OPINIÃO: * Lélio Braga Calhau
O Supremo Tribunal Federal está avaliando uma ação que envolve o destino dos fetos anencefálicos (e de suas mães e famílias) em nosso país. Um dos últimos movimentos ocorreu na última quarta-feira (20.10), quando o plenário do tribunal analisou a discussão sobre a legitimidade constitucional da antecipação de parto de feto anencefálico (sem cérebro), com o julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). Os ministros, em votação por maioria, decidiram revogar a liminar concedida em julho de 2004 pelo ministro Marco Aurélio.
Na referida ação, a CNTS pede que seja dada interpretação conforme a Constituição Federal aos artigos 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal Brasileiro. Estes artigos penais tratam do crime de aborto, e a ação visa permitir a interrupção de gravidez de filhos anencéfalos. O pedido é feito com base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da legalidade, liberdade e autonomia da vontade, bem como o direito à saúde. Ou seja: o Poder Judiciário não está sendo chamado para criar nenhuma regra jurídica, mas, em verdade, estabelecer um critério de interpretação para as normas penais que tratam do crime de aborto.
O Poder Judiciário demonstrou grande sensibilidade quando o Ministro Marco Aurélio, em decisão do último dia 28 de setembro, entendeu por bem convocar uma audiência pública para ouvir representantes da sociedade civil sobre o assunto da ação. Tal iniciativa merece todos os méritos. Nem o Ministério Público e nem o Poder Judiciário lançam mão desse instrumento democrático com maior freqüência.
Ouvir as diversas teses apresentadas, participar de debates, apresentação de propostas, sugestões e reclamações deveria ser um procedimento mais constante nas discussões das causas de grande interesse social que tramitam no Supremo Tribunal Federal.
Tal preocupação no presente caso se faz necessária por diversos motivos, porquanto a questão do aborto está vinculada diretamente com a da anencefalia. Nem uma e nem outra foram discutidas de forma profunda e com maturidade pela sociedade. Os problemas são claros, entre eles: o aborto é um crime praticado sem testemunhas e raramente chega ao conhecimento do poder público, sendo que muitas vezes o risco de morte da gestante é real; existe uma discussão política-jurídica sobre se o aborto é caso de saúde pública ou caso de delegacia de polícia; na prática, as condenações (quando existentes) são mínimas. O crime de aborto é julgado pelo Tribunal do Júri, não por um juiz de direito. É rara a condenação pelos jurados de uma mãe em caso de um aborto simples, a de uma situação concreta onde haja ocorrido a anencefalia é bastante improvável.
Li ontem um texto onde se critica a posição da Igreja Católica no caso. Ora, a Igreja Católica, bem como todas outras entidades religiosas ou não têm o direito de se manifestar. O que não pode ocorrer é se confundir na questão o direito com religião. Não está em jogo se o caso é pecado ou não. Talvez essa confusão (que tem ocorrido com freqüência na política) seja responsável por muitos erros que ainda vamos ter que assistir.
A discussão do caso deveria passar também por um amplo debate pela sociedade civil, estendendo-se, a análise se a sociedade deseja, ainda, que o aborto continue a ser considerado crime pela lei penal brasileira.
Lélio Braga Calhau: Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Pós-graduado
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