Na elaboração de qualquer trabalho científico de se buscar uma análise acerca da atualidade do tema que se prestará de objeto de estudo, eis que isso conferirá relevância a tal objeto o que parece adequado, no tema em testilha, na medida em que se está a observar as considerações acerca de uma década de vigência do Estatuto do Idoso, a conhecida Lei nº 10.741/03.
De todo modo parece igualmente conveniente que todo trabalho científico parta de uma análise histórica do seu objeto para uma melhor compreensão do tema, permitindo verificar sua evolução no contexto social e permitir melhor análise desta atualidade.
Nesse sentido, a opinião de Vincenzo La Medica:
Para a exata compreensão de um instituto jurídico, é necessário procurar-lhe as fontes e considerá-lo através de sua evolução histórica; mais que não seja “para tirar – como ensinava Carrara – da comparação das antigas leis com as novas, argumentos demonstrativos da progressividade das nossas doutrinas, utilizando-os para ulteriores desenvolvimentos ou para corrigir as novas disposições, se em qualquer ponto forem menos sabiamente elaboradas”[1]
E o reconhecimento de uma tutela jurídica aos mais idosos no Brasil, ao menos de forma mais sistêmica, ou não genérica, parece se delinear a partir do advento da Carta Política vigente.
Quanto a isso, parte-se da constatação de que o Brasil se organiza como uma República Federativa e que a mesma seja, por imposição da Constituição Federal um Estado Democrático de Direito. E não é desnecessário apontar que as normas jurídicas devem se pautar por um crivo de efetividade, ou seja, devem, no mínimo, atender às finalidades para as quais foram criadas.
A sociedade brasileira não mais tolera situações de vazio normativo, como o revelam as recentes manifestações populares que, dentre outras pautas, se postaram contra os direitos não cumpridos pelos órgãos públicos – fato notório amplamente divulgado pelas mídias.
E um dos fundamentos deste Estado Democrático de Direito previsto pela Constituição Federal implica, justamente, no cumprimento de um princípio de dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso IV, CF), com despatrimonialização do direito, buscando-se uma personificação das relações jurídicas[2]. A partir daí os direitos relativizam-se, devendo sempre ser constatados a partir dessa premissa.
São ainda objetivos deste Estado Democrático de Direito, a construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária (art. 3º, inciso I, CF) e promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ou seja, todo ser humano deve ser respeitado, no que tem de humano, não no que possuir de bens, não se admitindo nada que retire a dignidade de uma pessoa enquanto tal, sendo o Brasil um país que tem o dever de ser solidário e justo, respeitando as pessoas sem preconceito em relação à sua idade.
O fato da Constituição ter feito expressa menção à vedação desses preconceitos, do ponto de vista lógico e pelo princípio pelo qual as normas não devem conter preceitos inúteis, revela que, em verdade, no ano da promulgação da Constituição (1.988) havia efetivo preconceito etário que justificasse tal previsão. Se não houvesse preconceito etário o constituinte não teria se preocupado com isso, como de fato fez.
Nesse sentido, atual a opinião de Canotilho no sentido de que se deva aplicar o princípio da máxima efetividade, assim sintetizado:
Princípio da máxima efetividade ou da eficiência – “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais”[3]
Nessa época o país saía de uma rígida ditadura militar (regime totalitário), sendo conveniente que esses preceitos fossem ressalvados na democracia que se inaugurava, porque em outros períodos históricos determinados, em regimes totalitários como o nazismo e o stalinismo, pessoas idosas foram reputadas descartáveis[4].
Mais além, pela primeira vez numa Constituição brasileira, ocorreu efetiva preocupação com a proteção jurídica de pessoas idosas, na medida em que o artigo 230 da Constituição Federal exigiu que família, sociedade e Estado tinham o dever de amparar essas pessoas.
E não é só, essas instituições (família, sociedade e Estado) teriam que assegurar a participação dos idosos na comunidade, defendendo sua dignidade e bem estar, garantindo-lhe o direito à vida.
Nesse compasso o Brasil se equiparava a outros Estados como Espanha, Itália, México, Peru e Portugal, que igualmente fizeram inserir em suas Constituições, dispositivos protetivos das pessoas idosas[5].
A Constituição Italiana, em seu artigo 38 tem previsão expressa para que trabalhadores tenham meios de amparo em sua velhice[6] (isso é implícito na nossa pela previsão da aposentadoria por tempo de serviço), enquanto que a Constituição de Portugal foi muito mais enfática estabelecendo proteção mais completa que a nossa, como se observa pelo disposto em seu artigo 72, primeira alínea: “As pessoas idosas tem direito à segurança econômica e condições de habitação e convívio familiar e comunitário que evitem e superem o isolamento e a marginalização social”.[7]
Deveria o constituinte brasileiro ter feito referência a essa segurança econômica feita pelo constitucionalista português, eis que isso melhor asseguraria a dignidade humana que, em última análise, precisa da propriedade de bens e capital para sobreviver no mundo contemporâneo (nosso constituinte foi bem mais tímido apenas prevendo a gratuidade do transporte coletivo urbano – artigo 230, par. 2º CF – quiçá o receio fosse uma abertura para o fim de técnicas de esvaziamento do valor dos benefícios previdenciários de pessoas idosas e seus impactos nas contas públicas de então – o Brasil vivia sob o influxo de uma cultura inflacionária naquele momento político).
Aliás, demorou cerca de quinze anos da promulgação da Constituição Federal brasileira para que o legislador voltasse a se preocupar com os direitos da pessoa idosa, quando então se deu a promulgação da Lei nº 10.471, no ano de 2.003, o conhecido “Estatuto do Idoso”.
Tal diploma legal, de modo expresso, se preocupou com a questão da proteção e tutela do direito à saúde da pessoa idosa nos termos da referida lei – o qual surge como modo de se buscar suprimir a baixa incidência da constitucionalidade protetiva da pessoa idosa, nos termos preconizados pelo advento da norma contida no artigo 230 do texto constitucional vigente.
Tal diploma normativo, em sua norma contida no artigo 2° já enfatiza que o idoso (assim entendido nos termos da própria lei, como pessoa com idade igual ou superior a 60 – sessenta – anos, conforme estatuído no texto de seu artigo 1°) tem direito a todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (dispositivo que chega a ser pleonástico, eis que reforça o óbvio, ou seja, que o idoso é pessoa humana com direito à dignidade inerente a tal condição, não podendo ser discriminado, o que seria decorrência do próprio princípio constitucional da igualdade, previsto no artigo 5º, caput e no seu inciso II, da Constituição Federal).
Mas este aparente pleonasmo não deixa de ser relevante eis que, com isso, se tem por reafirmado que não mais se poderia dar azo à práticas macabras, vivenciadas em hospitais públicos, que, por insuficiência de recursos, passaram a optar entre salvar a vida de pacientes mais viáveis do que outros, em escândalo divulgado pela Revista Veja (e não é preciso uma imaginação muito fértil para perceber que, seguramente, pessoas idosas acabariam sendo vistas como menos aptas à sobrevivência, numa verdadeira situação de “solução final” tupiniquim, o que é estarrecedor e inconcebível).
Mas, não obstante, pretendeu o legislador não deixar margens para interpretações dúbias, inserindo no corpo do referido artigo em comento (o artigo 2° do Estatuto do Idoso) que tais idosos tem direito expresso a todas as oportunidades e facilidades para a preservação da sua saúde física e mental.
Referida orientação é reiterada, de forma extensiva, em outros trechos do referido Estatuto, como se observa em referência contida no inciso VI do parágrafo único do artigo 3°, com a necessidade de prestação de serviços de geriatria e gerontologia[8] (preocupação retomada no artigo 15), ou do inciso VIII do mesmo parágrafo, que prevê, de forma igualmente expressa (e que não pode ser entendida como meramente programática, até pela própria peculiar situação dos idosos, que, por leis naturais, presumivelmente não se podem dar ao luxo de aguardar indefinidamente a boa vontade dos serviços públicos em sentido amplo, o que, obviamente, abrange os serviços judiciários[9]) a garantia de acesso à rede de serviços de saúde e, até mesmo, de assistência social.
Ou seja, no que se refere ao resguardo da saúde e da vida de pessoa idosa, atento a essas peculiaridades – quanto mais longeva for a pessoa, provavelmente menor será o tempo de vida restante, por uma simples lógica estatística, e, até mesmo por uma praesuntio júris hominis, ou seja, uma presunção natural incita ao ser humano, a demora na prestação do provimento jurisdicional se fará sentir de forma mais deletéria, sendo relevante a busca pela efetividade do Poder Judiciário que deverá, sob tal perspectiva optar em um juízo de proporcionalidade entre dois direitos de mesma magnitude, pelo afastamento do privilégio estatal, entendimento este, em sintonia com a jurisprudência dos Tribunais pátrios.
Acresça-se a tudo isso, o disposto nos artigos 8° e 9° do mesmo Estatuto do Idoso, em que, novamente, se reitera a necessidade de respeito aos direitos da pessoa idosa à vida e à saúde (com referência a envelhecimento saudável), questões que devem ser sopesadas sob a égide da proteção de um direito material à saúde.
Mesmo antes do advento da legislação em comento, precedentes da jurisprudência pátria já vinham assegurando muitos direitos contratuais a pessoas idosas em sede de contratos de saúde, o que torna inequívoco que, doravante, agora com legislação específica, tal tendência deverá continuar no mesmo sentido.
Com tal entendimento, à guisa de mera exemplificação, convém destacar, dentre inúmeros outros que poderiam ser destacados, o seguinte entendimento, que se pede vênia para consignar:
CIVIL – SEGURO – SAÚDE – CLÁUSULA DE EXCLUSÃO – INESPECIFICIDADE – INIQUIDADE E ABUSIVIDADE – CÓDIGO CIVIL E DO CONSUMIDOR – APLICAÇÃO AOS CONTRATOS EM ANDAMENTO – A exclusão das conseqüências das doenças crônicas da cobertura do contrato, praticamente deixa a segurada, pessoa idosa, fora de qualquer cobertura, pela sua abrangência inespecífica. Por igual, a ausência de explicação conceitual, ao nível do ‘homo medius’, do verdadeiro significado de doença crônica, também conduz a iniquidade da cláusula e a torna abusiva. Não se compreende que num contrato como o que assinam os segurados da Golden Gross, não são esclarecidos estes pontos importantes que dizem respeito a abrangência das exclusões de cobertura. A inespecificidade e a falta de conceito tornam a cláusula passível de anulabilidade, a teor do art. 115 do CC – Tal dispositivo encontra redação mais clara e moderna no art. 51, inc. Iv, do código de defesa do consumidor, mas ambos buscam praticamente o mesmo escopo, que e proteger uma das partes da relação contratual contra o arbítrio da outra. Aplicação do código de defesa do consumidor ao caso concreto. Apelo improvido. (TJRS – AC 598208759 – RS – 15ª C.Cív. – Rel. Des. Carlos Alberto Bencke – J. 22.10.1998).[10]
E, ainda no mesmo sentido:
AÇÃO DE COBRANÇA POR SERVIÇOS MÉDICOS HOSPITALARES. DENUNCIAÇÃO DA LIDE DO PACIENTE AO PLANO DE SAÚDE. SEGURADOS EM IDADE AVANÇADA. CLÁUSULA LIMITATIVA DE INTERNAÇÃO. SENTENÇA JULGANDO PROCEDENTE A PRETENSÃO AUTORAL E A DENUNCIAÇÃO. INCONFORMISMO DA LITISDENUNCIADA. ENTENDIMENTO DESTA RELATORA QUANTO AO NÃO CONHECIMENTO DO AGRAVO RETIDO. PARTE QUE APESAR DE MENCIONAR A INTERPOSIÇÃO DO RECURSO NÃO REQUEREU EXPRESSAMENTE A SUA APRECIAÇÃO PELO TRIBUNAL. ART. 523, § 1º, DO CPC. INEXISTÊNCIA DE CERCEAMENTO DE DEFESA. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. ACERTO DA SENTENÇA A QUO. O Juiz deve aplicar a lei tendo em vista os fins sociais a que ela se dirige e as exigências do bem comum, não podendo ignorar tais postulados no julgamento de contrato de prestação de seguro ou de serviços médicos, celebrado entre um particular e uma organização, como a ora recorrente. A litisdenunciada alega que o contrato de seguro-saúde em questão é anterior à Lei 9.656/98, razão pela qual não se beneficiária das garantias nela previstas. Tese já conhecida deste Tribunal de Justiça que a rechaça em razão do contrato em questão ser de trato sucessivo e se submeter às disposições do Código de Defesa do Consumidor, o qual prevê normas protetivas e de ordem pública. O fornecedor de serviços médicos e hospitalares não pode no momento de entregar sua contraprestação, invocar excludente contratual produzida unilateralmente e manifestamente em desacordo com o objeto do contrato, restringindo a sua obrigação de forma a comprometer sobremaneira o equilíbrio contratual. Súmula 302 do e. STJ. Tendo o Hospital Autor efetivamente prestado os serviços pelos quais pretende o ressarcimento, sem que tenha obtido a contraprestação pecuniária correspondente, cujo montante foi apurado pela perícia como adequado, correta a sentença de procedência tanto da lide principal quanto da secundária. Recurso conhecido e desprovido. (Apelação Cível nº 2007.001.19707, 20ª Câmara Cível do TJRJ, Rel. Conceição Mousnier. Publ. 15.08.2007).
Sempre com a ponderação relevante no sentido de que, todas as vezes que um idoso em situação de risco[11] ocupar o pólo ativo de uma demanda desta natureza, seja pela via da tutela individual, seja pela via da tutela coletiva, nos termos do artigo 75 do referido Estatuto do Idoso, imprescindível será a intervenção do Ministério Público, sob pena, evidentemente de ocorrência de nulidade processual, conforme disposto no artigo 82 do Código de Processo Civil (com a devida licença aos atos de Procuradores Gerais que buscam uma suposta racionalização dos serviços ministeriais, convém que não se esqueça de que, tais atos, emanados que são da Administração Pública lato sensu,são dotados de eficácia meramente regulamentar não podendo, de modo algum, suplantar o texto legal, podendo os juízes reconhecer monocraticamente tal inconstitucionalidade, ainda que em sede de controle difuso).
E como neste trabalho a preocupação com a efetividade é candente, sendo, mesmo que se criou como uma liberdade pública, ou fundamental right, o direito ao tempo razoável de duração do processo, como previsto pelo artigo 5º, inciso LXXVIII da Constituição Federal, pela redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional nº 45/04, que instituiu a chamada “Reforma do Poder Judiciário”, parece recomendável que, na dúvida, o Magistrado abra vista do processado ao órgão ministerial, para que o custus legis avalie se o idoso se encontra, ou não, em situação de risco (é óbvio que se o idoso for um grande empresário, representado por um grande corpo de advogados, não se cuidará de situação de intervenção ministerial, mas, caso contrário, o legislador pretendeu erigir os interesses de pessoa idosa, nessas condições, em interesse público relevante a recomendar a intervenção ministerial), prevenindo a ocorrência de nulidades futuras (tal como decorre do teor da norma contida no artigo 84 do Código de Processo Civil[12]), com o que, evidentemente, se evitará a perda de precioso lapso temporal.
Portanto, na dúvida, convém que os magistrados não sejam responsabilizados por causas de nulidade (ainda mais em tempos de efetividade e celeridade da prestação jurisdicional), abrindo vistas dos autos aos Promotores de Justiça, em ações deste jaez, não havendo escusas para que os membros do parquet se recusem a acompanhar como custus legis, este tipo de demanda, ainda mais quando se cuidar de pessoa idosa hipossuficiente, em situação de risco.
E de igual magnitude se tem revelado a discussão a respeito da possibilidade de se atribuir aumentos arbitrários das prestações de pessoas idosas, nesses contratos de seguros ou planos de saúde, insistindo, muitas prestadoras, de forma abusiva, em expedientes leoninos e contrários ao texto legal e ao poder regulamentar da ANS (seus advogados acabam por expor os gestores às sanções legais do artigo 35 da Lei n° 9.656;98, além de indenizações e multas como estabelecido nos artigos 26 e 27 do mesmo diploma legal) em pretender coagir pessoas idosas a aumentos abusivos (como sabido a ANS divulga os índices de correção anual dos contratos e o Estatuto do Idoso, de forma expressa, não admite tal discriminação[13]).
E, ainda mais, em entendimento não acolhido pela jurisprudência pátria, as operadoras de tais planos e seguros tem buscado alegar que as garantias do Estatuto do Idoso somente atingiriam os contratos firmados sob sua égide, diante do princípio da irretroatividade das leis, a que alude o advento da norma contida no artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal, isoladamente considerado.
No entanto, sempre com a maior vênia possível, tais argumentos não podem prosperar eis que, em primeiro lugar, não se pode esquecer que esse tipo de contratação, às mais das vezes, encerra em si mesma, não obrigações instantâneas, mas, ao contrário, obrigações de trato sucessivo (mensalmente o usuário paga para obter a proteção pelo respectivo mês), de modo que tal raciocínio, simples por si só, já revelaria que, se uma nova prestação se venceu no curso da vigência do Estatuto do Idoso (ainda que o contrato tenha sido firmado em momento anterior), pelo óbvio que as obrigações surgidas naquele novo mês (ante a própria indisponibilidade do objeto saúde), somente podem ser aceitas se vistas sob a égide da obrigação vigente quando de seu cumprimento.
Tanto assim que, interpretando a questão, reconheceu o E. Superior Tribunal de Justiça, que tais aumentos seriam iníquos e abusivos, não podendo prevalecer, ainda mais porque, ainda que o contrato previsse aumentos em momento futuro, quando o consumidor atingisse esta ou aquela idade, enquanto isso não ocorresse, a prestadora ou fornecedora somente teria uma mera expectativa de direito ao referido aumento, e, enquanto expectativa, não poderia ser invocada, diante de lei nova que suprimiu aquela possibilidade doravante.
Neste sentido, a acepção literal do Julgado em questão, não deixa margens para dúvidas acerca da impossibilidade de se alterar valores de prestação por faixas etárias em detrimento de pessoas idosas, pedindo-se, portanto, vênia para sua transcrição:
PLANO. SAÚDE. REAJUSTE. IDOSO. Discute-se a aplicabilidade do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003) aos contratos de plano de saúde firmados antes de sua vigência que continham cláusula autorizadora da majoração de mensalidade por mudança de faixa etária. Na espécie, ao completar 60 anos, a autora teve reajuste de 185%. Destaca a Min. Relatora, invocando o acórdão recorrido, que o Estatuto do Idoso contém dispositivo contrário à legislação (Lei n. 9.656/1998) que rege os planos de saúde, pois veda a discriminação do idoso com cobranças de valores diferenciados em razão da idade (art. 15, § 3º). A diretriz adotada no Tribunal a quo, ditada pelo princípio da aplicação imediata da lei, condicionou a incidência da cláusula de reajuste quando o usuário do plano de saúde atingisse a idade para o reajuste e não o momento da celebração do contrato. Isso posto, no caso em julgamento, a idade que confere à pessoa a condição jurídica de idosa realizou-se sob a égide do Estatuto do Idoso, por essa razão ela não está sujeita aos reajustes estipulados no contrato permitidos na lei velha. Outrossim, se a previsão de reajuste contida na cláusula só opera efeitos quando satisfeita a condição contratual e legal da idade, enquanto não atingir esse patamar, não há o ato jurídico perfeito nem se configura o direito adquirido de a empresa seguradora receber os valores reajustados predefinidos. Assim, a abusividade na variação das contraprestações pecuniárias deverá ser aferida em cada caso concreto, diante dos elementos que o Tribunal de origem dispuser, como se deu nesse processo. Ressalta ainda a Min. Relatora: no que não for reajuste decorrente de mudança de idade, o segurado submete-se às majorações normais dos planos de saúde. Prosseguindo o julgamento, após a renovação do julgamento, a Turma, por maioria, manteve a decisão a quo. REsp 809.329-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 25/3/2008[14].
Tampouco este entendimento poderia ser tido como isolado (a inclinação jurisprudencial se tem revelado como óbvia, parecendo que as operadoras acabem por recorrer de modo apenas protocolar, apenas e tão somente o que se lamenta, para assoberbar ainda mais a máquina judiciária estatal, em detrimento de milhões de usuários de um sistema abarrotado e azafamado por grande volume de serviços), eis que no mesmo ano, desta feita em ação coletiva movida pelo Ministério Público, se continuou a respaldar tal entendimento, esvaziando a tese defendida pelas prestadoras de serviços de seguro-saúde e planos de saúde, em sentido contrário (R.Esp, 989380-RN, 3ª Turma, Min. Nancy Andrighi, 09.12.2.008).
Reforça o argumento desta tendência, o fato de que, em janeiro de 2.009, também em ação coletiva, reconheceu o direito a consignar valores sem aumentos abusivos, por pessoas idosas (MC 15078-SP, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 15.01.2.009).
O próprio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, desde há muito, comungava deste mesmo entendimento no sentido da proteção de consumidores idosos em face de aumentos abusivos e abruptos dos valores das mensalidades (o que, nessas condições, ante o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça tende a se tornar uma constante). Neste sentido:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – Ação cominatória – Plano de saúde – Antecipação dos efeitos da tutela (art. 273, do Código de Processo Civil) – Coexistência dos requisitos autorizadores da concessão – Prova inequívoca da contratação, da média histórica das contribuições – Aumento que é, em princípio, elevado, pois chega a praticamente quadruplicar o valor da prestação devida – Beneficiário que é sexagenário – Risco de prejuízos irrecuperáveis ou de difícil recuperação – Antecipação devida – Recurso provido. (TJSP – Agravo de Instrumento n. 116.632-4 – São Paulo – 2ª Câmara de Direito Privado – Relator: Linneu Carvalho – 23.11.99 – V.U.).
Nem a mesma a preocupação de que isso poderia implicar em discriminação (igualmente proibida pelo Estatuto do Idoso) de pessoas idosas em contratos deste jaez – não se desconhecem práticas de algumas seguradoras em querer, leoninamente, eliminar a alia contratual, após anos de contribuição, rescindindo unilateralmente os contratos – como se a boa-fé objetiva não existisse, eis que tal prática já tem sido reconhecida como abusiva pelos Tribunais pátrios, podendo-se destacar o seguinte entendimento a respeito do tema:
PLANO DE SAÚDE – A jurisprudência, mesmo sem o apoio do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) e da norma que disciplina a atividade comercial de planos e seguros médicos (Lei n. 9.656/98), humanizou a função de contratos antigos, desautorizando rescisões imotivadas que discriminam conveniados idosos (artigo 1º, III e 196 da Constituição Federal) – Sentença consentânea com a socialização contratual e que reprime o abuso de direito – Recurso não provido. (TJSP – Apelação Cível n. 82.043-4 – São Paulo – 3ª Câmara de Direito Privado – Relator: Ênio Zuliani – 01.02.00 – V.U.)
Em caso análogo, também seria de se destacar:
PLANO DE SAÚDE – Resilição pela empresa do contrato que havia celebrado com associação de aposentados – Recusa daquela em aceitar o associado como contribuinte em caráter privado – Contribuinte que se encontrava sob tratamento quimioterápico em razão de malignidade da qual acometido – Pedido de tutela antecipada para que a cláusula contratual que permitia a denúncia não operasse efeitos, nas circunstâncias – Entendimento do pedido nesse modo, justificando-se a concessão da tutela antecipada requerida, nas circunstâncias, satisfeitos os pressupostos legais – Recurso da empresa não provido.(TJSP – Agravo de Instrumento n. 146.535-4 – São Paulo – 4ª Câmara de Direito Privado – Relator: Jacobina Rabello – 17.02.00 – V.U.)
Tudo isso sem que se esqueça de ponderar no sentido de que o Capítulo IV do Estatuto do Idoso, em seus artigos 15 a 19 já apresente um rol de garantias protetivas das pessoas idosas em relação ao objeto saúde, como o direito de ser acompanhado em tempo integral, em caso de internação hospitalar, com condições adequadas para tal acompanhamento, com interessante ressalva no artigo 16, par. Único deste diploma legal, no sentido de que se médico não recomendar o acompanhamento deverá justificar-se por escrito.
De igual sorte, de se observar ao idoso em gozo das faculdades mentais, o direito de optar pelos melhores tratamentos de saúde para a sua enfermidade (art. 17), devendo, ainda, o Poder Público, quando prestar esse atendimento, propiciar treinamento especializado para as pessoas que irão atender as pessoas idosas (art. 18), com a previsão de que a geriatria e a gerontologia se inseriam como disciplinas obrigatórias de cursos superiores[15].
Em linhas gerais, essas as principais inferências legislativas no que diz respeito às situações diferenciadas da questão da saúde de pessoas idosas no direito brasileiro, o que nos leva à uma reflexão, nessa década de vigência, a respeito do quanto isso vem sendo efetivamente cumprido em nossa sociedade.
Basta ver pelo número de precedentes jurisdicionais que há muitas tentativas de descumprimento que, no entanto, não tem obtido guarida judicial, em dado muito positivo, que revela o acerto da opção legislativa de explicitar o óbvio. Mas muito ainda deve ser feito em sede de investimentos e melhoria do atendimento sobretudo no setor público, como revelam notícias que dioturnamente assoberbam os meios de comunicação de massa. Muito se fez[16], mas aguarda-se que o restante venha a ser feito, em sede de concessão de eficácia plena, à tutela dessa coletividade de idosos de nosso país.
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NOTAS
[1] MEDICA, Vincenzo La. O Direito da Defesa, Campinas: M & E, 2003, p. 9.
[2] CASSETARI, Christiano. Elementos de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2.011, p. 401.
[3] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 7ª Edição, 3ª Reimpressão, p. 1.224.
[4] ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2.004.
[5] BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva, Comentários à Constituição do Brasil, Vol 8, São Paulo: Saraiva, 1.998, p. 1.036.
[6] ITÁLIA, Constituição da. Coleção Constituições do Mundo. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1991, p. 25.
[7] PORTUGAL, Constituição da República. Rio de Janeiro: Destaque, 1992, p. 37-38.
[8] Especialidades médicas específicas da chamada terceira idade, o que vale dizer que não basta um simples atendimento médico, mas que tal atendimento médico ao idoso deve ser especial, levando em consideração suas peculiaridades (o que se parece buscar não é a simples mantença da vida de pessoas nessa situação, mas conferir uma qualidade de vida ao idoso, como decorre das normas contidas nos artigos 8º e 9º do mesmo Estatuto do Idoso).
[9] Ou seja, nessas condições, com maior razão, as tutelas devem ser antecipadas sempre que possível, sob pena de provável esvaziamento, não podendo o magistrado permitir que a demora implique na negativa do seu dever de prestar jurisdição.
[10] CDROOM. Júris Síntese Milenium, Vol. 32, Porto Alegre: Síntese, Brasil, novembro/dezembro de 2001.
[11] Lamentavelmente uma situação cada vez mais comum, notadamente se for levado em consideração que a grande massa de idosos desse país se aposenta em condições, no mínimo, indignas, não tendo assegurados, de forma efetiva, critérios de correção monetária do valor de seus benefícios previdenciários (o que se dá, até em função de fatores econômicos, com distorções na aferição do caixa da Previdência Social, como comentado pelos especialistas em previdência). De todo modo, na dúvida sobre a situação de risco, o Ministério Público deverá intervir, prevenindo-se a ocorrência de causa de nulidade processual (nada impede que, se após algum tempo, a situação de risco cessar, o douto representante do parquet deixe de se manifestar nos autos do processo, por razões de obviedade singular).
[12] Os patronos devem pleitear, portanto, a intimação do Ministério Público, neste tipo de demanda, nos estritos termos da legislação mencionada (artigos 75 do Estatuto do Idoso e 84 do Código de Processo Civil).
[13] A própria ANS baixou resolução alterando entendimento anterior ao Estatuto do Idoso, para que faixas etárias para aumento das prestações não ultrapassem a idade de cinquenta e nove anos, evitando-se, com isso, burlas à atual legislação federal, em mostra clara de que os planos de saúde e seguro-saúde, não podem pretender utilizar expedientes deste jaez.
[14] Tal fato foi amplamente divulgado quando do referido julgamento, não sendo demais lançar, neste momento, o quanto divulgado, em nota oficial, pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, em notícia acerca deste fato: Tribunal veda discriminação de idoso com a cobrança de valores diferenciados pelo plano de saúde O Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) que condenou a Amil Assistência Médica Internacional Ltda a cancelar o reajuste da mensalidade de cerca de 185% do plano de saúde da aposentada O.P.S.R, após ela ter completado 60 anos. A Amil também foi condenada a devolver em dobro o valor pago em excesso pela segurada, corrigido monetariamente e acrescido de juros legais desde a citação. A defesa da segurada afirma que ela aderiu ao plano de saúde oferecido pela Amil em 2001 e que, em 2004, em razão de ter completado 60 anos de idade, a mensalidade foi reajustada em cerca de 185%. Com base no Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003) e do Código de Defesa do Consumidor, entrou com pedido no TJRJ para cancelar o reajuste e obter a devolução em dobro dos valores pagos em excesso. O pedido foi julgado procedente. Em seguida, a Amil entrou com recurso especial no STJ alegando que as disposições do Estatuto do Idoso não se aplicam aos contratos celebrados antes da sua vigência. A relatora, ministra Nancy Andrighi, destaca que a perspectiva ditada pelo princípio da aplicação imediata da lei confere a possibilidade de condicionar a incidência da cláusula de reajuste por faixa etária igual ou superior a 60 anos ao momento não da celebração do contrato, e sim de quando a aludida idade foi atingida. Se o consumidor usuário do plano de saúde atingiu a idade de 60 anos já na vigência do Estatuto do Idoso, fará ele jus ao abrigo da referida lei. Assim, se o implemento da idade que confere à pessoa a condição jurídica de idosa realizou-se soa a vigência da lei nova, não estará o consumidor usuário do plano de saúde sujeito ao reajuste estipulado no contrato e permitido pela lei antiga. Estará amparado, portanto, na lei nova. A ministra esclarece a decisão não está alçando o idoso à condição que o coloque à margem do sistema privado de planos de assistência à saúde, “porquanto estará ele sujeito a todo o regramento emanado em lei e decorrente das estipulações em contratos que entabular, ressalvada a constatação de abusividade que, como em qualquer contrato de consumo que busca primordialmente o equilíbrio entre as partes, restará afastada por norma de ordem pública”, assinala. Por maioria, a Terceira Turma do STJ não conheceu do recurso da Amil esclarecendo que o plano de saúde do segurado submete-se aos reajustes normais. E, assim, manteve a decisão que condenou a empresa à devolução em dobro do valor pago em excesso pela segurada do plano.
[15] SOUZA, Ana Maria Viola de. Tutela Jurídica do Idoso – a assistência e a convivência familiar. Campinas: Alínea, 2.004, p. 115.
[16] GONÇALVES, Alexandre; RODRIGUES Francini. Dez anos do Estatuto do Idoso – Revista Justiça e Cidadania, edição 156/32-35, agosto de 2013.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CASSETARI, Christiano. Elementos de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2.011.
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SOUZA, Ana Maria Viola de. Tutela Jurídica do Idoso – a assistência e a convivência familiar. Campinas: Alínea, 2.004.
REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
JÚLIO CÉSAR BALLERINI SILVA: Magistrado e Professor de cursos de graduação e pós-graduação (UNISAL , ESAMC, PROORDEM, PITÁGORAS E UNIFEOB). Mestre em Processo Civil pela PUC Campinas, Especialista em Direito Privado pela USP. Autor de Livros e Artigos Jurídicos.
CAROLINA AMÂNCIO TOGNI BALLERINI SILVA: Advogada e estudante de Psicologia.