* Maria Berenice Dias –
UNIÃO ESTÁVEL
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”
Parágrafo 1º – A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato.
Parágrafo 2º – As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável, na forma do seu parágrafo único.
Parágrafo 3º – Poderá ser reconhecida a união estável diante dos efeitos do art. 1.576.
Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.
Art. 1.725. Na união estável, salvo convenção válida entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.
Art. 1.727. As relações não-eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.
Definição do instituto
Não se pode deixar de reconhecer como pertinente e coerente haver a norma codificada copiado a definição da união estável consolidada na legislação infraconstitucional.
De todo descabido estabelecer requisito temporal para sua configuração, delimitação que nunca foi posta pela jurisprudência, à qual se deve a construção dessa figura jurídica. Igualmente, o texto constitucional, ao emprestar juridicidade ao instituto, não lhe fixou prazo.
Cabe lembrar que a Lei nº 8.971/94, primeira a regulamentar a união estável, estipulou o prazo de 5 anos ou a existência de prole para o seu reconhecimento. Porém, tais foram as críticas sofridas por esse dispositivo, que antes de haver passado ano e meio foi promulgada a Lei nº 9.278/96, afastando a exigência de tempo mínimo fixado em lei como conditio sine qua non do reconhecimento da união.
Inegavelmente, a tentativa de impor parâmetros objetivos para regular relações nascidas dos fatos e do afeto acabaria deixando à margem do manto legal um sem-número de situações que, na realidade, constituem entidade familiar.
Nada justifica o § 2º do art. 1.723. De todo desmotivada é a remissão ao art. 1.523, tão-só para dizer que não incidem na união estável os impedimentos impedientes para o casamento. São limitações de caráter temporário, que não afetam a existência, a validade ou a eficácia do casamento. Ainda assim, a inserção final na forma do seu parágrafo único é equivocada, pois esse parágrafo se refere ao pedido de autorização judicial para celebração do casamento, se provada ausência de prejuízo. Como para estabelecer a união estável inexiste qualquer formalidade, a remissão à autorização judicial é absolutamente ilógica.
A faculdade assegurada pelo § 3º do mesmo artigo – de ser reconhecida a união estável em face dos efeitos da separação judicial – procura limitar a possibilidade de reconhecimento da união ao caso em que estejam os cônjuges separados de fato ou judicialmente. Parece nítida a tentativa de excluir da figura jurídica da união estável o que a doutrina chama de concubinato adulterino, ou impuro, ou concubinagem, tanto que o texto acabou por ressuscitar a figura do concubinato no art. 1.727.
E os direitos?
É preocupante não ter sido expressamente inserido o instituto no âmbito do Direito de Família, não havendo sequer a indicação da competência das Varas de Família para apreciar as demandas envolvendo a união estável.
Igualmente preocupa o silêncio do Projeto com referência a direitos reconhecidos aos parceiros. Sobretudo o fato de não haver qualquer referência ao direito a alimentos pode ensejar o entendimento de que houve a exclusão de dito direito. A menção no art. 1.694 – que fala em conviventes – não basta para suprir a necessidade de uma especificação explícita, que garanta o reconhecimento da permanência do direito a alimentos entre os companheiros.
Também não se estabelece a presunção de colaboração mútua na aquisição dos bens. Isso pode afastar o reconhecimento do estado condominial, com partição igualitária do patrimônio. Para suprir essa lacuna, não basta a determinação de aplicação supletiva do regime da comunhão parcial dos bens.
Renascimento do concubinato
A mais severa crítica à regulamentação da união estável é a tentativa de ressuscitar a figura do concubinato, sepultada, em boa hora, pela nova ordem constitucional.
Por exclusão, pretende o Projeto expungir do conceito de união estável, não as pessoas impedidas de casar, mas, na verdade, as chamadas relações adulterinas. Como se permite o reconhecimento da união entre pessoas separadas de fato ou separadas judicialmente – sendo ambas impedidas de casar -, não se vê o alcance que se quer dar ao nominado concubinato.
Ademais, criar uma figura e nada dizer sobre ela revela uma postura meramente punitiva. Se um do par deixa de cumprir o dever de fidelidade e mantém duplo vínculo familiar, afronta o consagrado sistema da monogamia. Logo, é injustificável que quem assim age seja beneficiado. Ao vetar a possibilidade do reconhecimento de uma entidade familiar, estar-se-ão suprimindo os efeitos patrimoniais do vínculo que, com ou sem respaldo social, existiu. Isso só beneficiará o parceiro adúltero, que não irá dividir o patrimônio amealhado com a colaboração mútua, sendo causa de enriquecimento ilícito.
DIREITO SUCESSÓRIO
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos na vigência da união estável, nas condições seguintes;
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma cota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
Com relação aos direitos sucessórios, chama a atenção a deficiente técnica legislativa ao referir a companheira ou o companheiro. Despicienda a especificação do gênero, pois, usando o termo no plural, indiscutivelmente se trata de uma previsão referente tanto ao homem quanto à mulher.
Correta a inserção que restringe os direitos sucessórios aos bens adquiridos na vigência da união estável, o que corresponde, no casamento, ao regime de bens da comunhão parcial, ou seja, de comunhão dos aqüestos, com o que não se deferem aos companheiros mais direitos do que aos cônjuges.
Conquanto imperioso reconhecer o esforço da pré-legislação em não afrontar a norma constitucional que impõe o reinado da igualdade, acabou violado esse cânone maior, produzindo verdadeiro retrocesso aos direitos dos conviventes, direitos já consolidados na legislação infraconstitucional.
Indevido excluir da parceria estável a sucessão necessária, condição a que o cônjuge foi guindado. De todo descabida, por conseqüência, a disparidade de tratamento que resultou. O art. 1.829 estabelece que o cônjuge concorre com os descendentes, mas aos companheiros somente concede o mesmo direito se concorrerem com os filhos comuns; e limita à metade do quinhão, se os herdeiros forem filhos só do autor, distinção que não é feita quanto ao vínculo matrimonial. O tratamento desigual dado à condição de cônjuge e à de parceiro não se justifica, tendo em vista o reconhecimento da união estável como entidade familiar.
A disparidade prossegue no que diz com o direito real de habitação deferido somente ao cônjuge (art. 1.831), bem como ao subtrair do parceiro sobrevivente a garantia da quarta parte da herança, benesse assegurada ao cônjuge sobrevivo, se concorrer com os filhos comuns (art. 1.832).
Lembre-se ainda que ambas as leis regulamentadoras da união estável deferem direitos outros, não contemplados no código projetado. A Lei nº 8.971/94 garante o direito de usufruto da metade ou da quarta parte da herança, a depender da existência de filhos do de cujus. Já a Lei nº 9.278/96 assegura o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família.
Como o novel estatuto irá disciplinar com exclusividade a matéria, restando derrogada toda a legislação esparsa, há sério risco de a jurisprudência deixar de reconhecer ditos direitos. Isso será extremamente injusto, principalmente para as mulheres que ainda não detêm a titularidade dos bens.
Trata-se, pois, de severa limitação às relações extramatrimoniais. Não prospera a justificativa do relator – de que a união estável é instituição-meio, enquanto o casamento seria instituição-fim – para dar prevalência à relação matrimonial sobre o relacionamento estável. Essa predileção, inegavelmente, afronta o princípio da igualdade, básico da ordem constitucional, que foi quem igualou a união estável e o matrimônio como entidades familiares, sem distinções de ordem patrimonial.
Uniões homoafetivas
Se a realidade social impôs o enlaçamento das relações afetivas no Direito de Família – e estando a moderna doutrina e a mais vanguardista jurisprudência a definir família pela só presença de um vínculo afetivo -, não mais se justifica deixar de incluir como espécies desse gênero as relações homossexuais.
Mudaram os paradigmas da família. O casamento deixou de ser seu traço identificador. A entidade familiar não mais tem por finalidade precípua e exclusiva a função reprodutiva – quer pelo surgimento dos métodos contraceptivos, quer pela evolução da engenharia genética, que permite a fecundação manipulada. Deixar à margem da lei os vínculos afetivos que não se definem pela diferença do sexo do par, embora haja convivência duradoura, pública e contínua, com objetivo de constituição de família, é omissão inadmissível. As relações homoafetivas, tanto quanto as heteroafetivas, na sua enorme maioria realmente se baseiam no afeto entre os conviventes. Daí só se pode concluir que a discriminação traduz, de fato, um puro preconceito de ordem sexual, hoje não mais aceitável, banido expressamente pelo inciso IV do art. 3o da Constituição da República
Referência Biográfica
MARIA BERENICE DIAS, Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam.