Ricardo Kalil Fonseca*
Sumário: 1. Eufemismo da lei de alienação fiduciária. 2. Teses a favor e contra a prisão civil. 3. Disposições legais incompatíveis com a prisão civil 4. Posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal 5. Considerações finais. 6. Fontes.
1. Eufemismo da lei de alienação fiduciária
O decreto lei n. 911/1969, que trata da alienação fiduciária em garantia, discretamente, não contém os termos “prisão civil” como medida de coerção em caso de mora ou inadimplência.
Porém, uma ponte, conduz a este resultado, pois dispõe o decreto, que em caso de mora ou inadimplemento, o credor pode propor ação de busca de apreensão, e não encontrado o bem, requerer sua conversão ao rito da ação de depósito, previsto do art.
Assim, descontado o eufemismo da legislação, se trata mesmo de prisão civil por dívida, porque, a pretensão do credor fiduciário, é o recebimento da dívida, e não o de reaver o bem, como ocorre no instituto do depósito tradicional, que se classifica em voluntário e necessário, nos termos dos artigos 627 e 647, respectivamente, do Código Civil.
O decreto foi criado na época da ditadura militar, e tal era a instabilidade do País naquele momento, que ocuparam o cargo de Presidente, cinco militares apenas naquele ano[I].
A criação da fórmula naquele contexto, provavelmente não causou espanto.
2. Teses a favor e contra a prisão civil
Atualmente, várias teses são apresentadas a favor ou contra a prisão civil neste caso, e as decisões dos tribunais também se dividem. Vêm de longe, por exemplo, os questionamentos:
1. Se o decreto 911/69, foi recepcionado pela Constituição de 1988;
2. A ilegalidade da aplicação das regras do depósito tradicional, nos contratos de alienação fiduciária;
3. Aplicabilidade do princípio do pacta sunt servanda, já que o consumidor aceita as regras na contratação.
4. A aplicabilidade o Pacto de San José de Costa Rica, que admite a prisão civil apenas no inadimplemento de dívida alimentar.
5. Status de Emenda Constitucional deste Pacto, conferido pela Emenda n.º 45.
A extravasar os debates sobre a literalidade da lei, outra preocupação é quanto à segurança e agilidade dos negócios entabulados com a utilização deste decreto, por suposto fator inibitório ao descumprimento do contrato, em razão da possibilidade de prisão civil. Justificável, já que é significativo o volume de veículos adquiridos por esta via.
Pelos registros da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores – ANFAVEA, no ano de 2007, dos veículos novos comercializados, 70% foram através de financiamento.[II]
Em novembro de 2002, mediante o decreto n.º 678, o Brasil aderiu ao Pacto de São José da Costa Rica, que trata da convenção americana sobre direitos humanos.
O item 7 do art. 7º deste decreto, admite apenas uma forma de prisão civil, a decorrente de crédito alimentar, in verbis:
7. Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.
Ratificando este decreto, posteriormente, dispôs o §3º do art. 5º da Emenda Constitucional de n.º 45, de dezembro de 2004:
Art. 5º
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados,
O Plenário do Supremo Tribunal Federal enfrenta atualmente a matéria, através do Recurso Extraordinário de nº. 466.343, sendo que oito (8) Ministros já expressaram seu voto, reconhecendo a inconstitucionalidade da prisão civil nos casos de alienação fiduciária.[III]
Enquanto tramita este julgamento, o entendimento já esposado pela maioria do julgadores do STF, tem servido de fundamento para julgamento nos tribunais, e no próprio Supremo:
(…) 3. Reiterados alguns dos argumentos expendidos em meu voto, proferido em sessão do Plenário de 22.11.2006, no RE nº 466.343/SP: a legitimidade da prisão civil do depositário infiel, ressalvada a hipótese excepcional do devedor de alimentos, está em plena discussão no Plenário deste Supremo Tribunal Federal. No julgamento do RE nº 466.343/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, que se iniciou na sessão de 22.11.2006, esta Corte, por maioria que já conta com sete votos, acenou para a possibilidade do reconhecimento da inconstitucionalidade da prisão civil do alienante fiduciário e do depositário infiel. 4. Superação da Súmula nº 691/STF em face da configuração de patente constrangimento ilegal, com deferimento do pedido de medida liminar, em ordem a assegurar, ao paciente, o direito de permanecer em liberdade até a apreciação do mérito do HC nº 68.584/SP pelo Superior Tribunal de Justiça.
A par de tudo isto, cabe a refletir se – com exceção de dívida alimentar, cuja obrigação está diretamente associada à vida, a sobrevivência do alimentando – é razoável nos dias atuais, a prisão civil por dívidas em geral.
A olhar pela história, se vê que, a manutenção do dispositivo da prisão civil do decreto 911/69, é uma válvula aberta de retorno a eras primitivas, quando as dívidas eram pagas com a vida ou com a liberdade.
Já a sua manutenção, pode servir de precedente para a criação de outras espécies de contrato, com igual jaez, pois ainda que por via oblíqua, o contrato de alienação fiduciária na prática, prevê a prisão civil por dívida.
E a considerar a versatilidade empresarial, com a abolição da prisão civil neste caso, se manterá o fluxo de negócios, especialmente porque não faltam outros instrumentos de garantia, tais como: seguro, leasing, garantia fidejussória, aval, crédito pré-aprovado em bancos, e até, pela toada da carruagem, aquisições de veículos com cartão de crédito.
Sem descarte também, para exercício de direito de seqüela sobre o bem, pelo sistema de bloqueio e rastreamento de veículos, mecanismo aliás, que será obrigatório em todos os veículos novos, a partir de 2009, conforme resolução n.º 245, do Conselho Nacional de Trânsito[V].
Por este prisma, a prisão civil decorrente dos contratos de alienação fiduciária, é medida extrema, desnecessária, e incompatível com os tempos atuais.
6. Fontes:
[II] Jornal O Estado de São Paulo.
http://www.estado.com.br/editorias/2008/01/07/eco-.93.4.20080107.1.1.xml – Acesso em 05/02/2008.
[III]http://conjur.estadao.com.br/static/text/50376,1 Acesso em 05/02/2008.
[IV] STF.HC 90172/SP – São Paulo. Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgamento: 05/06/2007. Segunda Turma Publicação: DJE-082 17-08-2007 PP-00091.
[V] DOU 1.08.2007.
REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
RICARDO CALIL FONSECA: Advogado em Itaberaí, Goiás, atuante desde 1992, nas áreas: cível e trabalhista, inscrito na OAB/GO sob nº. 12.120. Pós-graduado em direito do trabalho, pelo convênio Universidade Católica de Goiás/PUC-SP.