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Eu confio em você

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*João Baptista Herkenhoff

A Câmara dos Deputados aprovou mudanças no Código Penal. Uma dessas alterações estabelece o monitoramento eletrônico de presos que recebam o benefício da liberdade provisória. Veremos neste artigo que, em algumas situações, a palavra tem mais poder que as algemas.

Na época em que fui juiz, um empregado da antiga companhia telefônica do Espírito Santo foi preso com uma quantidade grande de tóxico, motivo pelo qual o flagrante policial foi lavrado como sendo de tráfico. Comparecendo ao fórum de Vila Velha, o indiciado alegou que comprava uma quantidade maior de entorpecente para não sofrer exploração no preço. Era, entretanto, apenas usuário e só fumava nos fins de semana.

Acreditei de imediato na sua palavra. Mas era preciso que viessem para os autos os documentos comprobatórios do que dizia. O processo é público, os atos do juiz estão sujeitos a reexame do Tribunal. Não basta que o juiz esteja pessoalmente convencido de um fato para que esse convencimento dê embasamento a sua decisão. É preciso que os elementos para a decisão estejam dentro do processo. Expliquei tudo isso ao preso e determinei que fosse aberta vista dos autos à Defesa para a juntada dos documentos necessários.

O diligente advogado, já no dia seguinte, dava entrada no seu petitório, acompanhado da documentação adequada. Determinei a imediata volta do preso a minha presença.

Sempre acreditei no poder da palavra. Aquele momento era importante demais para ser um momento burocrático. Pedi ao preso que se levantasse e encarando-o, eu o chamei pelo seu prenome e disse: “Fulano, eu confio em você”. Ele respondeu firmemente: “Pode confiar, doutor.”

Concedi-lhe então liberdade, através de despacho oral. Oficiei à empresa pedindo que não o dispensasse. O ofício foi discutido na diretoria. Alguns alegavam que para cada vaga de trabalho havia uma dezena de candidatos, a empresa não tinha motivo para manter maconheiros nos seus quadros. Outros ponderaram que se tratava de um pedido do juiz e que assim devia ser acolhido. Prevaleceu a opinião favorável à manutenção do empregado.

Alguns anos depois, quando realizei uma pesquisa universitária sobre prisão e liberdade, a pessoa beneficiada pela oportunidade concedida voltou a minha presença para ser ouvido, pois a pesquisa consistia justamente em verificar o êxito ou fracasso de medidas alternativas ao aprisionamento.

Depois de responder todas as perguntas que lhe foram feitas, o antigo suposto traficante abre uma caixinha e retira dela uma medalha de “honra ao mérito”, outorgada a sua pessoa quando completou dez anos de casa. Entrega-me a medalha dizendo:

“Doutor, esta medalha lhe pertence. Se naquela tarde eu tivesse ficado preso, garanto ao senhor que viraria um bandido.”

Quis recusar a oferta, mas ele disse, peremptoriamente, que não voltaria para casa com a medalha. Está comigo até hoje, guardada num lugar especial.

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

João Baptista Herkenhoff é Livre-Docente da UFES – professor do Mestrado em Direito, e escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br

 


Aberturas de créditos extraordinários. Exame da MP nº 405/07. Efeitos da decisão do STF

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* Kiyoshi Harada 

Lançar mão de medida provisória para abertura de crédito extraordinário, a fim de cobrir gastos previsíveis, configura autêntico desvio de finalidade

A MP nº 405, de 18 de dezembro de 2007, abriu um crédito extraordinário em favor da Justiça Eleitoral e de diversos órgãos do Poder Executivo, no valor global de R$ 5.455.677.660,00, para fins especificados nos Anexos I e III.

Só que basta simples exame ocular do artigo 2º dessa MP, onde estão mencionadas as diversas fontes de recursos necessários à abertura desse crédito extraordinário (superávit do balanço patrimonial da União de 2006, excesso de arrecadação, anulação parcial de dotações, ingresso de recursos provenientes de operações de crédito etc.), para constatar, imediatamente, que o legislador palaciano confundiu hipóteses de abertura de crédito adicional suplementar (anulação parcial de outras dotações ou recursos provenientes de operações de crédito etc.), de abertura de crédito adicional especial (superávit financeiro do exercício anterior, excesso de arrecadação etc.) e de abertura de crédito extraordinário, esta limitada à hipótese do § 3º do art. 167 da CF, tendo como fonte, a arrecadação de tributos de natureza temporária (empréstimos compulsórios, na forma do art. 148, I e impostos extraordinários na forma do art. 154, II da CF).

Os créditos suplementares servem para reforçar a dotação existente. Os créditos especiais destinam-se a atender despesas para as quais não haja dotação específica, o que não significa despesas imprevisíveis. Significa apenas que o governante não incluiu determinadas despesas como prioritárias no momento da elaboração da proposta orçamentária. Os créditos extraordinários destinam-se a atender despesas imprevisíveis e urgentes, como em caso de guerra, comoção interna ou calamidade pública, nos precisos termos do art. 41, III da Lei nº 4.320/64, recepcionado pela Constituição de 1988, que dispõe em seu artigo 167, § 3º:

"A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62".

A situação de calamidade pública pode surgir da manifestação de fenômenos da natureza, como tufão, terremoto etc., assim como de uma epidemia, por exemplo. O importante é que a superveniência do fato a ensejar despesas extraordinárias não seja previsível ao senso do homem comum.

Não se pode confundir relevância e urgência, requisitos para edição de medida provisória, com os requisitos constitucionais para abertura de crédito extraordinário, que além da urgência pressupõe a imprevisibilidade do evento causador da despesa extraordinária.

O Executivo usou da competência que tinha para fazer uma coisa e fez outra, incorrendo na prática de desvio de finalidade. Como se sabe, o desvio de finalidade detecta-se pelo exame da motivação que, no caso, sequer pode considerar como existente, consoante se verá.

Aliás, já está se tornando moda a prática de ato imotivado, como no caso do recente aumento do IOF por decreto, para que, posteriormente, se impugnado o ato, sejam buscadas razões válidas, antes não cogitadas.

Porém, neste caso sob exame há exposição de motivos do senhor Ministro da Fazenda, que consta da mensagem de encaminhamento ao senhor Presidente da República. Só que nenhuma das razões invocadas se refere às hipóteses autorizadoras da abertura de crédito extraordinário, o que equivale à prática de ato imotivado. As despesas fixadas nos Anexos I e III nenhuma pertinência têm com situações de imprevisibilidade e urgência como no caso de guerra, comoção interna, calamidade pública ou qualquer outro evento imprevisível, que pudesse justificar e legitimar a abertura de crédito extraordinário.

Muito ao contrário, a exposição de motivos, de um lado, refere-se às despesas que se classificam como de custeio e de subvenção econômica, pertencentes à categoria econômica de despesas correntes, e de outro lado, refere-se às despesas de investimentos e de inversões financeiras, que integram a categoria econômica de despesas de capital. Sob a função programática 26 305 0225 20BA, o Anexo I contempla, por exemplo, despesas concernentes a "prevenção, preparação e enfrentamento para a pandemia de influenza", o que implica confissão de que o fato não era imprevisível. Outros itens referem-se à continuidade de projetos, obras e serviços em andamento. A confusão é generalizada. E a balbúrdia é total. Não há um único item de despesas que possa ser enquadrado na hipótese de abertura de crédito extraordinário, tendo como fonte os tributos de natureza temporária.

O superávit do orçamento corrente, utilizado indevidamente para abertura de crédito extraordinário, constitui, nos precisos termos do § 2º do art. 11 da Lei nº 4.320/64, receitas de capital do exercício corrente. Tudo indica que a elaboração do projeto de medida provisória foi norteada por um critério puramente político, sem a devida assistência técnica. O autor do projeto de medida provisória atuou como se estivesse elaborando uma proposta orçamentária. Confundiu-se o caráter político da proposta de Lei Orçamentária Anual, com o aspecto técnico-jurídico da execução da Lei Orçamentária Anual.

Por tais razões, o Plenário do STF, alterando, em boa hora, o entendimento anterior, por maioria de votos (6 x 5) suspendeu a execução da MP 405/07, com efeito ex nunc, na sessão de julgamento do dia 14 de maio de 2008.

Essa MP nº 405/07, entretanto, já havia sido convertida na Lei nº 11.658, de 18 de abril de 2008. É claro que a conversão, por si só, não purga o vício da medida provisória, pelo que essa lei de conversão, mera formalidade, também acha-se atingida pela decisão da Corte Suprema. Por isso, ela não pode ser aplicada, enquanto em vigor a medida liminar concedida nos autos da Adin nº 4048-DF, Rel. Min. Gilmar Mendes.

Outras medidas provisórias haviam sido editadas nos mesmos moldes da MP nº 405/07 antes do julgamento da Adin 4048. Ente elas podemos citar: MP nº 406, de 21-12-2007 (abre crédito extraordinário de R$1.250.733,499,00 em favor de órgãos do Poder Executivo); MP nº 408, de 26-12-2007, convertida na Lei nº 11.669/08 (abre crédito extraordinário de R$3.015.446.182,00 a diversos órgãos do Poder Executivo); MP nº 409, de 28-12-2007, convertida na Lei nº 11.670/08 (abre crédito extraordinário de R$760.465.000,00 para diversos órgãos do Poder Executivo); MP nº 420, de 26-02-2008 (abre crédito extraordinário de R$12.500.000,00 para atender encargos Financeiros da União); MP nº 423, de 04-04-2008 (abre crédito extraordinário no valor de R$613.752.057,00 a favor dos Ministérios dos Transportes e da Integração Nacional); MP nº 424, de 16-04-2008 (abre crédito extraordinário no valor de R$1.816.577.877,00 a favor de diversos órgãos do Poder Executivo); e MP nº 430, de 14-05-2008 (abre crédito extraordinário no valor de R$7.560.000.000,00 a favor do Ministério do Planejamento).

Embora a medida liminar em sede de Adin não tenha efeito vinculante, todas essas medidas provisórias e as leis de conversão acham-se atingidas pela decisão da Corte Suprema, que assentou a tese de que a abertura de crédito extraordinário deve submeter-se às exigências do § 3º, do art. 167 da CF, não bastando os requisitos da urgência e da relevância para edição de medida provisória, visto que, a imprevisibilidade do evento constitui requisito ínsito na abertura de crédito extraordinária, e nem precisaria estar expresso no texto constitucional como está. Portanto, deve haver imprevisibilidade e urgência como as despesas decorrentes de guerra, comoção interna ou de calamidade pública provocada por tufão, terremoto etc., ou decorrente de uma epidemia, como imposição constitucional. Padecem, portanto, essas medidas provisórias do mesmíssimo vício já proclamado nos autos da Adin 4048.

Em relação à MP nº 430/08, por ter sido publicada no DOU do dia 14-5-2008, mesma data do julgamento da Adin 4048, não vemos, por ora, afronta à decisão do STF, como noticiado por alguns veículos de comunicação.

Acrescente-se que os créditos extraordinários abertos por medidas provisórias editadas no último quadrimestre do exercício de 2007 deverão ser reabertos nos limites de seus saldos no exercício financeiro de 2008 (art. 167, § 2º da CF). A utilização desses saldos remanescentes encontra-se atingida pela decisão da Corte Suprema.

O excesso de arrecadação (saldo positivo das diferenças acumuladas mês a mês entre a arrecadação prevista e a realizada, deduzida a importância correspondente aos créditos extraordinários acaso abertos no exercício) não é para ser gasto a qualquer custo, de forma aleatória. Esse excesso significa que está acentuando o nível de imposição tributária além das necessidades para cobrir os gastos planejados, sinalizando necessidade de diminuir a transferência compulsória de riquezas do setor privado para o setor público, ou seja, deixar mais oxigênio ao setor produtivo. Daí a nossa idéia do gatilho tributário, apresentada na discussão do Projeto de Reforma Tributária, para obrigar o governo a reduzir a carga tributária aos limites que seriam fixados na Constituição, Federal, em termos de percentual sobre o PIB nacional, caracterizando o excesso como confisco, vedado pelo art. 150, IV da CF.

A soma de vultosos recursos alocados a título de abertura de crédito extraordinário, por inúmeras medidas provisórias, inclusive por meio de desvio das verbas fixadas no orçamento aprovado (anulação parcial de dotações) representa, na prática, a elaboração de uma Lei Orçamentária Anual alternativa, à margem do respectivo processo legislativo prescrito na Carta Política, alijando a representação popular no direcionamento das despesas públicas, o que é um fato de extrema gravidade. Por isso, o Supremo Tribunal Federal não poderia continuar indiferente, preso a sua antiga jurisprudência no sentido de que descabe a Adin em se tratando de lei ou ato normativo de caráter concreto. Como guardião da Constituição, cabe ao STF zelar pelo cumprimento de preceitos constitucionais concernentes à elaboração e execução das leis do Plano Plurianual (PPA), da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da Lei Orçamentária Anual (LOA).

Preocupa-nos imensamente a mutilação sistemática da Lei Orçamentária Anual, bem como a utilização de créditos extraordinários para atender, de forma embaralhada, tanto as despesas de custeio e de subvenções econômicas (despesas correntes), como as despesas com inversões financeiras e de investimentos (despesas de capital), conforme indicadas nos Anexos I e III da aludida MP 405/07. Isso acaba inviabilizando os mecanismos de controle e de fiscalização da execução orçamentária. Por isso, esse fato configura crime de responsabilidade, previsto no art. 85, VI da CF. Se vier a ser descumprida a decisão da Corte Suprema caracterizará o crime de responsabilidade na forma do inciso VII do art. 85 da CF. Outrossim, praticar ato visando fim proibido em lei ou diverso daquele previsto na regra de competência caracteriza ato de improbidade (art. 11, I, da Lei nº 8.429/92).

Mesmo considerando a melhor das intenções do governo na execução dessas despesas extraordinárias, o fato é que está havendo atropelo das normas orçamentárias ao arrepio dos dispositivos constitucionais e da lei de regência da matéria.

O que falta no governo é um plano nacional de desenvolvimento refletido na Lei do Plano Plurianual, para ser executado ao longo dos exercícios financeiros de conformidade com os recursos alocados pela Lei Orçamentária Anual, hoje, transformada em uma peça de ficção, quando deveria refletir o plano de ação governamental, em obediência ao princípio da legalidade das despesas, corolário do princípio da legalidade tributária.

Quando não se tem um plano de governo seguido de fixação de despesas específicas para assegurar a sua execução, não há como elaborar a Lei Orçamentária Anual com a característica própria, ou seja, caráter concreto. Essa lei orçamentária passa a ter caráter genérico e abstrato, completamente divorciada dos planos de governos que não existem ( o PAC é um mini-plano, sem caráter nacional). O orçamento passa a ser uma mera peça, de natureza abstrata, para cumprir as formalidades constitucionais. Entretanto, ironicamente, leva meses de debates, discussões e negociações no Parlamento Nacional para sua aprovação, sempre com atraso. Houve um ano em que, quando o orçamento anual foi aprovado, o exercício a que se referia já estava quase findando, numa eloqüente prova de sua pouca utilidade. O Executivo usa o dinheiro público de acordo com as prioridades que vão surgindo na cabeça do governante a cada dia que passa, observando a realidade existente no decorrer de suas andanças, em contato com lideranças políticas regionais e locais. Esse retorno ao passado remoto não encontra eco no Direito Financeiro, nem nos preceitos constitucionais e legais para elaboração e execução de normas orçamentárias. As diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal, estabelecidos de forma regionalizada na lei do PPA (§ 1º, do art. 165 da CF), bem como as metas e prioridades compreendidas na LDO com a inclusão de despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente (§ 2º do art. 165 da CF) não passam de meras peças de ficção para simples cumprimento de formalidades constitucionais, tanto quanto a LOA que, na prática, vem sendo ignorada.

Daí a DRU, que coloca mais de R$103 bilhões em mãos do Executivo, sem especificação de elementos de despesas para serem gastos a sua discrição, as transposições, os remanejamento ou transferências de uma categoria de programação para outra, ou de um órgão para outro, de forma desordenada, bem como as infindáveis aberturas de créditos extraordinários, sem que o país estivesse em guerra, em estado de comoção interna ou em estado de calamidade pública, ou em outras situações decorrentes de fatores imprevisíveis aos olhos do homem comum.

Considerando que o atual governo está no segundo mandato, nem mesmo a abertura de crédito especial, muito menos crédito extraordinário, poderia justificar o uso da medida provisória, reservado para casos urgentes e relevantes. Os créditos abertos para atendimento de despesas previstas nos Anexos I e III nada têm de imprevisíveis, pois constituem despesas regulares, usuais e normais mesmo aquelas concernentes a investimentos, que deveriam ter sido atendidas, anualmente, pelos recursos alocados nas leis orçamentárias anuais, em harmonia com o disposto na Lei de Diretrizes Orçamentárias. A omissão e o descaso da autoridade governamental ao longo do tempo, com total desprezo à Lei de Diretrizes Orçamentárias. não poder servir de base para invocação de urgência e relevância, para o uso da medida legislativa extrema e excepcional, a fim de implementar, repentinamente, obras e serviços que deveriam ter constado do plano de governo, refletido na Lei Orçamentária Anual.

Enfim, a desordem generalizada que reina na União em matéria orçamentária, não só, inviabiliza a ação de órgãos competentes (Congresso Nacional e TCU) na missão de fiscalizar e controlar a execução orçamentária, como também, torna quase impossível ao Chefe do Executivo apresentar a sua prestação de contas anual, de conformidade com as normas orçamentárias em vigor, o que é muito ruim em termos de transparência, de publicidade, de legalidade, de moralidade, de impessoalidade e da própria preservação do Estado Democrático de Direito.

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

KIYOSHI HARADA:  jurista, professor e especialista em Direito Financeiro e Tributário pela USP

 


DESCONTO INDEVIDO DEVE SER RESTITUÍDOEmpresa não pode transferir a empregado prejuízos causados por perda de validade de produtos

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DECISÃO:  *TRT-MG  –  A 5ª Turma do TRT-MG manteve sentença que condenou uma reclamada a restituir ao empregado os valores relativos aos produtos perecíveis que se deterioravam e eram indevidamente descontados do seu salário. De acordo com o relator do recurso, juiz convocado Paulo Maurício Ribeiro Pires, ainda que previstos no contrato de trabalho, os descontos realizados nos salários são ilegais, pois isso é vedado pelo artigo 462 da CLT, que ressalva apenas os casos de dano causado pelo empregado e com dolo (intenção de lesar).

“A única exceção à regra da integridade salarial é quando o prejuízo sofrido pelo empregador resulte de atitude negligente ou desidiosa daquele que estava a lhe oferecer serviços, o que deve ser objeto de prova inquestionável. Mas desse ônus não se desincumbiu a reclamada” – ressalta o juiz. Ao contrário, a própria testemunha da reclamada declarou que a empresa fornecia produtos com data de validade inferior a 30 dias, mercadoria de alta perecibilidade. Assim, no entender do relator, não pode a empregadora onerar o empregado com o prejuízo por eventuais perdas de mercadorias. 

No caso, não houve qualquer evidência de que os produtos descontados do salário do empregado tenham se deteriorado por descuido ou desatenção do reclamante, ficando sem respaldo a alegação da defesa de que ele não teria efetuado a necessária reposição antes de vencida a validade. O relator conclui salientando que os riscos do empreendimento jamais podem ser transferidos ao trabalhador.  (RO nº 01235-2007-011-03-00-0)


FONTE:  TRT-MG, 16 de maio de 2008.

 

DANOS MORAIS, MATERIAIS E PENSÃO ALIMENTÍCIAFamilias de assaltantes indenizarão viúva de comerciante

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DECISÃO:  *TJ-SC  –  A 2ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça confirmou sentença da Comarca de Itajaí que condenou as famílias de Rafael Rodrigues da Silva e Cristiano dos Santos Cardoso, na época adolescentes, ao pagamento solidário de R$ 42 mil por danos morais e materiais, além de pensão alimentícia mensal, em benefício de Rosa Delfino de Souza e seus quatro filhos, cujo marido e pai foi assassinado.

Em 2002, durante assalto ocorrido no interior de seu estabelecimento comercial, Manoel João de Souza foi baleado e morto após relutar em entregar o dinheiro aos bandidos. Rafael, ainda um adolescente, foi o autor do disparo, efetuado com revólver emprestado por seu amigo Cristiano – que deu cobertura ao assalto no lado de fora do estabelecimento.

No recurso ao TJ, as famílias Silva e Cardoso tentaram se eximir da responsabilidade dos danos resultante dos atos ilícitos praticados pelos filhos. Os pais de Cristiano alegaram que o filho não contribuiu para o crime, pois fora enganado pelo amigo sobre o motivo da utilização da arma.

"Independentemente da finalidade para a qual Cristiano acreditasse que a arma seria usada, o fato é que ele assumiu o risco de que seu amigo Rafael viesse a atirar em alguém, como de fato o fez", explicou o relator do processo, desembargador Newton Janke. Já a mãe de Rafael, por sua vez, alegou que o filho não se encontrava mais em sua companhia e sob sua autoridade há quatro anos.

"Ao contrário do que se passa na esfera penal, para efeitos civis, a culpa acarreta a responsabilização reparatória pelos danos daí decorrentes", explicou o magistrado, ao lembrar que Rafael foi condenado pela prática do crime de latrocínio, por sentença transitada em julgado. A decisão foi unânime. (Apelação Cível n. 2004.032400-5)


FONTE:  TJ-SC,  16 de maio de 2008.

 

NEGATIVAÇÃO INDEVIDA SERÁ INDENIZADARegistro de inadimplente gera indenização à consumidora

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DECISÃO:  *TJ-RS  –  O Banco Múltiplo Ibi S.A. deve pagar indenização por danos morais à consumidora que foi registrada indevidamente em cadastros de inadimplentes. A 9ª Câmara Cível do TJRS manteve a reparação R$ 7,6 mil arbitrada em 1º Grau. O Colegiado reconheceu que a autora da ação teve os documentos clonados e utilizados por terceiros para compras em diversos estabelecimentos comerciais, inclusive em loja administrada pela instituição financeira.

O banco apelou da sentença de procedência da ação declaratória de inexistência de débito movida pela consumidora, cumulada com indenização por danos morais. Concordou com a inexistência do débito, mas sustentou a necessidade de prova dos alegados prejuízos morais. A autora do processo também recorreu, solicitando o aumento do valor indenizatório para recompor os prejuízos sofridos.

Para o relator, Desembargador Tasso Caubi Soares Delabary, a insurgência do Banco Ibi não tem qualquer pertinência. “Consoante firme entendimento doutrinário e jurisprudencial, os danos decorrentes de inscrição indevida em órgãos de restrição de crédito são in re ipsa, ou seja, decorrem do próprio fato.” Nesse sentido, não precisa de comprovação.

Ressaltou que o banco admitiu a prática de estelionato, concordando com a declaração de inexistência da dívida e a retirada do nome da demandante do Serviço de Proteção ao Crédito e Serasa. Contudo, frisou, não aceita a condenação indenizatória. 

O Desembargador Tasso entendeu ser adequado o patamar em que foi arbitrado o valor indenizatório. Salientou que a “quantia observa os princípios da proporcionalidade e razoabilidade e natureza jurídica da indenização, que deve constituir uma pena ao causador do dano e, concomitantemente, compensação ao lesado, além de cumprir seu cunho pedagógico sem caracterizar enriquecimento ilícito.”

Votaram de acordo com o relator, os Desembargadores Marilene Bonzanini Bernardi e Odone Sanguiné.  Proc. 70023574775


FONTE:  TJ-RS,  15 de maio de 2008.

 

NEGLIGÊNCIA MÉDICA GERA INDENIZAÇÃO: Paciente que contraiu infecção hospitalar deve ser indenizada

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DECISÃO:  *TJ-RS  –  Em decisão unânime, a 9ª Câmara Cível do TJRS reformou sentença, condenando o Hospital Fêmina a indenizar paciente que contraiu infecção hospitalar no pós-operatório de cesariana. Como conseqüência, a mulher precisou ser submetida à histerectomia, ou seja, extirpação do útero e trompas uterinas. O procedimento foi realizado em outro estabelecimento hospitalar, deixando-a estéril aos 21 anos de idade. Os magistrados arbitraram a reparação por danos morais em R$ 35 mil, com correção monetária pelo IGP-M e juros legais de 12% ao ano.

Aplicando Código de Defesa do Consumidor, o Colegiado afirmou que o dever indenizatório dos hospitais ou clínicas, por danos causados aos consumidores, decorrem de defeitos na prestação de serviços da área de saúde.

Recurso

A autora da ação apelou da sentença de improcedência de 1º Grau, que entendeu não ter sido comprovado defeito na prestação do serviço do réu.

Conforme o relator, Desembargador Odone Sanguiné, prova documental demonstra que a recorrente realizou o acompanhamento pré-natal de forma regular ao longo de toda gravidez e ingressou no hospital sem qualquer indício de quadro infeccioso. Segundo boletins médicos, no início da infecção ela procurou o hospital e apenas recebeu curativo local, sendo encaminhada para casa.

“Resta incontroverso que, na ocasião, não foi tomada qualquer providência no sentido de debelar a infecção.” O Hospital Fêmina somente realizou exames investigativos e tratamento farmacológico, quando a paciente retornou decorridos quatro dias, constatando-se a infecção na parede abdominal pós-operatória.

Salientou que laudo pericial conclui que infecção hospitalar é aquela que não está presente nem incubando à admissão no hospital. Ela se manifesta até 48h após a alta do CTI. Também pode surgir em 30 dias após cirurgia, sem colocação de prótese, ou um ano, com colocação de prótese. Para o Desembargador Odone, no caso, é possível aplicar esses conceitos estabelecidos pelo Centro de Controle de Doenças (CDC, EUA). “Trata-se de uma infecção hospitalar, com comprometimento de partes moles e órgãos ginecológicos.”

Danos

Ressaltou que a extração de parte do aparelho reprodutor, deixa a mulher mais sujeita a sofrer tromboses, podendo ainda ser um fator de aumento do risco de enfartes e causar sintomas tais como fadiga, ganho de peso, dores articulares, alterações urinárias e depressão.

Afirmou que o valor arbitrado auxiliará a demandante a recompor seu patrimônio moral, vilipendiado em sua esfera íntima pelo demandado. “Ainda que a dor relativa à perda do aparelho reprodutor se afigure sabidamente incalculável.” Acrescentou que o valor não enseja enriquecimento indevido e serve para dissuadir a ré de cometer novos ilícitos.

Votaram de acordo com o relator, os Desembargadores Iris Helena Medeiros Nogueria e Tasso Caubi Soares Delabary.  Proc. 70022921555


FONTE:  TJ-RS, 16 de maio de 2008.

PRINCÍPIO DA IGUALDADE REPELE DISCRIMINAÇÃOCandidato tatuado segue em concurso

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DECISÃO:  *TJ-MG  –   “O edital que discrimina, genericamente, o candidato portador de tatuagem, estigmatizando-o, por si só, como inapto no exame de saúde por ‘doença ou fator incapacitante’, revela preterição dos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e igualdade, ainda que a vedação tenha previsão administrativa”. Com este argumento, a Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais concede a segurança a favor de R.G.S. contra o Centro de Recrutamento da Policia Militar de Minas Gerais (PMMG).

De acordo com os autos, R.G.S. era candidato em um concurso da PMMG e foi considerado inapto nos exames preliminares de saúde por ter uma tatuagem no braço esquerdo. Diante disso, o candidato impetrou mandado de segurança pleiteando sua permanência no certame.

No entendimento do relator do processo, desembargador Nepomuceno Silva, a “proibição de procedimento no certame atenta contra o princípio da igualdade, já que o candidato somente foi desclassificado por ostentar uma tatuagem, advindo daí seu direito liquido e certo”.

O relator do processo ainda ressaltou que o candidato está sendo submetido a procedimento com laser para a remoção da tatuagem e atribuir à tatuagem a qualificação de “doença de fator incapacitante” é um exagero.

Os relatores Mauro Soares de Freitas e Maria Elza votaram de acordo, confirmando sentença proferida pelo juiz da Primeira Vara Cível da comarca de Piumhi (centro-oeste do estado), Rogério Mendes Torres. Nº processo: 1.0515.07.027607-3/001(1)


FONTE:  TJ-MG, 16 de maio de 2008.

CRITÉRIOS DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORALIndenização deve seguir critério da razoabilidade e proporcionalidade

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DECISÃO:  *TJ-MT  –  Na fixação do quantum devido a título de danos morais, deve ser levada em consideração a condição social das partes, o grau de culpa da causadora do dano, a extensão do dano causado, bem como a dupla finalidade da indenização, qual seja, abrandar a dor da vítima e punir a conduta ilícita da outra parte. Com esse entendimento, a Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça reduziu de R$ 17,5 mil para R$ 8 mil o valor da indenização por danos morais a ser paga pela Brasil Telecom S.A. a um homem que teve o nome indevidamente incluído no cadastro de inadimplentes (recurso de apelação cível nº. 80941/2006).

O nome dele foi incluído no cadastro de inadimplentes depois que um fraudador abriu uma assinatura telefônica em seu nome, instalada num endereço desconhecido. No recurso, a empresa argumentou que não teve responsabilidade pelo evento danoso, pois foi levada a erro por terceira pessoa, sendo vítima tanto quanto o apelado, já que não podia prever a fraude realizada e que não há proibição para a contratação do serviço de telefonia por telefone. Requereu a reforma da sentença de Primeira Instância, a fim de que fosse excluída sua condenação ou, alternativamente, que fosse reduzido o valor da condenação.

Segundo o relator do recurso, juiz Alberto Pampado Neto, a quantia da indenização fixada em Primeira Instância foi excessivo, já que a condenação deve seguir os critérios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Para o magistrado, não é o valor alto que possibilitará o cumprimento da função punitiva e educativa da condenação, mas sim a adoção de medidas que coíbam que tais valores sejam repassados para o custo operacional da empresa ou integrem as planilhas de custo que servem para a composição da tarifa. Ele estacou que o valor da indenização deve ser suportado integralmente pelo lucro da empresa causadora do dano.

Em relação ao reconhecimento da obrigação de indenizar e da existência do dano moral, o magistrado assinalou que a sentença apelada não merece reparos. Ele afirmou que não procede a alegação de que a Brasil Telecom não agiu com culpa, "pois além dessa fraude ser muito bem conhecida por ela, tem a obrigação de tomar todas as medidas necessárias a impedir que fraudadores se utilizem de dados de terceiros para obter a linha telefônica em nome daquele. (…) É certo que a empresa de telefonia deve responder pelos danos que tal prática venha causar ao consumidor que teve seus dados utilizados indevidamente, já que não teve ele qualquer participação na fraude".

A Brasil Telecom está proibida de computar o valor da indenização na planilha de custos, destinada à composição da tarifa pelos serviços que presta. Os desembargadores Jurandir Florêncio de Castilho (revisor) e o Licínio Carpinelli Stefani (vogal) também participaram do julgamento.


FONTE: TJ-MT, 16 de maio de 2008.

 

Defensores Públicos: exigência democrática

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*João Baptista Herkenhoff

A Constituição da República diz que a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado. Isto porque a Defensoria Pública é o órgão a que cabe a orientação jurídica e a defesa dos pobres. Se a estes não se assegura assistência eficiente, nega-se o princípio democrático do acesso à Justiça.

A Defensoria Pública presta orientação jurídica a cidadãs e cidadãos vulnerabilizados socialmente. Promove a defesa dos hipossuficientes em todas as instâncias. Assegura a seus patrocinados a busca e o exercício dos direitos constitucionais e legais, condição indispensável ao exercício da Cidadania.

O que a instituição da Defensoria Pública corporifica é um princípio democrático. O pobre tem direito a assistência jurídica pronta, completa e de qualidade. O Estado tem o dever de dar provimento pleno a esse direito.

Antes da instituição da Defensoria Pública, o Juiz de Direito ou a OAB designavam um “advogado dativo” para defender as pessoas que não podiam suportar o pagamento de honorários profissionais.

Muitos advogados fizeram-se credores do reconhecimento da sociedade pela dedicação com que se empenhavam na defesa dos pobres. O mesmo aconteceu com muitos médicos. Ficaram na memória da posteridade pelo zelo no serviço prestado aos humildes quando praticamente inexistia a Medicina pública.

Embora a grandeza ética dessas pessoas deva ser reconhecida, não se pode daí concluir que o Poder Público possa esquivar-se da obrigação de garantir amparo jurídico e médico aos pobres transferindo esse ônus a profissionais liberais.

Não obstante a importância da Defensoria Pública como instrumento de cidadania, alguns Estados da Federação ainda não dispõem de um quadro de Defensores Públicos.

Em outros Estados existe Defensoria, mas seu funcionamento é precário.

No Estado do Espírito Santo, por exemplo, os Defensores Públicos pedem socorro. Reivindicam o aumento do quadro de defensores. Observam que dos setenta e oito municípios capixabas apenas vinte e nove contam com a presença da Defensoria Pública. Alegam que a Defensoria Pública não possui uma estrutura de apoio administrativo. Ponderam que a remuneração dos defensores é insuficiente, pois percebem apenas um quarto do que ganham juízes e promotores.

O pleito dos Defensores Públicos, a meu ver, merece acolhimento.

A questão da Defensoria Pública toca-me emocionalmente porque há quase cinqüenta anos, ou seja, em nove de junho de 1960, tive a oportunidade de defender sua essencialidade como instrumento democrático. A tese foi veiculada na “Folha da Cidade”, um pequeno jornal que circulava em Cachoeiro de Itapemirim, cidade que sempre foi campo fértil para acolher e fazer germinar idéias nobres.

 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

JOÃO BAPTISTA HERKENHOFF: Livre-Docente da UFES – professor do Mestrado em Direito, e escritor. E-mal: jbherkenhoff@uol.com.br

 

Breve análise dos sistemas processuais penais

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*Gisélle Maria Santos Pombal Sant’Anna   

1. Introdução

O presente artigo tem por escopo analisar os sistemas processuais penais, apontando a distinção fundamental entre os mesmos, além de enumerar suas características secundárias.

De início, cabe ressaltar que, atualmente, não existem sistemas processuais penais puros.[1] Destarte, os processos penais adotam características tanto do sistema acusatório, como do inquisitório, se caracterizando como um sistema processual misto.

Contudo, esclarece Jacinto Coutinho, que a existência do sistema misto só poderá ser admitida formalmente, pois, segundo esse autor, sistema é um “conjunto de temas jurídicos que, colocados em relação por um princípio unificador, formam um todo orgânico que se destina a um fim.”[2]

Com efeito, os sistemas acusatório e inquisitório apresentam os princípios dispositivo e inquisitivo como unificadores, respectivamente, não sendo possível conceber a existência de um princípio unificador misto o qual sustentaria o denominado sistema misto.[3]

No que tange à distinção fundamental entre os sistemas processuais penais, a maioria da Doutrina brasileira afirma que a principal característica do sistema acusatório é a distribuição das funções de acusar, julgar e defender entre sujeitos distintos, enquanto o sistema inquisitório apresenta a concentração das funções acusatória e de julgamento nas mãos do juiz.[4]

Contudo, não basta a separação das referidas funções entre órgãos distintos, sendo relevante a análise de outros aspectos para se considerar um sistema processual penal como acusatório ou inquisitório, conforme será abordado adiante.[5]

Em relação às características secundárias de tais sistemas, a Doutrina apresenta um certo consenso ao enumerá-las, sendo que as maiores discussões ocorrem em torno do critério determinante para que um sistema seja considerado acusatório ou inquisitório. 

2. Distinção Fundamental

Conforme afirmado alhures, para a maioria da Doutrina, a separação das funções de acusar, julgar e defender entre órgãos distintos é o critério determinante para se considerar um sistema processual penal como acusatório ou inquisitório.

Com efeito, para Gustavo Badaró, a condição sine qua non para o reconhecimento de um processo penal acusatório é a separação das citadas funções, com as partes em igualdade de condições e julgamento por um juiz imparcial.[6]

Contudo, entende-se que a divisão das atividades de acusar, julgar e defender, é importante para o sistema acusatório, porém não pode ser considerada, por si só, para se determinar a distinção entre os sistemas processuais penais. Isso porque “não basta termos uma separação inicial, com o Ministério Público formulando a acusação e depois, ao longo do procedimento, permitir que o juiz assuma um papel ativo na busca da prova […]”[7], devendo este permanecer eqüidistante das partes (actum trium personarum), para que não haja comprometimento da sua imparcialidade. [8]

                 Se o juiz determinar a produção de uma prova de ofício, irá desenvolver uma consideração psicológica acerca da mesma, antevendo o resultado que dela pode advir.

                 Produzida tal prova, em sua decisão, o órgão julgador, provavelmente, apenas irá considerá-la, sendo desnecessária a atividade das partes com o fim de formar o seu livre convencimento, restando fatalmente desrespeitadas as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

Cabe destacar, ainda, que uma das finalidades do processo penal é a reconstrução histórica dos fatos, sendo a atividade probatória muito relevante, logo, outro não poderia ser o critério para distinguir os sistemas processuais penais, senão o da gestão da prova.[9]

De encontro a tal posicionamento, Ada Grinover entende que o conceito de processo penal acusatório nada tem a ver com a iniciativa instrutória do juiz no processo penal, a qual se relaciona com o adversary system, sendo que o sistema acusatório pode adotar o adversary ou o inquisitorial system.[10]

3. Sistema Acusatório

Conforme o critério determinante que se adote para distinguir os sistemas processuais penais, será admitida ou não a atribuição de poderes instrutórios ao juiz dentro deste sistema.

A maioria dos autores que defendem a distribuição das funções entre órgãos distintos como o aspecto fundamental do sistema acusatório admitem a iniciativa probatória do juiz, por entenderem que não há comprometimento da imparcialidade do magistrado. [11]

Contudo, historicamente, as partes aparecem como protagonistas no sistema acusatório, cabendo a estas produzir a prova de suas alegações, devendo o juiz permanecer inerte, a fim de que sua imparcialidade seja preservada.[12]

O princípio do juiz natural, também característico do sistema acusatório, garante essa imparcialidade, não se resumindo apenas ao afastamento do órgão julgador do exercício da ação penal, sendo necessário que o mesmo não esteja envolvido com uma das versões para que possa escolher entre as alternativas apresentadas pela defesa e pela acusação.[13]

Predominam no sistema acusatório o contraditório, a publicidade e a oralidade. Quanto a esta última, esclarece Geraldo Prado, que não se resume à predominância da palavra falada, devendo propiciar o contato direito do juiz com as provas, facilitando também a verificação dos papéis exercidos pelos sujeitos processuais.[14]

O réu só poderá ser considerado culpado após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, estando presente assim, o princípio da presunção de inocência. Defesa e acusação estão em igualdade de posições, havendo julgamento por um júri popular.

O processo acusatório preocupa-se em garantir os direitos fundamentais do acusado, sendo que o fato de o acusado e o seu defensor poderem influenciar a decisão final faz com que os mesmos sejam sujeitos de deveres, direitos, ônus e faculdades, existindo o devido processo legal, se ambas as partes tiverem a possibilidade de convencer o juízo.[15]

Em síntese, Aury Lopes Júnior elenca as seguintes características do sistema acusatório na atualidade: funções de acusar e julgar são distintas; iniciativa probatória atribuída às partes; juiz como terceiro imparcial; “tratamento igualitário das partes”; “procedimento em regra oral”; publicidade; contraditório e ampla defesa; ausência de tarifa probatória; livre convencimento motivado; coisa julgada; duplo grau de jurisdição.”[16] 

 3.1 Adversary e Inquisitorial System

A análise dos sistemas anglo-saxão se mostra relevante, tendo em vista o entendimento de Ada Grinover, explicitado acima, no sentido de que os poderes instrutórios do juiz estão relacionados a tais sistemas, podendo o sistema acusatório se caracterizar como adversarial ou inquisitorial system.

O adversary system se caracteriza como um processo de partes, onde a atividade probatória é deferida às mesmas de forma exclusiva, devendo o juiz preservar uma posição passiva.

Destarte, toda iniciativa processual é atribuída às partes que realizam, de forma competitiva, a introdução de provas no processo, não importando apenas o acertamento dos fatos, mas, principalmente, “a lisura no encontro dialético entre as partes.”[17]

Assim como no sistema acusatório, há separação entre as funções de acusar, julgar e defender, contudo os referidos sistemas não se equivalem.

O adversary system, da forma como é estruturado, não tem por escopo o alcance da verdade, e sim a solução do conflito instaurado entre as partes, sendo que será vitoriosa a parte mais esperta. O que importa é a “correta atuação do procedimento de confronto dialético das partes contrapostas”.[18]

Marcos Zilli ensina que  

o sistema adversarial, em um Estado Liberal, marcado que é pelo controle das partes processuais sobre a marcha processual, constituiria um meio extremamente eficaz de prevenção contra qualquer abuso do poder estatal por ato dos seus representantes, dentre os quais o juiz, ficando afastada a possibilidade de formação de juízos convicção prematuros sobre uma dada prova os quais poderiam dar causa a conclusões apressadas, invariavelmente impossíveis de serem superadas.[19] 

Já no inquisitorial system, o juiz tem papel de destaque, identificando-se com o sistema inquisitório no sentido de que compete ao juiz a condução do processo, podendo, inclusive, determinar a produção de provas de ofício. Seria o antônimo de processo dispositivo.

Cabe ressaltar que no adversary system, o acusador pode dispor da pretensão punitiva através de bargaining ou deixando de formular a acusação.

Atualmente, segundo Gustavo Badaró, a tendência é que o adversary system permita a determinação de provas de ofício, pois a falta de poderes instrutórios do juiz impede o esclarecimento da verdade e, por algumas vezes, a obtenção de uma decisão justa.[20]

Marcos Zilli nos apresenta as principais críticas dirigidas a esse sistema, quais sejam, abusos no controle das partes sobre a instrução, enfoque equivocado na busca da verdade, ineficiência do processo ‘adversarial’, desigualdade entre partes.[21]

4. Sistema Inquisitório

O sistema inquisitório, baseado na política de segurança pública, busca realizar o direito penal a qualquer custo, ressaltando o poder de punir estatal.

Assim, o juiz se apresenta como titular de um direito de ação, podendo além de exercer a ação penal, produzir provas de ofício e também recorrer de ofício.

O juiz obtém o material probatório de forma predominante na busca da verdade real, reunindo as funções de acusar e julgar, cabendo-lhe conseguir a confissão do acusado, a qual é considerada a melhor prova, dentro do sistema da prova tarifada, predominando o princípio da presunção da culpabilidade.

O juiz é o responsável pela investigação, caracterizando-se, assim, como um verdadeiro inquisidor. Não há que se falar em partes em tal sistema, sendo o réu objeto do processo e não sujeito de direitos. Não há contraditório e o processo se inicia de ofício. Predomina a escritura e o segredo, havendo restrição da liberdade pessoal do acusado.  

5. Sistema Misto

Historicamente, o sistema processual penal misto foi consagrado com o Code d’Instruction Criminalle, de 1808, na França, compreendendo as fases de investigação e de juízo.

Destarte, na fase investigatória, há o predomínio de características do sistema inquisitório, principalmente, a presença da escritura, do segredo e da iniciativa judicial.

Já na fase do juízo, estariam presentes elementos concernentes ao sistema acusatório, quais sejam, o contraditório, a oralidade, a publicidade, juízes populares e livre apreciação da prova. 

6. Conclusões

Considerando os argumentos aventados, pode-se afirmar que, na atualidade, os processos penais apresentam características tanto do sistema acusatório como do sistema inquisitório.

O critério determinante para distinguir os referidos sistemas, tendo em vista a própria finalidade do processo penal, é o da gestão da prova, não sendo suficiente a separação das funções de acusar, julgar e defender entre órgãos distintos.

Conforme ressaltado, caso exista a possibilidade de o juiz determinar a produção de provas de ofício, restará fatalmente comprometida a sua imparcialidade, o que impede a reconstrução histórica dos fatos e viola garantias do acusado, como o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.


Notas

[1] Gustavo Badaró destaca que os ordenamentos jurídicos aspiram ao sistema acusatório, amoldando-o à realidade social de cada país. Ônus da Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 107/108.

[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coord.). Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 16.

[3] Da mesma forma, Aury Lopes Júnior, em crítica à classificação do sistema processual penal brasileiro como misto, nos esclarece que “[…] a partir do reconhecimento, de que não existem mais sistemas puros […]”, devemos identificar o princípio informador de cada sistema, para proceder à respectiva classificação como inquisitório ou acusatório. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). 3. ed. rev. atual. e aum. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, Op. cit., p. 156.

[4] Nesse sentido TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de Processo Penal. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 2, p. 01 e GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal Acusatório. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 347, jul./ago./set. 1999, p. 3.

[5] Geraldo Prado entende que a diferença entre os referidos sistemas pode ser observada de acordo com os atos praticados pelos sujeitos processuais, que irão desenvolver funções diversas de acordo com o sistema em que estiverem inseridos. PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, Op. cit., p. 104.

[6] Op. cit., p. 108/109.

[7] LOPES JR., Aury. Op. cit., p. 172.

[8] Flávio Meirelles Medeiros defende que a distinção entre os dois sistemas pode ser observada de acordo com os poderes conferidos ao juiz. MEDEIROS, Flavio Meirelles. Dificuldade de atuação dos limites jurídicos à livre apreciação da prova no chamado processo penal acusatório. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – Ajuris, Porto Alegre, v. 21, n. 62, p. 319-330, nov.1994, p. 328.

[9] Nesse sentido, Jacinto Coutinho defende que a “característica fundamental do sistema inquisitório, em verdade, está na gestão da prova, confiada essencialmente ao magistrado.” Logo, para esse autor, os princípios unificadores dos sistemas processuais penais são determinados pelo critério da gestão da prova. Op. cit., p. 24.

[10] Op. cit., p. 4.

[11] Gustavo Badaró fala em um modelo acusatório atenuado, por permitir que o juiz produza provas de ofício. Para o citado autor, não há incompatibilidade entre a determinação de provas de ofício pelo juiz e o sistema acusatório, visto que tal previsão permite uma melhor reconstrução dos fatos e, conseqüentemente, uma maior aproximação com a verdade. Assim, poderá ser atingida a verdade que seria alcançada com o sistema inquisitório, contudo sem desrespeitar os direitos fundamentais. Op. cit., p 112/125.

[12] A origem do sistema acusatório remonta à Grécia Antiga, devido à participação dos cidadãos gregos, tanto no exercício da acusação, como no da jurisdição. No mundo antigo, o processo penal era predominantemente acusatório, sendo a acusação imprescindível. Cabia ao acusador, que, nos casos de ação privada, era o ofendido ou, nas hipóteses de ação popular, poderia ser qualquer pessoa, apresentá-la por escrito, acompanhada das respectivas provas. Contudo, diante de alguns problemas apresentados pelo sistema acusatório em sua primeira fase histórica, como a impunidade do criminoso, a existência de acusações falsas, dentre outros, a partir do século XII houve um predomínio do sistema inquisitório. Para conhecer o histórico dos sistemas processuais penais, ver ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes. O Processo Criminal Brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1959, v. 1.

[13] PRADO, Geraldo. Op. cit., p. 109.

[14] Ibid., p. 154.

[15] PRADO, Geraldo. Op. cit., p 109.

[16] Op. cit., p. 159.

[17] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 40.

[18] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Op. cit., p. 132.

[19] ZILI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 45.

[20] Op. cit., p. 133.

[21] Op. cit., p. 49.


Referências Bibliográficas

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes. O Processo Criminal Brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1959, v. 1.

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

 BARROS, Antonio Milton de. Processo Penal segundo o Sistema Acusatório – os limites da atividade instrutória judicial. Editora de Direito, 2002.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coord.). Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

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ZILI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

 

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

GISÉLLE MARIA SANTOS POMBAL SANT’ANNAServidora Pública da Procuradoria Regional da República da 2ª Região