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ASSISTÊNCIA À SAÚDEEm Minas Gerais TJ condena plano de saúde

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DECISÃO:  * TJ-MG  – A 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais condenou uma empresa de plano de saúde a pagar integralmente os gastos com procedimentos de emergência realizados após uma cesariana não coberto pelo plano contratado.

Segundo os autos, o empresário F.M.M. e sua esposa, a dona de casa F.N.S., moradores de Santa Luzia (MG), contrataram um plano de saúde da empresa Good Life Sistema Internacional de Saúde em 2001, quando F.N.S. estava no primeiro mês de gravidez. O bebê nasceu em fevereiro de 2002. O casal estava ciente de que pagaria as despesas do parto, visto que o contrato previa prazo de carência de dez meses para procedimentos obstétricos. No entanto, após o parto, F.N.S. sofreu sangramento e hipotonia uterina. O quadro se agravou e ela teve de se submeter a transfusões de sangue e a uma cirurgia de emergência para retirada do útero. Em seguida foi internada no CTI, onde permaneceu por quatro dias. De acordo com os autos, a equipe médica descobriu que a dona de casa sofria de atonia uterina com presença de septotransverso do útero, uma doença de difícil diagnóstico prévio.

Ao deixar o hospital, o casal pediu a conta das despesas hospitalares do parto e então recebeu a notícia de que a empresa do plano de saúde também não arcaria com os gastos dos procedimentos de emergência. A empresa alegou que se tratava de doença preexistente excluída da cobertura do plano.

Na sentença, o juiz Jaubert Carneiro Jacques, da 4ª Vara Cível de Belo Horizonte, julgou procedentes os pedidos do casal e determinou que a empresa efetuasse, no prazo de 15 dias, o pagamento das despesas relacionadas aos procedimentos emergenciais que se deram após o parto. Em caso de descumprimento, fixou multa diária no valor de R$ 1 mil. Na época, os procedimentos totalizaram R$ 6.607.

Inconformada, a empresa interpôs recurso, alegando que o casal, ao contratar o plano de saúde, tinha perfeito conhecimento sobre as coberturas e os prazos de carência deste. Disse que todos os procedimentos médicos e cirúrgicos a que F.N.S. foi submetida ocorreram exclusivamente em conseqüência de complicações do parto, intervenção esta realizada antes do cumprimento do prazo de carência do contrato.

Os magistrados da 16ª Câmara, no entanto, não acolheram as argumentações. De acordo com o desembargador Nicolau Masselli, relator do recurso, e com base em laudo pericial, “verifica-se que o procedimento restaurador da saúde e vida da apelada era um caso que envolvia risco de morte”.

O desembargador ressaltou que, em se tratando de procedimento de urgência e emergência, a Lei 9.596/98 dispõe que o prazo de carência é de 24 horas. Tal prazo, além disso, está explícito no próprio contrato celebrado entre a empresa e a dona de casa. “A apelante, em suas razões, tenta nos fazer crer que todo o procedimento realizado na apelada, inclusive sua internação de quatro dias no CTI, seria decorrente de complicações da cesariana a que foi submetida e, não sendo esta coberta pelo plano de saúde em virtude do prazo de carência, daí, a segunda cirurgia e os demais procedimentos efetuados não teriam cobertura", entendeu o desembargador, afirmando que as alegações da empresa são "estapafúrdias”. Segundo ele, foi definitivamente comprovado que a enfermidade é de difícil diagnóstico prévio. Além disso, ainda que a doença fosse de fácil diagnóstico, o ônus de sua comprovação seria da seguradora, o que não ocorreu. “A alegação de que a apelada deveria ter informado ao plano de saúde sobre a pré-existência da doença atonia uterina é mais do que absurda e serve tão simplesmente no sentido de tentar justificar o injustificável”, concluiu o magistrado.

Os desembargadores Batista de Abreu (revisor) e José Amâncio votaram de acordo com o relator, mantendo-se integralmente a sentença.  Processo: 1.0024.03.887842-7/001

FONTE:  TJ-MG, 23 de abril de 2008


INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI
Em Goiás, Juiz declara inconstitucional inciso que permite aborto por estupro

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DECISÃO: *  TJ-GO  –   O juiz Levine Raja Gabaglia Artiaga (foto), da 4ª Vara Criminal de Rio Verde, declarou inconstitucional o inciso II, do artigo 128, do Código Penal Brasil, devido à afronta ao artigo 5º da Constituição Federal. Ele tomou a decisão ao julgar improcedente pedido para autorizar realização de aborto em suposta vítima de estupro.

De acordo com o magistrado o inciso II, do artigo 128, do CPB, permite o procedimento médico abortivo quando do crime de estupro resulta gravidez. Segundo Levine Artiaga, essa permissão fere o direito à vida, "o bem jurídico mais protegido no ordenamento constitucional, decorrente do próprio direito natural". Para ele, não podem ser admitidas normas que transgridam o direito à vida para salvaguardar bens jurídicos de equivalência inferior.

Para Levine Artiaga, o argumento de que a mulher terá de cuidar de um filho resultante de coito violento, não desejado, bem como evitar-se uma criança com personalidade deenerada, devido à influência hereditária do pai, afronta os princípios ordenadores do sistema constitucional, bem como fere os direitos humanos. "Também viola as garantias esculpidas no Código Civil e usurpa os direitos dispostos no Estatuto da Criança e do Adolescente, que confere ao nascituro alguns direitos personalíssimos, como direito à vida, proteção pré-natal, entre outros", afirmou.

De acordo com o juiz, o direito à vida somente pode ser afastado para salvaguardar outro bem juridicamente protegido, de equivalência igual ou superior. Ele citou como exemplo a alínea a do artigo 224 do Código Penal, que trata da violência presumida para menor de 14 anos que mantiver relações sexuais. Segundo o magistrado, desta forma, toda garota que tenha engravidado antes de completar 14 anos terá permissão legal para a prática de aborto, "bastando que seu representante legal firme seu consentimento, conforme disposto no artigo 128, II, do Código Penal, o que configura verdadeira aberração jurídica".

Também argumentou que a norma declarada inconstitucional não exige que o estuprador tenha sido condenado ou esteja sendo processado pelo suposto crime, sob alegação de que o tempo para o fim do processo frustraria o aborto. De acordo com o juiz, a alegação serve para "descriminalização dessa modalidade abortiva", pois suprime o princípio constitucional da não-culpabilidade. "Não se pode antecipar os efeitos da sentença penal condenatória, não se podendo ter certeza acerca da materialidade nem da autoria do crime", disse.

 


 

FONTE:  TJ-GO, 22 de abril de 2008.

DANOS MORAISControle de ida ao banheiro custa caro à Anatel e à Teletech

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DECISÃO:  *TST  –  Cinco minutos diários para ir ao banheiro era o tempo máximo que tinha uma funcionária da Teletech Brasil Serviços Ltda., enquanto trabalhava na Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel, em Brasília. Ultrapassado esse limite, era repreendida em voz alta. Isso acontecia com vários empregados, inclusive supervisores, como é o caso da trabalhadora que ajuizou ação e teve agora confirmada pela Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho a decisão de indenização por danos morais no valor de R$10 mil.  

A Teletech contratou a funcionária, em setembro de 2002, para trabalhar exclusivamente nas dependências e sob as ordens da Agência Nacional de Telecomunicações, em jornada de seis horas diárias. Quando foi dispensada, em dezembro de 2004, a empregada exercia o cargo de líder de operações e ganhava R$ 638,40.  

Ao descrever as condições que enfrentava, a trabalhadora informou que fazia constante consumo de água em conseqüência do ambiente de trabalho ser insalubre. A sala era quente e abafada, com piso revestido de carpete, sem nenhuma ventilação natural, sem janelas, e o ar-condicionado não tinha manutenção de higiene, causando crises alérgicas e irritações nas vias respiratórias. Nos finais de semana, o ar-condicionado não era ligado, o que provocava efeito estufa no local, tornando o ambiente insuportável até mesmo para respirar.  

A ex-supervisora ajuizou a reclamatória em outubro de 2005, pleiteando vários direitos, entre eles adicional de insalubridade, horas extras e indenização por danos morais. Quanto a esta indenização, o pedido foi julgado improcedente pela 8ª Vara do Trabalho de Brasília. Inconformada, ela recorreu ao Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (DF), que acabou por condenar a Teletech, junto com a Anatel, ao pagamento da indenização. A decisão da Segunda Turma do TST manteve o entendimento do Regional.  

O TRT/DF julgou ter elementos para condenar as empresas pois a própria preposta da Teletech, em audiência, reconheceu que a empregada dispunha de “15 minutos de intervalo para refeição e, se necessário, mais cinco minutos para ir ao banheiro”. Além disso, o Regional avaliou que declarações de testemunha comprovaram a situação vexatória a que era submetida a trabalhadora, pois, além de ter o tempo controlado quando precisava ir ao banheiro, ainda era repreendida verbalmente e em voz alta quando ultrapassava a duração determinada pela empresa.  

Quanto à condenação da Anatel, o TRT considerou que a agência era beneficiária do trabalho da autora. A avaliação do Regional é que a responsabilidade subsidiária da Anatel, na esfera dos direitos trabalhistas, decorre da culpa na contratação de empresa inidônea e da falta de fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas. A empresa recorreu ao TST com o objetivo de obter a exclusão da responsabilidade subsidiária e a redução do valor fixado para a indenização por dano moral.  

O relator do agravo de instrumento no TST, ministro José Simpliciano Fernandes, no entanto, entendeu que não merece reforma a decisão do Tribunal Regional. Quanto ao valor da indenização, o ministro avaliou que ele foi estabelecido em consideração à gravidade do dano causado pelo empregador e à intensidade do sofrimento infligido à vítima, de acordo com os estritos termos da legislação que regula a matéria. Quanto à responsabilidade subsidiária, o relator considerou que o acórdão regional se encontra em perfeita harmonia com os termos da jurisprudência pacificada na Súmula nº 331, IV, do TST. (AIRR-1040/2005-008-10-40.2) 


FONTE:  TST,  23 de abril de 2008.

ATENDIMENTO PREFERENCIALProcesso de portador do vírus HIV tem tramitação prioritária

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DECISÃO:  * STJ  –  Em decisão inédita, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) conferiu tramitação prioritária a processo em que uma das partes é portador do vírus HIV. Para a relatora, ministra Nancy Andrighi, é imprescindível que se conceda a pessoas que se encontrem em condições especiais de saúde o direito à tramitação processual prioritária, assegurando-lhes a entrega da prestação jurisdicional em tempo não apenas hábil, mas sob regime de prioridade, máxime quando o prognóstico denuncia alto grau de morbidez.

“Negar o direito subjetivo de tramitação prioritária do processo em que figura como parte uma pessoa com o vírus HIV seria, em última análise, suprimir, em relação a um ser humano, o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto constitucionalmente como um dos fundamentos balizadores do Estado Democrático de Direito que compõe a República Federativa do Brasil, no artigo 1º, inciso III, da CF”, afirmou a ministra.

J.S.W., portador do vírus HIV, ingressou com uma ação de revisão de cláusulas contratuais de contrato de mútuo combinada com repetição de indébito contra a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ). A tramitação prioritária do processo, entretanto, foi indeferida por ausência de previsão legal quando se tratar de pessoa soropositiva.

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal indeferiu o agravo de instrumento (tipo de recurso) do soropositivo entendendo que “a regra de prioridade de tramitação processual, embutida no artigo 1.211-A do Código de Processo Civil e no Estatuto do Idoso, é cunhada por especialidade que a torna naturalmente avessa à expansão analógica”.

No recurso perante o STJ, J.S.W. sustentou que “não se pode afirmar ausência de previsão legal ante a incontestável pretensão legislativa de proteger da morosidade processual àqueles que necessitam da prestação jurisdicional do Estado e não podem esperar por uma solução num futuro relativamente distante, pela baixa perspectiva de tempo de vida”.

FONTE:  STJ, 22 de abril de 2008.


Intolerância de gênero e afirmação de direitos

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* Marlusse Pestana Daher

INTRODUÇÃO

No decorrer, principalmente de elaboração ou escrita do presente artigo, foi-se tornando sempre mais claro o quanto o tema escolhido apresente dificuldades em ser abordado. Não porque faltem fontes de pesquisa, escrita e a olho nu, não porque seja de difícil compreensão ou qualquer outro detalhe, mas pela sua própria natureza, quando ao pensar é que se avalia o quanto a intolerância seja um sentimento mais que pobre, o quanto sua existência dificulta o equilíbrio social, o reconhecimento de direitos e faz holocausto dos direitos humanos.

Na verdade, tem-se que concentrar no curto espaço das laudas que encerram um artigo, um conteúdo vastíssimo.

Não se pode deixar de começar por uma conceituação.

CONCEITO

Numa primeira vista, até porque, a palavra intolerância por si se apresenta, chega parecer dispensável conceituá-la. Entretanto, em atitude de fidelidade a ser seguida num artigo deste gênero, impõe-se que seja feito e se faz.

Na linguagem do dia a dia, se for dito a alguém por outrem: não te tolero, tal afirmação se manifesta revestida de absoluta, total e profunda aversão equivale também a dizer: não suporto a tua presença, não agüento te ouvir, quero-te o mais distante possível de mim.

É indiscutível que o impulso ao qual o intolerante cede, não condiz com o status de nobreza, no qual devem repousar os espíritos que pugnam pelo princípio de uma boa e harmoniosa convivência, até como pressuposto de consecução daquela paz da qual tanto se tem falado e pela qual muito se anseia.

Toda reação que vai melindrar alguém, que vai destituí-la, ainda que por breve instante de sua paz, pode ser classificada como intolerância e ali se agrega um pequeno elemento que pesa e retarda o passo do que se convencionou chamar cultura de paz. Paz neste tempo tão aspirada, a ponto de ter sido instituído pela UNESCO, o programa uma “Década para a Cultura de Paz” (2001-2010) sob o lema: “A paz está em nossas mãos”. A bem da verdade, aliás, a década já ultrapassou sua metade e não obstante é desconhecida por muitos, apesar de absolutamente todos serem seus efetivos destinatários.

A palavra tolerância é de origem latina, ”tolerantia”, do verbo “tolerare” que quer literalmente dizer, suportar.

Fernando Bastos Ávila1 acrescenta:

Tolerância é uma atitude de respeito aos pontos de vista dos outros e de compreensão com suas eventuais fraquezas.

[…]

A falsa tolerância do orgulho é aquela que se supõe infalível e pura, e adota o silêncio compassivo em face de todos os eu não adotam o seu modo de pensar e agir.

A falsa tolerância do ceticismo é aquela que aceita tudo, subestima todas as divergências doutrinais, porque parte do princípio de que é impossível aproximar-se da verdade. É uma espécie de camaradagem festiva no erro.

A verdadeira tolerância é humilde, mas convicta. Respeita as idéias e condutas dos demais, sem desprezá-las, mas também sem minimizar as diferenças, porque tem a certeza de que o respeito é indispensável para o dialogo e para criar clima necessário a uma colaboração no nível elevado dos grandes objetivos humanos.

No plano religioso, o problema da tolerância se formula no momento da passagem de uma cultura religiosamente homogênea, para uma cultura pluralista. (Grifos pela autora).

Tolerar pode significar sofrer, suportar, não interditar, assim como denotar ação de erguer, de ter liberdade para enfrentar dificuldades e superar obstáculos2.

Ainda pode ser: ser indulgente para com; consentir tacitamente; permitir.

Tolerante é aquele que desculpa, é indulgente, que admite e respeita opiniões contrárias à sua.

(Dicionário da Língua Portuguesa – Abril Cultura – vol 3 – 1971)

Segundo Paulo Freire,

A pessoa que é tolerante não é tolerante porque é superior, mas é tolerante porque reconhece na outra pessoa, alguém que possui uma posição diferente da sua.

Acrescenta:

Falo da tolerância como virtude da convivência humana. Falo, por isso mesmo, da qualidade básica a ser forjada por nós e aprendida pela assunção de sua significação ética e qualidade de conviver com o diferente”.

O reverso, intolerância é uma atitude mental caracterizada pela falta de habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar diferenças em crenças e opiniões. Pode-se manifestar de muitas formas e pode conduzir a outras tantas conseqüências, desde a discriminação, ao preconceito, à marginalização de até um povo, de grupos congregados em torno de um objetivo comum, de pessoas.

Mediante o que se viu, sem nenhuma sombra de dúvida, pode-se atribuir à intolerância um dos maiores entraves, se não o maior, à possibilidade de convivência pacífica entre as pessoas, à possibilidade de elucidação mais ágil dos enigmas e soluções para problemas urgentes que atravancam a inteira vida humana em todas as suas expressões, iniciativas, ou seja, o que for que se proponha.

Um exemplo muito claro, com tudo que dele decorre, pode ser traduzido pelo recente episódio, não acidente, porque um acidente resulta de causa fortuita, mas desastre aéreo com o avião da TAM, superlotado, 176 pessoas; superabastecido, haja vista a proporção do fogo; operando, sem que o aeroporto onde aterrissaria, “Guarulhos”, seja capaz de suportar a intensidade do tráfico aéreo que lhe estava cometido.

Nesse caso, a intolerância reside, além de na incapacidade de continuar sendo suportada, a omissão da verdade que circunda o fato, na atitude daqueles que se valem do fato, para explorar o prestígio dos detentores do poder e cuja omissão por sua vez, gera uma outra face de intolerância, a que vem do cansaço de esperar que o sistema aéreo seja dotado de todas aquelas condições que se configuram como indispensáveis para que como acessório de grandeza do país, proporcione a indispensável segurança e tantas pessoas não devam pagar com a vida a incompetência de gestão da coisa pública. Quadra bem neste sentido, a expressão de intolerância, notadamente por amor à verdade, que Luís Fernando Veríssimo teve no seu artigo, “Os meios e os fins”3:

Mas, como tanto os escândalos abafados do passado quanto os gritantes de hoje têm um destino comum, não dão em nada, a analogia talvez esteja errada. O que prejudica a passagem do fato para o efeito e do crime para o castigo não é o meio de propagação, é o vácuo moral em que nos acostumamos a viver, com tanta impunidade acumulada e tão cinicamente defendida. Teríamos chegado a um ponto em que investigação completa e punição certa de qualquer caso escandaloso pareceriam uma coisa até meio, sei lá, antinatural”. (A Gazeta 16/7/2007)

Nem se olvide que por trás de tudo, se escondem, por parte de diversas personagens, idênticas motivações, ou alavancas tais quais as que moveram até representantes do clero na efetivação da contra-reforma, (nos anos que melhor seria serem olvidados, não fosse imperiosa, a conservação da história). Consideravam-se legatários do poder apostólico e tudo faziam para que a vizinhança o mais próxima possível do “príncipe” lhes facultasse inclusive estar acima deles, exercer não só ou apenas parte do poder que eventualmente sobrasse, mas mediante ardis, que pouco importa fossem até inescrupulosos, numa afirmação de que os fins – no caso em apreço, absolutamente antiéticos – justificam os meios, usurpavam parcela do mesmo poder e executavam atos atribuídos somente ao mesmo “príncipe”.

3. A MARCHA DOS TEMPOS

Em termos globais, a segunda guerra mundial, como é sólito acontecer, em período bélico subseqüente, não terminou com o cessar dos combates. De uma banda ou de outra os direitos humanos continuaram a ser espezinhados. A solução vista como forma de aplacar às renovadas demonstrações de intolerância em seu confronto, surgiu com a promulgação da Carta dos Direitos Humanos, pelas Nações Unidas em 1948. Veio encabeçada pelo ditame que se tornaria preceito comum em todas as Cartas Magnas dos países democráticos do mundo, a exemplo do nosso, cuja Constituição antes de tratar de outros tantos temas relevantes, os proclama:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Em seguida, são elencados em setenta e oito incisos cada um dos respectivos termos. O respeito que lhes é devido não se verifica, no entanto, sendo freqüente vê-los ultrajados até mesmo ante a constatação de que o contrário asseguraria a todos o que se busca mediante alternativas por ação ou omissão, sem crime, sem ser ímprobo, sendo patriota, democrata e cidadão.

Períodos políticos

A referência expressa que será feita em seguida a períodos políticos se deve, porque não há como inadmitir – embora sem exclusividade – que advêm da má administração da coisa pública as causas que dão origem às reações que acometem pessoas. As políticas públicas as vezes bem planejadas não saem do papel.

Passada a era Vargas, ocorre a ascensão ao posto maior de comando do país de um quase louco, Plínio Salgado. Depois, veio Juscelino Kubstchek de Oliveira, o construtor da capital que surgiria do sertão. Morto no curso do mandato, assumiu o Vice, João Goulart, que não resistiu às forças que se lhe opunham. A nação chegou a ser governada por um misto de parlamentarismo. E ocorre a “Revolução” (1964) e a tomada do poder por um regime militar que ditatorialmente comandou o país. Ocorreu a era dos feitos faraônicos. O incrível endividamento externo, tentação tornada irresistível, ante a oferta das monarquias do petróleo, que esbamburravam em dólares e tudo prometeram a juros muito baixos. E a dívida externa se fez. Ficou da chamada revolução, a lembrança de tempos negros, de aviltante e insaciável sede de poder e da mais cruel violação dos direitos humanos. Se não eram reconhecidos quanto mais se cogitou de sua afirmação.

Não se diga, contudo, que tal período se constituiu em tudo que já houve de pior. O ideal anda sempre a nossa frente, às vezes parece inatingível. Apesar de a Carta Magna fazer sua apresentação, com a seguinte afirmativa:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V – o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Ainda:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Há uma expressibilíssima distância do que acontece na prática. Na verdade, não menos expressiva parcela dos que assumem suas funções jurando cumprir a Constituição, provavelmente, sequer saibam o que juram. Não cumprir seus preceitos é um suceder-se no cotidiano, traz como resposta a negativa de que esta, de fato, seja uma República que se constitui em Estado Democrático de Direito.

O Código Civil Brasileiro, chamado novo, em relação ao outro que vigorou por quase um século, entrou em vigor há apenas cinco anos. Atento à necessidade de adequação de sua linguagem ao tempo de novas concepções de direitos humanos, onde usava a palavra “homem”, substituiu por “pessoa” e se abre com duas afirmações importantes:

Art. 1o Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.

E não é necessário que a pessoa precise já ter vindo à luz para que o reconhecimento dos seus direitos aconteçam, porque:

Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

Apesar de tudo, de todos os preceitos, de todas as recomendações, de recriminações que ocorrem aqui de alhures, ainda há um caminho muito longo a ser percorrido.

E não há outra justificativa para o distanciamento da concretização de tudo que como nação livre o Brasil se propõe, que tenha outro nome, que não seja intolerância. Assim, passa-se a uma abordagem de alguns pontos, valendo-se do dispositivo constitucional que veda ser intolerante.

IMPEDIMENTOS À AFIRMAÇÃO DE DIREITOS

Para sustentar o quanto a afirmação de direitos se impõe, para contrapor sua efetivação, quando se depara com a intolerância, como sobredito, volta-se ao texto constitucional, (referendando alguns incisos do art. 5º, na ordem em que se apresentam) entre os que são particularmente ultrajados ou que dizem respeito aos que vêm sendo considerados integrantes da categoria ou classe dos excluídos constituída por razões de intolerância.

As mulheres:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

Apesar do preceito, a intolerância contra as mulheres se configura como entre as mais berrantes. Dados recentes sobre a afirmação dos direitos da mulher no Governo Lula, rendem conta de que:

Atualmente, em todos os níveis de ensino no Brasil as mulheres têm maioria entre os concluintes. No ensino fundamental, as meninas representam 53,4% dos formandos da 8ª série. Em relação ao número de alunos matriculados, elas somam 49% do total de alunos, segundo dados do Censo Escolar 2002. No ensino médio essa vantagem é ampliada: 56,3% dos concluintes são do sexo feminino. Esse número também é superior à representatividade das jovens estudantes na matrícula, que é de 54,2%. Ainda em termos educacionais, no nível superior as mulheres equivalem a 63% dos concluintes, conforme dados de 2002. Na distribuição da matrícula, elas representam 56,5%.

No entanto, esta conquista de espaços pelas mulheres não tem sido capaz de efetivar uma igualdade entre os gêneros na sociedade brasileira. Uma série de preconceitos e desigualdades persistem e não dão mostras de desaparecer naturalmente. As mulheres brasileiras estão sub-representadas nas camadas mais altas da sociedade e nas instâncias de poder político e sobre-representadas nas camadas de pobres e indigentes.

O nível de escolaridade não supera a diferença de gênero. Em todos os campos em que a formação universitária faz-se requerer, a maioria dos cargos ou vagas é ocupada por homens. Vejam-se, as congregações das universidades. No Tribunal de Justiça do Espírito Santo, apenas uma mulher, depois de muitos anos, ali tem assento como Desembargadora. Acabam ser promovidos quatro juízes, ao cargo, todos homens.

Entre os desempregados, a maioria se constitui de mulheres. Nas chefias das casas, sem o outro lado do casal, a maioria são mulheres. Além de vítimas das diversas formas de violência que atingem a sociedade brasileira, sofrem também com a agressão de gênero, praticada no ambiente doméstico, quase sempre por parte de homens da família.

Outrossim, a menos que seja capaz de superar muitas expressões de intolerância e assuma a iniciativa, que se pereniza como sendo privativa do homem, a de escolher sua cara metade, restará num estado de solteirice, mesmo quando não se constituir em opção do seu estado de vida.

Tal circunstância reconhecida inclusive pelos Padres Conciliares no Concilio Vaticano II, está consignada na primeira parte do segundo parágrafo, do nº 1410 da Constituição Pastoral Gaudium et spes4:

É verdadeiramente lamentável que esses direitos fundamentais da pessoa não sejam ainda reconhecidos e protegidos em toda parte. Nega-se à mulher o direito de escolher seu marido e de adotar livremente o estado de vida que queira, ou o direito de receber a mesma educação que o homem e de conquistar um mesmo nível cultural.

É verdadeiro “tiro na mosca” o sobredito. Mesmo que amparada por reconhecimento de tal envergadura, a intolerância reinante, não perdoa as mulheres que ousarem agir contrariamente. Receberão os mais diversos qualificativos, serão objeto de chacota e quem sabe imediatamente subjugadas pela força prepotente e machista que domina.

Não se omita a violência perpetrada tantas vezes, como recentemente, da parte daqueles três rapazes que ao romper de um novo dia, ainda prolongavam sua noitada, vendo uma doméstica para quem, ao invés, a labuta de uma nova jornada já começara e do repentino projetar se dão à execução, agridem-na, espancam, quase matam. E para se justificarem, como se tivesse justificativa um gesto tão bárbaro e em virtude da condição da mulher, que no entanto não era verdade, afirmam que supunham se tratasse de uma prostituta e assim confessam o quanto são mais bárbaros ainda, com uma linhagem que implica em parceria, para que assim possa ser chamada, não há prostitutas sem prostitutos.

No último dia nove deste mês5, encerrou-se em Quito, (Equador), a “X Conferência Regional sobre a Mulher” da qual participaram indígenas, negras e brancas. Tais eventos se constituem por excelência em oportunidade para denúncias das questões de gênero. Entre as tantas que foram feitas, a título ilustrativo, citam-se as que seguem.

Negras e indígenas da América Latina e do Caribe sofrem tríplice discriminação por sexo, raça e classe social na política e no trabalho, afirmaram participantes do painel “Cidadania e participação política das mulheres indígenas e afrodescendentes”.

Somos discriminadas pelos Estados, pelos homens e muitas vezes pelas outras mulheres, por isso, para corrigir as desigualdades históricas devemos reestruturar o Estado e construir uma sociedade igualitária. Queremos resgatar a democracia, e para isso devemos recriá-la desde nossa visão. Uma democracia desde a América Latina só pode ser intercultural”. (Cotí, ex-ministra da Cultura e dos Esportes da Guatemala).

O machismo e o racismo estão na mesma base de construção dos Estados nacionais da América Latina e do Caribe. Para eliminar o machismo e o racismo é preciso mudar a sociedade. Muitas vezes em fóruns internacionais mudamos as palavras para não mudar a sociedade. Não podemos continuar com isso, devemos mudar a sociedade. Não nos enganemos, muitas vezes, os documentos que surgem dessas reuniões são uma coisa, mas a realidade das mulheres indignas e afrodescendentes é outra, porque também somos as mais pobres”. (Maria Inês Barbosa dirigente afro-brasileira).

Os presos:

III – ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

Sob o negro pálio do pretexto de obter a verdade sobre uma conduta delituosa, mediante usurpação da função jurídica de fazer justiça com meio de todo impróprio, mas, sobretudo mediante o sentimento desprezível, despótico e bárbaro de violação dos direitos humanos, práticas antigas, mas nem tanto, porque largamente praticadas nos porões da ainda tão lembrada ditadura, é uma constante. Adotam-na maus policiais, sejam civis, como militares. As Corregedorias respectivas, sob o pretexto de não inibir o desempenho dos seus supervisionados, fazem vista grossa de praticamente tudo, inclusive da tortura, razão porque, nem o advento da Lei 9.455 de 7 de abril de 1997, que define os crimes de tortura e dá outras providências, logrou inibir sua prática.

É intolerância que despreza os precedentes de uma conduta e sofisma sem rodeios: você cometeu um crime; via de conseqüência, deve ser punido; cumpre-me torturá-lo e a tanto não me recuso.

À lembrança da autora, sem que seja necessário rebuscamento na memória, se fazem presentes tantos casos com que se deparou no exercício de sua função institucional no Ministério Público, durante quatro anos na Auditoria Militar do Espírito Santo, entre eles, bradam:

a) o da intolerância de um patrão contra seu empregado, que supôs ter sido autor de furto, quando contrata quatro policiais, dois civis e dois militares que reduzem a pobre vítima à condição de verme. Encontrada só no final da tarde daquele dia, não obstante a deplorável situação física em que se encontrava, fora jogado em autêntica masmorra, um cômodo sem luz e sem ar, debaixo de uma escada, fechado por uma grade;

b) o daquele tenente que torturou nos fundos do Departamento de Polícia Militar, DPM, um colega de infância, na própria cidade onde tinham convivido desde sempre, indiferente à injustiça que cometia e a grande repercussão causada;

c) o de quando foi procurada por um homem que lhe descreveu sua condição e o pavor experimentado ante a perspectiva de em vista de uma abordagem mal sucedida, por parte da Polícia Militar, vir a ser torturado, quando fez explodir toda a sensação de humilhação que experimentava e exclama: “Matem-me mas não me batam!6

Há também uma oportunidade em que a intolerância das pessoas em geral se projetou contra um rapaz que praticara uma tentativa de furto em um restaurante. Logo foi preso e estava para ser colocado no porta-malas de uma viatura, quando os policiais foram impedidos de fazê-lo. E todos os que se deliciavam ante a cena macabra, aos seus olhos espetacular, até ante a perspectiva do que depois ia acontecer, espancamento, humilhação, tortura, se insurgiram. Inclusive, indo depor nos autos do Inquérito Policial Militar, onde transformaram os policiais em heróis e quem os impediu de consumar a própria barbaridade, em delinqüente potencial.

Os ambientes destinados ao cumprimento de penas, nada têm a ver com os princípios legais que o devem reger. Tudo se confirma com apenas a leitura do art. 1º da Lei de execução penal.7

O acesso à justiça

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

Não é o que se vê na prática, pois a maioria está privada de seus direitos de muitas formas. Não são poucas, as notícias sobre trabalho escravo, cortadores de cana, catadores em fazendas, em geral, continuam sendo vítimas. São os principais alvos e a menos que por alguma, casualidade a situação em que vivem seja descoberta, podem-se constituir em exilados no próprio país, porque originários de estados distantes, não têm recursos para empreender regresso ao seio das respectivas famílias, cujo bem estar, aliás, se constituiu a seu tempo, em motivação da partida.

É autêntica negação dos direitos sociais, igualmente previstos na Constituição Federal.

Segundo a Pastoral do Migrante, entre as safras 2004/2005 e 2005/2006 morreram 10 cortadores de cana na Região Canavieira de São Paulo. Eram trabalhadores jovens, com idades variando entre 24 e 50 anos; todos eram migrantes, que tinham vindo de outras regiões do país (Norte de Minas, Bahia, Maranhão, Piauí) para o corte de cana. As causa mortis em seus atestados de óbito são vagas a respeito do que ocasionou verdadeiramente as mortes, os atestados dizem apenas que morreram por parada cardíaca. (Francisco Alves).8

Aquelas não são as únicas restrições patentes ao acesso a justiça, apesar de a mesma Constituição Federal, igualmente afirmar:

LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;

É daí a justificada euforia com que se exprime Cappelletti que saúda

O recente despertar de interesse em torno do acesso efetivo à Justiça que levou a três posições básicas pelo menos nos países do mundo Ocidental. … a primeira “onda” desse movimento novo – foi a assistência judiciária … o mais recente é o que nos propomos chamar simplesmente “enfoque de acesso à justiça” porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito além deles, representando, dessa forma, uma tentativa de atacar as barreiras ao acesso de modo mais articulado e compreensivo.” (P. 319)

Este otimismo não chega à realidade, sabe-se de Estado que ainda não tem serviço de Assistência Judiciária. Nos que têm, como o nosso, o número de defensores públicos é de tal forma reduzido que não chega a satisfazer a extensa gama das atribuições que lhes estão afetas. Daí, o expressivo número dos que padecem por falta de assistência e em conseqüência da própria indigência, o tempo passa sem que o direito do qual têm absoluta consciência lhes assistir, seja reconhecido.

Sem falar que em decorrência inclusive de como se vestem, é aviltante o tratamento que lhes dispensam alguns juízes. Tem tudo a ver com intolerância.

Tais práticas derrubam todos os bons propósitos na busca de uma sociedade igual, justa e solidária.

Família, criança, adolescente e idoso.

Os três elementos desse grupo integram a família. Pela visão que se continua tendo, as agressões das quais a família é vítima se refletem sobre seus membros e daí é que são geradas todas as formas de intolerância que não concedem à criança e ao adolescente a assistência de que carecem, como cidadãos em desenvolvimento para que, a seu tempo, desempenhem com efetividade a tarefa que lhes competir, no contexto social.

Enquanto houver necessidade de filas para a consecução de uma vaga escolar; enquanto a família for constrangida a abdicar de expressiva parcela do seu orçamento para pagar escola particular para o filho, porque a pública, onde professores mal remunerados, podem não ter motivação para um melhor desempenho de suas funções; enquanto se perpetua o drama na saúde, também não há perspectiva de divisar futuro com menos violência, fonte alimentada por muitas outras.

Ante tudo isto, não nos deveríamos surpreender com a forma com que o adolescente infrator reage. Os reflexos de intolerância que se projetaram sobre ele, quando no seu espírito haviam interrogações, cujas respostas não houve quem soubesse dar. Se dadas, não foi de forma clara e satisfatória, pelo que, o oposto, não tolerar = ser violento se configurou como alternativa mais viável em cujo exercício, mesmo que negativamente, seu espírito encontra deleite, indignação que não pode conter e sede de ser tudo que não se espera de qualquer pessoa humana.

O idoso se torna peso e suas práticas, seu hálito, sua proximidade, suas repetidas e nem sempre bem recebida sucessão de perguntas passam a compor os ingredientes que o tornam intolerado.

Existem os chamados “programas para a Terceira Idade”, oferecem diferentes propostas para o lazer e ocupação do tempo livre, são espaços nos quais o convívio e a interação com e entre os idosos permitem a construção de laços simbólicos de identificação, e onde é possível partilhar e negociar os significados da velhice, construindo novos modelos, paradigmas de envelhecimento e construção de novas identidades sociais.

O índio

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Mais uma vez se constata que o texto constitucional não obstante a autoridade da qual se reveste, é relegado. Não há reconhecimento do direito silvícola. Suas terras foram sucessivamente sendo arrebatadas e eles correm o risco de restarem sem elas, inclusive nesse Estado, onde uma batalha em toda sua abrangência se estende e lá se vão décadas, entre os Guaranis, residentes em Aracruz e a poderosa fabricante de celulose que tem o mesmo nome, no mesmo município situada.

Em “Pedagogia da Tolerância”, Paulo Freire relaciona o tema colonização e educação indígena. Reflete sobre a invasão do dominador à cultura do dominado, e considera esta como a primeira forma de exploração.

Nesta sobreposição da cultura, o dominador faz com que o dominado tenha apenas um mínimo de conhecimento para servi-lo, como aconteceu na colonização e como acontece nos dias atuais com a branquitude. A educação não deve estar aliada apenas à ideologia do dominador, mas necessita estar em conexão com o processo de construção do conhecimento. A educação deve estar cheia de significações do mundo no qual é realizada, para que o conhecimento seja construído. Por isso, a linguagem tem um papel fundamental: o dever de estar conectada com o contexto do educando e da educanda. A educação deve se dar no âmbito da dialogicidade com a compreensão epistemológica, valorizando o conhecimento do educando e da educanda. (Comentário de Thyeles Borcarte Strelhow.

O meio ambiente

Não o esqueceu a Carta Magna que lhe concedeu nada menos que um capítulo. Ali o artigo que contém não um comando, nem aconselhamentos, mas um alerta. O verbo central o diz, impõe-se.

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

Pode ser dito que a resposta do Chefe Seattle ao Presidente dos Estados Unidos que lhe propôs compra de bens naturais, se constitua na mais forte repulsa a manifestação de intolerância que há mais de duzentos anos, vem acometendo o ambiente como um todo, desde a ingerência nos ecossistemas em busca do que têm de mais valioso, às mais diferentes formas de agressão que agora têm feito com que o homem tema e trema, ante a ameaça do aquecimento global, a falta de água e uma série expressiva de outras ameaças causando um tremendo mal estar. Ele disse:

Como se pode comprar ou vender o firmamento ou ainda o calor da terra? Tal idéia para nós é desconhecida. Se não somos donos da frescura do ar, nem do fulgor das águas, como poderão vocês compra-los? Cada parcela da terra é sagrada para o meu povo. … Somos parte da terra e da mesma forma ela é parte de nós próprios. As flores perfumadas são nossas irmãs, o veado, o cavalo, a grande águia são nossos irmãos; as rochas escapadas, os úmidos prados, o calor do corpo do cavalo e do homem, todos pertencemos à mesma família”.

Ao mesmo tempo em que replica o Grande homem branco, o Chefe indígena demonstra sua imensa tolerância para com a terra, tendo para com ela – mesmo que nunca o tenha definido como tal – um comportamento ético de cuidado.

O meio ambiente tem demonstrado sua insatisfação com as atitudes intolerantes assumidas em seu confronto e como o que se faz resulta da quebra da harmonia que contém, reage e quase sempre as conseqüências equivalem ao efeito “bumerangue”.

Em artigo encontrado na internet, Edson Ricardo Saleme, que é professor de Mestrado em Direito Ambiental, tem expressões dignas de transcrição

A globalização pode ser atacada sob os mais diversos aspectos. Não obstante trazer consigo a preponderância da vontade dos países denominados “desenvolvidos”, marca também uma preocupação com a permanência da vida na Terra que depende integralmente do atual tratamento dado aos recursos naturais.

No entanto, quando a civilização iniciou seu processo de descaso ao meio ambiente, pouco se falou da ingerência do Estado para proteger esses recursos escassos e finitos. A atuação e presença do Estado, no estágio da civilização em que nos encontramos, ainda é necessário, assim como foi no passado.

E arremata:

A questão da soberania foi amplamente debatida em foros internacionais e, atualmente, fala-se em uma soberania limitada aos chamados Estados-nação, reconhecendo-se que existem interesses maiores e de maior significação do que a própria afirmação do Estado como ente soberano: a humanidade e os recursos limitados que existem em nosso planeta. (G/n).

A soberania

A nenhum país falta consciência na defesa de sua soberania

Soberania é palavra derivada do latim vulgar “superanus”, que designa qualidade do que possui a autoridade suprema: o poder da última instância que tem dupla face: interna (procurando eliminar os conflitos internos) e externa (decidindo sobre a paz e a guerra)10.

É o primeiro dos cinco fundamentos citados no art. 1º da nossa Constituição. É muito forte pensar na abdicação da própria soberania até quando ele se faz objetivo precípuo de um estado ou nação. Mas em vista da intolerância contra o ambiente perpetrada por tantos e tantos anos, eis que é a tolerância a recomendá-lo quando se tratar de preservação ambiental. O país que se obstinar ou não tolerar a idéia se condenará à morte, uma morte sem recompensa, morte sem ressurreição.

Problema globalizado

Há uma aparente impressão de que tudo quanto foi dito se restrinja à Nação brasileira. Não se restringe. Os problemas que afetam qualquer povo, igualmente contemplam aquele outro, num mundo que se globalizou.

Mas é de causar, ao menos um profundo constrangimento, quando se conclui que tudo isto aconteceu e ainda acontece, num país que se pauta, na dignidade da pessoa humana (inc. III art 1º); e que tem entre os seus objetivos fundamentais, como República Federativa, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (inc. IV, art 3º).

TOLERÂNCIA COMO DIREITO DE UMA CONSCIÊNCIA UNIVERSAL

Talvez competisse agora realçar a tolerância em oposição a tudo que de intolerância se evidenciou. A idéia se esvai ante a constatação do que contém (memória de antanho) a síntese transcrita por Vicente de Paulo Barreto, ao tratar o tema:

"A Constituição francesa renunciou tanto à tolerância como à intolerância e estabeleceu um DIREITO DE CONSCIÊNCIA UNIVERSAL. A tolerância não é mais o contrário da intolerância; ela é somente a sua contrafação. Todas duas são despóticas; uma se arroga o direito de proibir a liberdade de consciência, a outra a de concedê-la. Uma é como um papa brandindo o fogo e a lenha, o outro como um pontífice vendendo ou concedendo indulgências. A primeira representa a Igreja e o Estado, a segunda a Igreja e o tráfico" (Paine, 1961: 323-324).

Importa que toda uma conscientização se processe. Continuar falando de (in)tolerância não se constitua em meio de demonstrar que uma como outra podem-se configurar danosas. No sentido negativo, provoca o recrudescimento do espírito a cegueira dos que se recusam a ver a realidade e a semelhança que toda pessoa humana guarda entre si. Como virtude, que não corresponda à atitude farisaica daquele que diz: não sou como os demais, aceito os que divergem de mim.

Ontem como hoje.

A contra reforma operada pela Igreja Católica e seus desdobramentos, após o desencadeamento de protestos liderados por Lutero, se bem que não tenha sido o primeiro a fazê-lo, notadamente, foi precedido por Erasmo de Roterdan, ontem, levou os huguenotes, denominação dada aos seguidores de Calvino,

a partir daquele ato de despotismo real11, os seguidores da Igreja reformada começaram uma imigração em massa da França. Nos anos seguintes, 300 mil huguenotes partiram para o exílio na Inglaterra ou para Brandeburgo, onde foram acolhidos pelo principe Eleitor12 enquanto outros mantiveram-se ligados clandestinamente “à igreja do deserto”.

Hoje do Brasil, a cada ano, um número na realidade, desconhecido de brasileiros, partem para os Estados Unidos, para a Europa, Itália e Portugal preferencialmente, em busca de melhores condições de vida e encontro de um trabalho. Não raro, vítimas de intolerância, não chegam a sair dos aeroportos, são repatriados. Nem se olvide o que tiveram de padecer dentistas que buscaram a terra lusitana para desempenhar sua profissão.

Para Carlos Rodrigues Brandão,

os lugares mais intoleráveis do mundo hoje em dia são os aeroportos e os pontos de fronteira, são os lugares em que se sente na carne que você não só é um outro, mas vale, como outro, menos, como outro que é no máximo tolerado. Pode entrar, mas não se esqueça de que você pode sair a qualquer momento. Você não é como nós, você é apenas tolerado13.

Minimalista, o Estado deixa de se preocupar com o homem para voltar sua atenção para a economia de mercado, em obséquio aos “sopros de modernidade” propiciados pela globalização, nome pelo qual atende o “capitalismo selvagem” de antanho. (Sérgio Monteiro Medeiros).

Mill14 considerava a tolerância como a virtude social primordial para que fosse garantida a liberdade de opinão. A tolerância liberal, entretanto, restringa-se ao ãmbito exclusivo da liberdade de opinião.

Consta que Soren Kierkegaard é o primeiro filósofo a fazer uso da noção de cuidadoou preocupação. Introduz as noções de preocução, interesse e cuidado para contrapor o que considera a excessiva objetidad da filosofi e da teologia formuladas no começo do século XIX

Ética do cuidado

Faz-se apenas uma breve alusão do significado para não ir diretamente ao assunto. Em seu artigo, “A redescoberta da ética do cuidado: o foco e a ênfase nas relações” Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, escreve:

O cuidado tem, para Heidegger, o duplo sentido de angústia e solicitude, que representam duas possibilidades fundamentais e conflitantes. O "cuidado angústia" (sorge) retrata a luta de cada um pela sobrevivência e por galgar uma posição favorável entre os demais seres humanos. O "cuidado solicitude" (fürgsorge) significa voltar-se para, acalentar, interessar-se pela Terra e pela humanidade. No mundo cotidiano é inevitável esta divergente ambigüidade do cuidado. Aceitá-la como própria do ser humano favorece o entendimento de que o cuidado como angústia impulsiona a luta pela subsistência, enquanto compreendê-lo como solicitude permite revelar as plenas potencialidades de cada ser humano.

Importa via de conseqüência que seja dito: não à intolerância, mas à tolerância também. Esta se pode constituir de apenas um suportar, já que, do seu exercício como virtude é exigido muito mais, uma total mudança a se processar no interior de cada um e num rompimento com todos os paradigmas mediante os quais se pautam.

Trata-se de ter cuidado.

Cuidado com o nosso único planeta, cuidado com o próprio nicho ecológico, cuidado com a sociedade sustentável, cuidado com o outro, animus e anima, cuidado com os pobres, oprimidos e excluídos, cuidado com nosso corpo na saúde e na doença, cuidado com a cura integra do ser humano, cuidado com a nossa alma, anjos e os demônios interiores, cuidado com o nosso espírito, os grandes sonhos e Deus e até com a grande travessia, a morte15.

Do quanto até aqui foi visto, porque é inegável a certeza de que há muito mais e muito tem ainda que ser aprendido, a afirmação dos direitos sociais, humanos ou de qualquer espécie, em outras palavras, a plenitude cidadã passa por uma grande sensibilidade do que é o humano, do quanto pesa uma pessoa e de quão profundas são suas indagações, do quanto são vastos os seus horizontes. Ao que mais sabe ou pode, dever maior assiste de não dar ao menos provido somente o pouco com que ele se revela contente, mas muito mais. Deve ser-lhe dado o que merece, a parcela de liberdade, de bens e de tudo que ninguém pode usurpar por constituir o seu quinhão, pois como bem afirma Paulo Freire:

… o exercício da cidadania não é algo mágico. Ao pronunciarmos a palavra cidadania não significa que somos cidadãos. O exercício da cidadania é expressamente um ato político.

Não há porque negar que a “Ética do Cuidado” é uma vivência urgente que passa pelo homem e por tudo que o rodeia. Nada do que existe tem fim em si mesmo, mas é um “por causa de” por causa da pessoa, da pessoa humana, do outro. Sendo pessoa a medida para considerá-la tem a proporção da minha pessoa. Pessoa não se tolera, ama-se.

Notas de rodapé convertidas

1 Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo.

2 Infernos da Intolerância – Wikipedia.

3 Jornal a Gazeta, Vitória – ES – 15 de julho de 2007, p. 3.

4 Concílio Vaticano II

5 Agosto de 2007.

6 Artigo da autora publicado em A GAZETA em 18/02/2002 e em diversos sites. jusvi.com/colaboradores/artigos/109 – 32k

7 A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

8 Artigo em http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=21279 –captado em 09 de agosto 2007.

9 Acesso a Justiça, Tradução de Ellen Gracie Northfleet.

10 José Antonio Martinez Alonso, in Dicionario de História do Mundo Contemporâneo.

11 O Rei Luís Cardoso de França, revogou o Édito de Nantes que dava aos huguenotes, liberdade de culto. Tinha sido assinado 67 anos, pelo rei Henrique IV, provavelmente, a tanto levado pelo Cardeal Rechilier.

12 João, o Constante, é o nome do príncipe eleitor da Saxônia, onde Lutero vivia.

13 Conferência no Seminário Cultura e Intolerância.

14 John Stuart Mill, filósofo inglês, o sistematizador dos argumentos que estabeleciam as relações do conceito de tolerância com os de liberdade.

15 O detalhamento das especificações são de artigo de autor não identificado, encontrado no site DHNET.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

MARLUSSE PESTANA DAHER:  Promotora de Justiça, Dirigente do Centro de Apoio do Meio Ambiente do Ministério Público do ES; membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, Conselheira da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória – ES, Produtora e apresentadora do Programa “Cinco Minutos com Maria” na Rádio América de Vitória – ES; escritora e poetisa, Especialista em Direito Penal e Processual Penal, em Direito Civil e Processual Civil, Mestranda em Direitos e Garantias Individuais.

 

Considerações iniciais sobre os procedimentos especiais

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Gisele Leite

Nessa fase introdutória cumpre explanar que o atual CPC, em matéria de processo de conhecimento, um procedimento ordinário (Livro I, Título VIII), um procedimento sumário (Livro, I, Título VII, Capítulo III) e vários procedimentos especiais (Livro IV, Título I) e, ainda em legislação esparsa.

É precioso logo de prima vicejar em doutrina e nas leis, os conceitos de ação, processo, procedimento e jurisdição.

Ação é direito subjetivo público de obter do Estado por meio do juiz ou de que lhe faça às vezes (como o árbitro conforme os termos da Lei 9.307/96) em resposta à pretensão regularmente formulada.

Confirma-se ainda ação como direito autônomo e abstrato, e como direito de obter a resposta à pretensão formulada, desde que estejam totalmente preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito (além de todas as condições de ação, e os pressupostos processuais de existência e de validade da relação jurídica processual).

Além de estarem devidamente ausentes os chamados pressupostos processuais negativos (coisa julgada, litispendência e convenção de arbitragem).

Portanto, sendo patente a presença desses todos os requisitos, o juiz reconhece, por meio da sentença (art. 269 do CPC) o direito de ação do litigante, oferecendo-lhe resposta à pretensão de direito material formulada, que poderá ser positiva, nos casos de ser procedente o pedido, ou será negativa, nos casos de improcedência.

Também se forem ausentes os referidos pressupostos processuais, o juiz também por meio da sentença (art. 267 do CPC) não conhece o direito de ação do litigante, deixando de dar resposta ao pedido formulado, extinguindo-lhe o feito sem apreciação ou resolução do mérito.

processo é instrumento da ação, é o veículo pelo qual o Estado/Juiz exerce jurisdição (esse poder/dever de dizer o direito ao caso concreto de forma definitiva). O processo propicia ao autor o direito de ação e, ao réu o direito de defesa (contraditório) e, ainda mesmo o direito de ação (reconvenção), caso o procedimento permita.

Finalmente o procedimento nada mais é que a face extrínseca do processo, é seu ritmo, é a forma de como são produzidos os atos processuais são encadeados até a prolação da sentença.

Quando enfim, o feito é extinto seja sem resolução do mérito (por ser ausente o juízo de admissibilidade) ou com resolução com mérito.

No procedimento são fixadas as regras relativas às prazos, modos e publicações para que as partes, o juiz e os auxiliares da justiça pratiquem os atos processuais tendentes a conduzir a procura da boa justiça e da paz social, o processo até o fim.

Em face da celeridade empreendida no procedimento sumário, a contestação do réu pode ser escrita ou oral (mas será reduzida a termo) na ata de audiência (conforme nos informa o art. 278 do CPC). No procedimento sumaríssimo, a sentença pode dispensar o relatório conforme nos informa o art. 38 da Lei 9.099/95.

Tecnicamente, o processo é o mesmo (processo de conhecimento ou cognição), mas o modo e o tempo para realização dos atos processuais (tais como contestação, audiência e sentença) são distintos.

De acordo com a natureza da prestação jurisdicional desejada, e do direito material a ser aplicado, o processo de jurisdição contenciosa pode ser classificado em processo de conhecimento, de execução ou cautelar.

O processo de conhecimento é onde se dá o acertamento, a declaração de direitos pondo fim ao estado de dúvida jurídica capaz de prejudicar o direito material em litígio. É um processo caracterizado pela sentença de mérito onde o juiz afirma o direito às partes, apontando para quem tem razão em face do pedido jurisdicionado.

Poderá a sentença somente declarar a existência ou inexistência de uma relação jurídica, sendo assim chamada de sentença declaratória. A princípio, todas as sentenças são declaratórias.

Há também a sentença constitutiva, a desconstitutiva ou constitutiva negativa se esta objetivar a criar, modificar ou extinguir uma relação jurídica, alterando um status dos litigantes.

Todavia, se a sentença impõe sanção a quem viola norma jurídica, e que constitui ilícito, diz que é condenatória, podendo ser executiva quando decreta, por exemplo, despejo ou reintegração de posse.

Pode ainda a sentença ser mandamental por exprimir um mando ou ordem, como verbi gratia, a reintegração de um funcionário ao cargo através de um mandado de segurança.

Variando essas sentenças na forma que impõe a sanção, sendo todas condenatórias em verdade. O processo de execução é veículo que o Estado representado pelo juiz para impor coerção sobre o patrimônio alheiro, obrigando o violador (nesse caso, o devedor) de um direito a cumprir um comando contido na sentença condenatória, ou em título que contenha igual expressão (art. 584, 585 do CPC).

É notório que o viés caracterizante do processo cautelar é subsidiário além de servir de garantia auxiliar para os outros tipos de processo (o de conhecimento e o executivo). Pode objetivar proteger provas, bens, pessoas tendo em vista futuro ou incidental processo de conhecimento ou execução.

Visa garantir a eficácia de outro processo sendo dotado de dupla instrumentalidade. É o caso do arresto de bens (arts. 813 e seguintes do CPC), da produção antecipada de provas (art. 846 do CPC).

Todo mecanismo processual nos ensina Humberto Theodoro Junior nasceu e se aperfeiçou em função da necessidade de se eliminar do seio social, os conflitos jurídicos que são os conteúdos dos litígios.

O objeto visado pela prestação jurisdicional é, então, o direito subjetivo dos litigantes em nível material. O processo não pode ignorar as exigências da realidade de origem substancial, devendo promover o ajuste necessário e coerente da forma à substância.

Anota José Alberto dos Reis apud Theodoro Junior sobre a criação de procedimentos especiais, que obedece ao pensamento de ajustar a forma ao objeto da ação estabelecendo, correspondência harmônica entre os trâmites processuais e a configuração do direito material que se pretende fazer reconhecer ou efetivar.

É a fisionomia especial do direito postulado que decreta a forma especial do processo.

Restam positivados em nosso direito processual os procedimentos especiais também nas leis extravagantes (mandado de segurança, ação popular, busca e apreensão de bem gravado por alienação fiduciária, execução fiscal e, etc.).

Os procedimentos especiais de jurisdição contenciosa são, a saber:

a) ação de consignação em pagamento ( arts. 890 – 900 do CPC);

b) ação de depósito ( arts. 901/906 do CPC);

c) ação de anulação e substituição de títulos ao portador ( arts. 907-913 do CPC);

d) ação de prestação de contas ( arts 914 – 919 do CPC);

e) ações possessórias (arts. 920 – 933 do CPC);

f) ação de nunciação de obra nova (art. 934 – 940 do CPC);

g) ação de usucapião de terras particulares (arts. 941-945 do CPC);

h) ação de divisão e demarcação de terras particulares (art. 946-981 do CPC);

i) inventário e partilha ( arts. 982 e 1.045 do CPC);

j) embargos de terceiro (art. 1.046 – 1.054 do CPC);

l) habilitação (arts 1.055 – 1.062 do CPC);

m) vendas a crédito com reserva de domínio ( arts. 1.070-1.071 do CPC);

n) arbitragem (Lei 9.307/96);

o) ação monitória (arts. 1102 a – 1102 c do CPC).

Além da escorreita adequação do procedimento à pretensão dos litigantes inspiram-se os procedimentos especiais os seguintes objetivos:

a) simplificação e agilização dos trâmites processuais, por meio de expedientes como o de redução de prazos e de eliminação de atos processuais desnecessários e redundantes;

b) delimitação do tema que se pode deduzir na inicial e na contestação;

c) explicitação dos requisitos materiais e processuais para que o procedimento especial seja eficazmente utilizado;

Resta também anulada ou pelo menos mitigada a clássica dicotomia entre ação de cognição e ação de execução. Pois numa única relação jurídica processual se permitem atividades de declaração de direito e de sua execução, que se realizam desde logo, tornando desnecessária a actio iudicati em processo autônomo posterior.

Desenvolvem-se um método compor lides tanto com o direito como com a força. Opera um acertamento com preponderante função executiva.

As ações executivas lato sensu com sua peculiar tônica fazem identificar que os procedimentos especiais não são meros apêndices do processo de conhecimento ou cognição.

Neste procedimento mesclam-se as funções de declaração e realização do direito. Aliás, as recentes reformas do CPC pátrio vêm pouco a pouco derrubando as demarcações clássicas entre processo de conhecimento e processo de execução.

Cumpre aduzir que não é fatal o erro na escolha do procedimento pelo autor. Ademais, o art. 250 CPC dispõe que “compete ao juiz adequar a forma ao pedido”, corrigindo eventual erro do litigante e, dispensando apenas atos incompatíveis com procedimento necessário.

Entende a doutrina que ao juiz cabe o dever de “determinar a conversão quando possível” e, no mesmo sentido advoga a jurisprudência dominante que não vê na erronia de procedimento uma inapelável invalidade do processo. Aproveitando-se os atos já praticados já que úteis.

Muitas vezes o rito especial tem por fim apenas abreviar a solução do litígio pois a adoção do rito ordinário, em caráter de substituição facultativa, pois não é vedada às partes mesmo porque a ampliação do debate processual não lhes causará prejuízo algum.

Donde conclui-se que para nosso ordenamento jurídico, o procedimento especial salvo hipóteses especialíssimas, não é imposição absoluta.

Naturalmente, quando o procedimento especial corresponder aos atos imprescindíveis ao processamento lógico da pretensão, essa substituição não será admissível.

É o caso da ação de divisão e demarcação, inventário e partilha onde o rito ordinário torna-se naturalmente inadequado.

Assim em razão da pretensão deduzida excepcionalmente o processo pode mudar o modo de se formar e de se desenvolver. Embora a lei preveja o procedimento especial, esta pode ser deduzida no procedimento ordinário.

É o caso dos pedidos de proteção possessória, cuja liminar informa a especialidade do procedimento, pode ser dispensada. Porém, existem pretensões que somente são dedutíveis no procedimento especial é o caso da consignação em pagamento, da divisão e demarcação de terras, do inventário e partilha, embargo de terceiro, habilitação de crédito em falência, restauração de autos, mandado de segurança e ação popular.

A Constituição Federal Brasileira de 1988 reservou à União competência exclusiva para legislar sobre direito processual (art. 22, I) e também estabeleceu competência concorrente desta com os Estados-membros para fazê-lo sobre os procedimentos (art. 24, IX).

Faz mister distinguir de forma nítida os dois tipos de jurisdição e, a doutrina majoritária considera que a jurisdição contenciosa tem como objetivo a aplicação da lei material a fim de eliminar, o conflito de interesses.

O legislador cuidou da jurisdição contenciosa nos três primeiros livros. E, apesar de eleger os casos específicos de cada tipo de jurisdição não o faz com intuito de esgotar o tema, mas apenas traz a baila situações mais comuns em que os dois tipos de jurisdição atuam, de sorte que é possível ver outras situações que irão se enquadrar ora num tipo e ora em outro caso, e que não estão ali tipicificadas e elencadas.

Há também na jurisdição voluntária processo e ação, e, também jurisdição certamente. É certo porém que predomina a atividade de cooperação entre o Estado e os particulares para solução do conflito de interesses que não chega a caracterizar-se como um litígio tal como temos na jurisdição contenciosa.

Ademais os atos da jurisdição voluntária não são típicos de atividade jurisdicional, são mais afetos à função executiva. Usam a simples aquisições, extinções ou transmissões de direitos.

Pode-se até qualificá-los como atos administrativos mas não se confundem com os atos típicos administrativos. Através da jurisdição voluntária ou graciosa o Estado interfere na administração da esfera privada a fim de que os particulares possam realizar seus objetivos.

A atividade do magistrado incide sobre direitos que já estão pré-constituídos, de modo que não há decisão sobre o mérito em si das questões trazidas, mas mero controle ou acertamento de atos que se deseja realizar.

Na verdade, o Estado-juiz atua não no sentido de resolver lides, mas de chancelá-los. Mas na jurisdição voluntária justifica-se a intervenção do Estado de direito munido da finalidade de bem-comum e da segurança jurídica.

Ressalte-se que a atividade de jurisdição voluntária não se realiza apenas no Poder Judiciário, mas também perante a autoridade administrativa, como por exemplo, as atividades realizadas perante o tabelião para reconhecimento de firmas, autenticação de cópias, tradutor público, juiz de paz entre outros. Até o MP administra interesses privados quando aprova estatutos de uma fundação.

Embora seja de cooperação, não é menos correto identificar a jurisdição voluntária no âmbito efetivamente jurisdicional. A expressão “voluntária” é usada em sentido impróprio. O processo aqui se revela em ser modo pelo qual o Estado exerce soberania estatal realizando a pacificação social e garantindo a segurança jurídica nas relações.

É antes de tudo instrumento político para cumprir o direito de ação assegurado constitucionalmente no art. 5º, XXXV da CF e que não admite qualquer expediente que resulte em sua limitação ou dificuldade de exercício.

Em doutrina há três categorias de atos da jurisdição voluntária: os meramente receptivos, onde o juiz simplesmente recebe, alguma coisa, dando publicidade (art. 1.877 CC); os simplesmente certificantes em que o juiz autentica alguma coisa (art. 1.878 do CC) e os pronunciamentos ditos, relativos aos procedimentos de jurisdição voluntária (ex: homologação de divórcio consensual, para tanto vide também a Lei 11.441/2007).Grifo meu.

Cuidou o legislador de estabelecer dois diferentes tipos de procedimentos (um destinado ao contencioso e o outro ao voluntário).

A técnica utilizada pelo legislador pode ser assim resumida:

a) criação de atos para adequar o rito;

b) simplificação e agilização dos trâmites;

c) delimitação do tema a contestar;

d) explicitação dos requisitos materiais e processuais;

e) superação da dicotomia entre ação de cognição e execução, pois numa única relação podem conviver;

f) aplicação subsidiária do procedimento ordinário (que é o padrão).

Alexandre Freitas Câmara alega que não há qualquer liberdade de escolha do procedimento sendo as normas que determinam sua utilização de ordem pública, e portanto, totalmente cogentes.

Não se pode, por exemplo, optar pelo procedimento comum em detrimento do especial. Há apenas uma exceção a esta regra: o procedimento monitório cuja utilização é opcional. (vide TJRJ, ap. Cível 18359, julg. 22/09/81).

Serão os procedimentos especiais considerados como processo de conhecimento? Afirmam negativamente alguns doutrinadores, pelo menos em alguns dos procedimentos especiais, onde existe uma atividade cognitiva e executiva num só processo.

Afirma Alexandre Freitas Câmara que nos procedimentos especiais são manifestações extrínsecas de processos cognitivos. Predomina, na maioria das vezes a atividade cognitiva.

Consignamos algumas peculiaridades comuns aos procedimentos especiais, que passamos a arrolar:

– a alteração de prazos, sendo possível prazo maior que havido no procedimento ordinário (como na ação de demarcação de terras onde o prazo para resposta do demandado é de vinte dias e, por vezes, menor como é o caso da ação de depósito onde o prazo para a resposta pe de cinco dias);

– também se percebe alteração das regras atinentes à legitimidade e à iniciativa das partes, como ocorre nas ações de usucapião onde são citados todos os proprietários confrontantes com o usucapiendo, ou no inventário e partilha sendo procedimento que pode até ser instaurado de ofício pelo juiz;

– a constatação das chamadas “ações dúplices” onde as partes assumem reciprocamente as posições de demandante (autor) e demandado (réu), o que permite ao réu formular juntamente com a contestação seu pedido sem a necessidade de reconvenção. Isto se dá com as ações de divisão de terras, e nas ações possessórias, na ação de prestação de contas e mesmo na ação consignatória em pagamento.

O CPC brasileiro alinhou dois procedimentos distintos, regulando-se ainda uma terceira espécie de procedimento previsto na Lei 9.099/95(sumaríssimo) nos Juizados Especiais Cíveis.

Disciplina então, o procedimento comum que possui as espécies: ordinário e o sumário, e o procedimento especial. O procedimento quanto mais burocratizado for, admitindo a prática de vários atos, mais será complexo o processo, impingindo uma tardança ou demora na efetiva entrega da prestação jurisdicional.

Ao revés, quanto menor a complexidade do procedimento, mais célere será. É claro que o procedimento comum ordinário revela-se em ser o mais completo dentre todos os procedimentos previstos.

Repisando que o procedimento sumário por ser mais simplificado veda a prática de certos atos processuais (como reconvenção, intervenção de terceiro), impondo a sintetização de atos processuais (um bom exemplo é a AIJ) e, a audiência de tentativa de conciliação (art. 277 do CPC) é voltada para prática de múltiplos atos processuais.

Mais enxuto ainda é o procedimento sumaríssimo (incompatível até com produção de provas de certa complexidade) e, baseado em princípios fundamentais esculpidos pelo art. 2º da Lei 9.099/95, ressaltando-se os princípios da celeridade, da informalidade, da concentração de atos processuais e da oralidade.

O procedimento especial refere-se ao disciplinamento da prática de atos processuais em algumas ações específicas, sem a necessária observância das regras do procedimento comum.

O legislador separou as ações de procedimento especial em dois grupos: o primeiro para ações caracterizadas pela litigiosidade, onde há partes antagônicas, sentença tipicamente de mérito.

E o segundo compartimento voltado para ações da jurisdição voluntária marcadas pela presença de requerentes, ou interessados, a prolação de sentença meramente homologatória, laborando somente coisa julgada formal. Sem ter como traço caracterizante o de pôr fim ao feito com julgamento de mérito.

Não obstante a referida divisão observamos algumas ações que apesar de inseridas nos procedimentos de jurisdição contenciosa são típicos procedimentos de jurisdição voluntária, destacando-se o inventário e partilha.

O parágrafo único do art. 272 do CPC informa da aplicação subsidiária das regras do procedimento comum ordinário seja no procedimento sumário ou, mesmo, no procedimento especial.

É visto que o procedimento maior é o comum e, é visto como procedimento geral. E a referida aplicação subsidiária nos casos de:

a) houver omissão legislativa no reger de procedimentos especiais;

b) a aplicação não afrontar a essência das normas de procedimento especial

Misael Montenegro Filho aponta, por exemplo, que apesar da omissão legislativa quanto a tutela antecipada, é perfeitamente possível o deferimento da medida de urgência nas ações de rito especial, como é o caso, das possessórias.

Também alguns atos do procedimento ordinário podem ser importados para a dinâmica do procedimento especial.

Os procedimentos especiais diferenciam-se do ordinário com maior ou menor intensidade, sendo bastante freqüente que em alguns deles aquele rito passe a vigorar a partir de um determinado momento, até o provimento final.

Assim há procedimentos especiais diferenciados do ordinário apenas pelo acréscimo de um ato inicial (como ocorre nas ações possessórias de força nova), outros são inicialmente especiais, mas conversíveis ao ordinário (v.g. ação de reintegração de posse de bem alienado com reserva de domínio), alguns inicialmente especiais mas conversíveis ao rito das ações cautelares ( v.g. ação de nunciação de obra nova) e, outros, finalmente, irredutivelmente especiais (v.g. inventário). Marcato, Antonio Carlos apud Misael Montenegro Filho.

Desde que a lei não preveja para determinada ação em rito especial um prazo específico de contestação, haverá de prevalecer o ordinário, ou seja, de quinze dias. Da mesma forma, se aplica aos procedimentos especiais o sistema recursal comum, desde que não haja previsão em sentido contrário.

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Referências

WAMBIER, Luiz Rodrigues. E Flávio Renato Correia de Almeida e Eduardo Talamini. Curso avançado de processo civil. Volume 3, 5ª. Edição, São Paulo, Editora dos Tribunais, 2003.

GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios. Procedimentos Especiais. Série Sinopses Jurídicas. São Paulo, Editora Saraiva, 4ª.edição, 2005.

FILHO, Misael Montenegro. Curso de Direito Processual Civil. Volume III. São Paulo. Editora Atlas, 4ª. Edição,2007.

NAHAS, Thereza Christina. Procedimentos Especiais. Série Leituras jurídicas, Provas e Concursos. São Paulo, Editora Atlas, 2ª. Edição,2006.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições Preliminares de Direito Processual Civil.volume III, Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2008.

JUNIOR, Humberto Theodoro. Curso de direito processual civil. Volume III, São Paulo, Editora Forense.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Gisele Leite: Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, Doutora em Direito Civil. Leciona na FGV, EMERJ e Univer Cidade. Conselheira chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas (INPJ).

 E-mail: professoragiseleleite@yahoo.com.br

Tratados que versam sobre direitos humanos

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*Kiyoshi Harada

Sumário: 1 Introdução. 2 A incorporação dos direitos e garantias individuais decorrentes de tratados pela Constituição Federal. 3 O § 3º do art. 5º da Constituição Federal. 4 Considerações finais.

1. Introdução

É sabido que, como decorrência da globalização, onde o econômico sem fronteiras predomina na ordem mundial contemporânea, há uma tendência irreversível de constitucionalização pelos diferentes Estados nacionais de princípios e regras de direito internacional. A universalização de problemas diversos decorrentes do mundo globalizado está a exigir especial atenção à normatização internacional na formulação da ordem constitucional nos dias atuais.

Sobre o assunto afirma José Joaquim Gomes Canotilho:

A globalização internacional dos problemas (‘direitos humanos’, ‘proteção de recursos’, ‘ambiente’) aí está a demonstrar que, se a ‘constituição jurídica do centro estadual’, territorialmente delimitado, continua a ser uma carta de identidade política e cultural de uma mediação normativa necessária de estruturas básicas de justiça de um Estado-Nação, cada vez mais ela se deve articular com outros direitos, mais ou menos vinculantes e preceptivos (hard law), ou mais ou menos flexíveis (soft law), progressivamente forjados por novas ‘unidades políticas’ (‘cidade mundo’, Europa comunitária’, ‘casa européia’, ‘unidade africana’)”.1

2. A incorporação dos direitos e garantias individuais decorrentes de tratados pela Constituição Federal

A nossa Constituição Federal de 1988 seguiu essa tendência de caminhar em direção a um sistema de cooperação com outros povos e harmonização de seus textos com os princípios e regras de direito internacional, incorporando normas transnacionais, como se vê do art. 4º, IX e parágrafo único, bem como do art. 5º, § 2º da CF:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

……………………………………………………………………………….

IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

Por sua vez, a Constituição de 1988 no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos veio a dispor em seu art. 5º, § 2º:

Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não exclui outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

A parte final do dispositivo supra transcrito inovou em relação ao que constava na ordem constitucional antecedente que dispunha no capítulo dos direitos e garantias individuais, art. 153, § 36:

A especificação dos direitos e garantias expressas nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota”.

A diferença de redações salta aos olhos. Dúvida não pode haver de que a parte final daquele § 2º procedeu a incorporação, ao rol de direitos e deveres individuais e coletivos previstos no caput do art. 5º, dos direitos e garantias decorrentes de tratados e convenções internacionais de que o nosso país seja parte. Atribuiu a esses direitos e garantias a mesmíssima hierarquia de norma constitucional. Os direitos e garantias fundamentais decorrentes de tratados são, portanto, igualmente protegidos pela cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV da CF).

É verdade que se trata de preceito constitucional de natureza aberta, a não permitir vislumbrar, de pronto, quais seriam esses direitos e garantias fundamentais.

Porém, é certo que, a unanimidade dos constitucionalistas reconhece a existência de três grupos de direitos individuais albergados pela Constituição: (a) direitos individuais expressos, elencados nos diferentes incisos do art. 5º; (b) direitos individuais implícitos, que são aqueles subentendidos por decorrerem do regime e dos princípios adotados pela Constituição; e (c) direitos individuais que derivam de tratados internacionais subscritos pelo Brasil.

Portanto, esse caráter aberto do último grupo de direitos individuais em nada afeta a sua natureza de garantia constitucional protegida por cláusula pétrea. À medida que o Brasil for celebrando tratados versando sobre direitos e garantias fundamentais, uma vez aprovados pela forma prevista na Constituição, aqueles direitos vão se incorporando ao rol do art. 5º como se aí transcritos estivessem.

Oportuna a lição de Canotilho, neste particular:

O programa normativo-constitucional não pode se reduzir, de forma positivística, ao ‘texto’ da Constituição. Há que se densificar, em profundidade, as normas e princípios da constituição, alargando o ‘bloco da constitucionalidade’ a princípios não escritos, mas ainda reconduzíveis ao programa normativo-consttucional, como formas de densificação ou revelação específicas de princípios ou regras constitucionais positivamente plasmadas”2.

Contudo, a doutrina majoritária orientou-se no sentido de que os tratados internacionais têm a mesma hierarquia de lei ordinária geral, com a conseqüente aplicação da regra de direito intertemporal, segundo a qual, lei posterior revoga lei anterior que sejam com ela incompatível.

Essa teoria da natureza infraconstitucional dos tratados, para alguns autores, é extraída da interpretação do art. 102, III, “b” da CF, que confere ao STF a competência para julgar, mediante recurso extraordinário, “as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”.

Assevera Flávia Piovesan que “à luz deste dispositivo, uma tendência da doutrina brasileira passou a acolher a concepção de que os tratados internacionais e as leis federais apresentavam mesma hierarquia jurídica, sendo portanto aplicável o princípio ‘lei posterior revoga lei anterior que seja com ela incompatível’”.3

Há duplo equívoco nessa linha de raciocínio.

Primeiramente, a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar definitivamente quanto à constitucionalidade de leis e de tratados decorre da sua condição de guardião da Constituição. Se o Congresso Nacional, inadvertidamente, aprovar um tratado inconstitucional é dever do Supremo Tribunal Federal, quando provocado, declarar a sua inconstitucionalidade, ou, ao reverso, julgar constitucional, quando for o caso, o tratado que tenha sido declarado inconstitucional em instâncias ordinárias.

Como se pode notar da precisa lição de Oscar Tenório, o conflito de normas se limita entre as normas constitucionais e as de tratados:

Pela natureza do sistema constitucional brasileiro, o tratado perde sua força quando colide com a Constituição Federal. Todavia, modernas correntes doutrinárias sustentam a supremacia dos textos convencionais. Numa colisão entre o texto da Constituição e o tratado, dá-se preferência a este. As regras convencionais anteriores a uma Constituição continuam em vigor, ainda que o Poder Constituinte tenha adotado princípios incompatíveis com os tratados em vigor. E vão além, afirmando que tratados celebrados posteriormente à Constituição são válidos, ainda que suas regras colidam com o texto constitucional.

São os adeptos da supremacia do direito internacional que defendem esses princípios. Campo de pura doutrina, em contraste com o direito positivo interno. Tratados inconstitucionais no Brasil, sendo a inconstitucionalidade decretada pelo Judiciário, não obrigam. E o Estado contratante estrangeiro não encontrará, na órbita jurídica brasileira, meios coativos para o cumprimento de direito convencional inconstitucional. A matéria cai no âmbito da responsabilidade internacional, sujeita às medidas e aos remédios que o direito das gentes possuem.”4

Sabemos que a nossa Corte Suprema jamais aceitaria a tese da supremacia dos dispositivos de tratados em relação aos textos constitucionais.

Em segundo lugar, não há que se falar em aplicar aos tratados as regras de direito intertemporal, porque eles são sempre atos de governo, não uma lei em sentido estrito, tanto é que o Congresso Nacional não legisla, limitando-se a aprová-los por meio de Decreto Legislativo (art. 49, I c.c. art. 59, VI da CF).

De fato, dispõe a Carta Política:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”

Ora, o verbo “resolver” é incompatível com o ato de legislar. Aprovar o tratado é assunto que se insere no âmbito de exclusiva competência do Congresso Nacional. E ao aprovar o tratado, por meio de Decreto Legislativo, o Congresso não legisla em caráter de norma geral e abstrata, limitando-se a editar normas individuais de natureza concreta. Aliás, quando o texto constitucional prescreveu que compete ao Congresso Nacional “resolver” definitivamente sobre tratados, à toda evidência, quis o legislador constituinte que a vontade do Estado, parcialmente expressada pelo Poder Executivo, fosse completada com a final manifestação do Poder Legislativo, dentro do princípio da independência e harmonia dos Poderes, que representa um sistema de freios e contrapesos, de sorte que nenhum dos Poderes pode fazer o que bem entender sem que os demais Poderes intervenham. Afinal, assinar tratado é o mesmo que assinar contrato. Envolve manifestação volitiva do Estado, expressa pelos Poderes Executivo e Legislativo.

Por isso, diz com habitual propriedade Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

(…..). Ora, sobre as matérias de competência exclusiva do Congresso arroladas na atual Constituição pelo art. 49, não cabe a normatividade abstrata característica de lei propriamente dita.

De fato, os itens do art. 49 atribuem ao Congresso o ‘resolver’, o ‘autorizar’ ou ‘permitir’ ou ‘aprovar’ ou ‘sustar’, o ‘mudar’, o ‘fixar’, o ‘julgar’, o ‘deliberar’, e só a menção desses verbos já mostra que se está em face de questões sobre as quais o constituinte quis deixar a decisão última ao Congresso, especialmente como forma de fiscalização do Poder Executivo. Somente os itens VII e VIII sobre a fixação da remuneração, respectivamente, de Deputados e Senadores e do Presidente e Vice-Presidente da República é que dão azo à edição de normas gerais. As outras individuais não é matéria considerada como pertencente ao ‘processo legislativo’, nem ao ‘processo normativo’, em sentido estrito”5.

Inaplicável, portanto, o disposto no art. 2º e parágrafos da Lei de Introdução ao Código Civil, Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.

O tratado vigora até que seja extinto por uma das seguintes hipóteses:

1. execução integral;

2. expiração do prazo previsto;

3. verificação de uma condição resolutória;

4. acordo mútuo;

5. denúncia (renúncia unilateral);

6. impossibilidade de execução.

3.  O § 3º do art. 5º da Constituição Federal

A posição majoritária da doutrina e da jurisprudência em torno da hierarquia dos tratados, equiparando-os à lei ordinária genérica na linha do decidido no RE nº 200.385-RS6, onde restou proclamada a prevalência do diploma legal específico, o Decreto Lei nº 911/697 sobre o Pacto de São José da Costa Rica, que proíbe a prisão por dívidas, ao que pensamos, levou o Congresso Nacional a promulgar a EC nº 45, de 8 de dezembro de 2004, acrescentando o § 3º ao art. 5º da Constituição Federal, nos seguintes termos:

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

Conferiu-se o status de emenda constitucional aos tratados que versarem sobre direitos humanos, desde que aprovados por meio do inusitado processo legislativo próprio para aprovação de emendas como se tratados fossem lei em sentido estrito.

Se a intenção foi boa, o resultado não é dos melhores. Causa dúvidas, confusões e insegurança jurídica pelas diversas interpretações que provoca.

De tudo o que foi exposto até agora ficou claro que, por força do § 2º do art. 5º da Constituição Federal, os direitos e garantias decorrentes de tratados de que faça parte o Brasil constituem direitos e garantias individuais assegurados no nível de cláusula pétrea, incorporados que ficam ao texto constitucional. Por força de dispositivo originário da Constituição Federal, os direitos e garantias individuais gozam da mesma hierarquia que norma constitucional.

O  § 3º do art. 5º, acrescido pela EC 45/04, permite várias leituras dentre as quais:

1. os tratados doravante deverão ser aprovados em dois turnos e por três quintos de votos nas duas Casas Legislativas;

2. somente os tratados, que versam sobre direitos humanos, submetem-se ao “processo legislativo” previsto na letra “a”;

4. somente os tratados que versam sobre direitos humanos equivalem às emendas constitucionais;

5. demais tratados, mesmo que aprovados com observância do “processo legislativo” previsto na letra “a” teriam a hierarquia de lei ordinária geral, como vinha sendo proclamada pela jurisprudência e parte da doutrina;

6. os tratados e convenções internacionais aprovadas pela forma prevista na Constituição Federal têm a mesma hierarquia de norma constitucional.

De todas as alternativas, a que mais se harmoniza com o sistema constitucional como um todo e com a doutrina de cultores do Direito Internacional Público é a da letra “e”.

De fato, inegável que o § 2º do art. 5º, bem como, o inciso IX do art. 4º da Constituição Federal resultaram da globalização dos problemas concernentes aos direitos humanos, à proteção do meio ambiente, ao econômico sem fronteiras etc.

É irreversível a tendência dos Estados nacionais de incorporar em seus Estatutos Magnos os princípios e regras de direito internacional por meio de tratados que firmam voluntariamente. A Constituição continua representando a emanação da soberania do Estado parte, mesmo porque só podem ceder e fazer concessões recíprocas os que detêm soberania. A soberania, como um dogma político intangível, não mais existe neste mundo globalizado. Os países que compõem a União Européia, por exemplo, estruturaram o Direito Comunitário, onde as constituições dos países-membros funcionam como legislação interna.

Assim sendo, o § 3º sob comento, na verdade, ao contrário do que muitos pensam, configura uma exceção à regra normal de aprovação de tratados e convenções internacionais ao exigir o inusitado “processo legislativo”, para aprovação em dois turnos e obtenção de três quintos dos votos válidos nas duas Casas do Congresso Nacional, para merecer o status de emenda constitucional. Portanto, não têm a mesma hierarquia de norma constitucional originária protegida por cláusula pétrea. Uma coisa é a mens legislatores, outra coisa diversa é a mens legis, que se extrai do exame do ordenamento jurídico global e de conformidade com as modernas teorias do Direito Internacional Público.

Por oportuno, esclareça-se que não há que se cogitar de aplicação do novo “processo legislativo” para tratados que não versem sobre direitos humanos e nem há como negar aos tratados celebrados anteriormente à EC nº 45/04 a mesma hierarquia de norma constitucional, pois, isto está expresso no § 2º do art. 5º da CF. A EC nº 45/04, se bem analisada, representa um verdadeiro tiro no pé.

4.  Considerações finais

A EC nº 45/04 traz todas essas inconveniências pelas diversas interpretações que pode provocar.

Mas uma coisa é certa. A Corte Suprema não mais poderá aplicar o Decreto-Lei nº 911/69, que cuida da prisão do depositário infiel, em face do art. 7º, cláusula sétima do Pacto de São José da Costa Rica, agora, guindado à hierarquia de emenda constitucional na dicção do § 3º do art. 5º da Constituição Federal.

Como se sabe, esse tratado foi firmado em 22 de novembro de 1969 e aprovado por meio de Decreto Legislativo nº 27, de 26 de maio de 1992, sendo promulgado pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, portanto, na vigência da Constituição Federal de 1988.

Dessa forma, se afastada a natureza de norma constitucional que o Pacto de São José da Costa Rica ostenta por força do § 2º do at. 5º da Constituição Federal, ao menos deve ser-lhe conferido o status de uma emenda constitucional.

Se mantido o posicionamento da Corte Suprema pela aplicação do Decreto Lei nº 911/69, em face do que dispõe o art. 5º, LXVII da CF, que excetua da proibição de prisão por dívida civil o infiel depositário, há de buscar novos fundamentos para assim decidir, não servindo como paradigmas os utilizados no HC nº 72.131, Rel. Min. Marco Aurélio, e nos RREE ns. 200.385-RS e 344.458-RS, ambos de relatoria do Min. Moreira Alves.

Saber se a parte final do inciso LXVII do art. 5º da CF restou revogado ou não pela EC nº 45/04 é outra questão a ser dirimida pela doutrina e jurisprudência.

Há uma tendência do Supremo Tribunal Federal na revisão da tese que admite a prisão do depositário infiel, conforme sete votos já proferidos no RE nº 466.343-SP, Rel. Min. Cezar Peluso.

No nosso modesto entender, aquela parte final não mais vigora a partir da EC nº 45/04, que buscou harmonizar nossa Carta Política com os princípios e regras internacionais de proteção aos direitos humanos.

______________________

Notas

1 Direito constitucional, 6ª ed, Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 18.

2 Ob. cit., p. 982.

3 Direitos humanos e o direito constitucional internacional. Max Limonad, 4ª ed, são Paulo: Max Limonad, 2000, p. 81.

4 Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, p. 86.

5 Curso de direito constitucional, 30ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 214.

6 RE nº 200.385-RS, Rel. Min. Moreira Alves, J. em 2-12-97, DJU de 6-2-98, p.38.

7 Permite a prisão de depositário infiel.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Kiyoshi HaradaEspecialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

E-mail:  kiyoshi@haradaadvogados.com.br

Site: www.haradaadvogados.com.br  

Trabalho infantil: justiça frente ao horror

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Atahualpa Fernandez e  Manuella Maria Fernandez

Se Dante Alighieri pudesse regressar, que círculo do inferno reservaria aos segazes exploradores da mão-de-obra infantil? A pergunta bem poderia ser um simples exercício de retórica se não fosse pela circunstância de que comportamentos com características deste tipo a nossa sociedade parece revelar uma aviltante experiência. De fato, já faz algum tempo que, sobre essa questão, se rebaixou o nível do social, do ético e do esteticamente tolerável.

Cada vez que aparece uma notícia ou denúncia de trabalho infantil, cada vez que vão saindo à luz os detalhes dessa forma de exploração, o estremecimento é inevitável. É bastante provável – como lembra Antônio Lima, vice-coordenador da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança do Ministério Público do Trabalho- “que além de questões econômicas e sociais, o trabalho infantil existe porque é aceito culturalmente no Brasil,… e de que há uma falha da sociedade, que ainda concebe o trabalho infantil como uma solução para as crianças pobres”.  Também pode ser mais que isso: que por razões nada difíceis de imaginar nossas instituições continuem pecando por sua omissão, negligência e/ou indolência no que se refere à aplicação de políticas públicas mais eficazes e imediatas destinadas à erradicação desta perversa, absurda e degradante forma de exploração.

Na verdade, qualquer parecido com o que caberia chamar de compromisso ético com nossas crianças parece  brilhar, hoje,  de maneira clamorosa por sua ausência. E nem se diga, ao melhor estilo kantiano, que em temas como esse o que conta são as “boas intenções”, porque a ação é a única prova fiável e fidedigna para valorar a intenção: se a ação nunca aparece ou é demasiada tardia, é muito provável que a intenção seja uma farsa. E embora não exista  nenhuma terra neutral entre o bem e o mal onde alguém possa viver uma vida moralmente tranquila, nossas instituições  se comportam como se estivessem vivendo esse tipo de vida.

Ademais, nunca é demasiado recordar que a essência da apatia reside precisamente no fato de que carrega consigo a completa perda de interesse no que sucede. Nada nos preocupa nem nos importa. E uma consequência natural disso é que nossa disposição a estar atentos se debilita e nossa vitalidade ou sensibilidade moral se atenua.Em suas manifestações mais habituais e características, o conformismo apático,a indolência ou a negligência implica uma redução radical da agudeza e constância de atenção ao que realmente importa. Nossa consciência moral perde a capacidade de perceber injustiças, convertendo-se em algo cada vez mais homogêneo. E à medida que se expande e se apodera de nós, a indiferença faz com que nossa consciência ou compromisso ético experimente uma diminuição progressiva de sua capacidade de perceber os fatos importantes. A justiça só é um valor para os que se interessam e desejam a justiça. A humanidade só é um valor para os que  desejam viver humanamente; a vida só vale para quem a busca ativamente; e nenhuma coisa comanda a não ser proporcionalmente ao interesse que temos por ela. Dito de modo mais simples: ter interesse por alguém ou algo significa ou consiste essencialmente, entre outras coisas, em considerar seus interesses como razões para atuar ao serviço dos mesmos. 

Visto desde essa perspectiva, a exploração do trabalho infantil parece indicar que enquanto nossos dirigentes não atuem rápida e explicitamente na solução desse problema, são todos eles cúmplices. Episódicas expressões de  consternação não somente não são (definitivamente) suficientes senão que  já não há mais tempo e nem motivos para este tipo de comportamento:  a “apatia”, a “inércia”, a “indiferença”, a “insensibilidade moral” – chame-se como queira – de nossas instituições é  fenômeno inconcusso que deveria fazer-nos reflexionar vivamente sobre o ponto de estancamento a que estas  parecem haver chegado.

Mas o que salta à vista, por mais que possam negá-lo – que certamente não o fazem – as autoridades e as instituições  responsáveis pela proteção infantil, é que, já faz algum tempo, alcançamos sobre essa questão uma situação de stress, reprovável e feia. E que isso esteja sucedendo ademais com vítimas inocentes e até mesmo com crianças supõe algo de tanta gravidade que deveria preocupar a todos, pelo simples fato de que situações deste tipo leva a que se deva recordar algumas trivialidades. A primeira, que se governa sobretudo por meio de uma participação e um compromisso integral dos dirigentes das instituições públicas estatais. A segunda, que somente por meio de instituições permanentemente atuantes, vigilantes e eficazes é possível viabilizar o florescimento e o crescimento de comunidades éticas. A terceira, que a ausência de garantias mínimas e oportunidades reais por detrás de qualquer interesse meramente político ou desinteresse institucional,  condena qualquer tipo de preocupação ética à ruína . Enquanto olvidemos essas verdades, a degradante exploração de nossas crianças estará garantida.

E se continuarmos a dar essa situação por normal, se não fazemos nada para corrigi-la, talvez possamos economizar os discursos e gastos que se investem na proteção da infância porque, de uma maneira ou outra, não servirão de grande coisa. Assim que nos preocupa a atitude de nossas instituições e governantes quando, ainda diante de casos de exploração da mão-de-obra infantil, continuam a insistir em um modelo de Estado que não trata de defender sua liberdade,  de protegê-las frente aos abusos dos exploradores e a inércia dos poderes públicos , de prevenir e condenar com eficácia a ação delitiva dos que as exploram, de inviabilizar qualquer forma de existência indigna ou de criminalidade, de promover a igualdade entre os indivíduos, de tutelar e garantir (de forma incondicional) a inviolável  segurança e dignidade de toda criança, de educar e formar verdadeiros cidadãos, de por  fim a um modelo de  sociedade que se encontra a mercê de uma violência descontrolada, enfim, de atuar como agente construtor de uma comunidade de homens livres e iguais , unidos por uma comum e consensual adesão ao Direito e em pleno e permanente exercício de sua cidadania… e por aí poderíamos seguir.

Depois, sempre que sucede algo assim e por mais que os redatores da “lei das leis” tenham imposto grande empenho retórico na proteção da infância, custa trabalho ater-se às normas do Estado de direito, ao conceito civilizado de Justiça, porque se disparam todos os mecanismos de repulsa automática. Duro é que ainda existam pessoas que defendem “a diminuição da maioridade, não só perante a responsabilidade criminal, mas também para o ingresso no mercado de trabalho, já que trabalho fiscalizado, adequado e salubre nunca prejudicou ninguém, pelo contrário, é uma grande fonte de prazer, realização e, principalmente, de formação”.

Mais duro ainda é a insensibilidade moral e emocional da sociedade como um todo diante desse tipo de prática. Talvez já seja hora de que se deva voltar a aprender a indignar-se, a rebelar-se contra certa cultura da indiferênça, do descaso, da interferência arbitrária, da impotência e do conformismo, enfim, da eliminação de todo e qualquer tipo de exploraçao infantil,  justamente agora que vivemos em um Estado em que no plano da política já enlouquecemos todos e se manejam cifras de escândalo como se se tratasse de uma troca de figurinhas em uma atividade que não mais ultrapassa sequer o umbral do trivial. Afinal, as práticas que soem prosperar são exatamente as que contribuem a conservar os sistemas que lhes permitem ser transmitidas.

Porque não é necessário que proliferem os casos de espantosa exploração: com um, sobra. Nem as crianças exploradas tem culpa alguma do que está sucedendo, nem dispõem de oportunidade para escapar a essa tragédia. Somente o Estado e a sociedade em seu conjunto podem armar as barreiras necessárias para que essas coisas não possam passar nunca jamais. Mas podem nossos governantes ter ainda  a pretensão  de não olvidar  a vinculação necessária entre suas atuações e a proteçao infantil? Parece que sim, desde que  considerem que a atividade de governar deve estar permeada pela pretensão de que suas atuações sejam moralmente corretas, justas e sem solução de continuidade.

A ela (atividade)  lhe corresponde a intenção e o dever de agir pronta e corretamente , de que  não é suficiente para resolver o atual, alarmante e desconcertante problema da exploraçao do trabalho infantil o recurso a acontecimentos trágicos ou a uma retórica vazia sobre os direitos fundamentais que concede a Constituição a todo cidadão. Na prática, esse conjunto de direitos de que tão orgulhosos devemos sentir-nos tropeça com a evidência do que está sucedendo com nossas crianças, que não é nem sequer o primeiro dos dramas com vítimas de muito escassa idade.

O ato de governar carrega consigo a virtuosa intenção e disposição de mudar  um estado de coisas de conformidade com algo que se pretenda  justo , isto é, com a idéia de que todo cidadão brasileiro sempre deve ser respeitado como um fim em si mesmo e não como mero objeto de estatísticas estatais. Somente sob essa perspectiva poderá  vir o Estado brasileiro a  afirmar-se  como  instituição  preocupada com a justiça e com a Constituição da República , não somente controlando toda a desregrada maquinaria estatal em suas funções administrativas e legais , senão também assegurando de forma efetiva os princípios , direitos  e  garantias constitucionais. Em resumo, como diria Rawls, do que “deve ser” próprio da atividade de uma instituição justa.

É preciso reconhecer  que  enquanto houver crianças vivendo na miséria gerada pela total falta de oportunidades reais e com o permissão de outros – “no pior de todos os mundos possíveis”, para usar a expressão de Schopenhauer –,ética, liberdade e igualdade , não são para elas sequer meras possibilidades humanas. Depois, para ser um bom governante não basta com  ter “boas intenções” , senão que é necessário também ter outras virtudes como  sentido da justiça , compaixão , determinação e valentia.

Mas se em realidade  nada disso importa, pior para todos. Sem embargo, a mensagem que há que enviar àqueles que estão governando é que não é insignificante ou “sem sentido” o que está sucedendo com nossas crianças: que a indiferença, a indolência e/ou a falta de fórmulas muito mais eficazes, dinâmicas e imediatas de proceder a total erradicação do trabalho infantil não são ( e não devem ser) a regra. Que a simples suspeita de que algo vai mal (e vai) já constitui razão suficiente para ficar atento e  averiguar o que efetivamente está ocorrendo. E que, depois de tudo, se obrará em conseqüência.

Já é hora de que as instituições públicas e a sociedade em seu conjunto , no que se refere ao problema do trabalho infantil, deixem de uma vez por todas de habitar no primeiro círculo do inferno de Dante ( o da  indiferenzza, o reino do puro interesse próprio egoísta, a “origem de todo mal” e a mais cruel e perversa forma de castigo moral) e passem a contemplar toda e qualquer criança ( rica ou pobre) como um ser humano com plena aptidão para sentir, aprender, reagir, amar, eleger, cooperar, dialogar…, enfim, como titular do incondicional direito de ter oportunidades reais para ser capaz de autodeterminar-se livre e dignamente no âmbito de sua secular e peculiar existência.


 

REFERÊNCIAS BIGRÁFICAS

ATAHUALPA FERNANDEZ:  Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pom u Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular da  Unama/PA;Professor Colaborador (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

MANUELLA MARIA FERNANDEZ: Doutoranda em Direito Público (Ciências Criminais)/ Universitat de les Illes Balears-UIB; Doutoranda em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears-UIB ; Research Scholar en el Laboratorio de Sistemática Humana/UIB.

ESTABILIDADE PROVISÓRIA DA GESTANTEGestante adquire estabilidade provisória durante aviso prévio indenizado

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DECISÃO:  *TRT-SP  –   Estabilidade provisória de gestante pode ser adquirida durante o curso do aviso prévio indenizado, que integra o contrato de trabalho para todos os efeitos. Com essa tese da Desembargadora Federal do Trabalho Ivete Ribeiro, os Desembargadores da 6ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-SP) reconheceram a aquisição do direito à estabilidade provisória em discussão.

Na ação, a autora, dispensada sem justa causa, alegou que houve comprovação, nos autos, de seu estado gravídico no momento da dispensa, e que, ainda que assim não fosse, a gravidez no curso do aviso prévio indenizado também lhe daria o direito à estabilidade provisória.

Em seu voto, a Desembargadora Ivete Ribeiro destacou: “Seja como for, considerando-se a dispensa sem justa causa (…), tem-se que o início da gravidez se deu antes da dispensa ou no curso do período do aviso prévio indenizado, o que não impede a aquisição do direito à estabilidade provisória em discussão, uma vez que nos termos do §1º, do artigo 487 da CLT, o aviso prévio, ainda que indenizado, integra o tempo de serviço para todos os efeitos legais.”

A Desembargadora também salientou que “o fato de a autora não ter ciência de seu estado gravídico em nada altera a situação, posto que a lei não coloca qualquer requisito nesse sentido.”

Dessa forma, os Desembargadores Federais da 6ª Turma decidiram condenar a ré ao pagamento de indenização pelo período estabilitário (desde a dispensa até 5 meses após o parto).

O acórdão dos Desembargadores Federais do Trabalho da 6ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-SP) foi publicado em 07/03/2008, sob o nº Ac. 20080146907 – Processo nº TRT-SP 00075.2007.013.02.00-0


FONTE:  TRT-SP, 15 de abril de 2008

DANOS MORAIS E MATERIAISSeguradora indeniza cliente por negar cobertura de sinistro

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DECISÃO:  * TJ-SC  –  A 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina manteve sentença da Comarca de São José que condenou a seguradora Sul América ao pagamento de indenização por danos morais e materiais a Vanderlei de Souza, devido à negativa de cobertura por um incêndio involuntário em sua residência.

Entretanto, proveu parcialmente o recurso impetrado pela empresa e reduziu pela metade o valor por danos morais – R$ 100 mil – arbitrado em 1º grau. Assim, a Sul América pagará um total de R$ 90 mil ao proprietário do imóvel. Em suas razões, a empresa alegou que o contrato excluía a cobertura de incêndio residencial em "imóveis localizados em favelas".

Porém, segundo os autos, os danos não se relacionaram à violência urbana, mas sim, a uma ocorrência involuntária, possível em qualquer localidade. A relatora do processo, desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Ritta, considerou absurda e preconceituosa a contestação da seguradora.

Para a magistrada, se há limitações no contrato de seguro, é incorreto a empresa firmá-lo, receber os pagamentos e negar uma posterior indenização, com base em tais restrições. Afinal, vistorias são feitas antes de assegurar os imóveis contra sinistros.

"Não é esse o tratamento que merece um cidadão que, mesmo com humildes rendimentos, cumpre suas obrigações e paga o prêmio, nem é correto negar que alguém assim tratado suporte abalo moral indenizável", finalizou a magistrada. A decisão foi unânime. (Apelação Cível n. 2007.039489-8)


FONTE:  TJ-SC,  16 de abril de 2008.