Tassus Dinamarco*
Na redação do art. 186 do Código Civil, aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito[1]. O art. 5º, X, da Constituição Federal, preconiza com peso de garantia fundamental a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação[2]. Violados esses valores, surge ao agente o dever de indenizar o prejudicado por força da responsabilidade civil contratual ou extracontratual, fato jurídico que é percucientemente aferido pelo juiz no caso concreto, distribuído o ônus da prova, aberto o contraditório e permitindo-se a ampla defesa às partes mediante o devido processo legal.
Sabe-se que o ordenamento jurídico estipula o ônus da prova ao autor do fato constitutivo do direito, restando ao réu provar os fatos impeditivos, modificativos e extintivos daquele alegado direito. Essa é a redação do art. 333 do Código de Processo Civil. Autoriza-se, entretanto, que as partes convencionem a distribuição do ônus da prova traçada objetivamente pela lei, salvo quando a mesma recair sobre direito indisponível ou tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito. Ocorrendo isso, há nulidade absoluta do julgado que abandonar esta restrição à liberdade da regra de distribuição do ônus da prova conforme o parágrafo único do art. 333 citado. Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery lembram que “Os direitos indisponíveis não podem ser objeto de transação (CC 841; CC/1916 1035). Por isso que, a respeito deles, não podem ser considerados verdadeiros os fatos alegados na inicial, mesmo que ocorra revelia (CPC 320 II), e não é válida a confissão de fatos relativos a direitos indisponíveis (CPC 351)”[3]; […] “A doutrina mais moderna e as legislações novas têm compreendido bem a problemática que envolve a produção da prova que deve ser feita pelo autor que, por sua vez, não tem acesso a elementos e informações que são de vital importância para a demonstração dos fatos que sustentam seu direito. Nessa linha de considerações está a inversão do ônus da prova que se admite no CDC, em favor do consumidor”[4].
Malgrado possa o juiz distribuir o ônus da prova no caso concreto aplicando a regra de julgamento e alertando as partes nesse sentido, o que se verá adiante, a própria lei traz hipóteses em que o fato constitutivo do direito do autor é dividido ou mesmo transferido ao réu. Entende-se que sem a inversão o direito alegado na petição inicial dificilmente seria provado à luz do art. 333, I, do CPC. Restringindo, exemplificativamente, a prova da verdade, segundo o conceito criado pela responsabilidade subjetiva[5] na demonstração do fato que viola direito de terceiro, onde se exige em situações ordinárias a prova do dano causado, a ação ou omissão do agente e o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado, previu o art. 927, parágrafo único, do Código Civil, a obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Afastando a regra da responsabilidade subjetiva, tal como prescrevem os arts. 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor, os arts. 931 e 933 do Código Civil trazem a aplicabilidade da inversão do ônus da prova, ou, melhor ainda, o critério de apuração da responsabilidade civil aferida mediante uma causa objetiva, onde o agente que causa o dano tem que demonstrar ao juiz sua irresponsabilidade perante o caso concreto. Essa é a afamada responsabilidade objetiva, de difícil aceitação por aqueles que exercem profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços: os empresários[6].
Sem mais delongas, vamos analisar o art. 187 do Código Civil, onde o abuso do direito[7] reflete a possibilidade de concessão da tutela antecipatória punitiva, atividade processual onde o juiz distribui o ônus da prova, por verossimilhança, e, assim, dá a tutela provisória ao autor em detrimento do réu incumbido de demonstrar fato impeditivo, modificativo e extintivo do alegado direito, cujo fato constitutivo é parcialmente afastado pela responsabilidade objetiva daquele titular de um direito que comete ato ilícito ao exercê-lo com excesso manifesto dos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Com efeito, dispõe o art. 187 que comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Na capital federal Brasília, entre
Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery dão exemplos de abuso do direito do art. 187 do Código Civil: “a) proprietário que abre poço em seu terreno com o fim de prejudicar uma nascente existente em prédio vizinho; b) proprietário de estreita faixa de terreno, apenas cultivável manualmente, onde não é possível fazer qualquer construção e que provavelmente virá a ser incorporada na estrada com que confina, se opõe a que o dono de uma casa vizinha abra sobre ele janelas a menos de metro e meio de distância; c) assembléia geral de sociedade toma, por maioria, deliberação que visa, não o interesse comum dos associados, mas antes interesses extra-sociais dos sócios majoritários; d) devedor que obsta, com sua conduta, ao exercício tempestivo do direito do credor e invoca depois a prescrição desse direito”[8].
O Superior Tribunal de Justiça se pronunciou a respeito, in verbis: “Age com abuso de direito e viola a boa-fé o banco que se cobra, invocando cláusula contratual constante do contrato de financiamento, lançando mão do numerário depositado pelo correntista em conta destinada ao pagamento dos salários de seus empregados, cujo numerário teria sido obtido junto ao BNDS. A cláusula que permite esse procedimento é mais abusiva do que a cláusula mandato, pois, enquanto esta autoriza apenas a constituição do título, aquela permite a cobrança pelos próprios meios do credor, nos valores e no momento por ele escolhidos”[9].
Constatado pelo juiz da lide o abuso do direito trazido pelo art. 187 abre-se a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela pretendida no todo ou
Segundo o art. 273 do CPC[11], o juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e […] II – fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu. Este inciso é interpretado pela doutrina como hipótese de antecipatória que necessariamente não requer para sua concessão a urgência no julgamento da lide. Não nos parece, entretanto, que seja assim. O tempo do processo é matéria constitucional, não só pela redação constituinte do art. 5º, XXXV, como também pela recente inclusão do inciso LXXVIII no mesmo dispositivo magno, instituído pela emenda constitucional 45/2004. Fora o princípio democrático-republicano que proíbe a exclusão pela lei, decisão judicial ou ato administrativo da apreciação do Poder Judiciário a lesão ou ameaça a direito, exige-se que a todos, no âmbito judicial e administrativo sejam assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Destarte, é preciso ver com ressalvas a clássica menção da doutrina de que a concessão da tutela antecipada do art. 273, II, do CPC, a “antecipação-punitiva”, não se relaciona com a urgência do caso concreto e sim como sanção à parte que retarda injustificadamente o procedimento. A lentidão do processo, sentida principalmente nas regiões mais populosas, expele alegação nesse sentido. Todo processo é urgente e toda concessão de antecipação dos efeitos da tutela pretendida, segundo a estrutura vigente pelo art. 273 do CPC, deve se basear na urgência dos julgados, obviamente com mais intensidade em alguns casos. E negar urgência ao processo, judicial ou administrativo, permitindo-se o odioso retardamento na distribuição da justiça, já é suficiente causa de inconstitucionalidade material por ofensa aos cânones que lutam pela efetividade da jurisdição[12].
Aplicando-se a concessão da antecipatória ex officio, justificada pela natureza jurídica de norma de ordem pública do art. 333, temos que é permitido ao magistrado efetivar a tutela provisória ao autor que se depara com réu titular de um direito e que faz de seu exercício um ato ilícito, excedendo manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes nos termos do art. 187 do Código Civil. Em casos tais pode ser deferida a tutela antecipatória punitiva prevista no art. 273, II, do Código de Processo Civil, se constatado o abuso de direito na espécie.
Citando Salvatore Patti, o paranaense Luiz Guilherme Marinoni afirma que “A necessidade de distribuir o ônus da prova decorre do princípio de que o juiz, mesmo em caso de dúvida resultante de carência de prova, não pode deixar de dar solução à causa. Se o juiz tem o dever de sentenciar, solucionando o mérito, alguém tem que pagar pela carência da prova que o impede de ter um juízo perfeito sobre o conflito de interesses. Nesse sentido a regra do art. 333 é apenas um indicativo para o juiz se livrar do estado de dúvida e, assim, poder definir o mérito”[13]; […] “O art. 273, II, ao admitir a tutela antecipatória lastreada em abuso de direito de defesa, abre oportunidade para a tutela antecipatória – no procedimento comum – baseada em prova do fato constitutivo e defesa indireta infundada”[14].
De acordo com este entendimento, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery[15].
A regra de distribuição do ônus da prova, conforme disposições do direito material e processual mencionados há pouco, pode sofrer inversão de acordo com o caso concreto. O art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, sem sombra de dúvidas aguçou a doutrina e os tribunais sobre a distribuição das provas no processo civil. Não podemos, mesmo assim, restringir a aplicabilidade da distribuição do ônus probatório somente nas relações de consumo, pois além de violarmos disposições expressas a respeito da inversão, estaremos cerceando a regra de julgamento dada ao magistrado. Ademais, quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, diz o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. Distribuir o ônus da prova de acordo com o caso concreto, de fato, é aplicar um princípio geral de direito processual constitucionalmente destinado ao juiz, que deverá analisar os fundamentos jurídicos da demanda e aplicar o princípio da igualdade se baseando nas circunstâncias de fato e de direito invocadas pelas partes no processo. Ora, soa injusto que o magistrado segregue o art. 333 do CPC da racionalidade do próprio sistema constitucional, devendo, portanto, tratar os iguais na medida de suas igualdades e os desiguais na medida de suas desigualdades conforme o art. 5º, caput, da Constituição Federal[16].
Na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, dispõe o art. 5º da já citada Lei de Introdução ao Código Civil. De acordo com essa norma, aliada à interpretação sistemática da regra de distribuição do ônus da prova, tida como inversão nos casos em que é afastado o comando do art. 333 do CPC, deve o magistrado distribuir o peso da prova da verdade se valendo das premissas processuais que regulamentam seus poderes, seus deveres e sua responsabilidade. O art. 125 do Código de Processo Civil diz que o juiz dirigirá o processo e a ele competirá: I – assegurar às partes igualdade de tratamento; II – velar pela rápida solução do litígio; III – prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça; e IV – tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes.
Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias, reza o art. 130 do Código de Processo Civil[17]. Através dessa norma, de cunho geral, pode o magistrado fundamentar a regra de distribuição do ônus da prova às partes, mesmo que se afaste, fundamentadamente, do art. 333 do mesmo código. Corroboradamente, o art. 131 do CPC diz que o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento. Trata-se do livre convencimento motivado autorizado pelo ordenamento jurídico, vetor do processo judicial constitucional que harmoniza a independência dos poderes do Estado, principalmente do Poder Judiciário, que antes era relegado a aplicar a lei ex officio do mesmo modo que o administrador público. Ao contrário, nos dias que correm o juiz deve interpretar – sem arbítrio – a lei, verticalmente da Constituição para baixo, fundamentadamente, com o objetivo de dar, em tempo útil e adequadamente, tutela à parte que procura a justiça.
Ocorre que a regra de distribuição do ônus da prova, ou sua inversão segundo acentua boa parte da doutrina, não pode ocorrer senão quando haja previsão legal a respeito. É a posição do juiz paulista Carlos Fonseca Monnerat, extraída de sua tese de doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde foi defendida a inversão do ônus da prova no processo penal brasileiro depois de lauta discussão sobre a teoria geral da prova, nestes termos: “O princípio isonômico da inversão do ônus da prova só é aplicável quando expressamente autorizado, como no microssistema jurídico brasileiro de proteção do consumidor. Celso Antonio Fiorillo, Marcelo Abelha Rodrigues e Rosa Maria Andrade Nery afirmam ser possível o uso da inversão do ônus da prova em qualquer ação civil pública. Baseiam essa afirmação no sentido de que se trata de regra de índole processual e, mesmo fora do Título III do Código de Defesa do Consumidor, que é aplicável às ações civis públicas e poderia ser aplicado por extensão. O Título III do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, denominado Da defesa do consumidor em juízo, trata do regramento processual aplicável. Tais regras são também aplicáveis à ação civil pública, por disposição legal. Ada Pellegrini Grinover pensa de forma diversa. Para ela a inversão do ônus da prova nas lides ambientais não é possível, pois a regra está fora das disposições processuais do Código de Defesa do Consumidor. Essa dúvida sobre a possibilidade de incidência da inversão do ônus da prova nas demandas coletivas ambientais é a explicação, segundo Hamilton Alonso Júnior, para sua não aplicação no dia-a-dia forense. Defende este autor a aplicação do instituto nas ações civis públicas ambientais, firmando posição pelo in dubio pro ambiente. Não concordamos com o posicionamento analógico, extensivo ou de primazia do interesse público. Fosse assim, despicienda a menção da possibilidade de inversão do ônus da prova feita no inciso VIII do artigo 6º do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Regras de exceção não podem ser aplicadas por analogia ou extensão. Apenas quando expressamente autorizadas podem ser aplicadas”[18]. Fiel ao entendimento do magistrado, ou seja, de se permitir a regra de distribuição do ônus da prova somente quando autorizado por lei, temos que o art. 927, parágrafo único, do Código Civil, ainda que em termos genéricos, se compatibiliza com a aplicação do instituto concessório da inversão do ônus de provar na exceção do cotidiano art. 333 do CPC: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. A autorização da regra de distribuição, entretanto, pode ser retirada, também, de outros dispositivos legais, como, por exemplo, os já citados arts. 130 e 131 do Código de Processo Civil ao conferirem disposições gerais sobre regra de julgamento.
Mais liberais quanto à autorização ao juiz em conceder a inversão do ônus da prova, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart argumentam: “Há um grande equívoco em supor que o juiz apenas pode inverter o ônus da prova quando pode aplicar o CDC. O fato de o art. 6.º, VIII, do CDC, afirmar expressamente que o consumidor tem direito à inversão do ônus da prova não significa que o juiz não possa assim proceder diante de outras situações de direito material. Caso contrário, teríamos que raciocinar com uma das seguintes premissas: i) ou admitiríamos que apenas as relações de consumo podem abrir margem à inversão do ônus da prova; ii) ou teríamos que aceitar que, ainda que outras situações de direito substancial exijam a possibilidade de inversão do ônus da prova, essas não admitiriam a inversão pelo fato de o juiz não estar autorizado a tanto em lei”[19], dando os seguintes exemplos e citando Leo Rosemberg: “Basta pensar nas chamadas atividades perigosas, ou na responsabilidade pelo perigo, bem como nos casos em que a responsabilidade se relaciona com a violação de deveres legais, quando o juiz não pode aplicar a regra do ônus da prova como se estivesse frente a um caso ‘comum’, exigindo que o autor prove a causalidade entre a atividade e o dano e entre a violação do dever e o dano sofrido. Ou seja, não há razão para forçar uma interpretação capaz de concluir que o art. 6.º, VIII, do CDC pode ser aplicado, por exemplo, nos casos de dano ambiental, quando se tem a consciência de que a inversão do ônus da prova ou a redução das exigências de prova têm a ver com as necessidades do direito material e não com uma única situação específica ou com uma lei determinada. Além disso, não existe motivo para supor que a inversão do ônus da prova somente é viável quando prevista
Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira, discorrendo sobre a Teoria da Distribuição Dinâmica do Ônus da Prova, citando Wilson Alves Souza, Antonio Janyr Dall´Agnol Junior, Alexandre Freitas Câmera e um julgado proferido pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em recurso especial, afirmam que o “[…] CPC acolheu a teoria estática do ônus da prova (teoria clássica), distribuindo prévia e abstratamente o encargo probatório, nos seguintes termos: ao autor incumbe provar os fatos constitutivos do seu direito e ao réu provar os fatos impeditivos, modificativos e extintivos (art. 333, CPC). Sucede que nem sempre autor e réu têm condições de atender a esse ônus probatório que lhes foi rigidamente atribuído – em muitos casos, por exemplo, vêem-se diante de prova diabólica. E, não havendo provas suficientes nos autos para evidenciar os fatos, os juiz terminará por proferir decisão desfavorável àquele que não se desincumbiu do seu encargo de provar (regra de julgamento). É por isso que se diz que essa distribuição rígida do ônus da prova atrofia nosso sistema, e sua aplicação inflexível pode conduzir a julgamentos injustos. ‘Não se nega a validade da teoria clássica como regra geral, mas não se pode é admitir tal regra como inflexível e em condições de solucionar todos os casos práticos que a vida apresenta’”. Segundo os diletos processualistas as principais teorias sobre o ônus da prova são as seguintes: “[…] 1) Teoria de Jeremy Bentham; 2) Teoria de Bethmann-Hollweg; 3) Teoria de Gianturco; 4) Teoria de Betti, Carnelutti e Chiovenda; e a 5) Teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova (e a similar teoria do princípio da solidariedade e cooperação de Jorge W. Peyrano e Augusto M. Morello (na verdade, seus principais mentores) […]”[21]. Em síntese, concluem Didier Jr., Sarno Braga e Rafael Oliveira que “[…] a concepção mais acertada sobre a distribuição do ônus da prova é essa última: a distribuição dinâmica do ônus da prova, segundo a qual a prova incumbe a quem tem melhores condições de produzi-la, à luz das circunstâncias do caso concreto. Em outras palavras: prova quem pode. Esse posicionamento justifica-se nos princípios da adaptabilidade do procedimento às peculiaridades do caso concreto, da cooperação e da igualdade […]. Enfim, de acordo com essa teoria: i) o encargo não deve ser repartido prévia e abstratamente, mas, sim, casuisticamente; ii) sua distribuição não pode ser estática e inflexível, mas, sim, dinâmica; iii) pouco importa, na sua subdivisão, a posição assumida pela parte na causa (se autor ou réu); iv) não é relevante a natureza do fato probando -, mas, sim, quem tem mais possibilidades de prová-lo”[22].
Vistos os aspectos gerais da regra de distribuição do ônus da prova no processo civil brasileiro, cabível no espaço de nossa apertada síntese, vamos analisar o momento em que o instituto incide no procedimento, antes de concluirmos, com o apoio da doutrina e nossa posição, ao final.
Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, com eminência, ensinam que “O juiz é o destinatário mediato da prova, de sorte que a regra sobre o ônus da prova a ele é dirigida, por ser regra de julgamento. Nada obstante, essa regra é fator indicativo para as partes, de que deverão se desincumbir do ônus sob pena de ficarem em desvantagem processual. O juiz, ao receber os autos para proferir sentença, verificando que seria o caso de inverter o ônus da prova em favor do consumidor, não poderá baixar os autos em diligência e determinar que o fornecedor faça a prova, pois o momento processual para a produção dessa prova já terá sido ultrapassado. Caberá ao fornecedor agir, durante a fase instrutória, no sentido de procurar demonstrar a inexistência do alegado direito do consumidor, bem como a existência de circunstâncias extintivas, impeditivas ou modificativas do direito do consumidor, caso pretenda vencer a demanda. Nada impede que o juiz, na oportunidade de preparação para a fase instrutória (saneamento do processo), verificando a possibilidade de inversão do ônus da prova em favor do consumidor, alvitre a possibilidade de assim agir, de sorte a alertar o fornecedor de que deve desincumbir-se do referido ônus, sob pena de ficar em situação de desvantagem processual quando do julgamento da causa”[23].
Muito embora se referindo às relações de consumo, o posicionamento de Nery Jr. e Rosa Nery se aplica, também, nas relações de direito material alheias ao regime jurídico instituído pela Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990.
Fábio Guidi Tabosa Pessoa tem o seguinte entendimento: “Aspecto de especial relevância diz respeito, outrossim, ao momento apropriado à inversão do ônus da prova, se desde logo, no início do processo, se por ocasião do saneamento ou se, por fim, ao ensejo da própria sentença; em torno dessas possibilidades, a primeira é a que suscita menores dificuldades. Não que, juridicamente, seja vedado ao juiz, em face de requerimento trazido pelo consumidor já na petição inicial, apreciar de imediato o tema, estabelecendo antes mesmo da citação que o ônus se transfira ao fornecedor. Decisão em tal sentido se afigurará, entretanto, normalmente prematura, em primeiro lugar porque perfeitamente possível (e mais do que isso, recomendável) ao juiz que aguarde as razões da defesa para que melhor possa aquilatar, do contexto das alegações de ambas as partes, a presença ou não dos requisitos autorizadores da inversão; a par disso, não trará na prática benefício algum ao consumidor, já que a real utilidade da inversão se fará sentir a partir da fase probatória, nenhum inconveniente havendo pois em que se enfrente a matéria apenas nesse momento. No que se refere ao saneamento, outrossim, convém ressaltar que a alusão se faz em função da percepção de que esse o momento a rigor apropriado para a delimitação pelo juiz dos fatos controvertidos e para o deferimento das provas que em torno deles hão de se produzir. Tecnicamente, todavia, não há diferença em ser a inversão deliberada no próprio saneador ou antes dele, e mesmo depois, mas antes de encerrada a instrução, de modo que a dicotomia se põe acima de tudo entre dois pontos fundamentais: deve o juiz decidir a respeito no curso do processo ou apenas na decisão da causa? A primeira solução nos parece, indiscutivelmente, a única aceitável. Com efeito, embora respeitável doutrina sustente tese oposta (v., por todos, Grinover e Watanabe, Código de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, p. 494), o raciocínio vem centrado, pelos defensores dessa corrente, na idéia já antes referida da mera regra de julgamento, em si mesma acertada, mas não exauriente do conteúdo do ônus da prova. Insista-se que antes de ser dirigido ao juiz é ele endereçado às partes, e somente nesse sentido se autoriza o uso da expressão ônus; por outro lado, de se ter presente que a inversão judicial, tal qual prevista, implica o estabelecimento pelo próprio magistrado de regra procedimental nova, válida para o caso concreto, que necessariamente há de se pautar pelo respeito a cânones constitucionais como o do devido processo legal e o da ampla defesa (cuja acepção é sabidamente mais ampla do que a de simples admissão de defesa técnica do réu). Assim sendo, é fundamental que os preceitos objetivos atinentes ao caso sejam estabelecidos em termos úteis, acompanhados de mecanismos que possibilitem aos litigantes a efetiva possibilidade: I) de se desincumbirem em termos práticos dos encargos a eles impostos; e II) de participação no desenrolar do processo. Nessa linha de pensamento, falar em ônus a quem nada mais pode, dado o momento processual, provar, é mera ilusão, de modo que a inversão na sentença, não bastasse a surpresa acarretada ao novo ‘contemplado’ – pois retira dele toda e qualquer possibilidade de atuação em face da nova definição adotada -, traz também ínsita a perspectiva, a nosso ver inconstitucional, de estabelecimento de uma regra com força retroativa, abrindo espaço à apreciação pelo juiz, na decisão final, e em função de norma processual nova criada apenas nesse momento, de situação passada, visto que em última análise se prestará aquela à apreciação dos efeitos da anterior atividade probatória das partes (ou, mais propriamente, à aplicação das conseqüências relativas à insuficiência dessa atividade); no extremo, o enfoque exclusivo sobre o ônus da prova como critério de julgamento permitiria, por hipótese, tomar por aplicáveis de imediato novas regras legais sobre sua distribuição promulgadas depois de remetidos os autos ao juiz para sentença, perspectiva que certamente foge ao razoável. A questão fica solucionada, é bem de ver, pelo mero fato de a lei já prever a hipótese de inversão, ou por eventual advertência que o juiz faça às partes em torno dessa possibilidade (ou mesmo iminência), pois em qualquer caso se voltará ao ponto inicial. Primeiro, a inversão não é efeito automático da lei (se fosse, deixaria de ser inversão, ou mesmo ato judicial, e passaria a ser regra originária de ônus), de modo que indiferente a mera remissão ao texto legal. Por outro lado, em torno da suposta advertência, revela-se inócua: ou, coerentemente com ela (e inclusive a esvaziá-la), o juiz, desde logo, de fato inverte o ônus da prova no curso do processo, eliminando o problema, ou não o faz, e nesta última hipótese, por ausente decisão específica, terá se limitado a inutilmente repetir, sem qualquer efeito palpável, o texto legal (sempre restando a possibilidade, caso depois venha a inversão na sentença, de o prejudicado alegar que não provou porque assim não foi estabelecido, pela lei ou pelo juiz, em tempo hábil). A advertência, enfim, seria nesse contexto um nada jurídico. Acertada, assim, nos parece a posição adotada por Carlos Roberto Barbosa Moreira, no sentido de que deva a inversão anteceder o início da instrução (Notas sobre a Inversão do Ônus da Prova em Benefício do Consumidor, pp. 135-139), embora, insista-se, excepcionalmente também se possa cogitar da inversão já no curso da instrução (ou mesmo depois de encerrada, mas com a respectiva reabertura), como também entende o ilustre processualista”[24].
Ainda que admitamos se tratar de regra de julgamento ou de juízo, a inversão do ônus da prova deve ser lembrada às partes antes de aberta a instrução dos autos. Sem isso, inegavelmente há indigesta surpresa àquele que, pelas circunstâncias do caso concreto, se incumbe a demonstrar os fatos alegados ou resistidos à revelia da literalidade do art. 333 do Código de Processo Civil. Ao sanear o feito, portanto, deve o juiz alertar as partes sobre a peculiar exceção à aplicabilidade irrestrita da norma geral do art. 333, seja ou não perante as relações de consumo conforme se viu com o lastro da doutrina e a cláusula geral encontrada no parágrafo único do art. 927 do Código Civil.
Se o direito em litígio não admitir transação, ou se as circunstâncias da causa evidenciarem ser improvável sua obtenção, o juiz poderá, desde logo, sanear o processo e ordenar a produção da prova, nos termos do § 2º do art. 331 do Código de Processo Civil, define o § 3º do mesmo dispositivo acrescido pela Lei 10.444, de 7 de maio de 2002.
Relevando-se a discussão que recai em face do ato processual de saneamento, se é despacho ou decisão interlocutória, passível de ser agravada neste último caso, é no saneamento do processo[25] que o juiz indica às partes a subjetividade do julgamento que será instruído com a inversão do ônus da prova ou distribuição de ônus através do ato processual que singulariza determinada regra de julgamento, aferível casuisticamente, estribado na lei e sob o regime constitucional vigente apto a reconhecer as vicissitudes da vida humana apreciadas pelo Poder Judiciário[26].
Em conclusão, salvo nas hipóteses em que cabível a concessão da antecipatória liminarmente, sem audiência de justificação do requerente e sem ouvir a parte contrária, ao sanear o processo e determinar a distribuição do ônus da prova, inclusive com a possibilidade de inversão da regra prevista no art. 333 do Código de Processo Civil, abrindo-se a oportunidade à parte demonstrar os fundamentos de fato e de direito de suas alegações, nada obsta que o magistrado defira a tutela provisória com fulcro no inciso II, primeira parte, do art. 273 do mesmo Código em razão do abuso no direito de defesa processual provocado pelo abuso de direito material do art. 187 do Código Civil.
NOTAS
[1] Dispunha o art. 159 do revogado Código Civil de 1916: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código, arts.
[2] Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I, Dos Direitos e Garantias Individuais e Coletivos.
[3] Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante, 7ª ed., RT, SP, 2003, p. 724, nota 11;
[4] Idem, nota 12.
[5] Sobre a responsabilidade subjetiva, v. Rui Stoco, in Tratado de Responsabilidade Civil, Responsabilidade Civil e sua Interpretação Doutrinária e Jurisprudencial, RT, SP;
[6] Art. 966 do Código Civil.
[7] A “ilicitude” do ato praticado com abuso de direito possui natureza objetiva, aferível, independentemente de culpa e dolo (RJTJRS, 28:373, 43:374, 47:345; RSTJ, 120:370, 140:396, 145:446; Súmula n. 409 do STF), aponta Maria Helena Diniz, in Código Civil Anotado, 11ª ed., Saraiva, SP, 2005, p. 219.
[8] Código Civil Anotado e Legislação Extravagante, 2ª ed., RT, SP, 2003, p. 256, nota 11;
[9] STJ, 4ª T., REsp 250523-SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, v.u., j. 19.10.2000, DJU 18.12.2000, RSTJ 145/446.
[10] Sobre o estudo sistemático das provas, v. Cândido Rangel Dinamarco, in Instituições de Direito Processual Civil, III, 4ª ed., Malheiros, SP, 2004, p. 527 e ss.;
[11] Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 186/2005, cuja pretensão é dar novas disposições ao art. 273 do Código de Processo Civil na tentativa de conciliar a fungibilidade entre a antecipação da tutela e a medida cautelar.
[12] Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I, Dos Direitos e Garantias Individuais e Coletivos.
[13] Abuso de Defesa e Parte Incontroversa da Demanda, RT, SP, 2007, p. 52;
[14] Idem, pp. 98/99;
[15] Código Civil Anotado e Legislação Extravagante, 2ª ed., RT, SP, 2003, p. 256, nota 14.
[16] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […].
[17] No sentido de que, em qualquer caso, cabe ao juiz determinar de ofício a realização de provas que julgue necessárias (art. 130), José Carlos Barbosa Moreira, in O Novo Processo Civil Brasileiro (Exposição sistemática do procedimento), 25ª ed., Forense, RJ, 2007, p. 56.
[18] Inversão do Ônus da Prova no Processo Penal Brasileiro, Comunnicar, SP, 2006, pp. 127/128.
[19] Curso de Processo Civil, v. 2, Processo de Conhecimento, 6ª edição revista, atualizada e ampliada da obra Manual do Processo de Conhecimento, RT, SP, 2007, pp. 267/268.
[20] Curso de Processo Civil, v. 2, Processo de Conhecimento, 6ª edição revista, atualizada e ampliada da obra Manual do Processo de Conhecimento, RT, SP, 2007, p. 268.
[21] Curso de Direito Processual Civil, Direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada, editora JusPODIVM, v. 2, Salvador/Bahia, 2007, pp. 61/62;
[22] Idem, p. 62.
[23] Código Civil Anotado e Legislação Extravagante, 2ª ed., RT, SP, 2003, p. 915, nota 19.
[24] Código de Processo Civil Interpretado, coordenador Antonio Carlos Marcato, Atlas, SP, 2004, pp. 1006/1008.
[25] “Considerando que as partes não podem ser surpreendidas, ao final, com um provimento desfavorável acerca da inexistência ou da insuficiência da prova que, por força da inversão determinada na sentença estaria a seu cargo, parece mais justa e condizente com as garantias do devido processo legal a orientação segundo a qual o juiz deva, ao avaliar a necessidade de provas e deferir a realização daquelas que entenda pertinentes, explicar quais serão objeto de inversão” (TJSP, AI nº 121.979-4, 6ª C. Dir. Priv., rel. Des. Antonio Carlos Marcato, j. 7/10/99);
[26] Poder da república que diz, ao final, o direito.
REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
TASSUS DINAMARCO: Advogado, pós-graduando