Affectio societatis e a pessoa jurídica de direito privado

  • Reinaldo Monteiro

O vínculo de cooperação entre os sócios é fator fundamental e responsável pela saúde e continuidade da sociedade. Cerca de 65% das empresas não sobrevivem após a primeira metade da década do nascimento. Evidentemente que são vários fatores que levam a sucumbência, mas um deles chama a atenção que é a vontade livre e mútua de constituir e estar em sociedade. A preservação dos elementos que levaram as pessoas a se unirem em sociedade é relevante para o sucesso ou insucesso do negócio.

Vige no Brasil o princípio da livre associação, possibilitando as pessoas imbuídas de capacidade civil, se associarem na busca do objetivo comum. O respaldo está no inciso XVII do artigo 5º da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

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XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

A liberdade de associação permite que as pessoas dotadas de capacidade para a prática dos atos da vida civil possam se unir, dando vida a pessoa jurídica, distinta dos seus componentes, e com vida jurídica própria.É evidente que no cenário capitalista as pessoas buscam ganhos financeiros, por meio da atividade exercida e desenvolvida pela pessoa jurídica. Também, é evidente que tais ganhos serão oportunamente, preservando a saúde financeira da pessoa jurídica, repartidos entre as pessoas que a constituíram e de acordo com a participação de cada um.

A doutrina classifica as sociedades contratuais como sociedades de pessoas, pela evidente participação dos sócios na composição e muitas vezes na administração da sociedade. Pessoas físicas são dotadas de desejos e vontades e é este o ponto que merece a máxima atenção. A convivência entre pessoas é sempre um pontoque merece destaque.  A sociedade,na qualidade de detentora de personalidade jurídica possui vida própria distinta dos seus sócios ou fundadores, porém, não é dotada de desejo e vontade. A condução dos negócios da pessoa jurídica está atreladaas atitudes tomadas e adotadas por pessoas físicas. A continuidade da vida da sociedade depende de uma série de fatores, mas certamente do relacionamento entre os sócios e os administradores.

O mercantilismo ganha força nos séculos XV e XVII e neste período as pessoas sentem a necessidade de se unirem com a finalidade de constituir um negócio próprio. Os esforços de cada um, agregados com objetivos comuns, fizeram com que as pessoas fossem se amoldando no relacionamento em busca do ponto de equilíbrio, para a conquista de objetivo comum – lucro.

A doutrina identificou que entre as pessoas que se unem para a concretização de um objetivo comum existe um elemento subjetivo e imprescindível de ligação, que forma um vínculo que vai além da vontade de constituir a sociedade e obter resultados financeiros. A este elemento atribuiu o nome de “affectio societatis” ou “animus contrahendisocietatis”, ou simplesmente “animus societário”.

A “affectio societatis” aparece no relacionamento entre pessoas, que no dizer de COELHO[1]corresponde à disposição dos sócios em formar e manter a sociedade uns com os outros. Sendo motivo relevante para a decretação da dissolução da sociedade, quando sofre abalo, deteriora e desaparece. Acrescenta MARTINS[2]que a affectio societatis é o liame de estarem os sócios juntos para a realização do objeto social. Nas palavras de FAZZIO JUNIOR, citando Fábio Konder Comparato[3], “A affectio societatis é, portanto, não um elemento exclusivo do contrato de sociedade, distinguindo-o dos demais contratos, mas um critério interpretativo dos deveres e responsabilidades dos sócios entre si, emvista do interesse comum. Quer isto significar que a sociedade não é a única relação jurídica marcada por esse estado de ânimo continuativo, mas que ele comanda, na sociedade, uma exacerbação do cuidado e diligência próprios de um contrato bonaefidei. (…) Há assim dois elementos componentes da affectio ou da bona fides socieatis, representativos do duplo aspecto dessa relação: a fidelidade e a confiança. A fidelidade é o escrupuloso respeito à palavra dada e o entendimento recíproco que presidiu à constituição da sociedade, ainda que o quadro social se haja alterado, mesmo completamente. Por outro lado, a confiança é também um dever do sócio para com os demais, dever de tratá-los não como contrapartes, num contrato bilateral em que cada qual persegue interesses individuais, mas como colaboradores na realização de um interesse comum”.

O legislador brasileiro não se preocupou com esta questão ao redigir o artigo 981 do código civil. Não exige, como elemento constitutivo da sociedade a demonstração da “affectio societatis”. Cuidou-se apenas dos aspectos formais e objetivos, deixando para os sócios, o ajuste do relacionamento interpessoal.

Art. 981 Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.

Não obstante a ausência de previsão legal não desnatura ou afasta a “affectio societatis”. Não é possível visualizar a existência de sociedade contratual (sociedade de pessoas) se os sócios não estiverem alinhados, comungando com o mesmo propósito que é, perseguir até atingir o fim comum. É salutar que eventuais rusgas no relacionamento sejam dirimidas rapidamente, para que não se torne a relação pessoal insuportável, que certamente respingará na pessoa jurídica.

Nas sociedades contratuais o que também se pode estender as sociedades em comum, a “affectio societatis” surge no momento em que as pessoas manifestam a intenção de associar-se e dura enquanto se mantém o laço de cooperação mútua e a combinação de esforços na realização de objetivos do ente empresarial.

Não se identifica qualquer subordinação entre as pessoas, mesmo em se tratando de sócio minoritário. Todos estão no mesmo nível. São detentores de direitos e obrigações perante a sociedade que criaram. É importante destacar este ponto, tendo em vista a questão da sociedade de fato, sociedade em comum ou simplesmente sociedade irregular. A ausência de contrato escrito pode levar a dúvida se as pessoas que conduzem a sociedade são ou não sócios, mas a ausência de instrumento contratual não prejudica ou afasta a existência da “affectio societais”. A caracterização ocorre pelo liame de cooperação mútua entre as pessoas e não pela formalização do contrato escrito.

A ausência da “affectio societatis” significa dizer que a sociedade não se constituiu e, portanto, não há elemento para sua permanência no campo societário. A desarmonia não se coaduna com os princípios da sociedade. Ocorrendo, a sociedade caminhará para a bancarrota.

Tribunal de Justiça de Santa Catarina. 

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE. CONFIGURAÇÃO DA PERDA DA AFFECTIO SOCIETATIS. DESNECESSIDADE DE APURAÇÃO DE FALTA GRAVE PARA EXCLUSÃO DE SÓCIO. APURAÇÃO DE HAVERES. LIQUIDAÇÃO QUE DEVE SER FEITA POR ARBITRAMENTO NOS TERMOS DO ART. 475-C, DO CPC. (…) O dissenso grave e o consequente desaparecimento da affectio societatis entre sócios de uma sociedade comercial, autoriza a sua dissolução parcial, com a retirada de um deles. A caracterização da quebra da affectio societatis induz à dissolução parcial da sociedade, sendo desnecessária a apuração de falta grave para tal fim”. (TJSC. Apelação Cível nº 679015. Relator: Desembargador Cláudio ValdyrHelfenstein, Terceira Câmara de Direito Comercial, Julgamento: 12-5-10)”.

Superior Tribunal de Justiça.

EMPRESARIAL. SOCIEDADE ANÔNIMA FECHADA. CUNHO FAMILIAR. DISSOLUÇÃO. FUNDAMENTO NA QUEBRA DA AFFECTIO SOCIETATIS. POSSIBILIDADE. DEVIDO PROCESSO LEGAL. NECESSIDADE DE OPORTUNIZAR A PARTICIPAÇÃO DE TODOS OS SÓCIOS. CITAÇÃO INEXISTENTE. NULIDADE DA SENTENÇA RECONHECIDA. 1. Admite-se dissolução de sociedade anônima fechada de cunho familiar quando houver a quebra da affectio societatis. 2. A dissolução parcial deve prevalecer, sempre que possível, frente à pretensão de dissolução total, em homenagem à adoção do princípio da preservação da empresa, corolário do postulado de sua função social. 3. Para formação do livre convencimento motivado acerca da inviabilidade de manutenção da empresa dissolvenda, em decorrência de quebra do liame subjetivo dos sócios, é imprescindível a citação de cada um dos acionistas, em observância ao devido processo legal substancial. 4. Recurso especial não provido. (STJ – RECURSO ESPECIAL REsp 1303284 PR 2012/0006691-5 (STJ – data da publicação: 13/05/2013)

 SOCIEDADE ANÔNIMA FAMILIAR. DISSOLUÇÃO PARCIAL.

A Seção reiterou ser possível a dissolução parcial de sociedade anônima familiar com apuração de haveres, no caso de quebra da affectio societatis, até para preservar a sociedade e sua utilidade social (Lei n. 6.404/1976, art. 206, II, b). Precedente citado: EREsp 111.294-PR, DJ 10/9/2007. EREsp 419.174-SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgados em 28/5/2008. – 2ª seção. 

SOCIEDADE DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. QUOTAS DE CAPITAL. PENHORABILIDADE.

São penhoráveis, por dívida particular do sócio, as respectivas quotas de capital na sociedade limitada, porquanto prevalece o princípio de ordem pública, segundo o qual o devedor responde por suas dívidas com todos os bens presentes e futuros, não sendo, por isso mesmo, de se acolher a oponibilidade da affectio  societatis. Precedentes citados: REsp 172. 612-SP, DJ 28/9/1998, e REsp 34.692-SP, DJ 29/10/1996. REsp 201.181-SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 29/3/2000.

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO CUMULADA COM PERDAS EDANOS. EXTENSÃO DA OBRIGAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS. REEXAME DE PROVAS. SÚMULAS NºS 5 E 7/STJ. AFFECTIO SOCIETATIS. RUPTURA. INEXEQUIBILIDADE DO CONTRATO SOCIAL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. INGRESSO EM SOCIEDADE LIMITADA. DETERMINAÇÃO JUDICIAL.NÃO CABIMENTO.

      1. Em ação de rescisão de contrato cumulada com perdas e danos, oacórdão recorrido considerou que as obrigações cumpridas pelarecorrida, nos termos do contrato preliminar, autorizavam suainclusão no quadro societário da empresa da qual são sócios os recorrentes. Assim, determinou a alteração do contrato social a fimde incluí-la como sócia com base nas regras processuais que asseguram a concessão de tutela específica para o cumprimento daobrigação de fazer.
      1. No tocante à extensão do cumprimento das obrigações de cada contratante, a demanda foi solucionada pelas instâncias ordinárias com ênfase na interpretação do contrato firmado entre as partes e nasua contextualização com os demais elementos fático-probatórios produzidos na instrução processual. Sob esse prisma, a pretensão recursal esbarra nos rigores contidos nas Súmulas nºs 5 e 7/STJ.
      1. Em contrato preliminar destinado a ingresso em quadro de sociedade limitada, a discussão passa pela affectio societatis, que constitui elemento subjetivo característico e impulsionador da sociedade, relacionado à convergência de interesses de seus sóciospara alcançar o objeto definido no contrato social. A ausência desse requisito pode tornar inexequível o fim social. Inteligência dosarts. 1.399, inciso III, do Código Civil de 1916 ou 1.034, incisoII,  do Código Civil de 2002, conforme o caso.
      1. Apresenta-se incabível provimento jurisdicional específico que determine o ingresso compulsório de sócio quando ausente a affectio societatis, motivo pelo qual se impõe a reforma do acórdão recorrido para decretar a resolução do contrato, a fim de que se resolva aquestão em perdas e danos.
      2. Recurso especial provido em parte. Sentença restabelecida. (REsp 1192726 / SC – RECURSO ESPECIAL – 2010/0083659-8 – T3 – TERCEIRA TURMA – DJe 20/03/2015).

As empresas tendem a se desintegrar como fenômeno natural decorrente das novas tecnologias, de novas exigências e de novos mercados.  Hoje, ninguém almeja adquirir uma máquina de escrever, a menos para enfeite, adorno ou simplesmente com a intenção de colecionar. Perdeu-se a utilidade frente ao crescimento dos computadores e outras tecnologias de comunicação.

A deterioração das organizações se observa pela elevada quantidade de falências decretadas e pela expressiva quantidade de recuperações judiciais deferidas. Em 2018 foram decretadas 930 falências das 1.459 requeridas; e, 1.215 recuperações judiciais deferidas, das 1.408 requeridas. Aponta-se ainda que que em 2016 ocorreu uma diminuição de 64.368 empresas, comparado com o ano de 2015. [4]

A vida das sociedades depende de uma série de fatores e entre eles está a capacidade dos sócios e administradores de compreenderem as razões do fenômeno da deterioração que possam afetá-los e adotar providencias visando ajustar os planos iniciais, remodelando não só fisicamente como o ajuste na affectiosocietatis. A capacidade das pessoas em manter alinhadas, compromissadas e em harmonia, sem dúvida é elemento determinante da continuidade da empresa. Há de considerar que as pessoas, também, sofrem declínio, provocados pela idade e pelas doenças. Não é suficiente que os sócios estejam em harmonia na conquista do objetivo e do resultado financeiro. É preciso que o contrato social preveja eventuais variações que possam ocorrer no futuro, como a reorganização do quadro societário, decorrente do falecimento, do envelhecimento e da incapacidade de sócios. Este é o ponto mais crítico.

A busca de substituto ou o ingresso de novo componente no quadro societário ou na administração da empresa, certamente afetará a affectio societatis e exigirá flexibilidade dos sócios remanescentes, para amoldar ao novo perfil que será formado após a alteração societária.

É nítida a intenção do legislador em preservar o convívio entre os sócios ao impedir a cessão livre de quotas às pessoas estranhas ao quadro societário. Não obstante a falta de previsão legal sobre a affectio societatis para constituição de sociedade, o legislador preocupou-se em manter a harmonia societária no momento da alteração do quadro societário.

[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 17 ed. São Paulo: Saraiva. V.2, p. 422

[2] MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. 30ª ed. atualizada por Carlos Henrique Abrão. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 173.

[3] FAZZIO JUNIOR, Waldo. Manual de direito Comercial. 13ª ed. São Paulo: Atlas. 2012. p. 130

[4]https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101590.pdf – Estatística do Cadastro Central de Empresas 2016 – Rio de Janeiro 2018. Consulta efetuada em 5 de fevereiro de 2019.

Já noticiava a Gazeta Mercantil de 05.10.1978, que anualmente surgem cem mil novas sociedades e, que 82% delas desaparecem antes de completar três anos.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

REINALDO MONTEIRO:   advogado corporativo, consultor jurídico empresarial e professor do Centro Universitário FIG-UNIMESP.

 

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