além da tensão fato e valor, que poderíamos denominar de “tensão jurídica”, pois dela emana a norma, no direito do trabalho o sistema Fato, Valor e Norma sua dinamicidade é mais acentuada em razão da “tensão social” entre capital e trabalho que, por estarem em constante metabolismo, torna o elemento Fato mais instável, gerando constante desequilíbrio no sistema.

Alice Monteiro de Barros, ao tratar das características do Direito do Trabalho, aponta a tendência in fieri, isto é, à ampliação crescente. 

A sua tendência à ampliação crescente levou alguns autores a apelidar o direito do trabalho, há muitos anos, de “direito em vir a ser” (Photoff, em 1928). Essa ampliação ocorre no tocante à extensão pessoal e à intensidade. No que se refere à extensão pessoal, embora o campo de atuação do Direito do Trabalho ainda se restrinja ao trabalho subordinado, a legislação material tende a estender sua esfera normativa ao trabalhador autônomo, quando lhe assegura o direito à sindicalização (art. 511 da CLT) e ao repouso semanal remunerado (art. 3º da Lei n. 605, de 1949), enquanto a legislação processual (art. 652, III, “a”, da CLT) tende a atribuir competência aos tribunais para conciliarem e julgarem dissídios resultantes do contrato de empreitada em que o empreiteiro seja operário ou artífice. Evidentemente, a Justiça do Trabalho é competente, aqui, para deferir ou indeferir o preço da empreitada, não os direitos sociais.[6]

  

A abalizada autora confirma tal atributo do Direito do Trabalho ao constatar que antes da Constituição Federal de 1988 o trabalhador avulso não era equiparado a empregado, embora já tivessem alguns direitos como FGTS, férias, gratificação natalina e salário-família; e, a partir da Constituição vigente, os trabalhadores avulsos foram equiparados aos empregados para fins de direitos sociais (art. 7º , XXXIV).[7] 

Fenômeno semelhante ocorreu com os trabalhadores rurais, que mesmo já tivessem assegurados direitos sociais, a Constituição da República de 1988 passou a equipará-los aos empregados urbanos, passando a estender a eles alguns institutos jurídicos até então inaplicáveis, tais como o FGTS e o salário-família. 

Para se compreender melhor essa peculiaridade do Direito do Trabalho, faz-se necessário uma abordagem histórica de sua evolução pelos aspectos econômicos, sociais e jurídicos: 

2.1 Etimologia do Trabalho 

Ainda gera controvérsias a etimologia do vocábulo trabalho. Acredita-se que não exista uma origem indo-européia comum e que cada um dos troncos da língua indo-européia desenvolveu o conceito isoladamente. No inglês work há a conotação de “obra” e “trabalhar”, enquanto no grego érgon atribui-se a idéia de trabalho ou ação produtiva. 

     Labor em latim significa trabalho, fadiga, afã, obra, empenho, sofrimento, doença, mal, dor, enfermidade, desventura, infelicidade, desgraça. Há quem acredite que trabalho veio do sentido de tortura ( tripaliare) outros afirmam que os gregos conceberam o trabalho como uma dor, um castigo ( pónos em grego significa trabalho e tem a mesma raiz da palavra latina poena). 

Atualmente, predomina o entendimento de que o termo vem do Latim Tardio tripalium (ou trepalium), um instrumento romano de tortura, uma espécie de tripé formado por três estacas cravadas no chão, onde eram supliciados os escravos, derivando-se daí o verbo tripaliare (ou trepaliare). 

Somente a partir do Renascimento, o vocábulo passou a adquirir o sentido atual de “atividade, labuta, exercício profissional”. Todavia, mesmo com intenções atuais de enaltecê-lo, o termo jamais perdeu seu primitivo vínculo com a dor e o sofrimento, reforçado até pela ideologia do Antigo Testamento, quando Adão, ao ser expulso do Paraíso, é condenado a trabalhar: “No suor do teu rosto comerás o teu pão" (Gênesis 3:19).

2.2 A evolução do conflito capital e trabalho

Inicialmente, num regime de economia apropriativa, o homem desenvolvia seu trabalho de forma primitiva, através de instrumentos rudimentares, objetivando exclusivamente a satisfação de suas necessidades imediatas para sobreviver. Assim, trabalhava para obter seus alimentos, e fabricava suas armas a fim de se defender, sem o intuito de acúmulo.

Aos poucos se formam grupos que se organizam, propiciando um desenvolvimento político e econômico. Em algumas regiões, como no Egito, devido à localização geográfica mais favorável à agricultura, há uma concentração da população nas margens do Rio Nilo, onde se percebe uma evolução mais acelerada e a acumulação já podia ser vislumbrada.

Em Roma, as lutas de grupos ou tribos rivais eram constantes e os adversários derrotados eram mortos. Só posteriormente que se percebeu que era mais útil escravizar o derrotado na guerra e aproveitar de seus serviços. A escravidão torna-se aos poucos um fenômeno universal.

Neste contexto, numa sociedade estratificada em homens livres e escravos, o trabalho humano passou por diversos preconceitos, uma vez que o trabalho manual e exaustivo ficava a cargo dos escravos, sendo considerado atividade desonrosa para homens válidos e livres, que eram a minoria.

Na Grécia havia duas visões do trabalho: a que envolvia o exercício do pensamento era admirado, enquanto o trabalho manual era desprezível. Platão e Aristóteles conferiam ao trabalho uma concepção pejorativa, envolvendo apenas força física. A produção de um objeto material representava, para eles uma atividade de segunda ordem, em comparação com a produção de idéias.

Com o Cristianismo o trabalho é resgatado. Jesus e seus apóstolos trabalhavam como artesão e pescadores, respectivamente. Há uma dignificação e enaltecimento do trabalho, o qual era isento de distinções de qualidade (qualificado ou inferior) e de espécie (intelectual ou manual). Num espírito fraterno, os irmãos deveriam servir-se entre si, formando-se uma comunidade sem preconceitos.

Com o fim do trabalho escravo surge uma forma mais branda deste tipo de exploração. Uma vez livres, os antigos escravos se viam em dificuldade de inserção na sociedade, vivendo em situação de miséria. Restou a eles trabalhar nos feudos, surgindo a servidão. Era um tipo de trabalho organizado, em que o indivíduo não dispunha de liberdade e se sujeitavam a severas restrições, inclusive de trânsito, submetidos a um regime de dependência ao senhor feudal, mas sem assumir a condição jurídica de escravo. Em geral, os servos trabalhavam com o dever de entregar uma parcela da produção rural aos senhores feudais em troca de proteção e do uso da terra. E, mais uma vez, relega-se o trabalho a um grau inferior da hierarquia social.

Diante da amplitude do poder dos nobres sobre os servos, estes se dirigiram para as cidades, provocando um enorme êxodo rural com a conseqüente aglomeração de trabalhadores e ativação do movimento comercial ainda na Idade Média. Há uma maior organização no exercício das atividades, todavia, o homem ainda não gozava de inteira liberdade, visto que as Corporações de Ofício funcionavam como um sistema de enorme opressão, estabelecendo as leis profissionais, regulando as técnicas de produção e a capacidade produtiva.

Apesar de não passar de uma forma mais tênue de escravidão, as Corporações foram de importância significativa para o nascimento do moderno capitalismo, vez que já havia circulação de dinheiro, instrumentos de crédito e um sistema salarial.

A incompatibilidade das Corporações de Ofício com o ideal de liberdade do homem trazido pela Revolução Francesa, além da liberdade de comércio e do encarecimento dos seus produtos, culmina com a sua extinção.

Com a mecanização dos meios de produção há uma substituição do trabalho artesanal pelas máquinas e aquilo que era produzido em pequena quantidade passou a ser produzido em grande escala. Assim, a Revolução Industrial provocou uma mudança econômica, social, política e cultural. A ideologia passa a ser focada no individualismo e na liberdade, não só na própria sociedade, mas principalmente no mercado de trabalho, uma vez que a liberdade da mão-de-obra era fundamental para os novos empreendimentos prosperarem.

Neste contexto, seduzidos pelas oportunidades de trabalho, qualidade de vida maior e melhores ganhos, os camponeses, que dependiam da natureza e trabalhando não mais que cinco horas por dia, se deslocam para os centros industriais, trocando o suor do ritmo solar pelo soar das máquinas.

Nascia o capitalismo e o trabalhador se torna empregado, uma vez que passaram a trabalhar por salários e em estado de subordinação. A liberdade de contratar era teórica, pois premido pela fome e em situação de miséria, o operário não dispunha de meios a recusar uma jornada excessiva em troca de um pífio salário.

No sistema fabril o objetivo último era o lucro. Inspirados pelas idéias de John Locke, que afirmava que “ao Estado não cabe interferir. O homem é livre. A intervenção do Estado é negativa”, os detentores do capital exigiam um mercado em que as relações econômicas se auto-regulamentam, em que eles pudessem impor livremente as suas condições ao trabalhador. O capitalismo impôs a ordem burguesa, separando capital e trabalho, ou seja, o trabalhador dos meios de produção. A relação entre capital e trabalho torna-se impessoal e há o distanciamento do trabalhador em relação à direção da empresa e dos destinos da mercadoria. E o operário era apenas um meio de produção.

Neste sentido, salienta Amauri Mascaro Nascimento: 

A precariedade das condições de trabalho durante o desenvolvimento do processo industrial, sem revelar totalmente os riscos que poderia oferecer à saúde e à integridade física do trabalhador, assumiu às vezes aspectos graves. Não só os acidentes se sucederam, mas também as enfermidades típicas ou agravadas pelo ambiente profissional. Mineiros e metalúrgicos, principalmente, foram os mais atingidos. Durante o período de inatividade, o operário não percebia salário, desse modo, passou a sentir a insegurança em que se encontrava, pois não havia leis que o amparassem, e o empregador, salvo raras exceções, não tinha interesse em que essas leis existissem.[8]  

Diante desta crise, emerge a questão social e idéias socialistas surgem com resposta aos problemas sociais e econômicos provocados pelo capitalismo. Propugnando por uma nova organização da sociedade o socialismo visava beneficiar a classe proletária.

 No início do século XX, Henry Ford introduz novos métodos de trabalho em suas fábricas, suplantando a produção de tipo artesanal, então característica da indústria automobilística, e emergindo a produção em massa. Insta salientar que as inovações de Ford tinham apoio na idéias de organização científica do trabalho sistematizada por Frederick Taylor, que visavam alcançar o máximo de volume de produção a baixos custos através da eliminação dos tempos mortos no processo de trabalho.

 O princípio taylorista de separação entre trabalho intelectual e trabalho manual, cabendo este aos trabalhadores e aquele exclusivamente aos diretores e gerentes, foi incorporado por Ford, numa associação que culminou com o regime fordista-taylorista, que se buscava superar a produção do tipo artesanal.

 A produção fordista implantou-se nos Estados Unidos, todavia não migrou para outro país até o segundo pós-guerra. Apesar de gigantesco, o mercado americano revelara insuficiente para o grande volume de produção, evidenciado na crise econômica em 1929. Diante dos sinais de deficiência do capitalismo, das constantes reivindicações dos trabalhadores e da ameaça do socialismo adotou-se o Estado do Bem-Estar Social (Welfare State), que permitiu a expansão da demanda agregada, ajustando-a à absorção da produção em massa; houve uma elevação gradual do padrão de vida dos trabalhadores e ganhou o seu consenso a uma política de tipo social-democrata e fortaleceu a Europa Ocidental contra a ameaça comunista.

 

Na década de 70, o primeiro choque do petróleo e a recessão cíclica revelaram as deficiências e as insuficiências do regime fordista, sobretudo com a introdução dos microprocessadores no interior da produção, intensificada na década de 80, tornando mais evidente a sua inadequação às inovações tecnológicas e, em especial, à automação eletrônica. 

Neste contexto, entram em cena os produtores japoneses de automóveis, implantando o modelo toyotista e ameaçando o domínio do mercado pelos americanos e europeus, na tentativa de superar as deficiências demonstradas pelo regime fordista. Houve de fato uma mudança no regime de desenvolvimento e de acumulação acarretando uma transformação no sistema capitalista mundial.

 Insta salientar que tais transformações são reflexos das políticas financeiras e industriais, assim como inovações tecnológicas, comércio mundial, relações internacionais, empresas multinacionais, organização do trabalho, ideologias, formas de emprego e desemprego, estilos de vida e comportamentos individuais, com efeitos sobre a luta de classe.

 No que tange as repercussões nas relações de trabalho aponta Reginaldo Melhado:

 A chamada globalização econômica acarretou duas conseqüências fundamentais para as relações de trabalho. De um lado, o fenômeno da descentralização dos ciclos produtivos. Fez nascer sistemas de interconexão de atividades empresariais baseados em pequenas e microempresas e até mesmo no trabalho independente de profissionais ou consultores (self-employed). A informática tornou possível a prestação de serviços a partir do domicílio, com o trabalhador conectado à tomadora de serviços por impulsos eletrônicos que fazem do trabalho um passageiro do modem. Surgem novos e mais eficientes métodos de controle do trabalhador.[9]

 Insta salientar que essas transformações não acarretaram uma mudança no paradigma das relações de trabalho, houve sim, uma nova forma de organização de produção que “funciona como uma das bases materiais da precariedade do mercado laboral e do exsurgimento dos novos modelos de contrato de trabalho”, tais como o home office, a terceirização, o trabalhador interino, o trabalho subterrâneo, o trabalho estacional ou a tempo parcial e o trabalho informal.

 O processo produtivo é fragmentado e rarefeito, sendo distribuído em etapas por diversas regiões do planeta, diante do fenômeno da mundialização da economia, dinamizando o fluxo de capitais e internacionalizando os ciclos produtivos. “O capitalismo virtual inaugura os tempos da desterritorialização” [10]

 Neste contexto, num cenário de capital virtual e difuso, juntamente com novas formas de organização da produção, a subordinação da relação de trabalho, sempre requisito para adquirir um conjunto de tutelas jurídicas, vai perdendo a centralidade. Novos paradigmas de poder e sujeição hão de surgir diante do tendencial desaparecimento da tradicional subordinação, uma vez que esta cada vez mais se interioriza e se torna invisível, muitas vezes como um mecanismo de fraude jurídica, visando ocultar a relação de emprego sob a forma de um falso contrato de natureza civil (de prestação de serviços, de empreitada, etc.).

 Pode-se observar que desde a gênese do capitalismo até seu estágio atual, passando pelo taylorismo e toyotismo, a lógica da relação de trabalho é uma só: “diminuir o poder dos trabalhadores e intensificar o trabalho, potenciando a ampliação do capital”.[11]

 Como já foi abordado, as idéias socialistas sempre influenciaram o conflito capital x trabalho, ameaçando sempre o império do capitalismo, os Estados que estavam sob a sua égide passaram a ter que conceder alguns direitos sociais para conter as reivindicações da sociedade e o crescimento ameaçador do comunismo. Todavia, com a queda do muro de Berlim, simbolizando da derrota do socialismo frente ao capitalismo, este teve liberdade absoluta para impor sua voracidade.

 Nesta fase do capitalismo, tamanha é a sua envergadura que até o Estado está a mercê de seu poder, haja vista os endividamentos, agravados por taxas de juros; e fica obrigado a adotar medidas de redução de prestações sociais e políticas de privatização. Esta crise do Estado é mais acentuada nos países subdesenvolvidos, pois além de conviver com as poderosas forças do mercado na rotina da política-econômica, ficam também subordinados às instituições de Bretton Woods (o FMI e o Banco Mundial), que não raramente impõe as políticas a serem adotadas.

 Neste sentido, o Estado perde cada vez mais a sua força e sua capacidade de intervenção social. Nesta onda do neoliberalismo, volta-se à política do Estado Mínimo que desta vez corresponde à empresa mínima. Esta, por sua vez, busca uma quantidade mínima de empregados, o mínimo de custos operacionais e o mínimo de direitos e vantagens para os trabalhadores, para maximizar a sua taxa de lucro.

 Ricardo Antunes, bem observa que

 os novos paradigmas de organização produtiva, no capitalismo da mundialização, não são mera decorrência de expansão do capital. Para ele a superação do binômio taylorismo x fordismo foi determinado ao mesmo temo pelas características da concorrência capitalista internacionalizada mas igualmente pelo escopo ideológico de ‘controlar o movimento operário e a luta de classes’[12]

 Assim como faziam os gregos, parece haver novamente uma divisão do trabalho em intelectual e manual, em que este é desvalorizado e minimizado de tal sorte que a relação de emprego, com a garantia de todo um conjunto de tutela jurídica fica restrita aos trabalhadores altamente especializados; enfim, um trabalho intelectual em que os trabalhadores recebem salário em troca de idéias e gozam de maior estabilidade. Por outro lado, existem os trabalhadores de estabilidade precária, uma vez que são empregados de firmas subcontratadas ou vinculados à própria empresa por meio de uma das inúmeras modalidades de contratos precários; em geral são trabalhadores descartáveis, submetidos a contratos de duração determinada, contratos de experiência ou de tempo parcial.

 Este modelo pode ser bem vislumbrado na organização de produção da empresa Nike, a qual tem seu estabelecimento sede nos Estados Unidos e são empregados nove mil trabalhadores; todavia, atuam em atividades de planejamento, administração, marketing e funções congêneres, ou seja, exercem atividades que não estão diretamente ligadas à produção. São atividades mais abstratas e intelectuais. A produção da empresa, como tênis e camisas, é feita em países cuja mão-de-obra é mais barata, que não haja organizações sindicais e que direitos sociais sejam menos rígidos.

 Como assinalou Robortella, a “estrutura ocupacional se polarizará entre um segmento principal, formado de profissionais de alta especialização, e outro, secundário, envolvendo a maioria, de baixa qualificação, com diferentes aspirações, necessidades, interesses e visões de mundo.”[13] 

3.  A NECESSIDADE E A ORIGEM DE UM RAMO ESPECIALIZADO 

A origem do Direito do Trabalho coincide com a ascensão do capitalismo no final do século XIX, como forma de aplacar os conflitos sociais que se agravavam diante do contexto das tensões causadas na Primeira Revolução Industrial. O Direito do Trabalho surge diante de um cenário de intensa exploração do trabalho humano e de relações de trabalho extremamente rígidas.  Os Códigos Civis não respondiam às questões peculiares insurgidas das relações de trabalho, e se mostraram insuficientes, possibilitando protestos por um espaço próprio e exclusivo para as questões trabalhistas. 

Ao escrever sobre o particularismo do Direito do Trabalho, assinalou Barbagelata: 

o Direito Civil não só ignorava o trabalhador individualmente considerado e sua verdadeira situação diante do empresário, como tampouco sabia da solidariedade entre eles, nem de suas organizações e das ações que realizavam, não levava em consideração o caráter coletivo das relações de trabalho, nem se precatava contra o que, do ponto de vista econômico, se escondia sob os supostos “contratos livres”[14]  

Uma luta de classes marcada por violentos conflitos durante décadas desafiava o poder e a autoridade do Estado e demonstrava que o modelo civilístico do direito era inadequado para reger as tensões e as condições de trabalho oriundas do processo de produção capitalista 

O Direito do Trabalho tem, portanto, suas raízes associadas à revolução industrial, à questão social e às lutas entre o capital e o trabalho num evidente propósito de regular a nova ordem econômica, social e política. 

Destarte, esse ramo especial do direito surge exatamente para proteger o trabalhador, uma vez que pela lógica do mercado de trabalho se converte em mera mercadoria. 

O caráter tutelar deste ramo do Direito deve ser entendido como necessidade de se resguardar um conteúdo mínimo à relação de trabalho, de tal modo que o desequilíbrio e a desigualdade existente entre as duas partes não  acarrete na aceitação, pelo trabalhador, de situações que afetem a sua dignidade, comprometendo o recebimento de verbas pactuadas, já que estas se constituem em contraprestação pela força física e mental despendida a favor da empresa e, principalmente, tendo em vista seu cunho eminentemente alimentar.

Como adverte Carlos Henrique Bezerra Leite, o princípio da proteção busca compensar a desigualdade existente na realidade socioeconômica com uma desigualdade jurídica em sentido oposto.

Insta salientar que a própria idéia de justiça deixa flagrante que 

“justo é tratar desigualmente os desiguais, na mesma proporção em que se desigualam, e o favorecimento é qualidade da lei, e não defeito do juiz, que deve aplicá-la com objetividade, sem permitir que suas tendências pessoais influenciem seu comportamento.”[15] 

No contrato de emprego, a desigualdade entre as partes se inverte: é o trabalhador que receberá a proteção do Estado, em face de sua debilidade econômica frente ao empregador. O reconhecimento dessa desigualdade é o ponto de partida para a adoção do princípio protetor: as leis devem garantir um estatuto mínimo de proteção ao trabalhador, visando amenizar a exploração a que os empregados se encontram sujeitos pelos detentores do capital. O trabalho é posto como valor social relevante, a proteção ao trabalhador como conquista civilizatória e humanizante. Na Constituição Federal de 1988 temos, logo no artigo 1º, inciso IV, que um dos fundamentos da República brasileira é justamente, ao lado da livre iniciativa, o valor social do trabalho. O artigo 170, caput, da CF (Constituição Federal) nos informa também que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos uma existência digna.

 É preciso ainda considerar que, no caput do art. 170, a Constituição expressamente consigna como fundamentos da ordem econômica e financeira a valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, fatores assecuratórios de uma existência digna, conforme os ditames da justiça social. Portanto, a justiça social (conceito de difícil contorno) é o parâmetro maior, em que se circunscrevem os valores inerentes à existência digna (lastreados na concepção de dignidade da pessoa humana), e aqueles destinados a lhe dar sustentação – trabalho e livre iniciativa, que precisam, por essa razão, ser prestigiados, tanto pelo legislador como pelos demais intérpretes.  

4. O ATUAL ESTÁGIO DO CONFLITO CAPITAL X TRABALHO 

Com grande poder de síntese, Ferreira identifica três fases percorridas pelo Direito do Trabalho em seu percurso evolutivo: 

uma fase inicial de “repressão-conflitural”, marcada pela desobediência civil e por actos de grande violência, passando para a fase da “tolerância-cooperação”, caracterizada pelo processo de juridificação das relações de trabalho e institucionalização progressiva de direitos sociais e laborais. A fase do “reconhecimento-participação-colaboração”, mais recente, marcada pela consolidação desses direitos, com base na legitimidade que o Estado-Providência e o conexo modo de regulação salarial fordista lhes conferiu, pelo desenvolvimento da concertação social, sendo posteriormente sujeita à pressão das tendências para a flexibilização, desregulamentação e desjuridificação das relações de trabalho.[16] 

Como já foi salientado, este terceiro período coincide com a chamada Revolução Tecnológica (Terceira Revolução Industrial), e que começam a ser questionadas a rigidez da legislação trabalhista e a intervenção-reguladora da relação capital e trabalho pelo Estado. 

Esse modelo tradicional de Direito do Trabalho resguardando um acréscimo de proteção aos trabalhadores, tem sido acusado de causar um fator de rigidez do mercado de emprego e da alta de custo de trabalho, e, conseqüentemente, de contribuir para a diminuição dos níveis de emprego, propiciando o surgimento do chamado “mercado informal” de trabalho.  

É neste contexto que se semeou um movimento de idéias em torno dos institutos da flexibilização e desregulamentação, sendo esta, uma forma mais radical daquela, uma vez que propugna pela supressão de toda proteção normativa que o trabalhador dispõe, a flexibilização do direito do trabalho  

é a corrente de pensamento segundo a qual necessidades de natureza econômica justificam a postergação dos direitos dos trabalhadores, como a estabilidade no emprego, as limitações à jornada diária de trabalho, substituídas por um módulo anual de totalização da duração do trabalho, a imposição pelo empregador das formas de contratação do trabalho moldadas de acordo com o interesse unilateral da empresa, o afastamento sistemático do direito adquirido pelo trabalhador e que ficaria ineficaz sempre que a produção econômica o exigisse, enfim, o crescimento do direito potestativo do empregador"[17]

 Não são poucos os que apontam a sofisticação da demanda de mão-de-obra pelo capitalismo moderno, passando a exigir alta formação profissional e capacidade multi-funcional dos trabalhadores. Os defensores dessa tese sustentam, ao contrário da era taylorista, quando se exigia dos operários que não pensassem, vislumbra-se uma nova geração marcada por operários inteligentes, uma vez que os novos empregos exigirão cada vez mais de formação mais elevada, conhecimento e domínio da tecnologia moderna e versatilidade.

 Reginaldo Melhado, com percuciência e clareza, advoga em sentido inverso, salientando que a

 revolução microeletrônica e as novas técnicas de organização da produção – o ‘pós-fordismo’ – levaram à banalização das rotinas e dos conhecimentos parcelares utilizados em cada uma das muitas etapas dos complexos processos produtivos, agora desdobrados em superfícies de dimensões planetárias. Em lugar do conhecimento de alto nível, um saber vulgarizado. Em lugar do fim do trabalho material, a banalização do trabalho intelectual, que se reduz a pó.

E conclui afirmando que 

a decomposição das tarefas operárias no bojo da produção capitalista, desdobradas em funções elementares e repetitivas, não é exatamente um princípio do taylorismo: é na verdade um instrumento – ou quem sabe um verdadeiro princípio – utilizado para a consecução de maior eficácia produtiva, visando de um lado a ampliação do capital e, de outro, o controle político sobre o trabalho. Nisso reside, isto sim, o princípio fundamental de Taylor, de Ford, da administração ohniana do capitalismo japonês e de qualquer outro paradigma pós-fordista. O ideário taylorista ainda reina na mundialização, mas Taylor agora aprendeu a usar um computador.”[18]  

Com a Revolução Industrial, os ritmos de trabalho não são impostos pelo trabalhador à máquina, mas o contrário. O capitalismo já demonstrava a tendência de sujeição do trabalho ao capital. E no seu estágio atual, diante das novas tecnologias, a operação de instrumentos de trabalho cada vez mais automatizados passa a prescindir da mão-de-obra especializada, banalizando a capacidade de trabalho.

Destarte, diante de um cenário político-econômico favorável, o fortalecimento do capital frente ao trabalho é patente, provocando transformações nas relações de trabalho. Apesar da predominância do contrato de emprego, este paradigma tende a ceder sua hegemonia a outras formas de contratação. O sistema atual dá origem a novas formas de apropriação da mais-valia através de novas técnicas de organização do capital e formas de exploração da mão-de-obra.

Como aponta Reginaldo Melhado:

“Ainda não podem ser identificadas as conseqüências oriundas desse processo de transformação no âmbito específico das relações de poder entre capital e trabalho – ou seja, da passagem da subordinação convencional para a sujeição high-tech e para os novos paradigmas”[19] 

Tal concepção decorre das incertezas de uma fase do capitalismo ainda em formação, porém já definido seus contornos, que apontam para um desequilíbrio do conflito capital x trabalho, numa preponderância implacável do primeiro, que fortalece crescentemente diante da redução da estrutura tutelar típica do Welfare State, da flexibilização do mercado de trabalho e da nova organização das técnicas de produção. 

Assim, com a revolução tecnológica há um abrandamento da pessoalidade, o que é ratificado pelo freqüente trabalho em domicílio e tele-trabalho. Ressalta-se, também, por conseqüência, que a da idéia da não-eventualidade  e o núcleo estrutural da relação de emprego, a tradicional subordinação jurídica, estão “atenuando, diminuindo ou mesmo desaparecendo” em razão das limitações do controle do tele-trabalho ou do trabalho exercido no home office, além da elevação do padrão da formação intelectual dos trabalhadores da era tecnológica. 

Como assevera Reginaldo Melhado : 

O trabalho à distância realizado por meio de instrumentos eletrônicos desloca o controle da atividade do trabalhador para o resultado da prestação obrigacional e ao mesmo tempo significa, em geral, o controle daquela através desta. O controle já não se realiza com o antigo cronômetro taylorista que mensurava tempos, ritmos e movimentos de trabalho; realizava-se integralmente mediante o domínio do resultado. Só este é visível, já que o trabalhador está fisicamente separado da empresa. Não obstante, o resultado é adjudicado e medido de modo infinitesimalmente mais preciso. Além disso, em determinadas áreas de atividade será possível também monitorar os horários e o tempo de conexão do trabalhador com o computador central, permitindo à empresa uma apreciação matemática da produtividade, do tempo de trabalho necessário à realização de cada tarefa.[20]  

Neste sentido, a relação de emprego sofre mutações em alguns pontos estruturais diante dos novos paradigmas de organização da produção do avanço tecnológico e da nova ordem jurídica e econômica. 

Percebe-se um capitalismo voraz e inescrupuloso que não mais se satisfaz apenas com a flexibilização das normas trabalhistas: exige um mercado de trabalho sem emprego protegido juridicamente. E para lograr êxito recorre-se a novos standards de relação de trabalho, fortalecendo o poder do capital sobre o trabalho. 

Destarte, torna-se necessário um novo direito do trabalho para se adequar às novas formas do capitalismo, atendendo sua finalidade social e resguardando o caráter tutelar que lhe é peculiar, uma vez que alguns elementos do paradigma protegido foram desconfigurados, entre os quais se destacam, principalmente, a subordinação tradicional e a força de trabalho como contraprestação. 

Observa Tarso Genro que, 

O velho Direito do Trabalho não responde e não poderá responder a tudo isso. O seu caráter protecionista surgiu para envolver relações com uma certa estabilidade (princípio da continuidade) e subordinação fiscalizada (que informa o seu caráter tutelar), categorias que tendem a ser desagregadas por outras formas de exploração e subordinação. Estas, ao mesmo tempo incentivarão a autonomia e apertarão o cerco sobre a qualidade do trabalho, em função da possibilidade de controles mais rigorosos do resultado, sem o exercício da subordinação jurídica direta, conformadora do contrato de trabalho típico.[21] 

 

Urge, portanto, uma reformulação de conceitos e categorias já consagrados, de tal sorte a compatibilizar e readaptar o ramo juslaboral, tanto material quanto processual, às metamorfoses do mundo do trabalho, a fim de manter incólume a sua essência mesmo diante da evolução da sociedade. Destarte, 

Um novo Direito do Trabalho, portanto, e uma nova tutela, devem emergir gradativamente ao lado do atual Direito do Trabalho, cuja crise terminal será de longo curso. Não só porque a revolução na produção, em andamento, precisa conviver por um longo período com o sistema originário da 2a. revolução industrial, mas também porque a defesa "conservadora" dos seus princípios também tensiona para que, na "ponta" moderna do capitalismo, surja um novo sistema protetivo. [22] 

O Direito do Trabalho tem como corolário o princípio da proteção, considerado por alguns doutrinadores como o seu único princípio específico, caracterizando-se pela interferência do Estado nas relações de trabalho, mediante normas de ordem pública, com a finalidade específica de compensar a desigualdade econômica desfavorável ao trabalhador em relação ao empregador através de uma proteção jurídica favorável àquele suficientemente a estabelecer um equilíbrio. 

Destarte, há que se desenvolver uma evolução da atividade interpretativa e da ampliação das categorias jurídicas em razão das profundas transformações das realidades brasileira e mundial de âmbitos jurídicos, políticos e econômicos, a par de resguardar o peculiar princípio protetor do Direito do Trabalho, que é a sua própria razão histórica. 

                          Pertinentes e salutares são os apontamentos do insigne Tarso Genro, o qual pontifica e sugere



inclusive como pauta jurídica e conseqüentemente conceitual do Direito do Trabalho, as seguintes novas tutelas, que devem conviver por um longo tempo com as tutelas tradicionais, que configuram um direito de resistência dos trabalhadores dos setores da produção tradicional, cujo mundo do trabalho inscreve-se, ainda, na economia e na cultura originárias das primeiras décadas do século XX.


 
a) Uma tutela laboral da prestação autônoma, independente e intermitente, que caracteriza um grande contingente de profissionais hoje inscritos no mercado;

 
b) Uma tutela laboral da prestação de serviços por "contrato de equipe", que se dá entre duas empresas em situação econômico-financeira desigual, ou entre uma empresa e uma cooperativa de trabalho;

 

c) Uma tutela laboral para remuneração dos serviços sem qualificação, cujo valor mínimo deve ser pautado pelo Estado, já que são serviços que tendem a ser degradados na nova ordem capitalista (serviços tais como de limpeza, atividades manuais subsidiárias nas empresas altamente qualificadas, cozinha, prestações domésticas de todos os tipos, etc.);

 

d) Uma tutela laboral especial, para incitar a utilização do tempo livre para serviços comunitários de prestação voluntária e/ou intermitentes, visando estimular uma rede de solidariedade social que hoje, nos países altamente desenvolvidos, já representa uma grande parte do PIB;

 

e) Uma tutela laboral coletiva, que vise socializar os postos de trabalho com a reorganização, gradação e redução da jornada laboral, nos setores diretamente atingidos pela revolução da microeletrônica, da informática e da digitalização, pois o direito ao trabalho produtivo ou útil, deve se configurar como princípio de um novo Direito do Trabalho.[23] 

 

 

5.  CONSIDERAÇÕES FINAIS 

                Historicamente, conferiu-se à Justiça do Trabalho a competência para julgar litígios entre empregados e empregadores, ou seja, sua área de atuação restringia-se à relação de emprego. 

A atual competência da Justiça do Trabalho tem causado grande cizânia na comunidade jurídica, na busca de definir os seus contornos, após a nova redação do artigo 114 da Constituição Federal, provocada pela Emenda Constitucional nº 45/04, com a inserção da expressão “relação de trabalho” no lugar da idéia de “relação de emprego”, envolvendo conceitos e institutos de distinção já consagrada na doutrina e jurisprudência. 

Levando em conta essa distinção, numa relação de gênero e espécie, surgiram as correntes ampliativas, sustentando a dilatação da competência trabalhista; e apresentado como principais fundamentos razões de ordem corporativista ou institucional (visando fortalecer um segmento do Judiciário antes ameaçado de extinção), razões de ordem técnica (que objetivam sanear distorções na distribuição de competências entre os vários ramos da Justiça e a racionalização do sistema, pois não faz muito sentido que o magistrado da Justiça Comum julgue ações relativas ao exercício do direito de greve ou a matéria sindical); e por fim a mais relevante, as razões de ordem sociológica, levando em conta as metamorfoses do capital e do trabalho, que forçam uma expansão da área de aplicação do princípio protetor, uma vez que a desigualdade econômica que justifica uma desigualdade jurídica não se evidencia apenas às relações empregatícias; e envergadura do capital na sua atual fase, tem provocado uma precarização do trabalho e o estado de sujeição do prestador de serviço frete ao tomador também atinge ouras formas de relação de trabalho. 

            Neste trabalho, buscou-se abordar o aspecto sociológico do conflito capital X trabalho, demonstrando a necessidade do Direito do Trabalho estender seu caráter protetivo a outras formas de organização de capital, diante do fortalecimento deste em face do trabalho cada vez mais precarizado; e, conseqüentemente a ampliação da competência da Justiça do Trabalho. 



 

NOTAS

[1]    REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 1980.

[2]    REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 124.

[3]    Ibid., p. 101

[4]    Ibid., p. 104.

[5]    Ibid., p. 127.

[6]             BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Ltr, 2005, p. 87.

[7]    Ibid, p. 88.

[8]    NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Op. cit, p.15.

[9]    MELHADO, Reginaldo. Metamorfoses do Capital e do Trabalho: relações de poder, reforma do judiciário e competência da justiça laboral. São Paulo: LTr, 2006, p. 32.

[10]  Ibid, p. 61

[11]  Ibid, p. 74.

[12]  ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? (ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho). São Paulo: Cortez, 1995, p.79.

[13]  ROBORTELLA, L. C. Amorim. O moderno direito do trabalho. São Paulo, LTr, 1994, p. 149.

[14]  BARBAGELATA, Héctor Hugo. O Particularismo do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1996, p. 16.

[15]  GIGLIO, Wagner D. Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 67.

[16]  FERREIRA, António Casimiro. O sistema de resolução dos conflitos de trabalho: da formalização processual à efectividade das práticas. Disponível em http://www.snesup.pt. Acesso em 25 jul. 2006.

[17]  NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Op. cit., p. 120.

[18]  MELHADO, Reginaldo. Op. cit., p. 125.

[19]  Ibid., pag. 105.

[20]  Ibid., p. 115.

[21]          GENRO, Tarso. Crise terminal do velho Direito do Trabalho. Revista da Anamatra, São Paulo, n. 26, p. 19, 1996.

[22]    Ibid., p. 22.

[23]    Ibid. p. 26.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

RAFAEL CRUZ BASTOS:Servidor do Ministério Público da União, ex-oficial de Justiça da Justiça do Trabalho (TRT-18), bacharel em Direito pela Universidade Federa de Goiás,pós-graduando em Direito do Trabalho eDireito Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Goiás.

E-mail: cruzbastos@yahoo.com.br

 

 

 

Aforismos

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* Paulo Queiroz  – 

Amar é encontrar a si mesmo no outro; são as semelhanças e não as diferenças que nos movem.

Para uma relação dar certo é preciso renunciar a várias outras; afinal, um amor não exclui outros necessariamente.

Todo o corpo é erógeno: mãos, pés, boca, órgãos genitais; mas a religião o mapeou moralmente com interdições arbitrárias; viu pecado e maldade onde havia apenas prazer.

Disse a amante: “te amo, te amo, te amo, incondicionalmente; e completou: “claro, desde que continues assim”.

Não existem ações desinteressadas; desejamos um mínimo de gratidão ao menos.

Mentir para os outros é algo raro; mais freqüentemente mentimos para nós mesmos (Nietzsche).

Não amamos a verdade, nem odiamos a mentira, mas suas conseqüências (Nietzsche).

Conhecimento produz angústia; por isso preferimos com freqüência a ignorância.

O destino do homem é o mesmo das plantas, insetos e animais: nascer, crescer, envelhecer, morrer; o mais é vaidade. “Porque o que sucede aos filhos dos homens sucede aos animais; o mesmo lhes sucede: como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego de vida, e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais; porque tudo é vaidade. Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó e ao pó tornarão” (Eclesiastes 3:19-20).

A minha religião é o amor por todos os seres vivos (Tolstoi).

“Porque fomos criados à imagem e semelhança de Deus”, disse o homem; “quanta presunção!”, pensou a abelhinha.

“Promete ser fiel e amá-lo para todo o sempre, na riqueza, na pobreza, na doença?”, “Não, padre; tenho horror à mentira”, respondeu a noiva.

“Foi Deus que, na sua infinita misericórdia, me salvou desse terrível acidente”, disse o primeiro sobrevivente; “seria muita pretensão da minha parte que Deus, para me salvar, tivesse de sacrificar tanta gente inocente”, retrucou o segundo.

“Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada. Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra. E assim os inimigos do homem serão os seus familiares” (Mateus: 10: 34-36; Lucas: 12: 51-53). Ao leitor desavisado: essas palavras não se referem nem ao demônio nem ao dinheiro.

“Eu só quero a PAZ, a JUSTIÇA e um mundo sem violência”, gritou o terrorista antes de detonar a bomba.

Não existem fatos, mas interpretações (Nietzsche); logo, não existem fenômenos morais, religiosos, éticos ou estéticos, mas apenas uma interpretação moral, religiosa, ética e estética dos fenômenos; isso também é uma interpretação.

É preciso fazer escavações na Lei para encontrar o Direito (Vitor Hugo).

E como o leão, capturado em plena selva, era bravo, para domesticá-lo, arrancaram-lhe os dentes e unhas; e o acorrentaram e o torturaram diariamente; e assim o animal se fez “bom e manso”. Os juristas chamam isso de ressocialização.

As prisões de hoje são as senzalas de ontem (Scheerer).

La ley es como las serpientes; solo pica a los descalzos (Oscar Romero).

Temos o direito de ser preconceituosos; mas não o de fazer dos nossos preconceitos um direito.

Casamento: acordo de violação permanente da privacidade.

Partidos políticos: como organizar uma quadrilha na forma da lei.

Contrato de trabalho: como tratar escravos como iguais.

“Somos todos iguais”, diz a lei; “não! Mil vezes não!”, protesta a natureza.

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

PAULO QUEIROZ:  Doutor em Direito (PUC/SP), é Procurador Regional da República, Professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e autor do livro Direito Penal, parte geral, S. Paulo, Saraiva, 3ª edição, 2006. Website: www.pauloqueiroz.net


Conseqüências Tributárias das Alterações da Lei das S.A Instiutuídas pela Lei nº 11.638/07

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* Fernando Carlomagno  –

A Lei nº 11.638/07 trouxe inúmeras mudanças na legislação das Sociedades por Ações e tem finalidade de possibilitar a eliminação de barreiras regulatórias que impediam a inserção das companhias abertas no processo de convergência contábil internacional, as S/A terão que obrigatoriamente apresentar seus relatórios de acordo com as Normas Internacionais (IFRS).

As Sociedades de Grande Porte, que já se orientam pela Lei das S/A também enquadram-se nas mudanças dada pela 11.638/07, a lei também faculta às sociedades fechadas a adoção das normas internacionais.

Dentre as mudanças contábeis destacadas na lei 11.638/07 pode-se destacar: demonstrações financeiras em linhas com os padrões internacionais; poder/dever da CVM para emitir normas contábeis para as companhias abertas, determinação para as empresas de grande porte se orientarem pela lei 11.638/07; substituição e inclusão de demonstrativos (DFV e DVA); criação de novos subgrupos no ativo permanente e no patrimônio líquido; ajuste a valor presente nas operações a longo prazo e para as relevantes de curto prazo; análise permanente do grau de recuperação dos valores registrados no ativo, avaliação dos bens   do ativo e passivo a valor de mercado nas operações de fusão; incorporação e cisão; eliminação da conta reserva de avaliação; criação da reserva de incentivos fiscais; mensuração do goodwill; entre outras.

Ao alterar o art. 199, da Lei nº 6.404/76, a nova lei estabelece que o saldo do capital social não poderá ser ultrapassado pelo saldo de reservas de lucros. Caso isso aconteça, a assembléia deverá deliberar sobre a aplicação do excesso, podendo destiná-los ou à integralização, ou ao aumento do capital social, ou na distribuição de dividendos.

Há mudança, também, quanto a determinação de que os ativos e passivos de sociedade a ser incorporada ou decorrente de fusão ou cisão sejam contabilizados a valor de mercado em casos que as operações forem realizadas entre empresas independentes entre si e com mudança de controle da companhia.

A nova lei veda que seja contabilizado na reserva de capital os prêmios de debêntures e das subvenções de investimentos, que são os valores de incentivos fiscais. As debêntures são títulos de crédito representativo de empréstimo que uma companhia faz junto a terceiros e que assegura a seus detentores direito contra a empresa que as emitiram, nas condições constantes da escritura dessa emissão, e os recursos capitalizados são utilizados no financiamento de projetos, na reestruturação de passivos ou no aumento de capital de giro da empresa.

O prêmio da emissão desses títulos faz parte das condições de sua negociação, em função da atratividade do papel ou sua precificação, como em casos em que se fixam juros acima da média de mercado.

A mudança do art. 199 pode causar um aumento na carga tributária à de empresas que ainda possuam lucros acumulados gerados até 31.12.1995, pois a distribuição dos dividendos deverá ser tributada, tendo em vista que a Lei nº 9.249/1995 concedeu isenção para os ganhos apurados a partir de 1996. A contabilização dos ativos e passivos ao valor de mercado gera, a princípio, duas conseqüências. A primeira delas é que haverá repercussão mesmo casos de ágio justificado pela rentabilidade futura do negócio, o que demonstra que esse ajuste ao valor de mercado levará em conta a rentabilidade futura. Outra conseqüência é que deverá reduzir o ágio nas operações, que é dedutível no cálculo do Imposto de Renda. Conseqüentemente, com um ágio menor, a dedução do imposto também se reduzirá.

Na questão das incorporações, deve-se notar que a previsão não se aplica à operações entre empresas do mesmo grupo. Sendo assim, uma alternativa possível é fazer transferência de controle pela venda de ações e depois, dentro do mesmo grupo, fazer as operações de incorporação ou fusão. Por fim, com a vedação da contabilização na reserva de capital dos prêmios de debêntures e das subvenções de investimentos, que são os valores de incentivos fiscais, além dos valores transitarem pela conta de resultado e serem taxados pelo IR, os incentivos fiscais também serão alvo de PIS e COFINS. A principal conseqüência dessa alteração é que o lucro tributado pelo Imposto de Renda tem como ponto inicial o lucro contábil e haverá com essa mudança uma alteração na contabilização que traz automaticamente repercussão no IR.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Fernando Carlomagno:  Acadêmico de Direito da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus

e-mail do autor:   carlomagno@zup.com.br

website:   http://www.fcarlomagno.com

Esquecer é injusto…

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*Elias Mattar Assad

"Nenhum cidadão probo sentir-se-ia seguro vendo o medo ou a fome de seus juízes, por saber que não se pode exigir de todos vocação de herói ou resignação de mártir."  Guerra Barreto

Quando se fala em prerrogativas ou garantias dos juízes, membros do Ministério Público e advogados, parece, aos sentidos do cidadão comum, meras regalias de cunho corporativista. Desconhecem que todos os demais direitos, mesmo o estado democrático de direito, somente serão assegurados com a preservação delas. Um exemplo real do que pode significar a ignorância destes princípios, tive a honra de colher por ocasião do encerramento de uma audiência na 2ª Vara Criminal de Curitiba em 27 de novembro de 1987, presidida pelo juiz Jorge José Domingos, que naquele momento, foi informado de um convite para uma cerimônia onde sua foto seria incluída na galeria de juízes da Comarca de Arapongas. Pela emoção que invadia o coração do juiz e brilho nos olhos, ao parabenizá-lo, ouvi dele que, em 1950, ingressou na magistratura paranaense.

Por 13 anos foi juiz em Arapongas. Como o governo sempre perdia as eleições naquela região, a chefia política local procurava justificar junto ao então governador Ney Braga que "o juiz era contra." Partindo daquela falsa premissa, o governador foi até a Comarca e, numa rádio local, fez aguerrido manifesto contra o juiz que, legitimamente, replicou. Em 1964 com a edição do Ato Institucional número 1, e por provocação do Partido Democrata Cristão (governista), foi submetido a um processo junto a uma tal Subcomissão de Investigação Sumária, cujos membros eram nomeados pelo governador. Neste ínterim, o juiz, com absoluta limpidez em sua honra e consciência, solicitou uma correição em sua Comarca e, por estar tudo em ordem, foi elogiado pelo desembargador corregedor geral de Justiça.

Como todo ato arbitrário, aquela "investigação sumária" continha acusações genéricas onde, mesmo assim, nada conseguiram provar que contrariasse a conclusão elogiosa da corregedoria de Justiça. Com muito sacrifício, ele conseguiu fazer juntar naqueles autos a sua defesa, que sequer foi lida ou considerada, para evitar as "penas" de aposentadoria como magistrado e demissão como professor. Após seu afastamento, requereu revisão junto a mesma Comissão e teve êxito, indo para o governador a nova conclusão que mereceu o seguinte despacho: "acato a decisão. Reveja-se o auto. Lavre-se o decreto. À Secretaria dos Negócios do Governo para os devidos fins. Curitiba, 3 de outubro de 1964". Porém, tal decreto nunca foi confeccionado.

Acionou judicialmente o Estado, vencendo em 1ª e 2ª instâncias. Já no STF enfrentou uma batalha judicial que perdurou por 12 anos. Foi revertido como professor com "todas as vantagens e atrasados". Como juiz não, pois o STF entendeu que "o governo do Paraná é que deveria revertê-lo". Em suma, somente com a anistia de 22 de maio de 1980 é que reassumiu funções de juiz.
Hoje, octagenário, é um paradigma de luta pela Justiça e prova viva recente do cunho ultilitário das prerrogativas dos profissionais do direito para uma verdadeira democracia!


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA:

Elias Mattar Assad: Presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas  –  (eliasmattarassad@yahoo.com.br)