As Astreintes no direito do consumidor: limites e possibilidades de aplicação e liquidação

* Rizzatto Nunes

No presente artigo, examinaremos o importante instituto das astreintes, que a cada dia têm sido mais utilizada pelo Poder Judiciário para fazer valer suas decisões nas obrigações de fazer e não fazer, especialmente nas questões envolvendo consumidores e fornecedores. O tema não é novo, mas ainda assim não está bem esclarecido entre os juristas e aplicadores do direito. Por isso, tentaremos solver alguns dos problemas que têm aparecido como pendentes nas disputas forenses.

1. O vocábulo

Antes de fazer as observações necessárias a respeito das astreintes, é importante consignar que parte da doutrina equivoca-se não só ao defini-la, como ao tratar de suas conseqüências e suas funções.

O termo astreintes, mantido entre nós no vocábulo estrangeiro, tem origem na jurisprudência francesa. Apesar da hostilidade da doutrina, que via na sua fixação uma violação ao principio da nulla pena sine lege, firmou-se lá como criação pretoriana.

O vocábulo, ao que parece, é utilizado entre nós como o original francês por mera dificuldade de tradução (aproximadamente, seria compulsão, constrição), mas não há dúvida de que se trata de multa, cuja única finalidade é cominatória, vale dizer, sua existência tem como objetivo o cumprimento de uma obrigação de fazer ou não fazer.

2. Função

Em nosso sistema que, diga-se, é o único que importa, as astreintes são previstas em mais de um texto legal (como se verá adiante). Cabe ao magistrado fixá-las no caso concreto para estimular – forçar, na verdade – o devedor a cumprir sua obrigação.

No entanto, infelizmente, há casos de abusos na sua fixação e, especialmente, na sua liquidação em pecúnia quando não cumprida a obrigação, em parte influenciada pela equivocada doutrina.

E, para citarmos, por todos, a posição jurídica acertada a respeito do tema, transcreve-se o pensamento de Calmon de Passos. Diz ele que o valor das astreintes deve ser proporcional à obrigação inadimplida e que seja capaz de desempenhar a função de coercibilidade sobre o devedor: "Suficiente para induzir o devedor a adimplir, pelo que variará em função da capacidade econômica do devedor, mais do que em função da natureza da obrigação, mas essa correção não pode alcançar excesso, devendo cingir-se ao compatível".

3. Natureza

Realce-se, também, um aspecto que, às vezes, passa despercebido, o de que, a rigor, o resultado da liquidação da multa não deveria reverter a favor do credor da obrigação.

A natureza das astreintes é de pena para exercer pressão psicológica, imposta pelo magistrado para garantir sua própria decisão, e não o crédito ou o direito da outra parte. Tanto isso é verdade que, de fato, as astreintes substituem o delito de desobediência.

A liquidação da multa, portanto, não tem relação com o direito da parte contrária, exatamente como o cumprimento da pena do crime de desobediência não a prejudica nem a beneficia.

Desse modo, o produto da liquidação das astreintes, evidentemente, deveria pertencer ao Estado e não à parte. Nesse sentido é a doutrina de Luiz Guilherme Marinone: "a multa (…) serve apenas para pressionar o réu a adimplir a ordem do juiz, motivo pelo qual não parece racional a idéia de que ela deva reverter para o patrimônio do autor, como se tivesse algum fim indenizatório ou algo parecido com isso; seu único objetivo é garantir a efetividade da tutela jurisdicional."

E também de Marcelo Lima Guerra: "o credor não tem, em princípio, direito de receber nenhuma quantia em dinheiro, em razão direta do inadimplemento do devedor, que não seja àquela correspondente a perdas e danos. Na relação entre credor e devedor, o primeiro só tem direito à prestação contratada ou ao equivalente pecuniário dessa mesma prestação (o ressarcimento em dinheiro pelos prejuízos resultantes da não realização da prestação)".a

4. O caráter objetivo: confusão a ser evitada

Outrossim, há de se deixar claro o caráter objetivo da fixação da multa inibitória. Ela não pode ter a natureza de vingança ou castigo pelo descumprimento da ordem judicial.

O que se percebe, algumas vezes, nos pronunciamentos dos magistrados, é uma espécie de ira pelo descumprimento de sua ordem, como se a negativa fosse subjetiva e especificamente dirigida ao prolator da ordem. Verifica-se, nesses casos, que o juiz, usando o bastão das astreintes, aplica sua revanche pessoal ao infrator e até, por vezes, exatamente por agir como pessoa e não como representante do Estado, abusa do direito que tem.

Ora, não há nada de pessoal, quer no cumprimento quer no descumprimento de uma ordem judicial. Esta é resultado de uma ação dita jurisdicional, feita não por uma pessoa na condição de indivíduo ou cidadão, mas por alguém investido do papel social público e essencial, no qual está investido, vale dizer, na função pública de magistrado. Uma vez dada a ordem, ela se dirige ao devedor não pela pessoa física do juiz, mas por seu papel, na investidura do cargo como representante do Estado.

Além disso, exponha-se desde já, a Justiça não fica diminuída em sua dignidade, porque em certo momento alguém não cumpre uma determinação do juiz, como também não fica diminuída se esse mesmo juiz (ou pela via de recurso o juízo ad quem) modifique a decisão, revogando a obrigação. É algo juridicamente possível, justo e plenamente de acordo com o sistema processual vigente no país.

Desse modo, é de se excluir as considerações doutrinárias e jurisprudenciais de fundo psicológico, eis que isso vicia a objetiva incidência do instituto das astreintes nos estritos limites do eqüitativo e justo no caso concreto.

5. O limite do "quantum"

Na questão do valor, há de se convir que nenhuma multa, seja de que natureza for e independente do modo lingüístico utilizado (lembre-se que a linguagem retórico-jurídica pode gerar alguma ilusão), deverá reduzir o infrator à insolvência nem enriquecer ilicitamente o credor e, muito menos, ser fixada de tal maneira que a torne mais importante que o objeto da ação principal em jogo.

Aliás, anote-se que não há como sustentar lógica e juridicamente a hipótese de liquidação de astreintes cuja somatória seja maior, mais relevante ou mais importante que o objeto perseguido na ação principal; é uma contradição em termos: Condenar o devedor por não ter cumprido uma ordem judicial a pagar mais que o valor do pleito feito pelo credor na própria ação principal é tão estranho que mais justo seria julgar procedente a ação sem ouvir o réu.

É o que aconteceria, por exemplo, numa ação por danos morais fundada em negativação indevida de nome nos cadastros de inadimplentes em que, como regra, os tribunais fixam o quantum indenizatório em cinco, dez, vinte ou, em casos muitos especiais, em trinta mil reais. Numa ação desse tipo, o descumprimento da ordem de retirada da anotação no órgão de proteção ao crédito (geralmente conferida liminarmente) com fixação de astreintes, não pode, evidentemente, gerar um valor dezenas de vezes superior ao da condenação na ação principal (e esse raciocínio é válido, mesmo que no momento da execução das astreintes não tenha ainda o juiz ou o Tribunal fixado definitivamente o valor da indenização da ação principal).

Realmente, não tem sentido nenhum, repita-se, que o não cumprimento de uma ordem incidental no feito, possa ser mais importante que o próprio feito tomado em seu conjunto. Não poderia, pois, o quantum das astreintes fixado no incidente superar o valor pleiteado na principal. A jurisprudência no mesmo sentido é farta:

"IMPOSSIBILIDADE, CONDENAÇÃO, DEVEDOR, PAGAMENTO, ‘ASTREINTE’, VALOR SUPERIOR, VALOR CONTRATO / HIPÓTESE, DEVEDOR INADIMPLEMENTO, OBRIGAÇÃO PRINCIPAL; CREDOR, FIXAÇÃO, MULTA POR ATO UNILATERAL; DEVEDOR NÃO IMPUGNAÇÃO, VALOR, MULTA / DECORRENCIA, MULTA, MESMA NATUREZA JURÍDICA, CLAUSULA PENAL; OBSERVANCIA, CÓDIGO CIVIL, 1916.

CABIMENTO, RESCISÃO, ACÓRDÃO, TRIBUNA AQUO / HIPÓTESE, DECISÃO JUDICIAL, VIOLAÇÃO, LITERAL DISPOSIÇÃO DE LEI, CODIGO CIVIL, 1916, PREVISÃO, LIMITE MÁXIMO, CLÁUSULA PENAL, EQUIVALÊNCIA, VALOR, OBRIGAÇÃO PRINCIPAL / APLICAÇÃO, CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
(…) RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA. CLÁUSULA PENAL. LIMITAÇÃO AO VALOR DA OBRIGAÇÃO PRINCIPAL.

_ Ofende o art. 920 do Código Beviláqua a estipulação de cláusula penal que supere o valor da obrigação principal
(…) Com essas considerações, dou provimento ao recurso especial para julgar procedente o pedido e rescindir o acórdão atacado. Em novo julgamento da causa, limito a multa a ser cobrada pela recorrida ao valor dos contratos firmados pelas partes"

"Execução de obrigação de fazer – ‘astreintes’ – Possibilidade de alteração, se verificada a insuficiência ou o excesso da multa – Redução para o valor equivalente ao da obrigação principal – decisão alinhada com a melhor doutrina e com a jurisprudência tradicional – recurso desprovido
(…) Mas, a multa diária atingiu valor expressivo (R$378.000,00) e por isso, o magistrado, por aplicação analógica do artigo 920, do Código Civil, reduziu-a para o valor da obrigação principal".

6. Previsão legal

Com a redação dada ao parágrafo único do art. 645 do CPC, pela lei 8953/94, qualquer dúvida que eventualmente existisse a respeito deste assunto, foi elucidada, pois a lei permite expressamente a modificação para cima ou para baixo do valor das astreintes. Leia-se:

"Art. 645. Na execução de fazer ou não fazer, fundada em título extrajudicial, o juiz, ao despachar a inicial, fixará multa por dia de atraso no cumprimento da obrigação a data a partir da qual será devida.
Parágrafo único. Se o valor da multa estiver previsto no título, o juiz poderá reduzi-lo, se excessivo".

O legislador, inclusive, inspirou-se na tradicional jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Veja-se, por exemplo, que no Resp 13.416-0-RJ, da relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, o tema é estudado e aplicado com base na interpretação dos arts. 287, 644 e 645 do CPC:

"Ação cominatória. Execução. Pena pecuniária. CPC, arts. 287, 644 e 645. Enriquecimento indevido. Limitação. CC, arts. 920 e 924. Hermenêutica. Recurso inacolhido. I – O objetivo buscado pelo legislador, ao prover a pena pecuniária no art. 644 do CPC, foi coagir o devedor a cumprir a obrigação específica. Tal coação, no entanto, sem embargo de equiparar-se a ‘astreintes’ do direito francês, não pode servir de justificativa para o enriquecimento sem causa, que ao direito repugna. II – É da índole do sistema processual que, inviabilizada a execução específica, esta se converterá em execução por quantia certa, respondendo o devedor por perdas e danos, razão pela qual aplicáveis os princípios que norteiam os arts. 920 e 924 do CC. III – A lei, que deve ser entendida em termos hábeis e inteligentes, deve igualmente merecer do julgador interpretação sistemática e fundada na lógica do razoável, pena de prestigiar-se, em alguns casos, o absurdo jurídico".

E, a partir da edição da lei, o judiciário vem corretamente aplicando o preceito:

"Ora, malgrado o inconformismo do agravante, é de se ponderar que, com o advento da lei 8.953/94, que introduziu o parágrafo (único) ao artigo 645, do CPC, está o juiz autorizado a alterar multa imposta, quando verificar que se tornou ela insuficiente ou excessiva"
.
"EXECUÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – Fazenda Pública – Multa cominatória – O art. 644 não excepcionou o Estado de sua incidência – Prerrogativas funcionais devem ser expressamente previstas, diante do princípio da igualdade das partes no processo – O valor da ‘astreinte’, no entanto deve guardar proporcionalidade com a finalidade da pena – Multa reduzida – Agravo parcialmente provido para esse fim".

"AGRAVO DE INSTRUMENTO – Medida cautelar de busca e apreensão de documentos – Execução de Sentença – Cumprimento de decisão judicial já transitada em julgado – Mero efeito secundário e imediato da sentença que prescinde de ajuizamento de nova ação – Razoabilidade das ‘astreintes’, que não devem ultrapassar o valor da obrigação principal – Multa de natureza inibitória – Art. 461, § 4º, do CPC e art. 920 do CC de a 1916 – Art. 412 do novo CC – Inexistência de atos que reportem litigância de má-fé – Alegação afastada – Recurso improvido".

"ADMINISTRATIVO – PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO DE INSTRUMENTO – FGTS – OBRIGAÇÃO DE FAZER – MORA NO CUMPRIMENTO DA DECISÃO – ASTREINTE – POSTERIOR AFASTAMENTO DA MULTA DIÁRIA – REDUÇÃO DO VALOR DA MULTA – ART. 461 §§ 5º, 6º, CPC.
I – Cabível a cominação de ´astreinte’ pela mora injustificável da obrigação que deriva de decisão judicial com fulcro no arts. 461, 461-A e 644, do CPC, e obedece o princípio da proporcionalidade.
II – O valor da multa diária deve ser compatível com a obrigação, sob pena de redução, a teor do art. 461, § 4º, do CPC, e obedece ao princípio da proporcionalidade.
III – A multa diária, instrumento para assegurar a efetividade das decisões do magistrado, se cominada pelo juiz ‘a quo’, deve ser confirmada para a credibilidade deste instituto.
IV – Agravo de Instrumento parcialmente provido".

7. Ação principal sem valor econômico

Anote-se que, mesmo que a ação principal não tenha conteúdo econômico, ainda assim não há motivo para que seja fixada uma multa que possa gerar valores astronômicos. Nesses casos, deverá o magistrado avaliar as circunstâncias concretas do feito e arbitrar o montante que seria razoável que o autor obtivesse se tivesse que ser indenizado. Esse valor arbitrado servirá, então, de parâmetro para a determinação do quantum total do resultado da liquidação das astreintes. Isso decorre, naturalmente, de todos os fundamentos antecedentes e também dos demais que se expõe abaixo.

8. Medida direta do juiz

Além disso, é importante lembrar que, se o juiz puder tomar medida ou determinar ação direta ou indireta que possa substituir a parte-devedora relutante na obrigação de fazer ou não fazer, basta que ele emita a ordem que a questão será eficazmente resolvida. Não há sequer necessidade de fixação de astreintes. É o caso de determinação de retirada de nome dos chamados serviços de proteção ao crédito. Basta a emissão de ofício ao órgão anotador para a obtenção do resultado querido. Assim tem decidido, por exemplo, a 23ª. Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo:

"Diante do exposto, concedo a liminar pleiteada, para determinar o sobrestamento da execução e a exclusão do nome dos executados recorrentes dos cadastros da Serasa e demais Serviços de Proteção ao Crédito relativos ao feito sub-judice. Para a efetivação desta medida deverá a parte indicar especificamente o órgão anotador com respectivo endereço para que o MM. Juízo "a quo" emita os ofícios correspondentes".

Aliás, a própria lei assim o determina. Com efeito, dispõe o art. 84, §§ 4º e 5º do Código de Defesa do Consumidor:

"Art. 84. Na ação que tenha por objeto obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação e determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento.

§ 4º O juiz poderá, na hipótese do § 3º ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito."
§ 5º Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial."

Note-se, pois, que a lei 8078/90 autoriza expressamente que o magistrado substitua a parte, sempre que possível, para tornar mais célere e eficaz o decisum (§5º do art. 84 acima). As hipóteses legais não são exaustivas, mas meros exemplos das medidas que o juiz pode tomar. Ele decidirá o caso "tomando as medidas necessárias", vale dizer, encontrando os meios pelos quais a determinação judicial tornar-se-á eficaz.

O art. 461 do Código de Processo Civil, seguindo o Código de Defesa do Consumidor, teve a redação modificada para dar o mesmo sentido à norma:

"Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado pratico equivalente ao do adimplemento.

§ 4º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.
§ 5º Para efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício, ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas ou coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial".

Assim, repita-se, podendo a obrigação de fazer ou não fazer ser satisfeita sem a participação da parte devedora e omissa, deve o juiz executá-la diretamente. Não há que fixar astreintes.

A rigor, a fixação da multa cominatória só tem sentido quando o magistrado não pode tomar a medida diretamente e/ou quando o próprio credor também não (com ou sem o auxílio ou autorização do juiz) ou, ainda, quando um terceiro não possa fazê-lo. Numa ação para busca e apreensão de menor, por exemplo, não tem cabimento que o juiz fixe multa para sua não entrega. Ele simplesmente determinará que o Oficial de Justiça (com o auxílio de força policial, se necessário) recolha a criança e entregue a quem de direito. O mesmo se dá quando, por exemplo, o juiz determina a reintegração de posse num imóvel que foi bloqueado por um cadeado. Ora, basta mandar quebrar o cadeado e permitir a entrada no imóvel. Fixar astreintes em casos que tais não atende aos objetivos das normas vigentes.

A questão é, portanto, de básica lógica jurídica: se o juiz pode substituir a parte recalcitrante, deve faze-lo.

9. Modificação das astreintes não viola a coisa julgada

Anote-se, também, que não há que se falar em coisa julgada, pois o suposto crédito advindo de astreintes não integra propriamente a lide, com o reforço de que a lei, como acima exposto, permite expressamente a modificação do quantum.

A doutrina e a jurisprudência nesse ponto, também, não têm dúvida:

"Essa modificabilidade não ofende a coisa julgada, porque a multa, na espécie, não é compensatória e, portanto, não integra a obrigação exeqüenda propriamente dita. Trata-se de medida de coação, simples ato do processo de execução, como a busca e apreensão, a penhora e outros meios coercitivos que dispõe o credor"

"…o valor executado não pode ser tido como líquido, haja vista a não fixação pelo juízo ‘a quo’ de termo inicial e/ou final para a incidência da multa pecuniária, de modo que tal se quedou ilimitada, o que se mostra abusivo, já que o valor até agora atingido ultrapassa em muito o valor pleiteado fixado a título de indenização em sentença, ou seja, o valor executado atinge a monta de R$714.000,00(Setecentos e quatorze mil reais), enquanto que o valor da indenização é de apenas R$25.000,00(vinte e cinco mil reais).

A multa pecuniária, por ter cunho eminentemente coercitivo, não pode ter valor indeterminado e ilimitado, aumentando vertiginosamente a cada dia. Ainda que não tenha o réu, ora agravado, não cumprido o quanto expressamente determinado pela decisão que deferiu a tutela antecipada pleiteada pelo autor, isso não indica que a sua punição por tal desobediência não tenha limites.

Ademais, as artigos 287 e 461, §4º, do Código de Processo Civil, combinados, prevêem que a multa fixada para o fim de garantir o cumprimento da tutela antecipada concedida deve ser suficiente e compatível com a obrigação principal. No caso em tela, contudo, o valor da multa é infinitamente superior ao valor da obrigação principal, o que não é, portanto, admitido pelo ordenamento jurídico pátrio"

"EMBARGOS À EXECUÇÃO. ‘ASTREINTES’. REVISÃO DA MULTA ORIGINÁRIA DE EXECUÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 461, §6º, 644, 645 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. OFENSA À COISA JULGADA. NÃO CONFIGURADA. SUCUMBÊNCIA. Verificando-se que o valor a ser pago a título de multa é significativamente superior àquela resultante da condenação na lide principal, ou que o recebimento da mesma poderá implicar no enriquecimento da embargada, o juiz poderá reduzi-la. Incidência dos arts. 461, §6º, 644, 645 Do Código De Processo Civil. Ainda que o valor da multa seja reduzido pelo juízo em face de sua excessividade, o executado pode responder pela totalidade do ônus sucumbencial, vez que foi ele quem deu causa à execução. Aplicação do princípio da causalidade. Por outro lado, tal redução não implica em ofensa à coisa julgada, porquanto o crédito resultante das astreintes não integra a lide propriamente dita, não podendo ser enquadrada, destarte, como questões já decididas relativas a mesma lide, de que trata o art. 461 do CPC. RECURSO DA EMBARGADA PARCIALMENTE PROVIDO. IMPROVIDO O DA EMBARGANTE".

10. O que acontece se a ação é julgada improcedente ou extinta sem julgamento do mérito

Outro ponto relevante a ser avaliado no tema, é o do que acontece com o quantum das astreintes quando o devedor não cumpre a determinação judicial, mas sai vitorioso na demanda. Isto é, qual o fim das astreintes quando a ação é julgada contra o credor?

Parece-nos evidente que não há que esse falar em liquidação da multa cominatória, eis que a mesma é apenas uma peça acessória do feito principal. De todo modo, é importante justificarmos essa posição.

Candido Dinamarco tem esse mesmo entendimento. No caso de fixação da multa cominatória em antecipação de tutela, diz ele: "enquanto houver incertezas quanto à palavra final do Poder Judiciário sobre a obrigação principal, a própria antecipação poderá ser revogada, com ela, as ‘astreintes’". Ou, em outros termos, e corroborando com o que expõe o Professor Dinamarco, como a multa é fixada para garantir o cumprimento da liminar, enquanto não decidida definitivamente a ação principal em que se a confirme, ela não pode ser exigida.

Dinamarco sustenta com razão que, por exemplo, ao se fixar a multa cominatória na sentença, não seria legítimo cobrá-la do devedor, se ele, podendo recorrer contra sua fixação, o faz, no que tem a possibilidade de vencer a demanda. Por isso que, "o valor das multas periódicas acumuladas ao longo do tempo só é exigível a partir do trânsito em julgado do preceito mandamental".

E, realmente, aqueles que defendem a execução das astreintes, independentemente do resultado da demanda, ingressam na seara psicológica que acima demonstramos ser injustificável. Com efeito, não há fundamento para tanto. A função da multa cominatória, como exposto, é a de forçar o devedor a cumprir obrigação de fazer ou não fazer. Todavia, até certo momento (o do trânsito em julgado da sentença na ação principal) não se poderá afirmar que havia mesmo essa obrigação. Digamos que se trate, pode exemplo, de determinação para que um comerciante faça a retirada do nome do autor da ação de um cadastro de inadimplentes, sob pena de pagamento de multa diária, fundada no argumento de que esse autor quitara a dívida. Suponha-se que o comerciante não cumpra a determinação e, depois de alguns meses, a ação principal seja julgada improcedente porque o Juiz verificou que ele continuava devendo. Como é que o autor poderia executar a multa? Qual o sentido?

Se ele não tinha nenhum direito desde o início, não há que se falar em qualquer execução de astreintes pelo descumprimento de obrigação inexistente. Aliás, poderia se dar de se reconhecer que, inclusive, o autor da demanda estivesse da má fé. Ele, então, sairia vencido na demanda, seria condenado como litigante de má fé, mas receberia polpuda importância advinda da multa cominatória gerada pela obrigação não cumprida? É um non sense: seria como o Juiz condenar e, simultaneamente, absolver um réu. Ou, num outro exemplo: suponha-se que um cidadão é acusado de ter cometido um crime e, indiciado e feito o pedido de prisão provisória, o mesmo é deferido pelo Juiz. Mas, o réu se oculta e permanece foragido. Suponha-se que, posteriormente, é descoberto que o verdadeiro criminoso é outro indivíduo, sendo arquivado o processo em relação ao foragido. Teria sentido puni-lo porque durante o trâmite do feito ele esteve foragido? Como, se ele nada devia? Ora, ele fugiu exatamente porque, nada devendo, não quis passar as agruras da prisão. Os exemplos podem se multiplicar, mas o relevante mesmo é o fato de que não se pode falar em condenar judicialmente alguém pelo descumprimento de uma obrigação que ele jamais teve.

Poder-se-ia, argumentar, é verdade que se o quantum devido pelo descumprimento da obrigação pertencesse ao estado, então, nesse caso, seu valor seria sempre devido. Pensamos, que nem assim. É importante realçar um aspecto já tratado: a Justiça não fica diminuída em sua dignidade, porque em certo momento alguém não cumpre uma determinação do juiz, como também não fica diminuída se esse mesmo juiz (ou pela via de recurso o juízo ad quem) modifique a decisão, revogando a obrigação. É algo juridicamente possível, justo e plenamente de acordo com o sistema processual vigente no país. Pronunciamentos provisórios são, como o próprio nome indica, provisórios e não perdem o caráter de justeza apenas porque foram modificados. O que existe no momento da mudança é apenas um outro tempo processual: o tempo em que, após a colheita de provas e ouvida dos envolvidos ou reexame por outro juízo, se chega à conclusão diversa da anterior. Aliás, algo absolutamente possível em praticamente todo o sistema processual ocidental.

Resta, por fim, analisar o que acontece na hipótese da ação principal ser extinta sem julgamento do mérito. E, naturalmente, nesse caso, o destino será o mesmo daquela ação julgada improcedente. Não há que se falar em pagamento de multa pelo descumprimento da obrigação porque esta não existe mais. Desapareceu junto da ação principal.

 


 

 REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Rizzatto Nunes:  Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela PUC/SP, Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC/SP; Titular de Direito do Consumidor da Unimes/Santos; Coordenador dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito da Unimes/Santos; Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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