Bioética, a “bola da vez”

* Enéas Castilho Chiarini Júnior

         Com o intuito de contribuir para as discussões sobre a possibilidade ética e jurídica da utilização dos métodos de clonagem terapêutica e de manipulação genética, aproveitaremos, de maneira introdutória, do fato de que, recentemente, uma empresa de telecomunicações iniciou a apresentação de uma série de reportagens sobre os avanços da tecnologia científica, mais especificamente da engenharia genética.

        Em um primeiro momento, cabe aplaudir a iniciativa da referia empresa de trazer para a população em geral o conhecimento, ainda que superficial, do atual estágio das pesquisas que envolvem a manipulação genética.

        Foram apresentadas algumas das possibilidades abertas pela terapia genética que utiliza o método da clonagem de células para a produção de células-tronco, as quais são capazes de evoluírem para qualquer espécie de tecido orgânico, o que pode ser capaz de ajudar a encontrar a cura para uma série problemas de saúde, como, por exemplo, a paralisia decorrente de trauma na medula, ou, ainda, pode ser capaz de, entre outras coisas, “fabricar” órgãos humanos para fins de transplantes.

        No mesmo programa, em outra reportagem, foram apresentadas as possibilidades da clonagem não-terapêutica, trazendo-se o exemplo de uma empresa norte-americana que oferece o serviço de clonagem de animais de estimação, “produzindo” animaizinhos exatamente iguais aos que porventura tenham falecido.

        São duas reportagens que, como dito, devem ser aplaudidas pelo seu alto grau de conteúdo informativo, principalmente se considerarmos que, exatamente neste momento, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que visa alterar a Lei Nacional de Biossegurança, no qual existe a intenção de regulamentar, além de várias outras questões, a possibilidade (ou impossibilidade) de pesquisas que envolvam a manipulação genética de seres humanos.

        Porém, em um segundo momento, após atenta observação do primeiro programa da série, no qual o narrador da reportagem apenas afirmou existir uma corrente contrária à utilização da clonagem terapêutica, cabe a análise de algumas questões.

        Em primeiro lugar, a emissora de televisão deveria ter dado maior abertura à análise dos argumentos da corrente contrária, a qual questiona a aplicação da clonagem terapêutica.

        Pela corrente que condena a utilização da manipulação de material genético humano, uma das objeções que se faz é a de que o ser humano é ser humano desde a concepção – e não apenas a partir do terceiro ou quarto mês de gravidez, como defendem, principalmente, os ingleses -, e, apoiando-se nos direitos humanos e fundamentais, sobretudo o direito de respeito à dignidade da pessoa humana, aliada a lição kantiana de que o ser humano não pode, jamais, ser considerado um simples meio para se atingir um objetivo, por mais nobre que seja, não parece razoável que seres humanos, mesmo que “fabricados” em laboratório pela manipulação genética, sejam sacrificados e utilizados como forma de salvar outra vida.

        Todo ser humano deve ser respeitado, tendo sua dignidade, integridade física e sua vida protegida desde o momento da concepção, é o que diz o Pacto de San Jose da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos de 1969), do qual o Brasil é signatário.

        Pelo referido pacto internacional, o ser humano deve, portanto, ter seu direito à vida garantido e respeitado desde o momento da concepção (artigo 4º, I), não apenas após certo período de gestação como defendem alguns.

        Por outro lado, o que distingue o ser humano de outros animais? Como saber se uma vida é, ou não, pertencente à espécie humana, para que possa ser considerada digna de proteção?

        Acreditamos que o método mais seguro, no atual estágio de desenvolvimento científico da Humanidade, seria uma análise de sua constituição genética.

        O que faz com que o indivíduo seja membro da espécie humana é o fato de seu patrimônio genético ser compatível com o patrimônio genético comum à espécie humana, não importando quaisquer outras características.

        Desta forma, considerando-se que, desde a concepção, já estão presentes estas informações genéticas, deve-se respeitar o ser humano em potencial, fruto desta concepção – mesmo que artificial – o qual já possuiria uma expectativa de se desenvolver e tornar-se uma vida independente.

        Aliando-se, como já dito, este entendimento aos ensinamentos de Kant (segundo os quais a máxima “age de tal modo que uses a humanidade, ao mesmo tempo na tua pessoa e na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, e nunca apenas como um meio” seria um imperativo categórico, do qual não se poderia afastar – Marcelo Campos Galuppo apud Marcelo Kokke Gomes, “O ser humano como fim em si mesmo: imperativo categórico como fundamento interpretativo para normas de imperativo hipotético” in www.jus.com.br. Acesso em: 29/5/2004), não seria desejável que tais pesquisas pudessem ser realizadas, mesmo que com a finalidade de salvar outra vida.

        Trazendo-se mais argumentos jurídicos à discussão, e analisando-se a questão sob o ponto de vista do princípio (ou regra, segundo Robert Alexy) da proporcionalidade, teríamos o problema do choque entre dois direitos fundamentais: o direito do produto da concepção (natural, ou artificial) à vida, e o direito à saúde e/ou à dignidade do ser humano ao qual se pretende beneficial pela terapia genética.

        Não se trata de estabelecer-se uma hierarquia de valores entre dois direitos fundamentais, mas não se pode sacrificar um dos direitos – no caso o direito à vida – em benefício de outro – o direito à saúde -, mesmo porque, o exercício do direito à saúde do paciente não seria prejudicado pelo efetivo exercício do direito à vida do ser humano em potencial, produto da concepção (isto sem falar que, em muitos casos existem outras alternativas capazes de minimizar os problemas do paciente).

        Ora, a impossibilidade de se anular completamente um direito em benefício de outro é lição tão conhecida no mundo jurídico que não são necessárias grandes argumentações para se demonstrar a impossibilidade jurídica de se permitir a realização de tais experimentos, pois para se salvar a vida do paciente estar-se-ia impossibilitando a vida do produto da concepção.

        Dirão alguns que, neste caso, estar-se-ia salvando-se uma vida – a do paciente – e que, mais do que isso, a concepção teria sido realizada apenas com o intuito de se salvar a vida do paciente, de forma que esta não viria a se desenvolver mesmo que não se salvasse a vida do paciente.

        Porém, é exatamente aqui que cabem as considerações kantianas trazidas acima. Não se pode admitir que uma vida seja gerada (ou criada, “produzida”, “fabricada”) apenas com o intuito de servir de meio para atingir uma finalidade, pois todo ser humano é único, irrepetível, e portador de valores e dignidade próprios, os quais devem, sob qualquer hipótese, serem respeitados desde a concepção, conforme o aludido Pacto de San Jose da Costa Rica.

        Ademais, o direito à vida é garantido para os que possuam meios orgânicos de sobreviver autonomamente, não existindo um dever de se fornecer os meios orgânicos necessários para que um ser humano possa continuar vivendo.

        Permitir-se tais experimentos seria incorrer em erro duas vezes: a primeira ao se utilizar um ser humano como meio – e não como finalidade em si mesmo -; e a segunda ao se anular completamente um direito fundamental para se garantir a possibilidade – pois não há garantias de que tal procedimento terapêutico irá, com certeza, salvar a vida do paciente – do exercício de outro direito.

        Cabe, ainda, lembrar que, sendo o Brasil signatário do Pacto de San Jose da Costa Rica, pacto este que estabelece normas de Direitos Humanos, e, sendo estes direitos irrenunciáveis e irreversíveis, não é possível para nosso país estabelecer uma norma, nem mesmo constitucional, que permita este tipo de manipulação genética envolvendo seres humanos, uma vez que isto seria vedado pela norma que exige a proteção da vida humana desde o momento da concepção.

        Estes são alguns dos principais argumentos defendidos pela corrente que não concorda com a liberação da pesquisa envolvendo a manipulação de células-tronco humanas.

        Por outro lado, outra questão que deve ser analisada é a relativa a problemática da permissão (ou proibição) da clonagem.

        Conforme fora relatado na segunda reportagem apresentada pelo programa de televisão em questão, na tentativa de se “produzir” um clone de um gato doméstico, foram necessárias mais de 80 (oitenta) tentativas.

        O que aconteceu com as tentativas anteriores? Quais as aberrações que foram produzidas pelos sucessivos erros durante o processo de “produção”? Seria eticamente aceitável o sacrifício de oitenta vidas para a “produção” de uma única vida sadia?

        O certo é que estes procedimentos são capazes de gerar lucro, pois conforme noticiado na referida reportagem, a empresa especializada em “re-produzir” animais de estimação falecidos cobra para cada “criação” bem sucedida a quantia de US$ 50 mil.

        O ideal seria que o referido programa de televisão trouxesse, não só um lado da problemática, mas, mais do que isso, apresentasse a real possibilidade de um amplo debate nacional sobre as questões envolvidas.

        É para isto que vem a Bioética, para analisar-se os dois lados destas e de outras questões semelhantes, pois, através de um estudo multidisciplinar, a bioética visa estudar e regular os limites da experimentação científica.

        Assim, como aparentemente esta emissora de televisão se predispôs a trazer à discussão as questões que envolvem os progressos científicos, podemos concluir que a Bioética está caminhando para se transformar na “bola da vez”, e deverá, em pouco tempo, se transformar em uma matéria da mais alta importância em nosso país.

        Como neste país as grandes mudanças ocorrem por força – ou com a permissão – da mídia, os profissionais que se preocupam com questões bioéticas devem aplaudir a iniciativa da referida emissora de televisão, pois, certamente, o caminho para uma grande discussão nacional a cerca destas questões está sendo vagarosamente aberto.

        Cabe aos profissionais, sobretudo das áreas médica e jurídica, que se preocupam com esta temática o dever de não perder esta oportunidade sem apresentar para a população em geral os vários lados que envolvem a regulamentação deste tipo de experimentação científica, pois a abertura da mídia é apenas o primeiro passo de uma discussão que deve envolver toda a população, uma vez que o que está em jogo é o futuro da humanidade como um todo.

        Caminharemos para um mundo onde certas técnicas científicas serão rigidamente regulamentadas e, em alguns casos, proibidas, ou, por outro lado, caminharemos para um “admirável mundo novo”, onde não haverá limites para as pesquisas científicas?

        As respostas serão dadas no futuro, mas a opção será feita hoje.                                    

 


Referência  Biográfica

Enéas Castilho Chiarini Júnior  –  Advogado em Pouso Alegre/MG; Especialista em Direito Constitucional pelo IBDC (Inst. Bras. de Dir. Constitucional) em parceria com a FDSM (Fac. de Dir. Do Sul de Minas); Capacitado para exercer as funções de Árbitro/Mediador pela SBDA (Soc. Bras. para Difusão da Mediação e Arbitragem); e membro, desde a fundação, do Quadro de Árbitros da CAMASUL (Câmara de Mediação e Arbitragem do Sul de Minas), é, ainda, autor de diversas matérias jurídicas publicadas em revistas do Brasil e do exterior, e em diversos sites jurídicos.

Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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